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A história do ensino de enfermagem psiquiátrica na Universidade Federal de Alagoas (1976-1981)

RESUMO

Objetivo:

Analisar historicamente o ensino de enfermagem psiquiátrica da Universidade Federal de Alagoas de 1976-1981.

Métodos:

Estudo qualitativo; abordagem histórico-social com o auxílio da História Oral Temática com base em fontes documentais e depoimento de enfermeiros, discentes, docentes e profissionais do hospital psiquiátrico em que práticas ocorriam. Para a compreensão da história, utilizaram-se pesquisas sobre história mundial, do Brasil, de Alagoas e Diretrizes Curriculares da Enfermagem, além dos conceitos de Erving Goffman como referencial teórico.

Resultados:

Revelaram-se as condições estruturais da universidade em 1976, a contribuição estadunidense no corpo docente da disciplina, a preparação psicológica das estudantes nas aulas teórico-práticas, o cenário precário da assistência psiquiátrica em Alagoas e o cuidado minimizador de estigmas mediante a empatia e escuta sensível.

Conclusão:

Com o surgimento da disciplina, estudantes e professores ampliaram olhares sobre o adoecimento mental e evidenciaram a necessidade de manter uma formação acadêmica pautada em princípios reformadores da assistência.

Descritores:
Ensino de Enfermagem; Enfermagem Psiquiátrica; História; Programas de Graduação em Enfermagem; Hospitais Psiquiátricos

ABSTRACT

Objective:

To historically analyze psychiatric nursing teaching at the Universidade Federal de Alagoas from 1976 to 1981.

Methods:

Qualitative study; social-historical approach employing Thematic Oral History based on the documentary sources and testimonials from nurses, students, professors, and professionals at the psychiatric hospital where these practices occurred. The study researched World, Brazil, and Alagoas history and the Curricular Guidelines for Nursing for the history comprehension and used Erving Goffman’s concepts as a theoretical reference.

Results:

They revealed the structural conditions of the university in 1976, the American contribution to the teaching staff, the students’ psychological preparation in theoretical and practical classes, the precarious scenario of psychiatric care in Alagoas, and the care that minimizes stigmas through empathy and sensitive listening.

Conclusion:

With the emergence of that discipline, students and professors expanded their views on mental illness and emphasized their need for academic training based on reforming care principles.

Descriptors:
Nursing Education; Psychiatric Nursing; History; Undergraduate Nursing Programs; Psychiatric Hospitals

RESUMEN

Objetivo:

Analizar históricamente la enseñanza de enfermería psiquiátrica en la Universidad Federal de Alagoas de 1976-1981.

Métodos:

Estudio cualitativo; abordaje histórico-social con auxilio de Historia Oral Temática basada en fuentes documentales y deposición de enfermeros, discentes, docentes y profesionales del hospital psiquiátrico en que prácticas ocurrían. Para comprensión de la historia, utilizaron investigaciones sobre historia mundial, de Brasil, de Alagoas y Directrices Curriculares de Enfermería, además de conceptos de Erving Goffman como referencial teórico.

Resultados:

Revelaron condiciones estructurales de la universidad en 1976, contribución estadunidense al cuerpo docente de la disciplina, preparación psicológica de estudiantes en clases teórico-prácticas, escenario precario de la asistencia psiquiátrica en Alagoas y el cuidado reductor de estigmas mediante la empatía y escucha sensible.

Conclusión:

Con el surgimiento de la disciplina, estudiantes y profesores ampliaron miradas acerca de enfermedad mental y evidenciaron la necesidad de mantener una formación académica pautada en principios reformadores de la asistencia.

Descriptores:
Enseñanza de Enfermería; Enfermería Psiquiátrica; Historia; Programas de Grado en Enfermería; Hospitales Psiquiátricos

INTRODUÇÃO

A compreensão aprofundada da realidade é possível por meio da análise política, histórica e social dos fenômenos ocorridos. Estudar a história da enfermagem e sua intersecção com a área de saúde mental contribui para a construção do ensino em saúde voltado às práticas de assistência humanizada pautadas em princípios e diretrizes conquistados pela Reforma Psiquiátrica brasileira.

Nessa perspectiva, um objeto como a história do ensino de Enfermagem Psiquiátrica na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), de 1976 a 1981, é fundamental para a preservação da memória da assistência à saúde mental, que, no recorte deste estudo, foi caracterizada por perda da identidade dos pacientes, maus-tratos e negligências em serviços manicomiais de tratamento moral, vigilância e reclusão social(11 Trevizani TM, Silva RAN. Cartas do hospício: memória e esquecimento - rastros e insurgências. Estud Pesqui Psicol. 2019;19(1):313-36. https://doi.org/10.12957/epp.2019.43022
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2 Fonseca T, Kyrillos Neto F. Ressonâncias político-clínicas do ideal de inclusão nos centros de atenção psicossocial. Psicol Estud. 2020;25:e44893. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v25i0.44893
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3 Moraes Filho IM, Silva JP, Mato AF, Bezerra GS, Negreiros CTF, Guilherme IS. Retrocesso nas políticas nacionais de saúde mental e de álcool e outras drogas no Brasil a partir da nota técnica n°11/2019. Revisa. 2019;8(2):115-8. https://doi.org/10.36239/revisa.v8.n2.p115a118
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4 Nunes MO, Lima Jr JM, Portugal CM, Torrenté M. Reforma e contrarreforma psiquiátrica: análise de uma crise sociopolítica e sanitária a nível nacional e regional. Ciênc Saúde Coletiva. 2019;24(12):4489-98. https://doi.org/10.1590/1413-812320182412.25252019
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5 Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. 8ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva; 2008. 386 p.
-66 Pessoa JM, Santos RCA, Clementino FS, Oliveira KKD, Miranda FAN. A política de Saúde Mental no contexto do Hospital Psiquiátrico: desafios e perspectivas. Esc Anna Nery. 2016;20(1):83-9. https://doi.org/10.5935/1414-8145.20160012
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).

Em 1973, após a estada do navio-hospital-escola estadunidense HOPE em Maceió, a UFAL criou o primeiro curso de graduação em Enfermagem, iniciado em 1974, cujo cenário à época era de repressão moral, política e econômica, com indicadores sociais alarmantes e poucos investimentos em saúde, educação e habitação(77 Lima Jr MCF, Santos RM, Costas LMC, Mota FRL, Lima AFS. Circunstâncias que trouxeram o Project Hope ao estado de Alagoas/Brasil. Hist Enferm Rev Eletrônica [Internet]. 2018 [cited 2020 Aug 19];9(2):108-21. Available from: http://here.abennacional.org.br/here/v9/n2/a2.pdf
http://here.abennacional.org.br/here/v9/...

8 Santos RM, Leite JL. A inserção da Enfermagem Moderna em Alagoas: os bastidores de uma conquista. Maceió: Edufal; 2004. 164 p.

9 Santos RM, Lira YCMS, Nascimento RF. O navio HOPE: um novo encontro entre a enfermagem brasileira e a norte-americana. Maceió: EDUFAL; 2009. 180 p.

10 Costa LMC, Santos RM, Santos TCF, Trezza MCSF, Leite JL. Contribuição do Projeto HOPE para a configuração da identidade profissional das primeiras enfermeiras alagoanas, 1973 a 1977. Rev Bras Enferm. 2014;67(4):535-42. https://doi.org/10.1590/0034-7167.2014670406
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-1111 Costa LMC. O curso de graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Alagoas (1973- 1979): lutas simbólicas para criação, implantação e consolidação [Tese]. Rio de Janeiro. Universidade Federal do Rio de Janeiro; Escola de Enfermagem Anna Nery; 2016. 151 p.). Para o início das atividades desse curso, a UFAL compôs o primeiro corpo docente por concurso público, contratando as enfermeiras Lenir Nunes da Silva Oliveira e Vera Lúcia Ferreira da Rocha. Em 1975, ampliou o quadro com mais cinco enfermeiras: Zandra Maria Cardoso Candiotti, Maria Cristina Soares Figueiredo Trezza, Regina Maria dos Santos, Francisca Lígia Sobral Leite e Maria Violeta Dantas(1111 Costa LMC. O curso de graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Alagoas (1973- 1979): lutas simbólicas para criação, implantação e consolidação [Tese]. Rio de Janeiro. Universidade Federal do Rio de Janeiro; Escola de Enfermagem Anna Nery; 2016. 151 p.).

A década de 1970 foi marcada por ações dos movimentos sociais impulsionadas pelos trabalhadores da saúde, associações de usuários, conselhos profissionais e universidades, a favor de uma reforma na assistência psiquiátrica brasileira, em defesa de um processo político e social nas dimensões teórico-conceitual, técnico-assistencial, jurídico-política e sociocultural. Trinta anos depois, esse movimento resultou na Lei 10.216/2001 referente aos direitos e direcionamentos da assistência à saúde mental, em que se estabeleciam marcos políticos e sociais importantes na conjuntura nacional(22 Fonseca T, Kyrillos Neto F. Ressonâncias político-clínicas do ideal de inclusão nos centros de atenção psicossocial. Psicol Estud. 2020;25:e44893. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v25i0.44893
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3 Moraes Filho IM, Silva JP, Mato AF, Bezerra GS, Negreiros CTF, Guilherme IS. Retrocesso nas políticas nacionais de saúde mental e de álcool e outras drogas no Brasil a partir da nota técnica n°11/2019. Revisa. 2019;8(2):115-8. https://doi.org/10.36239/revisa.v8.n2.p115a118
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-44 Nunes MO, Lima Jr JM, Portugal CM, Torrenté M. Reforma e contrarreforma psiquiátrica: análise de uma crise sociopolítica e sanitária a nível nacional e regional. Ciênc Saúde Coletiva. 2019;24(12):4489-98. https://doi.org/10.1590/1413-812320182412.25252019
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,1212 Baiao JJ, Marcolan JF. Labyrinths of nursing training and the Brazilian National Mental Health Policy. Rev Bras Enferm. 2020;73(suppl.1):e20190836. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0836
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13 Amarante P, Torre EHG. “De volta à cidade, sr. cidadão!” - reforma psiquiátrica e participação social: do isolamento institucional ao movimento antimanicomial. Rev Adm Pública. 2018;52(6):1090-107. https://doi.org/10.1590/0034-761220170130
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-1414 Ribeiro MC. Trabalhadores dos Centros de Atenção Psicossocial de Alagoas, Brasil: interstícios de uma nova prática. Interface (Botucatu). 2015;19(52):95-108, https://doi.org/10.1590/1807-57622014.0151
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).

Nesse sentido, o fenômeno social em estudo aconteceu em meio a contradições reveladas nas denúncias de maus-tratos e precariedades da assistência psiquiátrica. Destarte, entender como isso ocorreu nas universidades - que, na década de 1970, acompanhavam um discurso antimanicomial, mas com práticas de estágio em serviços manicomiais - traz à tona muitos conflitos ideológicos, políticos e assistenciais que merecem ser historicamente investigados e compreendidos.

Essa contradição perpassou o ensino da enfermagem nas universidades brasileiras, e não foi diferente em Alagoas. Com o golpe militar de 1964, a política de privatização da assistência em sistema de leitos conveniados à Previdência Social proporcionou a expansão destes, inclusive dos leitos psiquiátricos em hospitais privados a fim de facilitar o processo de internação dos pacientes. Vislumbrava-se o lucro com o adoecimento e não necessariamente o bem-estar das pessoas.

Em Maceió, capital alagoana, imóveis que antes pertenciam às famílias ricas da cidade foram transformados em clínicas psiquiátricas privadas como a Casa de Saúde Miguel Couto, fundada em 1947/48; o Hospital Psiquiátrico José Lopes de Mendonça, em 1961; e o Hospital e Casa de Repouso Ulisses Guimarães, em 1968. No setor público, existia apenas o Hospital Colônia Portugal Ramalho, criado em 1956. Todos eram marcados por superlotação das enfermarias e número insuficiente de trabalhadores(1515 Ribeiro MC. A saúde mental em Alagoas: Trajetória da construção de um novo cuidado [Tese]. São Paulo; Universidade de São Paulo; 2012. 243 p.). Dois deles, o público e um privado, foram cenários das práticas de estágio da disciplina Enfermagem Psiquiátrica, da UFAL.

Essa disciplina foi implantada três anos após o início do curso de graduação em Enfermagem, concebida ainda no modelo psiquiátrico hospitalocêntrico. No início, contou com três professoras efetivas: Violeta Dantas, paraibana, formada na Escola de Enfermagem Nossa Senhora das Graças em Recife; Vera Rocha, alagoana, formada pelo curso de Enfermagem da Universidade Federal de Pernambuco; e June Sessil Barreras, estadunidense, contraparte de Vera Rocha no Project HOPE, que permaneceu em terra por cinco anos após a partida do navio HOPE(99 Santos RM, Lira YCMS, Nascimento RF. O navio HOPE: um novo encontro entre a enfermagem brasileira e a norte-americana. Maceió: EDUFAL; 2009. 180 p.

10 Costa LMC, Santos RM, Santos TCF, Trezza MCSF, Leite JL. Contribuição do Projeto HOPE para a configuração da identidade profissional das primeiras enfermeiras alagoanas, 1973 a 1977. Rev Bras Enferm. 2014;67(4):535-42. https://doi.org/10.1590/0034-7167.2014670406
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-1111 Costa LMC. O curso de graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Alagoas (1973- 1979): lutas simbólicas para criação, implantação e consolidação [Tese]. Rio de Janeiro. Universidade Federal do Rio de Janeiro; Escola de Enfermagem Anna Nery; 2016. 151 p.).

Diante do exposto, imaginam-se tamanhos desafios enfrentados pelo corpo docente e discente no ensino da graduação em Enfermagem, em especial na atenção em saúde mental. Assim, é relevante analisar esse contexto para manter vivos na formação em enfermagem os desafios enfrentados no processo de ensino-aprendizagem ocorridos na década de 1970, a fim de que os cenários de assistência à saúde mental sejam espaços ratificadores do processo da Reforma Psiquiátrica brasileira.

OBJETIVO

Analisar historicamente o ensino de enfermagem psiquiátrica na UFAL, de 1976 a 1981.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Os aspectos éticos da pesquisa foram considerados em observância às Resoluções CNS 466/2012 e 510/2016, sendo apreciada e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da UFAL. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e a concessão da entrevista ao banco de dados do Grupo de Estudo D. Isabel Macintyre (GEDIM) da EENF/UFAL, do qual o estudo faz parte. Foram mantidos nomes pessoais nos depoimentos conforme a autorização e exigência do entrevistado, tendo em vista a preservação do princípio da autonomia do sujeito construtor de sua história e que vivenciou os fatos em análise, ocupando seu lugar na história social.

Referencial teórico

O referencial teórico que auxiliou a análise e interpretação dos dados foi o pensamento de Erving Goffman por meio de seus conceitos de “estigma”, “mortificação do eu”, “identidade social” e “identidade pessoal”. Também foram consultados: estudos sobre a história mundial, brasileira e alagoana na área de psiquiatria; e o Parecer CFE 163/1972 que estabelecia o currículo mínimo para a graduação em Enfermagem e que orientou a oferta da disciplina Enfermagem Psiquiátrica.

Tipo de estudo e cenário

Estudo de caráter qualitativo(1616 Minayo MCS. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 29. ed. Petrópolis: Vozes; 2010. 96 p.) e abordagem histórico-social. O recorte temporal inicia em 1976, quando a disciplina Enfermagem Psiquiátrica foi ofertada pela primeira vez no Curso de Graduação em Enfermagem da UFAL, e finaliza em 1981, quando se evidenciaram mudanças no corpo docente, nas atividades e cenários das aulas práticas. O corpus documental foi composto pelas primeiras estruturas curriculares do curso de Enfermagem e pelos documentos originados da transcrição das entrevistas guiadas por roteiro semiestruturado.

Procedimentos metodológicos

Como critério de inclusão para a etapa das entrevistas, os participantes do estudo foram docentes e discentes da disciplina Enfermagem Psiquiátrica da UFAL no período de 1976 a 1981, bem como profissionais que trabalhavam no Hospital Colônia Portugal Ramalho à época, um dos cenários de prática da disciplina em questão. Não foram incluídos no estudo os discentes não concluintes da disciplina ofertada naquela época nem os docentes substitutos.

Produção e organização dos dados

Para colher os depoimentos, fez-se uso do método da História Oral. A seleção dos participantes partiu da lista das formandas da primeira turma de Enfermagem da UFAL e de seus docentes. Com a posse desses nomes, tentou-se contato telefônico para explicar a pesquisa e agendar uma possível entrevista no local escolhido pelo participante. Cada entrevistado indicou outros potenciais contribuintes para o estudo; e, assim, foram realizadas sete entrevistas de aproximadamente uma hora e 30 minutos, das quais quatro foram com discentes, duas com profissionais da enfermagem (atendente e auxiliar de enfermagem) do Hospital Escola Portugal Ramalho (HEPR) - antigo Hospital Colônia Portugal Ramalho - e uma com docente do curso.

Após as entrevistas, foram realizadas as transcrições e textualizações dos depoimentos, assim como a escolha de recortes orais principais que respondiam aos objetivos deste estudo. Estas foram lidas exaustivamente para a organização das narrativas em tempo cronológico e por tema apresentado, o que possibilitou descrever o processo por completo com o máximo de detalhes possíveis. As transcrições foram organizadas por cores de acordo com o tema referente a cada trecho do relato, sendo as falas, posteriormente, trianguladas com o contexto histórico, estruturas sociais e universo simbólico do discurso, seguindo uma ordem de importância dos fatos de forma lógica e didática.

RESULTADOS

A disciplina Enfermagem Psiquiátrica foi ofertada pela primeira vez em 1976. Graça (estudante da primeira turma) e Violeta (professora desde 1975 na UFAL) trazem alguns dados sobre as condições estruturais da universidade para a realização das aulas do curso recém-criado:

A disciplina se deu no ano de 1976; as aulas teóricas eram realizadas no galpão da Petrobrás, não tinha nada na Universidade Federal de Alagoas [UFAL]. Era aquele calor, ficávamos embaixo das mangueiras. (Graça)

Entrei na UFAL em 1975. Não tínhamos nem laboratório. Nós usávamos o laboratório da escola de auxiliar de enfermagem, que era bem arrumadinho. (Violeta)

A primeira turma, composta por nove estudantes, contou com o corpo docente da disciplina Enfermagem Psiquiátrica, formado por June Barreras e Vera Rocha, como nos relata Graça:

Éramos nove estudantes; e as professoras, June Barreras e Vera Rocha. (Graça)

Posteriormente, Violeta, que iniciou lecionando na disciplina Introdução à Enfermagem, foi convidada por June a assumir a disciplina Enfermagem Psiquiátrica, conforme relata:

Iniciamos o curso sem saber ensinar, sem currículo, foi muito difícil. E eu comecei na Introdução à Enfermagem - esse era o nome da disciplina. Em 1977, eu tive muitas perdas, problemas familiares, entrei de licença; e, quando eu retornei, a enfermeira June Barreras, do projeto HOPE, achou que eu deveria ir para psiquiatria, e eu estava tão fragilizada com as minhas perdas que concordei… June achou que eu tinha capacidade, e fui. (Violeta)

June Barreras, enfermeira estadunidense, veio ao Brasil como contraparte de Vera Rocha no Projeto HOPE, em terra. June apresentava algumas dificuldades com a língua portuguesa, o que fez Vera tornar-se mais atuante na dinâmica da disciplina:

As duas professoras estavam presentes em sala de aula, mas Vera era a brasileira e era quem ficava à frente da disciplina; e, de vez em quando, a June Barreras entrava para complementar as aulas com o que ela conseguia. Vera a entendia melhor. Nós, estudantes, sentimos dificuldade nessa questão da June com o idioma em sala de aula. (Graça)

June não sabia português nem nós sabíamos inglês. (Violeta)

Apesar das dificuldades de comunicação, June foi de grande importância no estabelecimento de princípios humanizados para a disciplina e para suas colegas profissionais. Violeta, que se formou em uma escola de enfermagem tradicional, no ensino prático de assistência psiquiátrica lhe foi repassado o modelo biomédico de tratamento “moral” e desumano, como relata:

Por muito tempo [June], trabalhou lá [nos EUA] com psiquiatria. Foi fundamental para gente não reproduzir aquele tratamento tão feio. June contribuiu com toda modificação. Eu estudei em Recife, naquela escola tradicional; era tudo desumano, a gente quase era educado para ter medo, tratar com distância. (Violeta)

Os ensinamentos de June consideravam a integralidade do sujeito, como relata Violeta:

June nos ensinou a não olhar muito o prontuário do paciente, não ficar presa ao diagnóstico, e sim trabalhar os comportamentos. Paciente está agressivo? Não importa se ele é esquizofrênico, bipolar, o que importa é que ele está agressivo, então vamos trabalhar a sua agressividade. O paciente está deprimido, também não importa o diagnóstico, até porque o diagnóstico pode estar errado. Amei aprender isso com June. Outro grande ensinamento de June: tratar o paciente como se fosse normal… tratá-lo sem medo, na medida do possível. Como também aprendi com June, que temos que respeitar a privacidade do paciente, que é tão incomodado. O dia inteiro a gente entra, acende a luz sem pedir licença. Paciente pode estar se masturbando e ninguém nos dá o direito de atrapalhar. Ele está num hospital, privado de sexo, e tem direito à sua masturbação. Outro ensinamento: enfermeira tinha mania de culpabilizar médico. Quando o paciente pergunta quando vai embora, se vai ter alta, a enfermeira responde que quem sabe é o médico, mas não. A resposta certa seria: “Você vai sair quando melhorar.” Não culparia o médico e responsabilizaria o paciente pela sua melhora. Sobre delírio, outro ensinamento lindo: uma vez a paciente me agarrou, dizendo que o hospital estava caindo e que iríamos morrer. Aprendi com June… deixei ela se acalmar, fiquei lá com ela e falei: “Olhe, eu sei que você está vendo o hospital cair, você está ouvindo o barulho, mas eu não estou, então, por isso, eu não vou fazer nada, mas vou ficar com você até se acalmar.” Então você respeita o delírio do paciente, mas não vai delirar junto. […] Nós não usávamos branco [nas aulas práticas] porque eles [pacientes] tinham medo, achavam que éramos almas ou autoridades, então June proibiu o branco. Quando muito, a gente usava jaleco. (Violeta)

A primeira estrutura curricular do curso de enfermagem da UFAL teve sua construção baseada na já existente da Universidade Federal de Pernambuco. Nesta, observa-se claramente uma menor carga horária da disciplina Enfermagem Psiquiátrica em comparação a outras disciplinas, porém não se sabe ao certo se essa carga horária tem relação com a existência de um curso de menor duração ou se tal escolha tem relações com o estigma social de que a pessoa com transtorno mental “não necessita” de cuidados intensivos. No Quadro 1, a imagem comprova essa informação.

Essa primeira estrutura curricular não chegou a ser implantada. Uma segunda estruturação mais adequada ao Parecer nº 163/1972 do Conselho Federal de Educação, que estabelecia o currículo mínimo dos cursos de graduação em Enfermagem, vigorou até os primeiros anos da década de 1980. Nesta, o curso foi dividido em dois ciclos (Quadro 2): o primeiro foi ministrado, em sua maioria, por médicos em aulas conjuntas aos discentes de Medicina, Enfermagem e Odontologia, considerado ciclo básico; e o segundo ciclo, foi ministrado pelo corpo docente de enfermeiras existente no curso, que conduziam o processo ensino-aprendizagem das disciplinas específicas da Enfermagem.

Quadro 1
Primeira Estrutura Curricular adotada no curso de Enfermagem em 1974, Maceió, 2020
Quadro 2
Segunda Estrutura Curricular adotada no curso de Enfermagem da Universidade Federal de Alagoas em 1974, Maceió, 2020

Na Segunda Estrutura Curricular, a disciplina Enfermagem Psiquiátrica era ofertada em dois grandes blocos, sendo um teórico e outro prático. O bloco teórico era realizado em dois momentos:

As aulas teóricas eram [realizadas em] duas tardes antes de irmos para a prática. (Graça)

As aulas teóricas eram voltadas ao preparo psicológico dos estudantes para ajudá-los no enfrentamento do que iriam vivenciar durante as aulas práticas, bem como para sensibilização e humanização, prevenindo reprodução de estigmas sociais. Dessa forma, Vera trabalhava as questões individuais das estudantes, em grupo ou em particular, a depender da necessidade observada:

Vera trabalhava a questão pessoal de cada estudante, por isso, a turma inteira tinha uma ligação fortíssima com ela. Ela sabia das nossas vidas. Tinham momentos individuais e coletivos. Passamos por muita sensibilização antes de chegarmos lá [no estágio]. [Vera] Tentava amenizar nossos medos e íamos com todo o apoio. A questão humanista era muito forte com ela, cheia de amor pela profissão. (Graça)

Durante as práticas, o estudante tinha contato direto com o interno. Eram abordados assuntos sobre as condições emocionais, conversavam, participavam da recreação, mas não se envolviam com atividades rotineiras do hospital, como alimentação e administração de medicações; havia reunião entre professoras e estudantes para compartilhamento das vivências de cada dia, com o objetivo de aliviar angústias e aflições e de discutir sobre a relação teoria-prática:

Conversávamos com eles sobre os problemas, sentimentos, vivência no hospital… Tínhamos momentos de lazer e recreação. Não mexíamos com higienização, medicação, nem alimentação. Após a prática, tinha uma reunião onde discutíamos os comportamentos dos usuários, nossos sentimentos, em que saíamos mais leves. (Graça)

Cada estudante escolhia um paciente para interagir de forma terapêutica, no entanto essa escolha poderia ocorrer no sentido inverso:

Vera deixava a gente muito à vontade, dizia que podíamos escolher o paciente, mas também podíamos ser escolhidas: caso um paciente se aproximasse querendo conversar e rolasse empatia, poderíamos ficar com ele. (Graça)

Em 1981, alguns anos após a experiência da primeira turma, o corpo docente da disciplina é reconfigurado, com a saída das professoras Vera e June e a permanência da professora Violeta juntamente com a colaboração da professora substituta Suely. A professora Vera afastou-se da disciplina para fazer mestrado em outro estado e, quando retornou, foi convidada para assumir cargos na pró-reitoria, necessitando reduzir sua carga horária como docente do curso de graduação. Quanto à professora June, ela retorna à sua terra natal, os Estados Unidos, com a conclusão do projeto HOPE em terra alagoana. Tudo isso foi relatado por Graça e Zélia, também discentes que vivenciaram a disciplina em 1981:

Ela [Vera] foi assumir cargos na pró-reitoria e ficou com a carga horária reduzida [da disciplina]… entrou Violeta. Ela viajou para o mestrado e, quando voltou, já foi convidada para outros cargos. Depois foram entrando outros professores. Foi uma pena a saída dela da psiquiatria; ela foi para uma disciplina menor: Integração à Enfermagem. (Graça)

Se não me engano, era no 7º período [momento da disciplina]. Tenho quase certeza que era 7º período, lá pelo quarto ano. Na época, as professoras da gente foram a Violeta e Suely: elas dividiam a disciplina. A que mais era atuante era a Violeta; Suely era de grande importância também, mas ela dava apenas um suporte. (Zélia)

Nesse mesmo ano, houve mudanças no cenário das práticas, que ocorriam no Hospital Miguel Couto (hospital privado) e passaram para o Hospital Colônia Portugal Ramalho (hospital público), onde se realizavam entrevistas, recreação, conversas terapêuticas e outras intervenções, acrescentando cuidados antes não incluídos.

Violeta nos passou essa ideia de entrar em contato com o paciente, de ouvir sua história, conhecer a história de sua família. O que fazíamos no hospital, a gente discutia entre a turma. Fazíamos gancho do que ouvimos da paciente, com a história percebida na visita domiciliar: essa era a riqueza. (Zélia)

No estágio, a gente prestava cuidados higiênicos, levava para banho, cortava cabelo… e muita recreação, dançávamos e conversávamos. Fazíamos muitos estudos de caso. Eram tão rejeitados que nem queriam sair do hospital. A “síndrome do hospitalismo”… Mostrávamos que a vida era do portão para fora. (Violeta)

Observa-se, nos relatos, que já havia preocupação com o isolamento social; e, segundo Lysete, discente no ano de 1981, as formas de tratamento dada aos internos presenciadas pelas estudantes causavam desconfortos e reflexões:

Nós éramos preparadas para irmos ao estágio, mas não tínhamos como nos preparar o suficiente, porque aquilo [a realidade do hospital] era muito chocante. Por mais preparadas que fôssemos, com a boa vontade das professoras, toda a teoria chocava com a realidade prática […]. Elas [professoras] vieram de ensinamentos do HOPE, e a nossa realidade era totalmente diferente das americanas. (Lysete)

Os conceitos norteadores da Enfermagem Psiquiátrica da UFAL baseavam-se nos princípios da psiquiatria preventiva, realidade estadunidense, não condizente com a realidade alagoana. Dessa forma, por mais que houvesse o empenho das docentes em preparar emocionalmente os estudantes para o que seria vivenciado nas aulas práticas, essa tentativa de amenizar o espanto e o receio não surtiam o efeito desejado, pois a realidade apresentada na rotina do Hospital Colônia Portugal Ramalho, hoje nomeado Hospital Escola Portugal Ramalho (HEPR), era tão rudimentar, que dificultava a implementação de uma prática de ensino humanizada por parte das discentes.

Na época, no HEPR, conforme relatado pelos funcionários Mendes (profissional da limpeza) e Manoel (atendente de enfermagem), havia um número ínfimo de profissionais e escassez de materiais para a prestação de cuidados. Além disso, a enfermagem era basicamente composta por atendentes, que não possuíam conhecimento técnico e científico para uma assistência de qualidade, como relatam:

Quando passei na porta [do posto], falei: “Bom dia, essa injeção é de quê e aplica onde?” E a moça respondeu: “É glicose e aplico no músculo.” Falei: “No músculo, não.” Eles não sabiam de nada. Não existia auxiliar de enfermagem aqui. Não sabiam ler nem escrever, mas aplicavam injeção. Só em 1997, começam os treinamentos de enfermagem. (Mendes)

Naquela época, não tinha pessoal qualificado para trabalhar com psiquiatria: a maioria era atendente de enfermagem ou tinha o curso de auxiliar. (Manoel)

O resultado dessa assistência à saúde ofertada de forma precária e desqualificada causava medo e angústia nas estudantes que ali iam estagiar:

Nós, aos poucos, íamos quebrando o preconceito. Mesmo a disciplina já tendo esse perfil de entrar em contato com paciente, o medo ainda permanecia. Uns não queriam nem terminar o estágio; se fosse possível, passava até sem pagar a disciplina. (Zélia)

Para reduzir os sentimentos que as impediam de progredir nas práticas, as docentes ampliavam a ajuda terapêutica às discentes, realizavam encontros ao término da prática para trabalhar os medos - método de ensino positivamente diferenciado do marco da época. Investia-se em processos grupais para o autoconhecimento, de modo que se quebrava o estigma negativo da disciplina:

Naquela época, a Violeta já tinha um diferencial, porque a gente já fazia como estudante, trabalho em grupo, vivências, cada um colocava sua história de vida. Não era só a parte da doença. Ela já quebrava aquele paradigma de “cuidar de doido’’. Era um método até criticado, porque não era essa a vivência que se tinha. Eu me lembro que fizemos um grupo para o estudante se colocar: rolou choro e muita gente não entendia. (Zélia)

Além disso, também se investia para que os estudantes compreendessem os internos e seus “entraves” e, para isso, precisariam aprender a lidar com essas questões e respeitar as suas decisões. Alguns apresentavam resistência à aproximação dos estudantes, como traz Violeta:

Tinha paciente que não aceitava as estudantes e avisava que não queria ninguém. (Violeta)

Com um olhar diferenciado sobre a pessoa com doença mental e o seu desejo por mudanças no âmbito da psiquiatria, Violeta buscava minimizar os estigmas sociais. Notava-se a criação de vínculo, de uma relação de confiança, na qual a prática tornava-se positiva e agradável para os internos, estudantes e professores. Apesar de ser uma assistência prestada sem um padrão definido, agia-se da forma que, consciente e intuitivamente, parecia ser melhor:

Nossa assistência, mesmo intuitiva, era terapêutica. Não tínhamos muito a seguir. (Graça)

A gente já tinha um vínculo com eles [pacientes], eles gostavam da nossa presença… Mexia muito com a gente, a gente se emocionava com o sofrimento deles. (Zélia)

Eu sentia que os estudantes iam se envolvendo. […] A gente se despedia [do estágio] sempre chorando. Os pacientes do Portugal merecem todo respeito. (Violeta)

DISCUSSÃO

A disciplina Enfermagem Psiquiátrica foi ofertada pela primeira vez em 1976, período marcado por lutas em busca de mudanças conjunturais em que a força popular denunciava situações desumanas, exigia estruturação das políticas sociais e redemocratização do país. É nesse contexto de plena ditadura militar que o curso de Enfermagem da UFAL foi criado; momento de maior endividamento do país, investimento de capital estrangeiro no setor econômico-financeiro. Isso influenciou a reforma política, inclusive a educacional, cujo o propósito era de alimentar o capital, suprir as demandas do mercado, o acúmulo de capital de algumas classes, e não a qualificação dos trabalhadores brasileiros para possibilitar o desenvolvimento da ciência e tecnologia(1717 Costa LMC. Tecitura da identidade profissional da primeira turma do curso de graduação em enfermagem da Universidade Federal de Alagoas [Dissertação]. Alagoas. Universidade Federal de Alagoas; 2012. 111 p.-1818 Carlos NL, Cavalcante I, Neta O. A educação no período da ditadura militar: o ensino técnico profissionalizante e suas contradições (1964-1985). Rev Trab Neces. 2018;16(30):83-108. https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10088
https://doi.org/10.22409/tn.16i30.p10088...
).

Somado a isso, a década de 1970 foi marcada pela maior redução em investimentos nas políticas públicas de saúde e assistência social, resultando nas taxas alarmantes dos indicadores de saúde, condições ratificadas pela Organização Mundial da Saúde para ampliação de escolas de medicina e enfermagem no país(77 Lima Jr MCF, Santos RM, Costas LMC, Mota FRL, Lima AFS. Circunstâncias que trouxeram o Project Hope ao estado de Alagoas/Brasil. Hist Enferm Rev Eletrônica [Internet]. 2018 [cited 2020 Aug 19];9(2):108-21. Available from: http://here.abennacional.org.br/here/v9/n2/a2.pdf
http://here.abennacional.org.br/here/v9/...

8 Santos RM, Leite JL. A inserção da Enfermagem Moderna em Alagoas: os bastidores de uma conquista. Maceió: Edufal; 2004. 164 p.

9 Santos RM, Lira YCMS, Nascimento RF. O navio HOPE: um novo encontro entre a enfermagem brasileira e a norte-americana. Maceió: EDUFAL; 2009. 180 p.

10 Costa LMC, Santos RM, Santos TCF, Trezza MCSF, Leite JL. Contribuição do Projeto HOPE para a configuração da identidade profissional das primeiras enfermeiras alagoanas, 1973 a 1977. Rev Bras Enferm. 2014;67(4):535-42. https://doi.org/10.1590/0034-7167.2014670406
https://doi.org/10.1590/0034-7167.201467...
-1111 Costa LMC. O curso de graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Alagoas (1973- 1979): lutas simbólicas para criação, implantação e consolidação [Tese]. Rio de Janeiro. Universidade Federal do Rio de Janeiro; Escola de Enfermagem Anna Nery; 2016. 151 p.). Os recursos demandados para a estruturação de cursos universitários eram ínfimos(99 Santos RM, Lira YCMS, Nascimento RF. O navio HOPE: um novo encontro entre a enfermagem brasileira e a norte-americana. Maceió: EDUFAL; 2009. 180 p.

10 Costa LMC, Santos RM, Santos TCF, Trezza MCSF, Leite JL. Contribuição do Projeto HOPE para a configuração da identidade profissional das primeiras enfermeiras alagoanas, 1973 a 1977. Rev Bras Enferm. 2014;67(4):535-42. https://doi.org/10.1590/0034-7167.2014670406
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-1111 Costa LMC. O curso de graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Alagoas (1973- 1979): lutas simbólicas para criação, implantação e consolidação [Tese]. Rio de Janeiro. Universidade Federal do Rio de Janeiro; Escola de Enfermagem Anna Nery; 2016. 151 p.), revelando dificuldades ao se ministrarem aulas em espaços emprestados ou inadequados, como debaixo de árvores ou em galpões, citados por participantes deste estudo.

Ademais, a influência do capital estrangeiro é percebida na importação da cultura estadunidense na educação brasileira. Após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos intencionavam estabelecer uma política hegemônica na América Latina, de capitalismo e “democratização” para facilitar o controle do mercado com a zona de livre comércio por meio de investimentos na educação e acordos internacionais, como os que ocorreram entre o Instituto para Assuntos InterAmericanos (IAIA-1942) e a United States Agency for International Development (USAID-1968), influenciando a criação do Serviço Especial de Saúde Pública - SESP e a vinda do Projeto HOPE ao Brasil(77 Lima Jr MCF, Santos RM, Costas LMC, Mota FRL, Lima AFS. Circunstâncias que trouxeram o Project Hope ao estado de Alagoas/Brasil. Hist Enferm Rev Eletrônica [Internet]. 2018 [cited 2020 Aug 19];9(2):108-21. Available from: http://here.abennacional.org.br/here/v9/n2/a2.pdf
http://here.abennacional.org.br/here/v9/...

8 Santos RM, Leite JL. A inserção da Enfermagem Moderna em Alagoas: os bastidores de uma conquista. Maceió: Edufal; 2004. 164 p.
-99 Santos RM, Lira YCMS, Nascimento RF. O navio HOPE: um novo encontro entre a enfermagem brasileira e a norte-americana. Maceió: EDUFAL; 2009. 180 p.).

O impacto cultural da estada do Projeto HOPE no ensino da saúde em Alagoas foi relatado em diversos estudos(77 Lima Jr MCF, Santos RM, Costas LMC, Mota FRL, Lima AFS. Circunstâncias que trouxeram o Project Hope ao estado de Alagoas/Brasil. Hist Enferm Rev Eletrônica [Internet]. 2018 [cited 2020 Aug 19];9(2):108-21. Available from: http://here.abennacional.org.br/here/v9/n2/a2.pdf
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,99 Santos RM, Lira YCMS, Nascimento RF. O navio HOPE: um novo encontro entre a enfermagem brasileira e a norte-americana. Maceió: EDUFAL; 2009. 180 p.

10 Costa LMC, Santos RM, Santos TCF, Trezza MCSF, Leite JL. Contribuição do Projeto HOPE para a configuração da identidade profissional das primeiras enfermeiras alagoanas, 1973 a 1977. Rev Bras Enferm. 2014;67(4):535-42. https://doi.org/10.1590/0034-7167.2014670406
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-1111 Costa LMC. O curso de graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Alagoas (1973- 1979): lutas simbólicas para criação, implantação e consolidação [Tese]. Rio de Janeiro. Universidade Federal do Rio de Janeiro; Escola de Enfermagem Anna Nery; 2016. 151 p.). Na enfermagem, essa influência se deu pela permanência de algumas enfermeiras estadunidenses para abertura desse curso na UFAL compondo seu corpo docente, conforme uma das entrevistadas relata que a presença de uma enfermeira do HOPE na disciplina traz seus aprendizados para o processo de formação da primeira turma do curso de Enfermagem.

Tal como defende Bourdieu, pode-se considerar essa forma de imposição de uma “outra” cultura como a instauração de um poder simbólico; compreensão de uma cultura universal que seleciona e impõe um modo de conduta ético e político, o qual desconsidera as demais culturas e as pressupõe como inferiores, assim as domina, materializando a violência simbólica sem ao menos ser percebida(1919 Oliveira GC, Santos R. O capital cultural na educação: uma análise sobre o desempenho escolar. Cad Educ: Ensino Soc [Internet]. 2017 [cited 2020 Aug 19];4(1):230-48. Available from: http://unifafibe.com.br/revistasonline/arquivos/cadernodeeducacao/sumario/50/26042017193402.pdf
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). Mesma situação ocorre quando a docente norte-americana traz seus conhecimentos e cultura e os torna modelo a ser incorporado no novo cenário, ainda que tenha gerado frutos positivos como a transformação do olhar humanizado sobre a pessoa com adoecimento mental.

Em 1963, nos EUA, o decreto do presidente John F. Kennedy, denominadoCommunity Mental Health Center Act, estabeleceu como meta a redução da doença psiquiátrica, promovendo a saúde mental, de modo que surgem departamentos governamentais com forte influência na formação acadêmica baseada em propostas preventivistas opondo-se ao modelo hospitalar privado e de reclusão social(2020 Paulin LF, Turato ER. Antecedentes da reforma psiquiátrica no Brasil: as contradições dos anos 1970. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2004;11(2):241-58. https://doi.org/10.1590/S0104-59702004000200002
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-2121 Cézar MA, Coelho MP. As experiências de reforma psiquiátrica e a consolidação do movimento brasileiro: uma revisão de literatura. Mental [Internet]. 2017 [cited 2020 Aug 19];11(20):134-51. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/mental/v11n20/v11n20a08.pdf
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). Esse novo contexto de saúde mental americano foi transmitido pela enfermeira June na forma de pensar e atuar, norteando a disciplina Enfermagem Psiquiátrica da UFAL.

Percebe-se a preocupação de June na formação dos estudantes sob princípios de assistência contrários ao modelo manicomial estigmatizante e excludente. O estigma, utilizado para evidenciar atributos depreciativos, cria uma identidade social de descrédito e repulsa por parte da sociedade(2222 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC; 2008. 160 p.-2323 Nascimento YCML, Brêda MZ, Albuquerque MCS. O adoecimento mental: percepções sobre a identidade da pessoa que sofre. Interface (Botucatu). 2015;19(54):479-90. https://doi.org/10.1590/1807-57622014.0194
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), visão responsável pela desvalia do cuidado prestado à pessoa com transtorno mental. Goffman(55 Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. 8ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva; 2008. 386 p.) afirma que, em instituições totais, como os hospitais psiquiátricos, o internamento rouba da pessoa a sua identidade, e o autor classifica esse fato como “mortificação do eu”; isso ocorre desde a internação, com o confinamento dos bens pessoais, corte do cabelo, retirada da roupa, óculos, materiais de higiene pessoal, imposição de regras que violam a identidade e desconsideram a singularidade do sujeito. June buscava implementar o respeito à integralidade e à privacidade da pessoa cuidada.

Goffman(55 Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. 8ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva; 2008. 386 p.) )refere que a “mutilação do eu” ocorrida nos hospitais psiquiátricos se reflete em aguda tensão psicológica para o internado; resulta em sentimentos de medo, raiva e aversão; tentativa de adaptar-se à situação em que é forçado a viver ou de utilização da tática de intransigência em que desafia a instituição, nega a colaborar com a equipe. Isso pode explicar os impulsos de agressividade por parte dos pacientes para com as estudantes ou recusa à aproximação, provocando nelas o medo.

O estigma não considera a integridade do sujeito, interfere na convivência interpessoal, dita regras e distancia as pessoas; sua não reprodução e a tentativa de desmistificá-lo foi um dos grandes desafios das docentes e discentes. A reflexão do não usar roupas brancas levou as estudantes a repensarem suas posições enquanto se apresentavam como iguais. A representação social do “usar branco” é símbolo de poder, e o não usar traz à tona o sentimento de ser visto não apenas como profissional, mas também como uma pessoa mais próxima ao paciente. As representações sociais desempenham um papel relevante, guiam a interpretação dos fenômenos e tomada de decisões, ou seja, podem ser instrumentos valiosos para a reflexão de futuros profissionais(2424 Sousa PF, Maciel SC, Medeiros KT, Vieira GLS. Atitudes e representações em saúde mental: um estudo com universitários. Psico-USF[Internet]. 2016 [cited 2020 Aug 19];21(3):527-38. Available from: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-829354
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).

O preparo inicial das discentes no momento teórico era fundamental para a redução dos estigmas, principalmente quando só existiam hospitais psiquiátricos para tratamento; era essencial sensibilizá-las quanto ao sofrimento psíquico, desenvolver habilidades para lidar com as próprias emoções, sentimentos de ansiedade, medo, insegurança e impotência ao experienciar o sistema de saúde vigente(2525 Vargas D, Maciel MED, Bittencourt MN, Lenate S, Pereira CFP. O ensino de enfermagem psiquiátrica e saúde mental no brasil: análise curricular da graduação. Texto Contexto Enferm. 2018;27(2):e2610016. https://doi.org/10.1590/0104-070720180002610016
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). Situações comuns descritas pelas depoentes, que ora sentiam-se aliviadas, ora desconfortáveis, as faziam refletir sobre seus comportamentos e alcançar o amadurecimento pessoal.

Outro fato que merece uma análise é o nome dado a disciplina, “Enfermagem Psiquiátrica”, que é completamente compreensível dentro daquele contexto, época em que se utilizava fortemente o saber da psiquiatria e a Reforma Psiquiátrica brasileira ainda não tinha de fato se consolidado. Destaca-se que essa denominação ainda se faz presente em matrizes curriculares da atualidade, inclusive em muitas instituições de ensino na América Latina, remontando a processos históricos e à não incorporação de novos princípios após o redirecionamento dos modelos de atenção à saúde mental(2525 Vargas D, Maciel MED, Bittencourt MN, Lenate S, Pereira CFP. O ensino de enfermagem psiquiátrica e saúde mental no brasil: análise curricular da graduação. Texto Contexto Enferm. 2018;27(2):e2610016. https://doi.org/10.1590/0104-070720180002610016
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).

Na reformulação curricular nacional de enfermagem ocorrida em 1962, houve maior estímulo a aulas teóricas do que práticas, e privilegiaram-se áreas curativistas. Por outro lado, nesse mesmo período, surge a influência do movimento da psiquiatria preventiva que incorporou conteúdos como transtornos mentais, terapia familiar, relação terapêutica, uso de psicofármacos e aspectos do desenvolvimento da personalidade(2626 Olmos CEF, Rodrigues J, Lino MM, Lino MM, Fernandes JD, Lazzari DD. Psychiatric nursing and mental health teaching in relation to Brazilian curriculum. Rev Bras Enferm. 2020;73(2):e20180200. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0200
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), conteúdos que já apontavam preocupação das docentes da disciplina em 1976 (como visita domiciliar, a história das famílias e os aspectos emocionais das estudantes), mesmo no contexto desfavorável de práticas realizadas em manicômios.

A reformulação do currículo em 1972 ganhou destaque na qualidade da assistência em defesa da desinstitucionalização da pessoa com adoecimento mental. Apesar dos avanços ideológicos, a teoria continuava a priorizar o estudo das psicopatologias(2626 Olmos CEF, Rodrigues J, Lino MM, Lino MM, Fernandes JD, Lazzari DD. Psychiatric nursing and mental health teaching in relation to Brazilian curriculum. Rev Bras Enferm. 2020;73(2):e20180200. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0200
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); e o ensino prático, em Alagoas, continuou nos hospitais psiquiátricos pela inexistência de serviços comunitários e abertos de cuidado à saúde mental.

Também se observa que a carga horária destinada à disciplina, inicialmente, era de 60 horas, menos de 40% do que é ofertado atualmente. Apesar de ser considerada parte obrigatória, essa carga horária era inferior em relação a outras disciplinas práticas advindas de áreas biológicas e historicamente valorizadas. Na atualidade, a carga horária de psiquiatria ainda é reduzida em muitos cursos, sobretudo na rede de ensino privada, ratificando-se o próprio sistema de acúmulo de capital e redução dos custos à oferta mínima de créditos exigida pela legislação, provavelmente por ser uma área historicamente esquecida e estigmatizada pela sociedade(2525 Vargas D, Maciel MED, Bittencourt MN, Lenate S, Pereira CFP. O ensino de enfermagem psiquiátrica e saúde mental no brasil: análise curricular da graduação. Texto Contexto Enferm. 2018;27(2):e2610016. https://doi.org/10.1590/0104-070720180002610016
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).

O panorama de estigmas sociais impacta a valorização da área, conferindo ao ensino da enfermagem psiquiátrica menor prestígio acadêmico quando comparada com as demais disciplinas da matriz curricular, gerando menos interesse de estudantes e docentes e, por sua vez, menos profissionais trabalhando com saúde mental(2525 Vargas D, Maciel MED, Bittencourt MN, Lenate S, Pereira CFP. O ensino de enfermagem psiquiátrica e saúde mental no brasil: análise curricular da graduação. Texto Contexto Enferm. 2018;27(2):e2610016. https://doi.org/10.1590/0104-070720180002610016
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,2727 Santos JE, Lino D, Vasconcellos E, Souza R. Processos formativos da docência em saúde mental nas graduações de enfermagem e medicina. Rev Port Enferm Saúde Mental. 2016;4:85-92. https://doi.org/10.19131/rpesm.0146
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). A quantidade ínfima de profissionais na área impacta os hospitais psiquiátricos da época estudada e também reafirma a falta de investimento e compromisso com a psiquiatria(2020 Paulin LF, Turato ER. Antecedentes da reforma psiquiátrica no Brasil: as contradições dos anos 1970. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2004;11(2):241-58. https://doi.org/10.1590/S0104-59702004000200002
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21 Cézar MA, Coelho MP. As experiências de reforma psiquiátrica e a consolidação do movimento brasileiro: uma revisão de literatura. Mental [Internet]. 2017 [cited 2020 Aug 19];11(20):134-51. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/mental/v11n20/v11n20a08.pdf
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22 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC; 2008. 160 p.
-2323 Nascimento YCML, Brêda MZ, Albuquerque MCS. O adoecimento mental: percepções sobre a identidade da pessoa que sofre. Interface (Botucatu). 2015;19(54):479-90. https://doi.org/10.1590/1807-57622014.0194
https://doi.org/10.1590/1807-57622014.01...
). Não era necessário investir na saúde das pessoas que, no imaginário social, eram vistas como indignas, desonrosas, de reputação questionada, errantes, imprevisíveis, violentas e que, por fim, possuíam uma identidade social deteriorada(2222 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC; 2008. 160 p.,2727 Santos JE, Lino D, Vasconcellos E, Souza R. Processos formativos da docência em saúde mental nas graduações de enfermagem e medicina. Rev Port Enferm Saúde Mental. 2016;4:85-92. https://doi.org/10.19131/rpesm.0146
https://doi.org/10.19131/rpesm.0146...
).

A rotina das instituições psiquiátricas era marcada por fome, insanidade e falta de higiene. Insumos básicos eram restritos e de baixa qualidade, as compras eram insuficientes para o número elevado de pacientes e causavam a sensação de impotência nos estudantes(55 Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. 8ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva; 2008. 386 p.). Ademais, profissionais eram numericamente reduzidos e sem qualificação; em Alagoas, existiam poucos enfermeiros nos hospitais, e a maior parte do trabalho era desenvolvido por atendentes e auxiliares de enfermagem(88 Santos RM, Leite JL. A inserção da Enfermagem Moderna em Alagoas: os bastidores de uma conquista. Maceió: Edufal; 2004. 164 p.

9 Santos RM, Lira YCMS, Nascimento RF. O navio HOPE: um novo encontro entre a enfermagem brasileira e a norte-americana. Maceió: EDUFAL; 2009. 180 p.

10 Costa LMC, Santos RM, Santos TCF, Trezza MCSF, Leite JL. Contribuição do Projeto HOPE para a configuração da identidade profissional das primeiras enfermeiras alagoanas, 1973 a 1977. Rev Bras Enferm. 2014;67(4):535-42. https://doi.org/10.1590/0034-7167.2014670406
https://doi.org/10.1590/0034-7167.201467...
-1111 Costa LMC. O curso de graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Alagoas (1973- 1979): lutas simbólicas para criação, implantação e consolidação [Tese]. Rio de Janeiro. Universidade Federal do Rio de Janeiro; Escola de Enfermagem Anna Nery; 2016. 151 p.), o que provavelmente não seria diferente do encontrado nos hospitais psiquiátricos do estado.

A dinâmica de intervenções voltadas para a escuta e valorização do sujeito estigmatizado estimulavam o resgate, mesmo que momentâneo, da identidade da pessoa em sofrimento. Para Goffman(2222 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC; 2008. 160 p.), o indivíduo estigmatizado prefere estar entre pessoas que o compreendam e compartilhem de sua realidade, como era o caso da docente Violeta. A presença de professores e estudantes que implementavam uma assistência humanizada e empática resultava geralmente em reconhecimento e gratidão, embora o estigma social e descrédito que traz a “loucura” e a imposição de tal desvalia aos profissionais que trabalham com ela obscurecessem esse reconhecimento.

Enfim, muitos desafios culturais, políticos, sociais e conjunturais foram evidenciados com a implantação da disciplina Enfermagem Psiquiátrica. O desejo de uma atenção mais humanizada em período marcado pelo preconceito, subestimação e desrespeito à família e à pessoa com transtorno mental fez emergir maneiras ousadas de docentes e discentes transporem as barreiras dessas limitações.

Limitações do estudo

Para ampliar a produção de informações, buscaram-se outros documentos, como a ementa da disciplina Enfermagem Psiquiátrica, plano de curso, convênios, entre outros, no arquivo geral da UFAL e do HEPR, nos arquivos da coordenação do curso e na Secretaria do Conselho Universitário, porém não foram encontrados em razão de perda ao longo dos anos. Tal problemática é comum em estudos históricos devido à não preservação e descarte de documentos.

Contribuições para a Área

Esta pesquisa representa um ponto de partida para a continuação da história em estudos posteriores, abordando e comparando passado, presente e seus fatores, a exemplo de estudos acerca da inserção da Reforma Psiquiátrica nesse contexto, da contribuição da enfermagem para o alcance dos avanços psiquiátricos e também das dificuldades vivenciadas em tal processo.

CONCLUSÕES

Esta pesquisa tratou da história do ensino de enfermagem psiquiátrica na UFAL, de 1976 a 1981. A análise do corpus documental mostrou as fragilidades dos cenários da assistência psiquiátrica hospitalar da época onde eram realizadas as aulas práticas da disciplina, num período em que a psiquiatria era marcada pela abertura de hospitais especializados e por uma prática de assistência à saúde desumanizada, seguindo padrões do modelo biomédico e do isolamento social.

Em Alagoas, as condições de internamento causavam a “mutilação do eu” à pessoa com doença mental, e as condições de trabalho também eram estarrecedoras. Os poucos profissionais de enfermagem atuantes eram sobrecarregados e prestavam uma assistência deficiente em conhecimentos científicos, em logística e no quantitativo de alimentos e insumos para que os pacientes fossem minimamente assistidos.

Com o surgimento da disciplina Enfermagem Psiquiátrica, marca-se a necessidade de manter uma formação acadêmica pautada em princípios reformados de assistência, com a imersão de conteúdos e discussões advindos de movimentos e reivindicações mundiais que criticavam modelos tradicionais de assistência à saúde mental. Então, é nesse panorama que as professoras, incomodadas com a situação de abandono e maus-tratos às pessoas em sofrimento mental, conduzem suas aulas para além do ensino de habilidades técnicas, mas na direção do ensino do autoconhecimento e preparo psicológico das estudantes, a fim de sensibilizá-las a uma prática mais humanizada e menos estigmatizante, que fosse diferente da rotineiramente ofertada pelos hospitais da época.

O estudo reforça a necessidade de aprofundar o conhecimento da história da enfermagem psiquiátrica alagoana e brasileira, com a finalidade de intensificar os métodos de ensino pautados nos princípios e diretrizes de uma política de saúde mental reformada por meio de lutas e conquistas antimanicomiais. É preciso manter viva a memória das pessoas que sofreram com o modelo assistencial hospitalocêntrico da época, no intuito de ratificar cada vez mais que o ensino da saúde mental em qualquer área de conhecimento deve estar embasado no respeito à autonomia do sujeito, na valorização de seus direitos e, por fim, no resgate de sua cidadania.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Antonio José de Almeida Filho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2020
  • Aceito
    15 Mar 2021
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