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Mr. Catra e sua vontade pela margem: Judaísmo, negros e brancos na formação de um artista não erudito

Mr. Catra and his will by the margin: Judaism, blacks and whites in the formation of a non-erudite artist

Resumo

Exploro as relações do cantor de funk carioca Mr. Catra com o Judaísmo para repensar a noção de margem, tomando-a como espaço-tempo propício para a emergência de processos de subjetivação específicos, particularmente os artísticos. Argumento que a conversão informal de Mr. Catra ao Judaísmo é a culminância de uma vida que se constitui junto à uma vontade pela margem, manifesta ainda no trânsito entre sua residência e a favela e em sua filiação artística. Mostro o artista não erudito como especialmente apto a visibilizar a dimensão transformativa da arte ao mesmo tempo em que defendo que tornar-se judeu permite a Mr. Catra reconfigurar o modo com que elabora, através da arte, sobre as relações entre brancos e negros.

Palavras-chave:
Subjetivação artística; Arte; Criatividade; Judaísmo; Relações raciais

Abstract

I depart from the relationship the funk Carioca singer Mr. Catra establishes with Judaism to explore the notion of margin, approaching it as space-time conducive for the emergence of specific processes of subjectification, particularly the artistic ones. I state that Mr. Catra's conversion to Judaism is the culmination of a life constituted by a will to dwell in the margins, also seen in his transit between his residence and the favela and in his artistic affiliation. I also state that the non-erudite artist is especially able to set fort the transformative powers of art, while claiming that becoming a Jew allows Mr. Catra to reconfigure the way in which he elaborates, through art, the relations between whites and blacks.

Keywords:
Artistic subjectivation; Art; Creativity; Judaism; Race relations

Em A partilha do sensível, Jaques Rancière (2005RANCIÉRE, Jacques. (2005), A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34.) argumenta que vivemos em um “regime estético” no qual tomar parte no comum refere-se não apenas ao que é partilhado, mas igualmente ao que é segregado. A estética diz respeito assim a quem pode se deixar ver, a quem pode fazer parte nesse comum e possui as habilidades que lhe permitem participar desse comum: aqueles que falam e se fazem ver e ouvir. Participar nessa estética do comum envolve, portanto, uma necessária produção de sujeitos políticos que se colocam em uma disputa permanente. Partilhar é não apenas compartilhar, mas igualmente separar, segregar, excluir do comum. Uma disputa que se traduz no jogo que se desenrola na região limítrofe desenhada pela “partilha do sensível”. O partilhar do sensível opera assim sobre uma linha divisória tênue que é constantemente remodelada a partir das negociações do que pode ser visto, mostrado, falado, escutado. Esse “regime estético” é delineado por contraste a um “regime poético”, definido, por sua vez, fundamentalmente pelos saberes acadêmicos e institucionalizados que presidiram os modos estabelecidos e hegemônicos de se fazer arte e delimitaram quem, afinal, poderia ser considerado artista (Rancière 2005:27-44).

Como venho argumentando (Mizrahi 2014______. (2014), A estética funk carioca: criação e conectividade em Mr. Catra. Rio de Janeiro: 7Letras.), o funk carioca pode ser apreendido como criação cuja potência resulta do encontro de sensibilidades - ou seja, de uma troca entre saberes do ‘alto’ e do ‘baixo’ que se caracteriza por seu caráter de recusa ao sistema. Uma recusa que não é exercida como ruptura, mas como prática que consiste em se relacionar de maneira ambígua com “a sociedade”, com os gostos hegemônicos e com o mundo oficial. Quero assim insistir na potência criativa que o funk carioca enquanto estética periférica guarda, um aspecto que explorei nos últimos anos junto ao conceito de conectividade, como formulado por Marilyn Strathern (2004STRATHERN, Marilyn. (2004), Partial connections. Lanham: AltaMira Press. 2ª ed.). Ao levar adiante a articulação entre estética e política trago agora para a discussão a ideia de uma “partilha do sensível”, tomando-a como provocação para sugerir que o artista não erudito é aquele especialmente apto na contemporaneidade a fazer da arte matéria para transformação da vida social.

Farei isso junto ao cantor de funk carioca Mr. Catra, recentemente falecido.1 1 Mr. Catra faleceu em 9 de setembro de 2018, cerca de 16 meses após o diagnóstico de um câncer que iniciou comprometendo seu sistema digestivo. Este artigo estava já com sua primeira versão finalizada quando sua passagem ocorreu. Estive com Mr. Catra uma semana antes do falecimento e foi no dia seguinte à sua morte, tomada pela emoção que sua partida deixou, que escrevi um texto-despedida, ou uma homenagem deliberada, para a produtora de funk Kondzilla. Disponível em https://www.kondzilla.com/catra-era-um-atraves-de-muitos-por-mylene-mizrahi/Último acesso em 18/12/2018. Mr. Catra operava em um “regime estético”, o que fazia por meio da elaboração sobre os saberes estabelecidos, hegemônicos, próprios ao “regime poético”, colocando-os em relação com - e subvertendo - os saberes populares e profanos. Esta lógica se mostra atuante tanto por meio de suas paródias musicais como através do modo como insere os discursos em torno do divino em suas performances artísticas, fortemente marcadas por seu caráter hedonista. O artista foi dos poucos expoentes da cena funk, se não o único, que de fato fez dos discursos em torno do divino elemento atuante em suas performances, inserindo-os em suas canções e simulando cultos. Também em suas narrativas privadas, produzidas em contextos não artísticos, Mr. Catra levava adiante o tema da religião.

É junto ao nexo entre religião e criação artística que proponho seguir por esse texto, elaborando sobre a dimensão conectiva do fazer do artista urbano, que defino entre o pop e o popular. Um fazer conectivo, que visa colocar em contato as diferenças que compõem o mundo social pelo qual se transita. Esse fazer envolve estabelecer relações ambíguas com seu público, sua audiência, fazendo ver e cantando realidades nem sempre evidentes, propondo discussões. Trata-se, portanto, de um fazer político, por meio do qual a estética é produzida, criada, concebida, de modo provocativo, com vista a engajar o outro também através do conflito e do choque (Mizrahi 2014______. (2014), A estética funk carioca: criação e conectividade em Mr. Catra. Rio de Janeiro: 7Letras.).

Volto assim a Mr. Catra para explorar o modo pelo qual sua busca pela ambiguidade se localiza em suas escolhas mais amplas de vida e se traduzem não apenas em seu modo de vida idiossincrático como também em seu fazer artístico. Quero, assim, levar a sério sua escolha de ser judeu, um “judeu salomônico”, como ele dizia, buscando ver como essa escolha reitera uma busca que parece contínua. As conexões com o Judaísmo, parecem residir ainda, para além dos aspectos cosmológicos e das relações com o divino, em sentidos mais ontológicos, sentidos que se atrelam ao seu estar no mundo, à qualidade do ser. Sentidos que, espero mostrar, se articulam ainda à sua negritude, à sua subjetividade negra.2 2 Ao longo de 18 meses de trabalho de campo, conduzido entre 2007 e 2008, além de posteriores incursões a campo, acompanhei Mr. Catra, sua trupe de artistas, seus familiares e outros parceiros de criação junto aos deslocamentos para cumprir sua agenda de shows pela área metropolitana do Rio de Janeiro, no estúdio de gravação, na residência da família, nas saídas para compras.

Este artigo é, portanto, oportunidade para que eu leve adiante elaboração que realizei em outra ocasião, neste mesmo espaço de reflexão que Religião e Sociedade constitui (Mizrahi 2007MIZRAHI, Mylene. (2007), “Funk, religião e ironia no mundo de Mr. Catra”. Religião e Sociedade, 27(2): 114-143.). Hoje, ao retomar as conexões entre Judaísmo e posicionamentos políticos, quero argumentar que a escolha de Mr. Catra de “ser judeu” se coaduna com sua busca deliberada por se colocar na margem para, a partir dela, assumir um ponto de vista privilegiado para criar. Quero propor tomarmos a margem como lugar especialmente potente para que se engendrem processos de subjetivação artísticos. Além disso, se é a partir da margem que Mr. Catra assume sua persona artística é também desse lugar que ele pensa o mundo que habita, elaborando, inclusive, sobre as relações entre brancos e negros, um problema que parece movê-lo existencialmente. Ao tomar como entrada privilegiada suas elaborações em torno da religião, seja esta a católica ou a judaica, intenciono mostrar como suas relações com a religião estão diretamente relacionadas à sua criação artística e não se desvinculam do que talvez tenha sido a grande problemática a nortear sua vida: as relações entre negros e brancos. Esse artigo, de modo não programado, se constitui em uma homenagem póstuma ao artista, que foi não apenas muito bem-sucedido no circuito nacional de festas pop e populares, mas, como considerou a crítica musical, o artista mais importante do funk carioca em seus primeiros 30 anos de existência.3 3 Ver a análise de Sílvio Essinger em O Globo de 10/09/2018. Disponível em https://oglobo.globo.com/cultura/musica/analise-mr-catra-foi-maior-figura-dos-primeiros-30-anos-do-funk-carioca-23054362. Último acesso em 18/12/2018.

O funk carioca nasceu no Rio de Janeiro em fins dos anos 1980 e posteriormente se espraiou pelo país, originando diferentes subgêneros. Mr. Catra esteve presente desde sempre na cena funk e acompanhou muitos de seus desdobramentos, passando de ícone dos proibidões a “rei da putaria”. Se consideramos que as evoluções do funk permitem acessar as transformações no Brasil, poderíamos acompanhar Mr. Catra para entender um pouco mais a dinâmica sociocultural carioca ou os diferentes projetos de nação que uma identidade brasileira encerra. Mas não é sobre o Brasil ou o Rio de Janeiro que quero falar aqui. Se seguirei tomando o indivíduo como entrada privilegiada para minhas elaborações, não é tanto para o seu caráter exemplar que quero me voltar, ainda que, veremos, ele se fará presente ao longo de todo o texto. É para os aspectos mais idiossincráticos do artista que quero chamar atenção, adentrando não tanto a cultura, mas pensando com Mr. Catra para com ele esgarçar nossos próprios conceitos.

Acompanho assim o entendimento de Heloisa Buarque de Hollanda (2004HOLLANDA, Heloisa Buarque de. (2004), “O declínio do efeito da Cidade Partida”. Disponível em Disponível em http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/o-declinio-do-efeito-cidade-partida/ . Último acesso 29/06/2018.
http://www.heloisabuarquedehollanda.com....
, 2005______. (2005), Entrevista para o Catálogo da Exposição Estética da Periferia. Disponível em http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/estetica-da-periferia/. Último acesso 29/06/2018.
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) de que as periferias brasileiras têm sido a grande fornecedora de novidades no plano da cultura e das artes nacionais. Quero explorar essa potência a partir da margem recorrendo a essa noção para pensá-la como um espaço-tempo privilegiado para a emergência de processos de subjetivação específicos, no qual o artista se coloca para agenciar suas potências criativas. Tomarei a margem como um “dispositivo”, no sentido proposto por Roger Sansi (2015SANSI, Roger. (2015), Art, anthropology and the gift. Londres, New York: Bloomsburry.) em Art, anthropology and the gift: como um suporte para avançarmos na discussão sobre os tão propalados poderes agentivos da arte, dimensão que vem sendo apontada por diferentes autores desde que Alfred Gell (1998______. (1998), Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Oxford University Press. ) revolucionou a Antropologia da Arte. Em muitas dessas análises, contudo, o caráter transformativo da arte se esvai em prol da dimensão relacional, como acertadamente nota Sansi (2015). Ao retomar as conexões que Mr. Catra estabelece com a religião, adensando-as, intenciono evidenciar as qualidades transformativas da arte, argumentando que o artista não erudito é especialmente apto a agenciá-las.

Na primeira seção do artigo forneço um breve relato sobre a história doméstica de Mr. Catra, mostrando como a relação entre brancos e negros é constitutiva de sua pessoa e se coloca desde sua família de origem. Ao mesmo tempo, mostro como ele torna-se artista ao se aproximar da vida da favela sem jamais ter nela vivido, assumindo seu ponto de vista. Na segunda seção, faço esclarecimentos sobre alguns conceitos com os quais formulo meu argumento. Recorro à noção de contemporâneo de Agamben (2014AGAMBEN, Giorgio. (2014), Nudez. Rio de Janeiro: Autêntica.) para propor tomarmos a margem como lugar privilegiado para a criação. Em continuidade com essa percepção exploro, na seção seguinte, o processo de conversão de Mr. Catra ao Judaísmo, colocando o artista em conversa com o escritor Moacyr Scliar. Na quarta seção, elaboro sobre a simetrização que Catra promove entre negros e judeus, colocando-o em diálogo agora com Fanon (2008FANON, Frantz. (2008), Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA. ) e com Gilroy (2001GILROY, Paul. (2001), O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos.). Na quinta seção, antes de concluir, retomo essa mesma simetrização para pensá-la junto ao corpo e à discussão sobre o nariz racializado realizada por Gilman (1999GILMAN, Sander. (1999), Making the body beautiful: a cultural history of aesthetic surgery. Princeton, Oxford: Princeton University Press. ), para elaborar com Catra sobre o jogo da visibilidade e da invisibilidade que sua aparência negra lhe permite.

A trajetória de Mr. Catra: família, favela e funk

Mr. Catra é um homem negro criado no seio de uma família de classe média carioca em cuja casa sua mãe trabalhou como empregada doméstica. Wagner, seu nome de batismo, foi simultaneamente criado por sua mãe biológica e pelo patrão desta. Como potenciais figuras paternas, aparecem ainda em suas narrativas o seu pai biológico, com quem o artista parece ter tido pouco contato, e o companheiro de sua mãe. Mas é a Edgar, o patrão branco de sua mãe negra, que Mr. Catra se refere como pai. E é entre brancos, contou-me, que cresce, dividindo com seus irmãos o quarto de dormir. A relação entre brancos e negros não é de pouca relevância para Mr. Catra, que seguirá por sua vida e por seu fazer artístico elaborando sobre essa relação, tirando partido ele mesmo de sua aparência negra para potencializar sua circulação entre brancos. Edgar, dessa perspectiva, é figura inspiradora, um “branco mais preto que muito preto”, como diz o filho. Um “branco” capaz de fazer mediações como poucos - algo que seria próprio aos negros, argumenta Henri Louis Gates Jr. (1988GATES JR, Henry Louis. (1988), The signifying monkey: a theory of African-American Literary Criticism. Oxford: Oxford University Press. ).

Mr. Catra é uma figura complexa. Recebeu uma educação típica da classe média carioca. Estudou no prestigioso Colégio Pedro II, aprendeu inglês, tocou em saraus escolares e iniciou curso superior de Direito. Formou seu primeiro grupo musical na escola, uma banda de rock, fazendo pensar que muito cedo ele elege a música como seu caminho de vida. Ainda jovem, iniciou o trânsito entre sua casa, no Alto da Boa Vista, e a favela próxima. Começou frequentando a comunidade ao fim da Rua Catrambi - que lhe deu o nome artístico - para depois se voltar com mais frequência para o Morro do Borel, localizado na Tijuca. É nesse trânsito que Mr. Catra passa a colaborar com a rede local de comércio de substâncias ilícitas, inicialmente trabalhando como “matuto”, aquele que vai até o fornecedor da droga comprá-la e trazer para que o chefe da favela local realize a venda ao consumidor final. É também nesse período que sua mãe adota seu irmão “branco”, um menino que vivia nas “ruas do Borel”, e que “não tinha nem leite para tomar”. Com o passar do tempo Mr. Catra passa a cantar para os chefes locais enquanto seu irmão se converte em um deles.

Mr. Catra jamais morou efetivamente em qualquer uma das comunidades pelas quais passou. Mas é nesse processo de aproximação com a margem que ele inicia sua carreira artística, cantando em nome dos “bondes” que reuniam os bandidos do Maciço da Tijuca. Em fins dos anos 1990, o artista já é tido como expoente dos proibidões, as canções que tematizam de modo hiper-realista as relações entre a polícia e o bandido, o playboy e o favelado, os embates entre as diferentes facções a controlarem o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. E em meados dos anos 2000, acompanhando a migração de muitos artistas do ritmo de seu subgênero neurótico para sua vertente erótica, Mr. Catra passa a ser conhecido como Rei da Putaria. Em período pouco anterior a essa etapa a mãe falece, o que o obriga a “sair de casa”. Mr. Catra assume definitivamente sua persona artística.

Em sua passagem de bandido a artista, Catra mostra uma trajetória e uma motivação muito diferentes das usuais. Mais comumente, vemos a vida do ex-bandido ser narrada na chave da conversão ou da salvação, com o indivíduo abandonando a “vida errada” em prol da “vida certa” (Teixeira 2011TEIXEIRA, Cesar Pinheiro. (2011), A construção social do ex-bandido: um estudo sobre sujeição criminal e pentecostalismo. Rio de Janeiro: 7Letras . ; Birman e Machado 2012BIRMAN, Patrícia e MACHADO, Carly. (2012), “A violência dos justos: evangélicos, mídia e a periferia das metrópoles”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 27, nº 80: 55-69.; Machado 2014MACHADO, Carly. (2014), “Pentecostalismo e sofrimento do (ex-)bandido: testemunhos, mediações, modos de subjetivação e projetos de cidadania nas periferias”. Horizontes Antropológicos , ano 20, nº 42: 153-180.). A vida à margem da sociedade representa sempre vulnerabilidade social e a saída encontrada ou oferecida é muitas vezes a da arte, tônica que rege algumas ONGs e projetos sociais.4 4 Ver, por exemplo, o grupo cultural Afroreggae (https://www.afroreggae.org/) e a escola técnica Spetaculu (http://www.spectaculu.org.br/). Com Mr. Catra podemos pensar que é bem o contrário, pois é justamente a partir de sua aproximação com uma vida distanciada das regras e valores oficiais que ele se converte a artista, realizando movimento que subverte a lógica que toma a arte como caminho para a saída da chamada vida à margem.

É a vida à margem que coloca Mr. Catra no caminho da música e da arte, cantando e ficcionando sobre a realidade vivenciada por ele e seus companheiros. É a partir dessa trajetória que ele firma sua carreira artística, passando a viver exclusivamente da música e retomando o trânsito que o levou a ser artista, circulando por entre diferentes públicos e gêneros musicais. É nessa relação com uma vida alternativa que ele se faz não apenas artista, mas passa de artista amador a artista profissional.

Mr. Catra não nasceu na favela, não foi criado nela e nem morou na mesma, mas escolheu olhar e pensar o Rio de Janeiro a partir desse lugar, se entender no mundo na relação com esse lugar. De maneira análoga, ele poderia, como afirmava, ter se filiado a qualquer ritmo musical, mas só o funk lhe permitiu fazer música ao seu jeito. Elaborando sobre o dito que proclama que sagaz é aquele que coloca a música para os outros dançarem, e não o que dança conforme a música, Catra afirmava que o funk lhe permitiu colocar música para ele mesmo dançar: para levar a vida ao seu bel prazer e segundo seu próprio entender.

Ao circular pelo Rio de Janeiro com Mr. Catra e seus parceiros, pude ver noções como centro e periferia não darem mais conta da descrição do mundo que eu assistia ser articulado pelo funk carioca. Se centro e periferia podem ser entendidos como categorias que descrevem mundos discretos que estabelecem relações hierárquicas, com a primeira imperando sobre a segunda, acompanhar o funk em sua circulação tornou possível ver o englobamento da primeira pela segunda. Era assim o centro - o mundo oficial irradiador de modas e gostos igualmente oficiais - que surgia como um enclave que era paulatinamente ocupado pelo funk. Acompanhar os efeitos da música pela cidade, vendo a estética funk carioca em ação, colocou-me como problema repensar a própria noção de margem, na medida em que pensar o funk carioca como fenômeno marginal envolveu colocar a ênfase em suas discriminação e perseguição. Como algo a que é negada a inclusão, aspecto que diferentes pesquisadores vêm reiterando e discussão na qual eu mesma me insiro.5 5 Em setembro de 2017 participei como convidada de audiência pública no Senado Federal que objetivou avaliar proposta formal de criminalização do funk através de projeto de lei. Em meio a esse debate participei de mesas e concedi entrevistas para diversos veículos de comunicação. Trechos de uma dessas entrevistas, na qual explico o que é cultura, foram apropriados por músicos de funk que a incorporaram à base de sua composição. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=s8M1xajqAkg, último acesso em: 17/12/2018. Para outros trabalhos sobre o funk carioca e a criminalização do ritmo ver Lopes (2011), Facina e Palombini (2017).

Sem deixar de reconhecer a relevância que a precariedade e seus aspectos materiais concedem ao cotidiano dos habitantes das periferias urbanas brasileiras (Feltran 2011FELTRAN, Gabriel de Santis. (2011), Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Editora Unesp, CEM, Cebrap.; Cunha e Feltran 2013CUNHA, Neiva Vieira da e FELTRAN, Gabriel Santis. (2013), Sobre periferias: novos conflitos no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lamparina & FAPERJ.; Carneiro, Birman, Machado e Leite 2014CARNEIRO, Sandra de Sá, BIRMAN, Patrícia, MACHADO, Carly, LEITE, Márcia Pereira. (2014), Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências. Rio de Janeiro: Editora da FGV.; Cunha, Freire e Silva 2017CUNHA, Neiva Vieira da, FREIRE, Jussara e SILVA, Hélio R. S. (2017), Dossier Urban peripheries. VIBRANT, Virtual Brazilian Anthropology, vol. 14, nº 13.), meu ponto aqui é outro. Reside mais precisamente em tomar a margem em sua potencialidade criativa, mas não tanto a partir da criatividade que dali emerge a despeito dela (Barbosa e Souza e Silva 2013BARBOSA, Jorge Luiz e SOUZA E SILVA, Jailson. (2013), “As favelas como territórios de reinvenção da cidade”. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense, nº 1: 115-126. ). O que me inquieta é essa possibilidade que Mr. Catra aponta para que tomemos a margem como um lugar no qual o artista se coloca não apenas como destino, mas como escolha deliberada, inclusive para elaborar sobre as suas precariedades, fazendo vê-las. A ênfase na escolha permite chamar atenção para as potencialidades que a margem oferece para a criação artística de modo amplo.6 6 Para trabalhos que exploram as potencialidades das artes urbanas e periféricas, além dos já citados ao longo desse artigo, ver, entre outros, Salles (2007), Hikiji e Caffé (2013), Ludemir (2013), Martins e Canevacci (2018).

É ao se posicionar na periferia, falando a partir dela e dali assumindo seu ponto-de-vista, que o artista funk, que conceituo como periférico, leva ao grande público as realidades materiais que a constituem, mas não apenas estas. Leva-as junto a seus universos imaginativos, criativos, mentais, elaborando sobre a precariedade ao colocar em ação mecanismos inventivos, feitos pela própria favela, a partir de elementos apropriados de uma cultura mais ampla, pop e global, que a princípio nada tem a ver com o universo que se quer tornar inteligível. Dessa perspectiva, acionar o território pode reiterar uma origem, mas reitera igualmente os universos imaginativos dos quais é índice, para colocar nos termos de Gell (1998______. (1998), Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Oxford University Press. ). O funk pode ser assim apreendido como tradutor de uma mente criativa que se coloca em marcha não apenas movida pela busca de soluções utilitárias, mas que ainda assim não deixa de lado o dado social.

Em diferentes oportunidades elaborei sobre a criatividade funkeira, destacando o papel que as imagens, inclusive as virtuais, desempenham na mesma e fazendo ver como o prazer no puro criar também mobiliza o artista funk (Mizrahi 2009______. (2009), “De agora em diante é só cultura: Mr. Catra e as desestabilizadoras imagens e contra-imagens Funk”. In: M. A. Gonçalves e S. Head. Devires imagéticos: a etnografia, o outro e suas imagens. Rio de Janeiro: 7Letras. ; 2012b______. (2012b), “Mr. Catra: cultura, criatividade e individualidade no funk carioca”. In: M. A. Gonçalves; R. Marques; V. Cardoso. Etnobiografia: subjetivação e etnografia. Rio de Janeiro: 7Letras.; 2015______. (2015), “Cabelos ambíguos: beleza, poder de compra e ‘raça’ no Brasil urbano”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 30, nº 89: 31-45. ; 2016a______. (2016a), “A música como crítica social: lógica dual e riso conectivo no funk carioca”. Anthropológicas, vol. 27, nº 2: 64-96.). Aqui recorro a um breve exemplo, concedido pela letra da música Cachorro de Mr. Catra, músico sob foco neste artigo.7 7 Oi cachorro.../Quer din din?/Quer din din?/Vende um X9 pra mim/Quer din din?/Quer din din?/Traz um verme/Traz um ganso/Se faz de amigo/Só pra escoltar/Sujeito safado/Tem que apanhar/Por causa dele/O meu mano morreu/O plantão do trabalho/Ele enfraqueceu/Causou muitas mortes/Deixando infeliz/Família dos manos/Que eram raiz/Os moradores/Já querem pegar/Até grampearam/O seu celular/Patrão já ta preso/Mandou avisar/Que sua sentença/Vamo executar/É com bala de AK!/Cachorro/Se quer ganhar um din din/Vende um X9 pra mim/Vende um x9 pra mim/Cachorro/Me entrega esse canalha/Deixa ele bem amarrado/Pega o dinheiro/E rala/Sujeito safado/Já sabe de cor/O endereço, o contato/Lá do DPO/Comédia fudido/Que entrega o irmão/Se eu pego esse verme/Não tenho perdão/Eu pago quanto for/Mas me dá o canalha/Eu vou comer esse verme/Na bala/De qualquer modo/Não vai escapar/Eu tenho pra ele/Uma bolsa de AK/Cachorro/Se quer ganhar um din din/Vende um X9 pra mim/Vende um x9 pra mim/Cachorro/Me entrega esse canalha/Deixa ele bem amarrado/Pega o dinheiro e rala. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=_hiXOWapKWo, acesso em 01/12/2018. “Cachorro” é gíria da favela para o policial corrupto e seu significado metafórico não é difícil de adentrar: se sua versão animal é atraída pelo cheiro da comida, a versão humana não pode farejar a presença do dinheiro que imediatamente aparece na busca de propina, de “arrego”. Já “X9”, outra gíria da favela, tem um significado mais oculto, vintage, podemos dizer. Refere-se ao delator, ao traidor, à figura não só mais odiada das narrativas sobre a favela, mas igualmente desprezada no cotidiano dessas comunidades. Sua alcunha deriva da série de animação japonesa da década de 1980, Speed Racer, na qual o misterioso corredor X, de carro número 9 e identidade secreta, é na verdade o irmão do também corredor Speed Racer, a quem acompanha de longe, mantendo o seu anonimato e sem ser percebido.

É a partir dessa tensão entre o real e o ficcional, o imaginativo e o concreto que o artista funk age, fazendo ver realidades ocultas ou silenciadas. Busca estabelecer conexões com a sociedade envolvente, com os gostos oficiais, entrando e saindo de espaços mais ou menos hegemônicos sem, contudo, perder sua especificidade estilística. É dessa perspectiva que argumento que o fazer do artista funk é um fazer conectivo. O funk carioca retém sua diferença e singularidade ao mesmo tempo em que é massivamente consumido. A vontade de Mr. Catra pelo funk afina-se à sua vontade pela margem e se articulam, ambas, por meio de um projeto de não pertencimento comum.8 8 Esse entendimento que faço do funk carioca, como realizando um projeto de não pertencimento, é retomado por Victor Vasconcellos (2017), que argumenta que o movimento musical não deve ser tomado por meio de um “paradigma da inclusão”. Incluí-lo, em vez de contribuir para sua faceta produtiva, pode significar submetê-lo e despi-lo de sua potência e singularidade.

Margem, entre lugar, não lugar, dispositivo: refinando alguns conceitos

Mr. Catra escolhe olhar o mundo de um entre lugar, ou de um não lugar, que aqui estou chamando de margem, mas que se define não tanto por oposição ao centro, como pude notar ainda em minhas primeiras saídas com o artista e sua trupe. Um lugar mais propriamente liminar, mas não tanto como o lugar de passagem de um estado a outro, como no modelo tripartite de Van Gennep (2011VAN GENNEP, Arnold. (2011), Os ritos de passagem. Petrópolis: Editora Vozes ), e mais como tempo e espaço propício à potencialização das habilidades criativas, como elaborou Victor Turner em diferentes oportunidades, mais notadamente a partir de seu livro O processo ritual (Turner 2013TURNER, Victor. (2013), O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Editora Vozes.). Um “não lugar” que se diferencia, portanto, do conceito de “não-lugar”, como formulado por Marc Augé (1994AUGÉ, Marc. (1994), Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus.) - espaços de passagem, de anonimato, impessoais - e que possui, outrossim, aproximações com os usos da expressão como feita pelos Estudos da Performance.9 9 Para um conjunto de reflexões recentes sobre o tema, ver a coletânea A terra do não-lugar, organizada por Raposo, Cardoso, Dawsey e Fradique (2013). Já a noção de margem, como a emprego, pode ser lida, em um certo sentido, como tributária do conceito de entre-lugar, inicialmente formulado por Silviano Santiago e posteriormente apropriado pelos Estudos Culturais e Literários. Essa aproximação pode ser notada junto à coletânea de ensaios dedicada exclusivamente à literatura marginal (Faria, Penna e Patrocínio 2015FARIA, Alexandre, PENNA, João Camilo, PATROCÍNIO, Paulo Roberto. (2015), Modos da margem: figurações da marginalidade na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Aeroplano.), que o próprio Santiago (2015SANTIAGO, Silviano. (2015), “Apresentação”. In: A. Faria, J. C. Penna, P. R. Patrocínio. Modos da margem: figurações da marginalidade na literatura brasileira . Rio de Janeiro: Aeroplano .) apresenta, chamando atenção para sua proposta de um projeto de comunidade periférica com potências de se conformar como centro de um projeto de nação brasileira.

Há, contudo, uma diferença de ênfase, na medida em que, ao elaborar sobre a noção de margem, quero chamar atenção menos para os poderes que a pertença ao território pode conceder à produção artística, e mais para uma vontade pela margem, como Mr. Catra permite ver com sua busca permanente por colocar-se nesse lugar. Com a noção de margem quero explorar as potências do artista periférico, mais do que de um artista da periferia, com o adjetivo periférico remetendo à ideia de minoritário, como formulada por Deleuze e Guattari: enquanto termo que se opõe à ideia de majoritário não somente em seu sentido quantitativo, mas sobretudo político. Diferenciando-se, portanto, da noção de marginal, que diz respeito à problemática da inclusão, bem como da de minoria, que indica uma relação de quantidade (Deleuze e Guattari 1995DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Félix. (1995), Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 2. São Paulo: Ed. 34.:45-59).

Essa vontade pela margem, essa busca reiterada por colocar-se na margem, que vemos em seu ir e vir entre a casa da família e a favela, sua filiação a uma das facções a controlarem o tráfico de drogas nas favelas, sua posterior adesão ao funk e por fim sua conversão ao Judaísmo, parecem falar de um lugar mais propriamente existencial. Análogo, penso eu, ao ocupado por Frantz Fanon, que ele mesmo nomeia como “não lugar” (Fanon 2008FANON, Frantz. (2008), Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA. ), como veremos adiante. É mais precisamente Giorgio Agamben (2014AGAMBEN, Giorgio. (2014), Nudez. Rio de Janeiro: Autêntica.) e o modo como o filósofo conceitua a noção de “contemporâneo” que me ajudam a refinar esse lugar, que vejo definido por uma não adesão ao seu tempo.

Nos termos de Agamben, um sujeito ou fenômeno contemporâneo definem-se a partir de uma relação com seu tempo que adere a ele por meio da dissociação e de um certo anacronismo. Como a moda, que é contemporânea e sendo fugaz é sempre démodé. “Estar na moda” é assim sempre contraditório, pois no momento em que a moda é, ela já não é mais. É precisamente através dessa separação que o sujeito contemporâneo, mais do que outros, é capaz de apreender o seu tempo. É como enxergar na escuridão, neutralizando “as luzes que provêm da época para descobrir as suas trevas” (Agamben 2014: 26). É precisamente essa não imersão absoluta em uma época, essa atitude de estranhamento constitutiva que me interessa reter na exploração da pessoa do artista. Ela ajuda-nos a pensar essa busca deliberada de Mr. Catra por se colocar na margem como um desejo de colocar-se fora de seu tempo, deslocando-se de seu tempo e espaço para melhor perspectivá-los.

Proponho assim tomarmos a margem como um mecanismo disparador de processos de subjetivação alternativos, como um dispositivo, noção central para a filosofia contemporânea e para teoria social, retomada por Roger Sansi (2015SANSI, Roger. (2015), Art, anthropology and the gift. Londres, New York: Bloomsburry.) como suporte para levarmos adiante a teoria da ação formulada por Gell (1998______. (1998), Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Oxford University Press. ), evidenciando seus aspectos transformativos e adensando os modos com que a arte age sobre o mundo. Nesse viés, o panóptico, a construção arquitetônica emblemática do esquema disciplinar de Foucault (1987______. (1987), Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes.), que faz com que os sujeitos se sintam vigiados mesmo na ausência do vigilante, comportando-se assim adequadamente, é como uma “armadilha”, no sentido dado ao termo por Gell (1992GELL, Alfred. (1992), “The technology of enchantment and the enchantment of technology”. In: J. Coote e A. Shelton. Anthropology, Art and Aesthetics. Oxford: Claredon Press.), um nódulo de intencionalidades [trap of agencies] que, como um dispositivo, é não somente um produtor de agências, mas captura os agentes ao prever seus modos de agir, pensar, sentir.

A noção de agência, como formulada por Gell, recebeu diversas leituras críticas, que se centraram especialmente no não abandono pelo autor do divisor humano e não humano, mantendo a mente humana como locus privilegiado da criação. Latour (2005LATOUR, Bruno. (2005), Reassembling the social. Oxford: Oxford University Press . ), por meio de uma discussão em torno da noção de evento, demonstra como não é preciso partir de um criador específico, humano ou não, para tomarmos as coisas como agentes. Ingold (2012INGOLD, Tim. (2012), “Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais”. Horizontes Antropológicos, ano 18, nº 37: 25-44. ) vai além, propondo que abandonemos a noção de agência, pois recorrer a ela é em si mesmo a denúncia de um incondicional entendimento das coisas não humanas como inanimadas. Por outro lado, é preciso reconhecer que esse mesmo foco sobre a mente permitiu a Gell reter o problema do criador individual, de um certo modo deixado de lado desde que Foucault (1979FOUCAULT, Michel. (1979), “What is an author?”. In: J. Harari. Textual strategies: perspectives in post-structuralist criticism. London: Methuen. ) e Barthes (1991BARTHES, Roland. (1991), “The death of the author”. In: J. Caughie. Theories of authorship: a reader. London, New York: Routledge. ) colocaram a ênfase na recepção da obra de arte. Gell manteve abertos os caminhos para problematizarmos o artista e sua individualidade, em vez de abandoná-los em prol de uma significação social ou cultural da arte. Esse aspecto esteve especialmente evidente por meio de sua discussão sobre o encantamento que o artista produz sobre o espectador, argolando-o por meio de uma tecnologia de captura cognitiva (Gell 1992).

O dispositivo é, portanto, um produtor de agentes. Possibilita que processos de subjetivação específicos sejam engendrados. Mas se Foucault traz uma perspectiva um tanto claustrofóbica para o dispositivo, interessa-me apreendê-lo a partir da expansão contida na ideia de que dispositivos podem ser tomados como “cenários”, como “teatros sociais” nos quais atores se formam, se fazem (Sansi 2015SANSI, Roger. (2015), Art, anthropology and the gift. Londres, New York: Bloomsburry.:59). Dessa perspectiva, é possível tomar o dispositivo como um locus no qual, ou uma coisa por meio da qual, agentes são produzidos e processos de subjetivação específicos são engendrados.

Mr. Catra coloca-se na margem para nela tornar-se artista e dela assumir a perspectiva da favela, representando-a, falando em seu nome, para a partir desse lugar mandar sua mensagem para seu público. O dispositivo, nesse caso, não é tanto o objeto de arte, mas a margem, esse lugar produtor de agentes e de processos de subjetivação no qual o artista não erudito se coloca para criar e produzir efeitos sobre o mundo.

A margem como lugar de subjetivação do contemporâneo, ou O Judaísmo de Mr. Catra

Mr. Catra parece conversar com Moacyr Scliar, que toma o sentimento de inadequação que “acompanha a vida de todo filho de imigrante” como “fonte inesgotável de inspiração”. E se ser “como um híbrido, um duplo” pode beirar à esquizofrenia para uns, para outros, segue o escritor judeu, para aqueles que trabalham com a criação e particularmente para o artista, é como um “tesouro”.10 10 Essa ideia foi explicitada por Scliar em uma de suas últimas entrevistas, concedida ao programa Roda Viva, da rede de televisão Cultura. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=LARRXzsmvGI. Último acesso em 29/06/2018. A potência desse sentimento de inadequação repercute em seu Centauro no jardim, mas podemos vê-la se manifestar na obra de outros autores. Renomadamente em Metamorfose, de Franz Kafka e na breve trajetória do filósofo alemão Walter Benjamin, tida por alguns como um modelo teórico para a identidade judaica.11 11 Ver, por exemplo, Eiland and Jennings (2014) para uma mostra de como a errância de Benjamin enreda-se à sua produção intelectual.

Ao visitar Israel, e em especial o Muro das Lamentações, Mr. Catra converte-se, de modo informal, ao Judaísmo, movimento que poderia ser interpretado a partir do fascínio que a religião judaica exerce sobre fiéis das religiões neopentecostais. Mais ainda, se consideramos que Dona Elza, sua mãe, era cristã, antes de se tornar espírita, e que o filho a seguiu em sua primeira devoção. Entretanto, a passagem de Mr. Catra de uma religião à outra mostra mais rupturas do que continuidades. Desse modo, a proibição repentina de que na casa da família fosse comemorado o Natal era reivindicada pelo artista não tanto por ser uma festa pagã, como defendem algumas correntes neopentecostais, mas por comemorar o nascimento de um líder representado a partir de valores ocidentais, expressos pela tradução eurocêntrica de sua figura humana: loira, de traços finos e olhos claros. E se aspectos relativos à fé se faziam presentes por meio de cânticos rituais em hebraico, que ecoavam pela sala da residência da família, ao sentar-me para elaborar com Mr. Catra o porquê de o Judaísmo ter lhe interessado, foram mais propriamente aspectos políticos que ele trouxe à tona.

Segundo o artista, sua conversão informal à religião judaica se dá quando de sua visita a Israel, que lhe interessou por ter sido o “único país que levou o negro para dentro, mas não para escravizar” e sim para o acolher. Além disso, continua o artista, “em Israel não tem playboy”. Não existiria lá, como existe aqui, o filho da classe média que se define no mundo a partir dos privilégios que herda e aprende em casa. Junto a essas falas, possuidoras de um certo tom de denúncia, e a outras sobre os “holocaustos diários que acontecem nas favelas brasileiras”, existia uma reiterada crítica aos valores e morais englobantes, o que era realizado pelo acionar de expressões como “a sociedade católica”, “a sociedade escrota” ou ainda a “hipocrisia da sociedade”. Como notei então, a conversão de Mr. Catra já apontava para o lugar ambíguo que não tanto o Judaísmo, mas ser judeu, lhe permitia ocupar, a meio termo do Oriente e do Ocidente (Mizrahi 2007MIZRAHI, Mylene. (2007), “Funk, religião e ironia no mundo de Mr. Catra”. Religião e Sociedade, 27(2): 114-143.). Nem cristão/ocidental, nem muçulmano/oriental.

Sua adesão ao Judaísmo possuiu, segundo o próprio, fundamento espiritual, místico e simultaneamente político. Seus discursos, tanto em contextos performáticos quanto domésticos, reiteravam essa complexidade. Pois foi a emoção que sentiu no Muro das Lamentações junto à decepção que sentiu ao retornar ao Brasil e se deparar com a conjuntura social nacional que o modificaram, levando-o a buscar uma religião alternativa. Mas é curioso notar que, se ao elaborarmos sobre o porquê de sua conversão ao Judaísmo ele trouxe aspectos mais políticos à tona, sua religiosidade se manifestava de algum modo desenraizada de uma crença específica. Uma religiosidade que se fazia visível através de sinais cotidianos, de suas falas e atitudes, como foi possível ver nos bastidores dos eventos e durante os deslocamentos da trupe para cumprir a agenda profissional. Ele mesmo não frequentava qualquer espaço religioso, mas sugeria a seus familiares, preferencialmente as mulheres, que participassem dos cultos semanais do “templo judaico” na vizinhança de sua casa.

O fato é que Mr. Catra nunca foi recebido em uma sinagoga. Por outro lado, era no momento da performance que seus discursos em torno do divino pareciam significar efetivamente a busca por uma conexão com o sobrenatural. O louvor com os quais abria e fechava seus shows visavam, primeiro, pedir ao deus que tudo desse certo e depois agradecer pelo sucesso obtido. É dessa perspectiva que a canção Minha facção, a primeira da sequência de músicas a serem executadas em seus shows, possuía uma “letra religiosa”, ao mesmo tempo em que narrava uma vida pregressa, conduzida em proximidade a um mundo “proibido”.12 12 Minha facção/É o bonde de Deus/Já fui ladrão/E conheço o breu/Se liga rapaziada/Essa que é a parada/Catra, O Fiel/Sinistro da Baixada/Catra, O Fiel/Maluco pode crê/Minha facção/Fortalece você/Só não vale corrê/Vem representá/Se ajoelhou, mano/Vai ter que orá/Humilde e sinistro/Representação/Minha facção/Fortalece você/Eu estô ligeiro/Sempre atento e esperto Se ajoelhou/Tem que fechar com o certo. Música do cd Mr. Catra 25 anos. Disponível em https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_lahiBWtSLHuxwQ-tiPcshkUFheoTnOWYM, acesso em 01/12/2018. Por outro lado, se a religião, tematizada particularmente a partir das relações entre a figura de Jesus, o Cristianismo e o Judaísmo, era oportunidade para que a dimensão política fosse acionada na vida cotidiana, esta dimensão política era carregada para suas performances artísticas por meio do riso e da ironia. Especificamente o riso que provocava e a ironia que acionava com suas paródias musicais.

Catra se auto intitulava um “hebreu” ou um “judeu salomônico”. A primeira nomenclatura era justificada pelo fato de ele não ter nascido de ventre judeu, de modo que não poderia assim ser considerado um. Mas por “judeu salomônico” ele se referia ainda à possibilidade de aderir ao Judaísmo e manter múltiplas relações amorosas com diferentes mulheres, como ele de fato fez. E, talvez mais relevante para nossos propósitos aqui, referia-se ao amor bíblico entre o rei Salomão e a Rainha de Sabá, ele judeu e ela negra, pensando-se como fruto das misturas entre negros e judeus. Catra já apontava para a busca por um entre lugar que parece coadunar-se a uma ambivalência da identidade judaica que está para além da dimensão religiosa. Sua conversão ao Judaísmo parece motivada fundamentalmente por sua escolha de se colocar na margem, buscando reiterar, junto com essa persona judaica, o lugar “inadequado” que parece altamente adequado ao artista.

Colocar-se na margem concede ao sujeito uma posição ímpar para a apreensão de sua época. Um posicionamento periférico. A chave parece estar em escolher ocupar um lugar para o qual as estruturas não nos moldaram, um lugar que a cultura e a sociedade não previram. Mr. Catra ocupa a margem para dela acionar suas potências criativas. É ao estabelecer uma relação “intempestiva” com o seu tempo, como afirmou Agamben (2014AGAMBEN, Giorgio. (2014), Nudez. Rio de Janeiro: Autêntica.) para Foucault e Benjamin e seus respectivos projetos para a História, que Mr. Catra se constitui como hábil conector de diferenças. Como disse um amigo comum, enquanto caminhávamos junto ao corpo prestes a ser enterrado, ele não era particularmente ligado a nenhum dos ali presentes, com exceção de seus familiares, obviamente. Mas tinha o poder de juntar todas aquelas pessoas.

Mr. Catra faz da margem lugar do qual entabula um processo de subjetivação específico, particular, justamente pela possibilidade de não adesão, de não pertencimento. Tornar-se judeu é para ele a coroação de um projeto que é também artístico e político. Um projeto que se inicia na busca pela favela, continua por sua escolha de “seguir pelo caminho do funk” e culmina com sua conversão ao Judaísmo. Colocar-se na margem permite a Mr. Catra colocar-se na confluência desses saberes para junto a eles tornar-se artista, levando adiante o que parece ser o moto de sua existência: a relação entre negros e brancos.

Simetrizando negros e judeus

Mr. Catra parece fascinado pela potência que a simetrização entre uma subjetivação negra e outra judia guarda, simetrização essa notada também por outros intelectuais, como podemos acessar junto à revisita que Paul Gilroy (2001GILROY, Paul. (2001), O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos.) faz às aproximações entre pensamentos e experiências negras e judaicas, realizadas por autores negros. A partir delas, Gilroy fornece seu próprio entendimento das potências que as convergências entre as histórias e “mentalidades” dos negros e dos judeus apresentam. Reconstitui, assim, parte das longevas conversas entre pensadores negros e judeus, enfocando seu impacto sobre os intelectuais do “Atlântico negro” (Gilroy 2001:384).

O teólogo James Crone lembra diversas passagens bíblicas de cooperação entre negros e judeus, dentre elas o amor entre o rei Salomão e a Rainha de Sabá (Gilroy 2001GILROY, Paul. (2001), O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos.:385), que nos concedeu mais uma pista para entender a auto-identificação de Catra como um judeu salomônico. Ainda em relação a relatos bíblicos, o historiador da religião afro-americana, Albert Rabouteau, argumenta que o Êxodo funcionou como “evento arquetípico” para elaboração da identidade e historicidade dos escravos (Gilroy 2001:386). Em relação ao pan-africanismo de W. E. B. Du Bois, Gilroy defende que se considere o papel do sionismo moderno em sua formulação, na medida em que o intelectual norte-americano acompanhou de perto os desdobramentos do caso Dreyfuss na Europa (Gilroy 2001:394). Por fim, Gilroy nota como James Baldwin, apesar de sua revolta com a maior aceitação que o mundo branco demonstrou do sofrimento judeu, por contraste ao descaso em relação ao sofrimento negro, acaba seduzido pelo papel que os intelectuais judeus desempenharam na consolidação dos interesses e da autoconsciência negras por meio de sua sistemática militância cultural (Gilroy 2001:403).

Mas é mais especificamente Edward Wilmot Blyden que aposta em uma ligação entre negros e judeus a partir de uma “história comum”. Blyden, que Gilroy afirma ter sido um dos raros pensadores negros a produzirem impacto significativo no mundo literário de fala inglesa no século XIX, esclarece as conexões entre negros e judeus por dois caminhos. De um lado, retoma a importância do sionismo para o desenvolvimento do nacionalismo negro do século XIX. De outro, aponta para o modo com que as analogias derivadas do pensamento judaico teriam afetado o que o próprio Blyden chamou de “personalidade racial”. Mas para além dessas conexões, é a partir de sua colaboração com David Cardoze, futuro rabino da comunidade predominantemente judaica na qual Blyden nasceu, que este pensador negro perspectiva a afinidade entre judeus e negros com base nos eixos do sofrimento e da servidão (Gilroy 2001:388-392).

Mas o que penso trazer elementos instigantes para reflexão é a desessencialização que Gilroy propõe ao repensar o conceito de tradição a partir de uma experiência de ambivalência da modernidade. Junto a um conceito de tradição menos rígido, Gilroy parece querer aproximar a posição de negros e judeus na modernidade, embaçando suas fronteiras. De um lado, o autor coloca em xeque uma afrocentricidade e a ideia de que os poderes de uma política cultural negra residam em uma narrativa purista e de retorno triunfal a uma África não somente anterior à escravidão, mas que desconsidera esse período como fornecedor de significados genuínos para uma história das populações negras em diáspora. De outro lado, Gilroy mostra, ou reitera, como a posição do judeu na modernidade foi sempre desconfortável, ou que, em outros termos, o judeu foi sempre menos branco do que a Baldwin pareceu (Baldwin 1985 apud Gilroy 2001:403). O racismo e as políticas eugenistas norte-americanas deveriam ser pensados lado a lado ao nazismo e ao antissemitismo europeus, e não separados tal como o faz Zygmunt Bauman, segundo a sentida crítica que a ele faz Gilroy (2001:397-399).

Ao buscar um conceito de tradição que não se defina por sua oposição reificada ao polo da modernidade, Gilroy coloca em xeque uma noção de cultura negra como distinta e autoconsciente. Ao mesmo tempo, aposta na ambivalência da identidade judaica para pensar o que ele conceituou como Atlântico negro.

Algumas dessas discussões, particularmente as contribuições de escritores cuja relação com a lei e o saber judaicos era remota ou ambivalente, formam um rico recurso para mim ao pensar os problemas de identidade e diferença na diáspora do Atlântico negro. Na preparação desse livro, recorri reiteradamente à obra de pensadores judeus, a fim de encontrar inspiração e recursos com os quais mapear as experiências ambivalentes dos negros dentro e fora da modernidade (:383).

É essa “inspiração” que me interessa reter, muito mais do que a busca por equivalências históricas nas trajetórias e vivências de ambos os grupos, como o “sofrimento”, o “medo”, a “diáspora”, o “holocausto”, o “exílio”, o “racismo”, a “perseguição”, temas em torno dos quais o próprio Gilroy elaborou, explorando suas convergências. Inspiração que, penso, moveu também Fanon (2008FANON, Frantz. (2008), Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA. ) no relato poético e pessoal que, com tanta dor, fala do “não lugar” ocupado pelo negro em um mundo branco e no qual acaba descobrindo paralelismos com o ocupado pelo judeu. Um paralelismo que Fanon nota a partir de simetrias entre racismo e antissemitismo. “Queria ser simplesmente um homem entre homens” (Fanon 2008: 106). Fanon está exausto. Mais do que o não pertencimento, o que parece mesmo exauri-lo é a impossibilidade de não ser notado, de não passar nunca invisível. Seu desejo é “passar despercebido” como o judeu que “só não é amado a partir do momento em que é detectado”. Fanon está cansado de ser “escravo” de sua própria “aparição” (Fanon 2008: 108).

Buscando fluidez por meio da visibilidade do corpo

Mr. Catra conversa com Frantz Fanon. Pois para além da ambivalência, o que parece interessar ao artista é mais a fluidez da persona judaica, aspecto que pesquisas recentes vêm reiterando13 13 Ver, por exemplo, Cossio (2017), Malagold (2017) e Paxman (2017), comunicações em torno de personalidades judaicas e suas identidades fluidas, apresentadas no painel Identidades em flujo, do XXXV Congresso Internacional da Latin American Studies Association (LASA 2017), ocorrido em Lima, Peru, entre os dias 29 de abril e 01 de maio de 2017. e que ele elabora também por meio de sua aparência. Mr. Catra era um hábil mestre da equivocação e parece ter capturado para si e para o modo como acionava sua mente criativa a possibilidade de deslocalização e de equivocação que parece própria ao judeu. A aparência, que hoje separa negros e judeus, com os primeiros definidos por sua negritude e os últimos confundidos pelo jogo da branquitude, já foram auxiliares para classificar ambos em uma mesma categoria de perigo social. O signo relevante, nesse caso, era não a cor da pele, mas seus narizes que denotavam suas “naturezas primitivas”, ponto que Sander Gilman explora por meio de uma história da beleza corporal no Ocidente.

Nos séculos XVIII e XIX, o nariz africano e o nariz judeu se tornaram signos raciais abstratos da personalidade e do temperamento atribuídos a seus donos. O nariz passou a simbolizar tudo o que era estático no africano e no judeu, não importando se em jogo estavam suas naturezas ou suas culturas (Gilman 1999GILMAN, Sander. (1999), Making the body beautiful: a cultural history of aesthetic surgery. Princeton, Oxford: Princeton University Press. : 85-90). E se nos Estados Unidos de fins do século XIX um regime formal de segregação racial impedia a entrada e a circulação de negros em ambientes sociais brancos, na Alemanha da mesma época um homem judeu poderia entrar em ambientes brancos se ele não parecesse “judeu demais”, conjuntura que favorece o desenvolvimento da moderna rinoplastia. Os judeus berlinenses, ao apagarem suas marcas étnicas por meio de cirurgias plásticas em seus narizes, buscavam adquirir visibilidade por meio da invisibilidade (Gilman 1999:136).

Sem querer estabelecer relações de equivalência ou realizar exercício comparativo entre a conjuntura alemã do século XIX e o Rio de Janeiro contemporâneo, quero notar como o universo funk carioca produz esquemas corporais que igualmente apostam nos tensionamentos entre visibilidade e invisibilidade como meio para lidar com racismos cotidianos. Um desses esquemas se realiza junto ao que denominei como cabelos ambíguos, cabelos produzidos pelas mulheres de modo a deslocalizá-las tanto do que entendem como uma imagem tradicional de negritude, que objetificam por meio dos cabelos Black, quanto de uma representação cristalizada do negro no Brasil, produzida a partir da sobreposição entre classe e raça, que localizam nos cabelos alisados. Buscam cabelos não-brancos: cabelos nem lisos como os das mulheres brancas nem crespos como os cabelos Blacks (Mizrahi 2012______. (2012a), “Cabelos como extensões: re lações protéticas, materialidade e agência na estética funk carioca”. Textos Escolhidos de Cul tura e Arte Populares, vol. 9, nº 2: 137-157.a; 2015). Cabelos que concedem fluidez na circulação pelo espaço urbano, driblando silenciosamente o racismo sem buscar embranquecer. Acompanhar Mr. Catra pelo Rio de Janeiro me permitiu notar como esse jogo da visibilidade e da invisibilidade é refeito por meio de seus deslocamentos pelo espaço público.

De um lado, Mr. Catra aposta nos poderes que a invisibilidade traz para sua navegação social, potencializando sua circulação por espaços tradicionalmente não franqueados à classe média, como a favela. De outro lado, é junto aos poderes que um corpo negro concede ao artista periférico que ele manda seu “papo reto” a plateias brancas. Se em um plano ele aposta na invisibilidade que seu corpo negro lhe traz, em outro plano ele recorre à visibilidade que a negritude lhe outorga para legitimar sua fala política e desafiar a sociedade envolvente, a “sociedade escrota”. Se Catra utiliza-se de sua aparência negra para entrar em lugares que são tradicionalmente vetados à classe média, adentrando a margem, é ao atingir o estatuto de artista que ele passa a penetrar lugares vedados ao negro, assumindo o ponto de vista da favela e usando suas performances para desestabilizar preconcepções.

Por meio de paródias musicais, que resultam da erotização de músicas da MPB ou do rock Brasil, ele desconcerta suas plateias, colocando em relação mundos antagônicos. Previne seu público avisando que “chegou a hora da cultura”, e que não cantará mais funk e sim Toquinho, Vinícius de Moraes, Renato Russo, Capital Inicial. Com essas produções, Mr. Catra subverte a cultura hegemônica branca não apenas por meio do significado semântico das novas letras, mas sobretudo com os mundos que coloca em relação por meio do deboche, do riso e da ironia. Catra faz sua plateia rir de si mesma, ao ver suas produções mimetizadas e subvertidas, e gargalha junto com elas, como nessa versão de Tarde em Itapoã, originalmente composta por Vinícius de Moraes.

Tirou meu calção de banho Fez biquinho pra mamar Meu pau ficou des’tamanho Não dava pra’creditá E a gata mamava sorrindo, que lindo E eu pedi mais um pouco E o bagulho explodindo É uma coisa de louco É bom… Uma mamada de manhã Halls com sabor de hortelã Pra relaxar dá dois no can Um natural de Amsterdam14 14 Uma mamada de manhã, de Mr. Catra, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=6uZjzRzJarg. “Can” é abreviação para cannabis sativa. Letra original, disponível no disco Toquinho, seu violão e suas canções, vol. 2: Um velho calção de banho/O dia pra vadiar/Um mar que não tem tamanho/E um arco-íris no ar/Depois na praça Caymmi/Sentir preguiça no corpo/E numa esteira de vime/Beber uma água de coco/É bom/Passar uma tarde em Itapuã/ Ao sol que arde em Itapuã/Ouvindo o mar de Itapuã/Falar de amor em Itapuã/Enquanto o mar inaugura/Um verde novinho em folha/Argumentar com doçura/Com uma cachaça de rolha/E com o olhar esquecido/No encontro de céu e mar/Bem devagar ir sentindo/A terra toda a rodar/É bom/Passar uma tarde em Itapuã/Ao sol que arde em Itapuã/Ouvindo o mar de Itapuã/Falar de amor em Itapuã/Depois sentir o arrepio/Do vento que a noite traz/E o diz-que-diz-que macio/Que brota dos coqueirais/E nos espaços serenos/Sem ontem nem amanhã/Dormir nos braços morenos/Da lua de Itapuã/É bom/Passar uma tarde em Itapuã/Ao sol que arde em Itapuã/Ouvindo o mar de Itapuã/Falar de amor em Itapuã.

Essas paródias musicais são destinadas exclusivamente ao momento da performance, fazendo cogitar se seus registros sonoros são evitados com vistas a prevenir possíveis processos judiciais. Mas é também próprio ao artista funk primeiro produzir a música para depois se preocupar com direitos autorais. É preciso considerar ainda que as paródias que subvertem os “clássicos da cultura” são desempenhadas preferencialmente em casas de shows frequentadas pelas classes médias. Nos muitos shows de Mr. Catra realizados em favelas ou em ambientes periféricos a que assisti, ele jamais realizou tais performances. O ponto fundamental dessas paródias é o de, no momento da performance, não apenas engajar o público no voo imaginativo do artista, como fazer com que um público específico, branco e de classe média, participe ativamente da crítica social que o artista está elaborando. Catra coloca seu público para rir de si mesmo, de produções que, sendo a subversão de ícones da alta cultura nacional, são sua representação.15 15 Em diferentes oportunidades elaborei sobre as paródias musicais de Mr. Catra, tendo como enquadre a teoria da mimesis de Taussig (1993), notando seus desdobramentos para a criatividade artística e para os usos do riso e da ironia feitos pelo artista. Para uma análise mais detalhada, ver Mizrahi (2016a, 2016b).

Conclusão

Neste artigo, parti da conversão informal de Mr. Catra ao Judaísmo para junto a ela estabelecer uma discussão sobre a margem e sobre os poderes do artista não erudito. A margem emergiu assim como encerrando a possibilidade de se assumir pontos de vistas alternativos e um estado de espírito contemporâneo. O interesse de Mr. Catra em tornar-se judeu evidencia-se não tanto por meio de uma relação com o divino ou por meio de aspectos mais transcendentais, mas parece residir em sua potência política e criativa, que pode ser acessada por meio das simetrizações que ele promove entre negros e judeus. Simetrizações que podem ser pensadas a partir de uma experiência da modernidade norteada tanto pela ambivalência judaica quanto pelo não lugar ocupado pelo negro, mas também a partir do jogo da visibilidade e da invisibilidade que os corpos possibilitam. Se hoje a aparência conferida pelo corpo separa negros e judeus, é justamente a possibilidade que o judeu possui de passar invisível que parece fascinar Catra, como fascinou também Fanon. Tornar-se judeu é seguir pela margem, junto às potencialidades de um corpo que concede simultânea visibilidade e invisibilidade e permite transitar pelos mais diversos espaços sociais, exercendo conectividade artística e fazendo da arte um sistema de ação.

A história pessoal de Mr. Catra lhe oferece a possibilidade de assumir diferentes pontos de vista, mas ele insiste em olhar o mundo a partir das margens, conectando realidades supostamente não-comunicáveis. Estar na favela é para ele uma escolha, menos do que uma condicionante. Escolha que se traduz ainda em sua vida pessoal tão idiossincrática: pai de mais de cerca de duas dezenas de filhos biológicos, além de outros adotivos, com cujas mães manteve relações amorosas ao mesmo tempo em que sustentou um casamento de quase duas décadas junto ainda a relações furtivas com outras mulheres. Mr. Catra fez da margem uma escolha ativa, reproduzindo por meio da criação artística e de seus modos de vida o entre lugar em que ele se encontrou desde a infância. Um menino negro, filho de criação do patrão branco de sua mãe, que vivia entre seus irmãos brancos, no mesmo domicílio no qual sua mãe foi empregada doméstica.

É em continuidade a essa vivência que entendo sua escolha por tornar-se “judeu” e o modo com que elabora sobre as relações entre brancos e negros. Tornar-se judeu é a culminância de um projeto de busca reiterada pela margem, fazendo dela lugar para a criação artística e para a produção de uma discursividade política, centradas fundamentalmente sobre as diferenças e aproximações entre negros e brancos e os racismos cotidianos. Mas é também um meio para Mr. Catra reconfigurar o modo com que elabora sobre as relações entre negros e brancos, apostando no humor e na ironia, elementos fundantes de suas paródias musicais. Catra possuía um gosto especial em equivocar o outro, tanto através da palavra quanto junto ao seu corpo, desestabilizando as preconcepções que se poderia ter sobre o lugar do negro no nexo de relações sociais brasileiras. Tornar-se judeu é levar adiante essa arte da equivocação.

O lugar indefinido, transicional, porque definido no trânsito, ocupado por Mr. Catra é atuante em seu fazer artístico. São os saberes que ele carrega, junto ao modo como agencia sua aparência e os valores hegemônicos, que permitem ver seu fazer político - fazer este que se traduz em sua criação artística. Suas paródias musicais, que resultam da erotização de músicas da MPB ou do rock Brasil, são mostras exemplares desse traço. Por meio delas ele desconcerta suas plateias colocando em relação mundos concebidos como antagônicos.

Ao fazer da periferia uma escolha menos do que uma conjuntura, Mr. Catra permitiu-nos tomá-la não apenas como território de origem, mas sobretudo como lugar de onde fala, traduzindo a perspectiva que assume na vida. A subversão de valores hegemônicos que realiza depende de saberes adquiridos por uma vivência singular que uma posição fora do lugar lhe concedeu. Saberes não eruditos que adquire graças ao lugar desplazado no qual escolhe se colocar. Um sujeito contemporâneo que, graças ao seu modo paradoxal de adesão ao tempo, adquire e detém saberes não acadêmicos, agenciados de modo conectivo, que lhe possibilitam rearranjar a partilha do sensível, fazendo da margem um dispositivo de criação, nos ajudando a conceituar o artista periférico.

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  • 1
    Mr. Catra faleceu em 9 de setembro de 2018, cerca de 16 meses após o diagnóstico de um câncer que iniciou comprometendo seu sistema digestivo. Este artigo estava já com sua primeira versão finalizada quando sua passagem ocorreu. Estive com Mr. Catra uma semana antes do falecimento e foi no dia seguinte à sua morte, tomada pela emoção que sua partida deixou, que escrevi um texto-despedida, ou uma homenagem deliberada, para a produtora de funk Kondzilla. Disponível em https://www.kondzilla.com/catra-era-um-atraves-de-muitos-por-mylene-mizrahi/Último acesso em 18/12/2018.
  • 2
    Ao longo de 18 meses de trabalho de campo, conduzido entre 2007 e 2008, além de posteriores incursões a campo, acompanhei Mr. Catra, sua trupe de artistas, seus familiares e outros parceiros de criação junto aos deslocamentos para cumprir sua agenda de shows pela área metropolitana do Rio de Janeiro, no estúdio de gravação, na residência da família, nas saídas para compras.
  • 3
    Ver a análise de Sílvio Essinger em O Globo de 10/09/2018. Disponível em https://oglobo.globo.com/cultura/musica/analise-mr-catra-foi-maior-figura-dos-primeiros-30-anos-do-funk-carioca-23054362. Último acesso em 18/12/2018.
  • 4
    Ver, por exemplo, o grupo cultural Afroreggae (https://www.afroreggae.org/) e a escola técnica Spetaculu (http://www.spectaculu.org.br/).
  • 5
    Em setembro de 2017 participei como convidada de audiência pública no Senado Federal que objetivou avaliar proposta formal de criminalização do funk através de projeto de lei. Em meio a esse debate participei de mesas e concedi entrevistas para diversos veículos de comunicação. Trechos de uma dessas entrevistas, na qual explico o que é cultura, foram apropriados por músicos de funk que a incorporaram à base de sua composição. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=s8M1xajqAkg, último acesso em: 17/12/2018. Para outros trabalhos sobre o funk carioca e a criminalização do ritmo ver Lopes (2011LOPES, Adriana Carvalho. (2011), Funk-se quem quiser: no batidão negro da cidade carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto & FAPERJ. ), Facina e Palombini (2017)FACINA, Adriana, PALOMBINI, Carlos. (2017), “O patrão e a padroeira: momentos de perigo na Penha, Rio de Janeiro”. Mana, vol. 23, nº 2: 341-370..
  • 6
    Para trabalhos que exploram as potencialidades das artes urbanas e periféricas, além dos já citados ao longo desse artigo, ver, entre outros, Salles (2007SALLES, Écio. (2007), Poesia revoltada. Rio de Janeiro: Aeroplano . Coleção Tramas Urbanas. ), Hikiji e Caffé (2013HIKIJI, Rose Satiko Gitirana e CAFFÉ, Carolina. (2013), “Artes da periferia: conflito em imagens, música e dança”. In: N. V. Cunha e G. S. Feltran. Sobre periferias: novos conflitos no Brasil contemporâneo . Rio de Janeiro: Lamparina & FAPERJ .), Ludemir (2013LUDEMIR, Julio. (2013), 101 funks que você tem que ouvir antes de morrer. Rio de Janeiro: Aeroplano .), Martins e Canevacci (2018MARTINS, Rosana e CANEVACCI, Massimo. (2018), Lusophone Hip-hop: 'Who We Are' and 'Where We Are': Identity, Urban Culture and Belonging. London: Sean Kingston Publishing.).
  • 7
    Oi cachorro.../Quer din din?/Quer din din?/Vende um X9 pra mim/Quer din din?/Quer din din?/Traz um verme/Traz um ganso/Se faz de amigo/Só pra escoltar/Sujeito safado/Tem que apanhar/Por causa dele/O meu mano morreu/O plantão do trabalho/Ele enfraqueceu/Causou muitas mortes/Deixando infeliz/Família dos manos/Que eram raiz/Os moradores/Já querem pegar/Até grampearam/O seu celular/Patrão já ta preso/Mandou avisar/Que sua sentença/Vamo executar/É com bala de AK!/Cachorro/Se quer ganhar um din din/Vende um X9 pra mim/Vende um x9 pra mim/Cachorro/Me entrega esse canalha/Deixa ele bem amarrado/Pega o dinheiro/E rala/Sujeito safado/Já sabe de cor/O endereço, o contato/Lá do DPO/Comédia fudido/Que entrega o irmão/Se eu pego esse verme/Não tenho perdão/Eu pago quanto for/Mas me dá o canalha/Eu vou comer esse verme/Na bala/De qualquer modo/Não vai escapar/Eu tenho pra ele/Uma bolsa de AK/Cachorro/Se quer ganhar um din din/Vende um X9 pra mim/Vende um x9 pra mim/Cachorro/Me entrega esse canalha/Deixa ele bem amarrado/Pega o dinheiro e rala. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=_hiXOWapKWo, acesso em 01/12/2018.
  • 8
    Esse entendimento que faço do funk carioca, como realizando um projeto de não pertencimento, é retomado por Victor Vasconcellos (2017VASCONCELLOS, Victor Figueiredo Souza. (2017), Funk: criação, diálogo e insurgência na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado em Ciências da Literatura, UFRJ. ), que argumenta que o movimento musical não deve ser tomado por meio de um “paradigma da inclusão”. Incluí-lo, em vez de contribuir para sua faceta produtiva, pode significar submetê-lo e despi-lo de sua potência e singularidade.
  • 9
    Para um conjunto de reflexões recentes sobre o tema, ver a coletânea A terra do não-lugar, organizada por Raposo, Cardoso, Dawsey e Fradique (2013RAPOSO, Paulo, CARDOSO, Vânia Z., DAWSEY, John, FRADIQUE, Teresa. (2013), A terra do não-lugar: diálogos entre antropologia e performance. Florianópolis: Ed. da UFSC.).
  • 10
    Essa ideia foi explicitada por Scliar em uma de suas últimas entrevistas, concedida ao programa Roda Viva, da rede de televisão Cultura. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=LARRXzsmvGI. Último acesso em 29/06/2018.
  • 11
    Ver, por exemplo, Eiland and Jennings (2014)EILAND, Howard e JENNINGS, Michael W. (2014), Walter Benjamin: a critical life. Cambridge, London: The Belknap of Harvard University Press. para uma mostra de como a errância de Benjamin enreda-se à sua produção intelectual.
  • 12
    Minha facção/É o bonde de Deus/Já fui ladrão/E conheço o breu/Se liga rapaziada/Essa que é a parada/Catra, O Fiel/Sinistro da Baixada/Catra, O Fiel/Maluco pode crê/Minha facção/Fortalece você/Só não vale corrê/Vem representá/Se ajoelhou, mano/Vai ter que orá/Humilde e sinistro/Representação/Minha facção/Fortalece você/Eu estô ligeiro/Sempre atento e esperto Se ajoelhou/Tem que fechar com o certo. Música do cd Mr. Catra 25 anos. Disponível em https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_lahiBWtSLHuxwQ-tiPcshkUFheoTnOWYM, acesso em 01/12/2018.
  • 13
    Ver, por exemplo, Cossio (2017COSSIO, Dinorah. (2017), “The identity of displacement: an analysis of Victor Perera’s Sephardic journey”. Trabalho apresentado na mesa Identidades en flujo. 2017 Congress of the Latin American Studies Association, Lima, Peru.), Malagold (2017MALAGOLD, Gina D. (2017), “Visionary of Mexican Jewish Women’s Identity: Anita Brenner Redefining Borders of Mexicanidad”. Trabalho apresentado na mesa Identidades en flujo. 2017 Congress of the Latin American Studies Association, Lima, Peru.) e Paxman (2017PAXMAN, Andrew W. (2017), “The Rise and Fall of Leon Rasst, the Jewish-Russian Merchant of Puebla”. Trabalho apresentado namesa Identidades en flujo . 2017 Congress of the Latin American Studies Association, Lima, Peru. ), comunicações em torno de personalidades judaicas e suas identidades fluidas, apresentadas no painel Identidades em flujo, do XXXV Congresso Internacional da Latin American Studies Association (LASA 2017), ocorrido em Lima, Peru, entre os dias 29 de abril e 01 de maio de 2017.
  • 14
    Uma mamada de manhã, de Mr. Catra, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=6uZjzRzJarg. “Can” é abreviação para cannabis sativa. Letra original, disponível no disco Toquinho, seu violão e suas canções, vol. 2: Um velho calção de banho/O dia pra vadiar/Um mar que não tem tamanho/E um arco-íris no ar/Depois na praça Caymmi/Sentir preguiça no corpo/E numa esteira de vime/Beber uma água de coco/É bom/Passar uma tarde em Itapuã/ Ao sol que arde em Itapuã/Ouvindo o mar de Itapuã/Falar de amor em Itapuã/Enquanto o mar inaugura/Um verde novinho em folha/Argumentar com doçura/Com uma cachaça de rolha/E com o olhar esquecido/No encontro de céu e mar/Bem devagar ir sentindo/A terra toda a rodar/É bom/Passar uma tarde em Itapuã/Ao sol que arde em Itapuã/Ouvindo o mar de Itapuã/Falar de amor em Itapuã/Depois sentir o arrepio/Do vento que a noite traz/E o diz-que-diz-que macio/Que brota dos coqueirais/E nos espaços serenos/Sem ontem nem amanhã/Dormir nos braços morenos/Da lua de Itapuã/É bom/Passar uma tarde em Itapuã/Ao sol que arde em Itapuã/Ouvindo o mar de Itapuã/Falar de amor em Itapuã.
  • 15
    Em diferentes oportunidades elaborei sobre as paródias musicais de Mr. Catra, tendo como enquadre a teoria da mimesis de Taussig (1993TAUSSIG, Michael. (1993), Mimesis and alterity: a particular history of the senses. Londres: Routledge.), notando seus desdobramentos para a criatividade artística e para os usos do riso e da ironia feitos pelo artista. Para uma análise mais detalhada, ver Mizrahi (2016a, 2016b______. (2016b), “Produzindo estilo negociando sentidos: arte, mercado e criatividade junto ao funk carioca. Antropolítica, nº 40: 252-279.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    05 Jul 2018
  • Aceito
    31 Dez 2018
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