Acessibilidade / Reportar erro

A PARTE MALDITA: Fernando Henrique Cardoso e as histórias do marxismo no Brasil

The Accursed Share: Fernando Henrique Cardoso and the Histories of Marxism in Brazil

RESUMO

Há um hiato entre a centralidade que Marx e o marxismo ocupam na obra de Fernando Henrique Cardoso e o lugar que se costuma reservar a ele no cânone do marxismo brasileiro. O presente artigo apresenta evidências desse descompasso e explora a hipótese de que ele não se deve à posterior carreira do intelectual na política profissional, mas, sim, a uma conjunção de fatores, internos e principalmente externos à sua obra, que cumpre analisar em detalhe.

PALAVRAS-CHAVE:
Fernando Henrique Cardoso; pensamento político brasileiro; marxismo; Brasil

ABSTRACT

Fernando Henrique Cardoso’s place in the canon of Brazilian Marxism is not compatible with the prominence with which Marx and Marxism appear throughout his work. This article presents evidence of such incompatibility and explores the hypothesis that it is not a mere consequence of Cardoso’s ulterior career in professional politics. His misplacement, we argue, is due to a conjunction of factors, internal and mostly external to his work.

KEYWORDS:
Fernando Henrique Cardoso; Brazilian political thought; Marxism; Brazil

Marx, O capital, o marxismo e diversos de seus temas prioritários ocupam lugar de destaque na obra de Fernando Henrique Cardoso, especialmente nos livros, coletâneas e artigos publicados ao longo das décadas de 1960 e 1970. Eis uma constatação com pouca margem para dúvidas, dada a soma de evidências textuais que a sustenta. E mesmo assim permanece rara a inclusão de Fernando Henrique entre os protagonistas da história do marxismo no Brasil. Como veremos, ele sequer costuma figurar entre os coadjuvantes. Esse parece ser um descompasso que mereceria a atenção daqueles que se dedicam à arqueologia do pensamento social e político brasileiro, como também dos mais agudos observadores da vida ideológica nacional - descompasso que, bem compreendido, pode iluminar elementos relevantes dos processos de delimitação de linhagens e formação dos cânones, ali onde se entrecruzam pesquisa acadêmica, competição universitária e luta político-ideológica.

Como se sabe, Cardoso foi um dos participantes fundadores do célebre Seminário Marx (1958-64). Inspiradas nos trabalhos coletivos do grupo, suas primeiras obras desenvolvem temas do seminário, explicitam uma interpretação dos debates ali travados e buscam pensar o Brasil através das lentes de certa dialética marxista. Desde Capitalismo e escravidão no Brasil meridional (1962Cardoso, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. São Paulo: Difel, 1962.), tratou-se de afirmar a superioridade de uma investigação social da história do Brasil a partir das categorias de Marx e de marxistas (como Jean-Paul Sartre e György Lukács). Além de trafegar nesse registro mais amplo da formação nacional, Cardoso enveredou também pelas sendas do acalorado debate político-ideológico dos anos 1960. Sua sociologia jamais foi estritamente “universitária”, sua abordagem da dialética marxista jamais foi alheia à política, menos ainda aos debates travados no campo da esquerda. Isso se evidencia tanto na crítica que desfere contra o nacional-desenvolvimentismo em Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil (1964______. Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil. São Paulo: Difel, 1964.) quanto, em plano latino-americano mais abrangente, na crítica à Cepal e aos vícios dualistas dos que acreditavam na bifurcação estagnação/revolução, leitmotiv de Dependência e desenvolvimento na América Latina, escrito com Enzo Faletto entre 1965 e 1967. Sempre trabalhando com as categorias de totalidade e contradição, assim como de interesses e luta de classes, bastariam esses marcos da obra de Cardoso para ilustrarmos seu pertencimento, para além da mera afinidade eletiva, ao campo marxista. Contudo, há mais: um sem-número de artigos, publicados desde o início de sua trajetória acadêmica até a transição para a política profissional (consumada em 1983), em que o sociólogo trata diretamente de interpretações da obra de Marx e de temas-chave da discussão marxista contemporânea, travando debates com relevantes autores do marxismo brasileiro, latino-americano e europeu (Cardoso, 1969______. “La Contribution de Marx à la théorie du changement social”. In: Marx et la pensée scientifique contemporaine. La Haye: Mouton, 1969, pp. 253-65.; 1972______. “Althusserianismo ou marxismo? A propósito do conceito de classes em Poulantzas”. In: Cardoso, Fernando Henrique. O modelo político brasileiro e outros ensaios. São Paulo: Difel, 1972.; 1973______. “Notas sobre Estado e dependência”. Cadernos Cebrap, São Paulo: 1973, v. 11.; 1977______. “Estado capitalista e marxismo”. Estudos Cebrap, v. 21, 1977, pp. 5-31.; 1982______. “A América Latina e o socialismo na década de 80”. In: Cardoso, Fernando Henrique; Trindade, Hélgio (orgs.). O novo socialismo francês e a América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982 (Coleção O Mundo Hoje, v. 37), pp. 13-29.; Cardoso; Serra, 1978______; Serra, José. “Las desventuras de la dialéctica de la dependencia”. Revista Mexicana de Sociología, v. 40, 1978, pp. 9-55.).

Mesmo diante de vastíssima obra e de sua proeminência também em parâmetros internacionais, o cânone do marxismo no Brasil jamais incorporou Cardoso a suas fileiras. O que parece ainda mais digno de estudo quando recordamos que essa relativa exclusão se dá apesar do reconhecimento da pregnância do marxismo de Cardoso por um dos maiores intelectuais do último meio século no país: Roberto Schwarz. Ao menos desde meados dos anos 1990, o crítico literário tem situado, em artigos e entrevistas, a obra de Cardoso como um dos mais importantes marcos da produção do grupo do Seminário Marx (Schwarz, 1999Schwarz, Roberto. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.; 2017______. Nós que amávamos tanto O capital: leituras de Marx no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2017.; 2019______. Seja como for: entrevistas, retratos e documentos. São Paulo: Ed. 34, 2019.). Schwarz ainda enfatiza a centralidade daquela obra, o modo como ela pensou a articulação entre capitalismo, escravidão e as contradições da dependência como influências decisivas para sua própria interpretação da condição periférica e das especificidades da vida ideológica brasileira. É, pois, desse cânone, cuja seletividade contorna a história contada por Roberto Schwarz, que trataremos aqui.

Mas como se poderia delimitar um cânone? Como afirmar uma exclusão, um ocultamento, de um continente cujas fronteiras são necessariamente fluidas e inacabadas? De uma unidade que varia com o tempo e com a perspectiva de quem vê? Este artigo elencará algumas evidências que sustentam a hipótese do ocultamento. Sem descuidar da perene precariedade que caracteriza a formação e a delimitação de cânones, linhagens ou grandes famílias ideológicas, a nos impor uma ativa hermenêutica da suspeição para evitarmos reificações no tratamento do “marxismo” (Hobsbawm, 1980Hobsbawm, Eric. “Prefácio”. In: __. (org.). História do marxismo, v. 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980., pp. 13-4), parece-nos possível identificar em diversas ocorrências, para além da dúvida razoável, um movimento de exclusão. Movimento tanto mais eficaz quanto menos supõe concertação de propósitos, intenções deliberadas, arranjos conscientes.

Em suma, os processos de delimitação do cânone, a partilha entre quem nele entra e quem dele sai, podem talvez ser entendidos mais como um efeito não intencional do que como uma arquitetura preconcebida. Haverá até mesmo, como veremos, tentativas de classificação daquele marxismo que implicam, contraditoriamente e para além de suas intenções, sua derradeira desclassificação.

Nesse sentido, excluiremos de partida aquela que talvez pudesse ser intuitivamente aceita como a narrativa mais plausível para tal ocultamento: que o presidente FHC teria eclipsado o sociólogo Fernando Henrique Cardoso e projetado assim, em sua própria obra intelectual, o manto de uma proscrição a posteriori. Ainda que boas páginas tenham sido escritas sobre a relação do sociólogo com o presidente (Garcia Jr., 2004Garcia Jr., Afrânio. “A dependência da política: Fernando Henrique Cardoso e a sociologia no Brasil”. Tempo Social, v. 16, n. 1, 2004, pp. 285-300.; Torres Freire, 1998Torres Freire, Vinicius. “Sociólogo FHC mudou antes do FHC presidente”. Folha de S.Paulo, 19/7/1998.; Cohn, 1996Cohn, Gabriel. “Entre estruturas e estratégias”. Folha de S.Paulo, Caderno Mais!, 13/10/1996.; Barboza Filho, 1995Barboza Filho, Rubem. “FHC: os paulistas no poder”. In: Amaral, Roberto (org.). FHC: os paulistas no poder. Niterói: Casa Jorge, 1995.), compreender aquela proscrição como consequência de uma atuação política posterior não nos parece fazer jus à complexidade desse processo. Nem o marxismo de Cardoso encontra sua melhor explicação à luz de seus anos como senador, ministro e presidente, nem tampouco o lugar que ele (não) ocupa no rol dos marxismos brasileiros se pode explicar apenas pelo que seria uma intromissão espúria de elementos político-partidários na escritura de nossa história das ideias. Em uma palavra, não é que algo como esse anacronismo politicamente interessado não possa se expressar aqui e ali: ele existe, mas está longe de constituir condição suficiente para a existência do fenômeno que nos interessa.

Trabalharemos, pois, com outra linha argumentativa, segundo a qual há uma conjunção de fatores, internos e principalmente externos à obra de Cardoso, que compõem o quadro, ambivalente e multivariado, dessa sua precária acolhida no campo marxista. A combinação desses elementos nos ajudará a entender algo que a tese do anacronismo politicamente interessado perde de vista, a saber, o caráter radicalmente seletivo da proscrição. Afinal, o ocultamento do cânone não se aplacou sobre todos aqueles com atuação política supostamente desalinhada. E, pior, o exemplo de Fernando Henrique Cardoso talvez nos sirva para lançar luz sobre casos em que até mesmo os alinhados não foram poupados pelo cânone. São outros, pois, os motivos da exclusão e caberá entendermos como funcionam em sua difícil concatenação.

Nos últimos dez anos, houve considerável expansão da produção acadêmica que toma como objeto a obra de Fernando Henrique Cardoso e seu marxismo, ou sua relação com Marx e o marxismo (Rodrigues, 2012Rodrigues, Lidiane Soares. A produção social do marxismo universitário em São Paulo: mestres, discípulos e “um seminário” (1958-1978). Tese (doutorado em história). São Paulo: FFLCH - Universidade de São Paulo, 2012.; Lima, 2015Lima, Pedro Luiz. As desventuras do marxismo: Fernando Henrique Cardoso, antagonismo e reconciliação. Tese (doutorado em ciência política), Rio de Janeiro: Iesp - Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2015.; Gonçalves, 2018Gonçalves, Rodrigo Santaella. Teoria e prática em Fernando Henrique Cardoso: da nacionalização do marxismo ao pragmatismo político (1958-1994). Tese (doutorado em ciência política), São Paulo: FFLCH - Universidade de São Paulo, 2018.; Belinelli, 2019Belinelli, Leonardo. Marxismo como crítica da ideologia: um estudo sobre os pensamentos de Fernando Henrique Cardoso e Roberto Schwarz. Tese (doutorado em ciência política). São Paulo: FFLCH - Universidade de São Paulo, 2019.). Talvez essa produção marque o início de um longo processo de reabilitação de Cardoso para os fins de sua devida incorporação ao cânone marxista. Por ora, contudo, o marxismo de Cardoso, mesmo após essas revisitas contemporâneas, segue ocupando estranho limbo, aquém do marxismo brasileiro. À parte os estudos sobre o Cardoso marxista, com suas necessárias incursões para melhor caracterizar o conteúdo específico de seu marxismo sem arroubos apologéticos ou excessos ideológicos, parece válido investigar, por outro ângulo, como e por que o marxismo pátrio se esquivou dele. É o que pretende este artigo, tomando por base o acúmulo alcançado com as supracitadas pesquisas anteriores.

Um cânone pode ser apreendido por diversos recortes, e estes sempre serão parciais e relativamente precários. Não há método seguro para dar conta de algo que, apesar de representar um espelho de determinada tradição de pensamento, mantém considerável abertura para redefinições (e indefinições). Nesse sentido, recolhemos a seguir três evidências que nos parecem compor um quadro plausível do cânone do marxismo brasileiro em formação, apto a detectar seus eventuais mecanismos de exclusão. Evidências assimétricas, em sua representatividade, do que seriam as formas de manifestação de uma tradição de pensamento; descontínuas em termos cronológicos; e reveladoras de diferentes facetas do marxismo no Brasil. Por essa diversidade e assimetria, poderemos vislumbrar como se põe em movimento o processo de exclusão de um autor. Ressalve-se desde logo que não há qualquer pretensão exaustiva no levantamento dessas evidências; pelo contrário, haveria outras inúmeras angulações para sublinhar o mesmo ocultamento. Nosso recorte se propõe simplesmente a testar a hipótese da exclusão, com ampla margem de plausibilidade, a partir de alguns de seus indícios mais loquazes.

PRESENÇA AUSENTE

Idealizada em 1988 por um grupo de trabalho no âmbito da Anpocs, e composta por seis volumes publicados ao longo de mais de quinze anos (entre 1991 e 2007), a História do marxismo no Brasil, da Editora da Unicamp, é “o mais ambicioso e completo programa já realizado de reconstituição da história do marxismo brasileiro” (Musse, 2015Musse, Ricardo. “As aventuras do marxismo no Brasil”. Cadernos CRH, v. 94, n. 28, 2015, pp. 409-25., p. 409), razão pela qual constitui aqui nosso primeiro ponto de observação.

Nos 42 capítulos que compõem a totalidade dos volumes, perfazendo mais de 2 mil páginas, não há qualquer destaque à obra de Fernando Henrique Cardoso ou capítulo dedicado a debatê-la. A mera ausência, por si só, talvez não expressasse sintoma significativo. Mas percebida à luz do tratamento que lhe é dedicado nos ocasionais momentos em que Cardoso é citado, direta ou indiretamente, tal ausência revela a descaracterização com que se costuma recepcionar sua obra.

Como, curiosamente, a divisão disciplinar que rege o segundo volume da obra exclui a sociologia como uma das áreas de conhecimento impactadas pelo marxismo - a despeito de ser esta uma das disciplinas em que sua presença é mais notável (Musse, 2015Musse, Ricardo. “As aventuras do marxismo no Brasil”. Cadernos CRH, v. 94, n. 28, 2015, pp. 409-25., p. 415) -, resta-nos buscar vestígios de alusão a Cardoso nos capítulos sobre economia e filosofia, assim como em outras partes da coletânea. A cargo do economista Guido Mantega, o capítulo “O marxismo na economia brasileira” apresenta efusivo reconhecimento da importância do Seminário Marx e, especificamente, da obra de Cardoso para o marxismo no Brasil. Afirmando que “os maiores intérpretes e divulgadores do marxismo no Brasil” saíram do seminário, Mantega chega a dedicar página e meia às inovações de Dependência e desenvolvimento na América Latina e à sua “feliz aplicação do materialismo dialético” (Mantega, 1995Mantega, Guido. “Marxismo na economia brasileira”. In: Moraes, João Quartim de (org.). História do marxismo no Brasil , v. 2: Os influxos teóricos. Campinas: Ed. Unicamp , 1995., pp. 104 e 116). Como não era sua atribuição desenvolver tal fio de análise, o tratamento do tema permanece alusivo e, veremos, minoritário no corpo da obra. Exceção que confirma a regra.

Mais eloquente sobre o Seminário Marx é o capítulo de Paulo Arantes, encarregado de tematizar o impacto de Marx e do marxismo na filosofia brasileira. O texto confere protagonismo a José Arthur Giannotti e busca afirmar a tese de que o seminário teria sido um momento fundacional do que considera o “marxismo filosófico” no Brasil. A escolha das palavras aqui não é casual - trata-se de um marxismo que aporta “no Brasil”, mas permanece com um pé além-mar -, assim como não é casual a decisão editorial de atribuir ao “capítulo filosófico” a função de incorporar o seminário ao corpus da coletânea. Há, ademais, uma convergência de fundo entre a narrativa de Arantes sobre o seminário e o lugar que lhe é destinado na história do marxismo no Brasil - convergência que merece especial atenção.

Ambivalente, a perspectiva de Arantes ora parece subsumir a novidade daquela interpretação marxista do Brasil, “o marxismo renovado da ciência social uspiana” (Arantes, 1992______. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira: dialética e dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992., p. 52), no status de mero apêndice do marxismo filosófico capitaneado por Giannotti e sintetizado na fórmula “marxismo ocidental uspiano” (Arantes, 1994______. Um departamento francês de ultramar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994., p. 286); ora parece, em momentos pontuais, dedicar-lhe a devida atenção e conferir-lhe relativa autonomia, apontando para suas virtudes e potencialidades. A resultante, contudo, termina por fazer pender a balança para a primeira valência, negativa, e tem o efeito de despolitizar o marxismo do seminário (e de Cardoso). Enquanto meramente universitário, acadêmico, ou pior, “marxismo de cátedra” (Arantes, 1994______. Um departamento francês de ultramar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994., p. 43), seu destino será a irrelevância diante de um cânone cioso de sua imersão política.

“A primeira e mais fundamental característica [do marxismo ocidental] foi seu divórcio com relação à prática política” (Anderson, 1989Anderson, Perry. Considerations on Western Marxism. Londres: Verso, 1989., p. 29). Essa concepção de marxismo ocidental, difundida por Perry Anderson a partir da segunda metade dos anos 1970, é adotada por Paulo Arantes e desempenha papel-chave em sua leitura do “marxismo uspiano”, em que reiterar a cada momento as marcas da gênese universitária implica endosso, tácito ou explícito, à tese da deflação do elemento político. O “capítulo brasileiro do marxismo ocidental”, tratado preliminarmente em artigo sobre Ruy Fausto e desenvolvido em diversos artigos e livros posteriores, será sempre delimitado por esse enquadramento (Arantes, 1983Arantes, Paulo. “Um capítulo brasileiro do marxismo ocidental: reconstruindo a dialética com Ruy Fausto”. Folha de S.Paulo, Folhetim, 19 jun. 1983.).

Por isso, entendemos que, quando Arantes identifica a “aliança entre marxismo renovado e redescoberta do Brasil”, ou quando menciona o “respeitável ciclo ensaístico de interpretação do Brasil”, ele o faz sempre sob o signo do que seria uma “paradoxal renovação universitária do marxismo” (Arantes, 1994______. Um departamento francês de ultramar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994., pp. 43 e 243). O acento recai, via de regra, sobre o paradoxo desse “ocidentalismo”, com sua gênese imprópria (universitária) e sua “linguagem cifrada” (Anderson, 1989Anderson, Perry. Considerations on Western Marxism. Londres: Verso, 1989., p. 32) - e é assim que mesmo os momentos mais generosos de sua leitura sobre o Seminário Marx podem ser entendidos:

Com o passar dos anos acabou surgindo daquele embrião meio improvisado, não os quadros de uma Revolução que não houve, mas o que ainda existe de menos dogmático, mais inventivo e original no ensaio marxista de interpretação da experiência brasileira. Como era de se esperar, a iniciativa partiu dos assim chamados cientistas sociais, neles incluídos historiadores, economistas, eruditos em história do marxismo e até mesmo críticos literários que haviam sabiamente tomado o atalho da sociologia - enfim, o núcleo mesmo da cultura “radical” uspiana. (Arantes, 1994______. Um departamento francês de ultramar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994., p. 238)

Por esse caminho, Arantes insinua a bipartição entre o “ensaio marxista de interpretação da experiência brasileira”, legado da “cultura radical uspiana”, e o “marxismo transcendental gerado pela cultura filosófica uspiana” (Arantes, 1994______. Um departamento francês de ultramar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994., p. 290). Pelos termos da argumentação de Arantes, “o momento mais inventivo da ciência social” dos anos 1960 e 1970 parece merecer análise mais detida no âmbito da história do marxismo no Brasil. Porém, ela (a ciência social uspiana) não recebe essa acolhida - apesar, mas talvez também por causa, dos termos em que a situa o próprio Arantes. Isso porque ao enquadrar a experiência mais geral daqueles anos na chave do “marxismo ocidental”, mediante o recurso frequente à adjetivação irônico-depreciativa “uspiana/uspiano” (sempre ali para relembrar o leitor dessa “paradoxal” marca de origem), a leitura de Arantes desemboca na ênfase do caráter metodológico daquele marxismo e parece subordinar sua faceta “menos dogmática, mais inventiva e original” aos limites daquele “transcendentalismo” fora do lugar. A conversão lukacsiana da ortodoxia marxista a uma questão de método (Arantes, 1994______. Um departamento francês de ultramar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994., p. 250) seria assim seguida à risca por aqui, o que conferiria protagonismo à filosofia em meio à diversidade disciplinar do ambiente do seminário.

Nesse sentido, Arantes inscreve a célebre introdução de Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, em que Cardoso defende a superioridade metodológica da dialética, como um “primeiro capítulo do marxismo ocidental uspiano”, ao qual cumpriria simplesmente “dar sequência às Notas teóricas de Giannotti” (Arantes, 1994______. Um departamento francês de ultramar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994., p. 286). Suas alusões ao primado do método - à “forma costumeira do parêntese metodológico” - e a Cardoso como aquele que melhor soube “aproveitar a lição especulativa do filósofo” denotam a posição relativamente secundária da sociologia (Arantes, 1994______. Um departamento francês de ultramar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994., pp. 48 e 287).

Mais importante do que hierarquizar esta ou aquela disciplina como prioritária, para nossos fins, é perceber como essa leitura alimenta o viés comum que despolitiza a obra de Cardoso para, no passo seguinte, descaracterizá-la, culminando em sua desclassificação do rol dos marxismos brasileiros que seriam dignos de nota. Esse é o ponto de convergência entre a interpretação de Arantes e a seletividade do cânone que estamos a assinalar. Sua célebre estocada sobre um “marxismo mais afiado na leitura de O capital do que na crítica do capitalismo” (Arantes, 1994______. Um departamento francês de ultramar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994., p. 292) mira em Giannotti, mas, pelo que assinalamos acima, acerta também em Cardoso. E há diversas passagens da obra de Arantes que justificam essa inferência, como em alusões que marcam a indiferenciação, ao tratar do “marxismo ocidental brasileiro, seção Filosofia, ou mesmo Sociologia i” (Arantes, 1996______. O fio da meada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996., p. 29), ou que reiteram seu distanciamento cético ao mencionar o “dito marxismo do círculo do Capital” (Arantes, 1996______. O fio da meada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996., p. 184).

A desclassificação em chave despolitizante reaparece em ao menos outros dois capítulos da História do marxismo no Brasil. E a redução do marxismo de Cardoso a uma espécie de subproduto derivado dos insights de Giannotti também volta a aparecer. Escrevendo sobre o impacto da obra de Louis Althusser na intelectualidade brasileira, Décio Saes subordina a apreciação dos textos anti-althusserianos de Cardoso às “pegadas de Giannotti” (Saes, 1998Saes, Décio. “O impacto da teoria althusseriana da História na vida intelectual brasileira”. In: Moraes, José Quartim de (org.). História do marxismo no Brasil , v. 3: Teorias. Interpretações. Campinas: Ed. Unicamp , 1998., p. 63). E alguns termos usados antes por Arantes são retomados diretamente nos textos de Marcos Del Roio e Caio Navarro de Toledo.

Apontando para a emergência de uma vertente crítica que buscava superar a hegemonia do marxismo pecebista, Del Roio retoma a expressão “marxismo de cátedra” (Del Roio, 2007Del Roio, Marcos. “A teoria da revolução brasileira”. In: Del Roio, Marcos (org.). História do marxismo no Brasil, v. 4: Visões do Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 2007., p. 102). Diante do “ecletismo teórico” e de sua “forte convergência com a perspectiva liberal-democrática marcada pelo evolucionismo”, o autor destaca a obra de Cardoso e seus “avatares teóricos” - teoria do populismo e teoria da dependência - como marcos dessa forma heterodoxa de marxismo (Del Roio, 2007Del Roio, Marcos. “A teoria da revolução brasileira”. In: Del Roio, Marcos (org.). História do marxismo no Brasil, v. 4: Visões do Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 2007., p. 102). O marxismo de cátedra aparece, evidentemente, como selo de desqualificação, em que é ressaltada sua gênese impura (a universidade), ao mesmo tempo que se projeta seu suposto alinhamento à direita do espectro político. Os “intelectuais inseridos na universidade” teriam pecado e maculado indelevelmente seu marxismo quando não se vincularam ao movimento operário, o que culminaria em um “uso eclético do marxismo, encarado como uma vertente clássica da sociologia” (Del Roio, 2007Del Roio, Marcos. “A teoria da revolução brasileira”. In: Del Roio, Marcos (org.). História do marxismo no Brasil, v. 4: Visões do Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 2007., p. 130). Sabemos o peso que têm as acusações de ecletismo no tribunal das ortodoxias marxistas.

No jargão do autor, ao marxismo de cátedra, e ao marxismo pecebista, opunha-se um “marxismo de esquerda”, numa tipologia em que a redundância faz pressupor que a cátedra seria sinônimo de direitismo (Del Roio, 2007Del Roio, Marcos. “A teoria da revolução brasileira”. In: Del Roio, Marcos (org.). História do marxismo no Brasil, v. 4: Visões do Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 2007., p. 103). A formação aberrante de um marxismo de direita aparece, pois, como a conclusão implícita da argumentação que busca situar a obra de Cardoso como ponto fora da curva da história do marxismo no Brasil - parte maldita que cumpriria ignorar ou, quando muito, tematizar como contraexemplo. A certa altura, o esquematismo da tipologia termina por esbarrar em dificuldades de classificação e aparece um imperativo de diferenciação no interior daquele corpo estranho, para que sejam salvos do ostracismo alguns autores prediletos. A seletividade da classificação - calcada num híbrido de simpatias pessoais, posições políticas idiossincráticas e altas doses de anacronismo - resta patente em passagens como a seguinte:

Hoje é perceptível que a matriz da “teoria da dependência”, desenvolvida pelo “marxismo de cátedra”, desdobrou-se, simplificadamente, em duas vertentes: a primeira, na qual se enquadram Florestan Fernandes e algumas facções políticas de esquerda marxista que não veem outra saída para a crise brasileira que não seja a revolução socialista; e outra, na qual se encaixam Fernando Henrique Cardoso e largas faixas da intelectualidade liberal-democrática, que julga ser a “dependência algo inelutável”. (Del Roio, 2007Del Roio, Marcos. “A teoria da revolução brasileira”. In: Del Roio, Marcos (org.). História do marxismo no Brasil, v. 4: Visões do Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 2007., pp. 117-8)

Cardoso aparece, assim, como um dos expoentes de um grupo de intelectuais que teria dissolvido o marxismo em um “paradigma liberal-democrata” (Del Roio, 2007Del Roio, Marcos. “A teoria da revolução brasileira”. In: Del Roio, Marcos (org.). História do marxismo no Brasil, v. 4: Visões do Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 2007., p. 130), enquanto Florestan Fernandes seria o marxista de cátedra capaz de superar os embaraços de uma matriz impura e permanecer no horizonte da história do marxismo, juntamente com aqueles que “não veem outra saída que não a revolução socialista”. O critério da desclassificação se revela aqui por uma ambiguidade sintomática: afinal, o problema desse marxismo ímpio residiria em sua baixa adesão à “revolução socialista” ou em sua capacidade de enxergar múltiplas saídas para conjunturas críticas? A expectativa sobre um marxista seria de que recusasse, por princípio, a percepção da história como obra em aberto?

Em “Intelectuais do Iseb, esquerda e marxismo”, Navarro de Toledo dedica as duas últimas páginas ao contraponto entre Iseb e USP e guarda o penúltimo parágrafo para o Seminário Marx. Ali aparece uma outra forma de classificação, talvez mais fiel ao espírito da argumentação de Arantes: o problema do marxismo de cátedra não está agora em um suposto direitismo de seus protagonistas, ou em seus vínculos ocultos com o paradigma liberal, mas, sim, no seu desinteresse pela política. A “cátedra” implicaria, em suma, inelutável despolitização:

O chamado Seminário Marx talvez se constitua em bom exemplo desse estilo de prática intelectual predominante na usp. Nos anos 50-60, jovens pesquisadores (sociólogos, economistas, historiadores, filósofos) se reuniam para conhecer em profundidade a obra seminal do marxismo, insatisfeitos com as interpretações pouco rigorosas (das vulgatas às duvidosas “apropriações” ideologizadas de Marx). Quase todos eram de esquerda (e à esquerda do PCB). A motivação que reunia o grupo, no entanto, não era política. Era fundamentalmente teórica. (Toledo, 1998Toledo, Caio Navarro. “Intelectuais do Iseb, esquerda e marxismo”. In: Moraes, José Quartim de (org.). História do marxismo no Brasil , v. 3: Teorias. Interpretações. Campinas: Ed. Unicamp , 1998., p. 270)

Um grupo de intelectuais de esquerda buscou refutar as interpretações vigentes do marxismo, superar a hegemonia stalinista na leitura dos clássicos, abordando-os de forma inovadora a partir do que existia de mais avançado no campo dos estudos marxistas no mundo, e ainda buscou desconstruir, pela esquerda, a perspectiva pecebista hegemônica sobre a conjuntura brasileira. Mas sua motivação, diz-se, não era política. Eis mais uma interpretação que alimenta certa versão consagrada da história das ciências sociais no país a partir da qual no Rio de Janeiro, e particularmente no Iseb, fazia-se política, enquanto em São Paulo fazia-se ciência (Miceli, 1989Miceli, Sergio. “Condicionantes do desenvolvimento das ciências sociais”. In: Miceli, Sergio. (org.). História das ciências sociais no Brasil , v. 1. São Paulo: Vértice, 1989.; Arruda, 1995Arruda, Maria Arminda de Nascimento. “A sociologia no Brasil: Florestan Fernandes e a ‘escola paulista’”. In: Miceli, Sérgio (org.). História das ciências sociais no Brasil, v. 2. São Paulo: Sumaré/Idesp/Fapesp, 1995, pp. 107-231.). Que a visão dicotômica daquele contexto esteja, ademais, afinada com um dos lados da contenda e endosse a visão retrospectiva de alguns de seus participantes (Musse, 2015Musse, Ricardo. “As aventuras do marxismo no Brasil”. Cadernos CRH, v. 94, n. 28, 2015, pp. 409-25., p. 416) é expressão inequívoca de que todos estavam, à sua maneira, fazendo e pensando a política - assim como quem escreve a história e define seus parâmetros. A nuance estaria, antes, nos diversos modos de fazer política e na dinâmica de rebatimentos complexos que caracteriza a relação entre atividade intelectual e prática política. Mas, para a máquina de edificação de cânones que ora testemunhamos em ação, importa achatar nuances, atenuar contradições e apagar terrenos de interseção imprevistos ou indesejados.

FORMAS ELEMENTARES DE DESCLASSIFICAÇÃO

São múltiplas as formas pelas quais se processa o mecanismo de exclusão do cânone. Algumas, contudo, se destacam pela frequência com que são mobilizadas e por desempenharem um papel decisivo na partilha dos incluídos e dos excluídos. Outras aparecem de modo mais fortuito, mesmo que escondam elementos nada irrelevantes da dinâmica de proscrição de autores.

Nesse último caso, pode-se citar o modo pelo qual o filósofo Leandro Konder lista Fernando Henrique Cardoso entre os intelectuais “marcados pelo marxismo” que não figuram como um dos quinze escolhidos para um tratamento mais detido em seu Intelectuais brasileiros e marxismo (1991). O argumento da escolha aleatória pode, por suposto, esconder as predileções do filósofo, o que fundamenta certa desconfiança diante do tom ameno com que se afirma que “não houve critério especial de seleção” e que os autores tratados teriam sido “escolhidos um tanto aleatoriamente” (Konder, 1991Konder, Leandro. Intelectuais brasileiros e marxismo. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1991., p. 11). No caso de Cardoso, interessa notar que, em meio a uma lista de nomes, a imensa maioria deles tratada sem qualquer aposto, o sociólogo aparece com uma breve e expressiva discriminação: segundo Konder, “não podemos deixar de reconhecê-las [as marcas do marxismo] na obra juvenil de Fernando Henrique Cardoso” (Konder, 1991Konder, Leandro. Intelectuais brasileiros e marxismo. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1991., p. 10). A delimitação temporal desempenha, fortuitamente, um duplo papel: por um lado, circunscrever a parcialidade do caráter marxista da obra de Cardoso; por outro, diminuir a relevância dessa parte da obra em questão, tanto por ser “juvenil” (logo, efêmera e imatura) quanto por ter sido substituída com o passar do tempo por outras inscrições teóricas que, refletindo sua maturidade, melhor sintetizariam a trajetória do autor. A bipartição da trajetória e da obra de Cardoso em uma adesão juvenil ao marxismo e um posterior afastamento rumo a outras paragens ideológicas (ou mesmo rumo ao ecletismo teórico) é recorrente e foi devidamente tratada e criticada em trabalhos recentes (Lima, 2015Lima, Pedro Luiz. As desventuras do marxismo: Fernando Henrique Cardoso, antagonismo e reconciliação. Tese (doutorado em ciência política), Rio de Janeiro: Iesp - Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2015.; Gonçalves, 2018Gonçalves, Rodrigo Santaella. Teoria e prática em Fernando Henrique Cardoso: da nacionalização do marxismo ao pragmatismo político (1958-1994). Tese (doutorado em ciência política), São Paulo: FFLCH - Universidade de São Paulo, 2018.; Belinelli, 2019Belinelli, Leonardo. Marxismo como crítica da ideologia: um estudo sobre os pensamentos de Fernando Henrique Cardoso e Roberto Schwarz. Tese (doutorado em ciência política). São Paulo: FFLCH - Universidade de São Paulo, 2019.).

Dentre os argumentos mais frequentemente mobilizados para promover a exclusão de autores (e não só de Cardoso) do cânone marxista, o critério de adesão à tese do imperativo da revolução, já mencionado acima, é possivelmente o principal. Se na História do marxismo no Brasil vimos preponderar uma combinação em que se associavam o fato da gênese acadêmica com o caráter despolitizante, de que resultaria uma variante do “marxismo ocidental”, nas duas evidências que elencaremos a seguir a ênfase recai na questão da revolução.

A recente difusão de uma “teoria marxista da dependência” constitui exemplo expressivo de como se forjam as fronteiras do marxismo brasileiro. E de como a radicalidade revolucionária pôde se erigir, a posteriori, como parâmetro soberano de delimitação do campo, atributo imprescindível de um verdadeiro marxista. Seriam muitas as obras passíveis de análise a partir das quais poderíamos abordar esse recorte, mas trataremos especificamente de Teoria marxista da dependência: problemas e categorias, uma visão histórica, de Mathias Luce (2018Luce, Mathias Seibel. Teoria marxista da dependência: problemas e categorias, uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018.).

A pluralidade de perspectivas internas ao que se convencionou chamar de teoria da dependência impõe, com efeito, notórias dificuldades ao historiador das ideias brasileiras e latino-americanas. Não é simples mapear todas as nuances e posições antagônicas entre tantos que se valeram do conceito de dependência. Mas, para além de tais embaraços demasiado complexos, a démarche da “teoria marxista da dependência” (tratada pela sigla TMD por seus adeptos) parece antes ilustrar o dispositivo típico de certo exclusivismo doutrinário ao transpor disputas internas do campo da teoria da dependência para o registro da distinção marxista/não marxista. Risca-se uma linha divisória que separa o legítimo uso do arcabouço marxista de suas apropriações indevidas. E, mais uma vez, em vez de se perceber a disputa intelectual como fonte de adensamento de uma tradição rica e plural, procede-se pela via da obliteração do rival. Na narrativa de formação da TMD, Cardoso desempenha o papel de antagonista prioritário. Seria possível, e frutífero, defender as perspectivas de Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra, dentre outros, entendendo-as como marxismos em meio a tantos outros marxismos igualmente legítimos. Porém, para Luce, e também para grande parte dos entusiastas da TMD, trata-se de um antagonismo quase existencial em que a identidade e o pertencimento (ser marxista) exigem a firme demarcação da alteridade e sua exclusão.

Na história de luta e superação que marca sua trajetória, aprendemos que, devido a seu “sentido transformador, a TMD foi perseguida pelo terror de Estado, combatida pelo dogmatismo teórico e também marginalizada pelo neoliberalismo acadêmico. E o exílio político de seus fundadores brasileiros foi secundado pelo exílio teórico em seu país de origem” (Luce, 2018Luce, Mathias Seibel. Teoria marxista da dependência: problemas e categorias, uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018., p. 11). A equiparação entre terror de Estado e “neoliberalismo acadêmico”, entre exílio político e “exílio teórico”, por si só revela a disposição de alçar a disputa teórica ao registro das ameaças existenciais. E tudo se passa como se houvesse desde sempre, subjacente aos debates sobre este ou aquele conceito de Marx e sobre esta ou aquela forma de interpretar a realidade brasileira, o propósito oculto de destruição da TMD - antes mesmo de ela existir enquanto tal.

O anacronismo da investida evidencia-se pela transformação de Cardoso e de José Serra em “detratores da TMD” (Luce, 2018Luce, Mathias Seibel. Teoria marxista da dependência: problemas e categorias, uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018., p. 110), por sua crítica acerba à perspectiva de Marini no artigo “Las desventuras de la dialéctica de la dependencia” (1978). Tomar partido em defesa de Marini seria plenamente aceitável e parte corriqueira do debate, mas o tom adotado, via de regra, pelos adeptos da TMD sugere algo além:

um episódio notório desse intento de colocar a TMD no isolamento entre a intelectualidade brasileira foram os ataques desferidos por Fernando Henrique Cardoso e José Serra, que não por coincidência, em pleno início da reabertura democrática, quando numerosos intelectuais retornavam do exílio, publicaram um libelo virulento atacando a TMD e a obra de Marini, distorcendo uma série de argumentos e procurando criar falsas teses para melhor combatê-las. (Luce, 2018Luce, Mathias Seibel. Teoria marxista da dependência: problemas e categorias, uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018., pp. 11-2)

Sabemos que não faz boa história das ideias quem abusa das explicações ad hominem ancoradas nas sempre suspeitas intenções dos autores (Skinner, 1969Skinner, Quentin. “Meaning and Understanding in the History of Ideas”. History and Theory, v. 8, n. 1, 1969, pp. 3-53.). Menos ainda quando se trata de reduzir a divergência a mero disfarce de uma luta por posições no campo intelectual. Assim, sobraria pouco ou nada das ideias debatidas, e tudo se explicaria pelo antagonismo assimétrico que opõe verdade e boa-fé a mentiras (“procurando criar falsas teses”) e projetos de poder (“intento de colocar a TMD no isolamento entre a intelectualidade brasileira”). Nessa trama maniqueísta parece ser creditado ao campo marxista o monopólio dos bons sentimentos, de modo que o que está do outro lado deve necessariamente ser o avesso do marxismo. Perde-se, dessa forma, a capacidade de detectar pontos de aproximação que seriam óbvios, não fosse o apego aos rótulos - como, por exemplo, quando uma listagem dos enunciados teóricos e políticos atribuídos à TMD parece descrever também, de forma apropriada, os postulados e resultados da obra de Cardoso e Faletto:

para os autores, […] o subdesenvolvimento não era um pré-capitalismo ou falta de capitalismo. Era um modo de manifestação das relações capitalistas. A nação não era um todo homogêneo, mas formada por antagonismos de classe. […] As burguesias internas não tinham uma vocação anti-imperialista, mas eram associadas e integradas [etc.]. (Luce, 2018Luce, Mathias Seibel. Teoria marxista da dependência: problemas e categorias, uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018., p. 208)

Levado a sério, o debate entre a TMD e seus supostos detratores levantaria importantes questões sobre as diferentes abordagens da noção de dependência e, consequentemente, sobre a diversidade do marxismo brasileiro e latino-americano - o que, dado o caráter defensivo e autorreferenciado da dinâmica de reprodução do cânone brasileiro, termina sendo levado adiante por intelectuais estrangeiros declaradamente não marxistas (cf. Packenham, 1992Packenham, Robert A. The Dependency Movement: Scholarship and Politics in Development Studies. Londres/Cambridge: Harvard University Press, 1992.). Como se o debate impedisse de antemão o alinhamento de autores sacrílegos no mesmo campo dos canonizados.

Outro importante ponto de observação do cânone em movimento, nossa terceira e última evidência é a antologia de textos do marxismo latino-americano organizada por Michael Löwy, publicada em diversos países. Em O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais (2006), Löwy anuncia desde logo que se propõe a contribuir para “o estudo da evolução do pensamento marxista na América Latina, com ênfase na questão da natureza da revolução” (Löwy, 2006Löwy, Michael. O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006., p. 9). Não se trata, bem entendido, de selecionar apenas autores e atores revolucionários, mas, sim, aqueles que participam do debate sobre “a natureza da revolução” na América Latina. O eixo determinante da seleção é a “luta política”, mas há também espaço ali para “desenvolvimentos teóricos, sociológicos, econômicos e históricos” (idem, p. 65). Pelos critérios anunciados, seria plenamente possível contemplar a obra de Fernando Henrique Cardoso - nessa história, contudo, tampouco foi-lhe dedicado qualquer espaço. Índice de que também aqui estamos diante de uma relativa compartimentação entre debate intelectual e debate político, pois a ênfase neste parece limitar o mergulho naquele. Assim, apesar do “grande número de pesquisas marxistas importantes e inovadoras sobre temas fundamentais da realidade latino-americana”, apesar da “nova ciência social marxista, de grande riqueza e qualidade” que teria surgido desde o início dos anos 1960, Löwy afirma que teve de “descartar (salvo algumas exceções) trabalhos estritamente econômicos ou sociológicos” (idem, pp. 49 e 65). A dinâmica dos critérios e exceções é, evidentemente, fluida e carrega as predileções do organizador. Não se trata aqui de repisar a incontornabilidade de tais idiossincrasias - antes, interessa sublinhar o papel que a exclusão reiterada desempenha para a consolidação de um cânone. Entra quem compartilha com Cardoso o diagnóstico crítico sobre a esquerda pecebista dos anos 1960 (Caio Prado Júnior), entra quem participou do Seminário Marx (Paul Singer). E mesmo com um capítulo destinado ao tratamento da teoria da dependência, nele apenas entram os dependentistas revolucionários (Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank, Theotônio dos Santos).

Como na obra supracitada de Leandro Konder, também aqui Cardoso comparece na lista dos excluídos, daqueles que, “embora por vezes defendendo teses contraditórias […], ofereceram uma contribuição rica e estimulante para a interpretação marxista da América Latina” (Löwy, 2006Löwy, Michael. O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006., p. 49). Ao contrário, pois, da exclusão por rivalidade que vimos se manifestar no caso da delimitação do território da TMD, aqui parece operar uma exclusão por incompatibilidade, modo certamente mais tênue e sutil de desclassificar. Mas que também embute a problemática distinção, que acompanhamos acima por meio de diversas manifestações, entre, de um lado, o mundo da pesquisa, da ciência social, das “teses e interpretações”, e de outro, o mundo da política. Distinção que termina por reforçar as balizas tradicionais do cânone.

OUTROS ÂNGULOS

Em pesquisa recente que instava universitários autoproclamados marxistas a escolher seus “intérpretes do Brasil” prediletos, Fernando Henrique Cardoso não figura sequer entre os dez mais votados (Rodrigues, 2019______. “Amar um autor: os marxistas nas universidades brasileiras e os ‘intérpretes do Brasil’”. Estudos Históricos, v. 32, n. 67, 2019, pp. 500-29.). Florestan Fernandes e Caio Prado Jr., os primeiros da lista, somam juntos cerca de metade das indicações, dispersando-se as restantes por variados autores. A lista é eclética, como diriam os ortodoxos, e contém até mesmo intelectuais não necessariamente identificados com o marxismo (Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado). A ausência de Cardoso está longe de ser surpreendente. O resultado explicita um retrato, parcial e atualizado, do longo e complexo processo de formação de um cânone.

Acompanhamos ao longo deste artigo algumas evidências de uma dinâmica de exclusão que nos parece relevante para a autocompreensão de qualquer linhagem do pensamento político brasileiro, guardadas suas especificidades (Brandão, 2007Brandão, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Hucitec, 2007.). Exclusão que prescinde de predisposições ocultas, concatenações maquiavélicas ou mesmo suscetibilidades individuais (ainda que elas existam). Pois a resultante é, no agregado, mais efeito não intencional do que desígnio estratégico bem executado. Não se trata, como argumentamos, de excluir o sociólogo por um anacrônico acerto de contas político-ideológico com o ex-presidente.

Tampouco se tratou de defender, ao longo deste artigo, um imperativo da inclusão, que se fundaria em arbitrária avaliação de mérito: as linhagens e os cânones se formam e se transformam, podem amanhã incorporar o excluído de hoje, assim como mandar ao ostracismo o reverenciado de ontem, sendo estéril e abstrata qualquer crítica no sentido da mera denunciação de supostas injustiças. Entendemos que o interesse de acompanhar essa dinâmica de exclusão, ilustrada pelas diversas formas de obliteração acima elencadas, reside antes na potencial ampliação de nossa compreensão sobre o processo mesmo de consolidação de uma tradição intelectual, em geral, e do marxismo brasileiro, em particular. Por esse ângulo, o caso de Fernando Henrique Cardoso é notavelmente expressivo. Quando afirmamos que se trata de um sujeito oculto e que sua obra constitui parte maldita da história do marxismo no Brasil, não descuidamos da flagrante contradição que se impõe entre tal status e seu amplo reconhecimento intelectual, dentro e fora do Brasil, dentro e fora da academia. E não é que esse reconhecimento tenha se dado necessariamente apesar do componente marxista de sua obra. Mas que mesmo ali onde ele se deveu também à afirmação da sofisticação desse marxismo - caso do ambiente intelectual em torno da USP, seja por seus colegas de geração, seja por acadêmicos contemporâneos (Singer, 2016Singer, André. “A (falta de) base política para o ensaio desenvolvimentista”. In: __; Loureiro, Isabel (orgs.). As contradições do lulismo: a que ponto chegamos?. São Paulo: Boitempo, 2016.; Limongi, 2012Limongi, Fernando. “Fernando Henrique Cardoso: teoria da dependência e transição democrática”. Novos Estudos Cebrap , v. 94, 2012, pp. 187-97.; Ricupero, 2000Ricupero, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2000.) -, tudo parece ter se passado às margens do cânone.

Se a ênfase no caráter “ocidental”, “acadêmico” ou “universitário” do marxismo de Cardoso, assim como a correspondente deflação de seu nervo político, desempenhou papel central na frequente descaracterização de seu pensamento e de sua trajetória intelectual, pondo as bases de sua exclusão do cânone, cabe ponderar, por outro lado, à guisa de sugestão para futuras incursões, alguns traços endógenos de sua obra que a tornam, vista de dentro, pouco afinada com a prosódia marxista padrão. Isso para, em seguida, concluir com alguns caminhos sugestivos de uma outra história possível para o marxismo brasileiro de Fernando Henrique Cardoso.

Pode-se assinalar quatro características relevantes do seu modo de ser marxista que discrepam da dinâmica comum de reprodução do paradigma na periferia do capitalismo. Sua trajetória intelectual, sua identidade política e doutrinária (ou mesmo sua aversão a constituir tal identidade de modo linear e fechado), pode ser sumarizada nestes traços. Em primeiro lugar, é um marxismo que abdica de patronos e tutelas. Não se preocupa com a filiação aparente a esta ou aquela corrente, nem se presta a difundir a posição de um marxista específico: não é lukacsiano, não é althusseriano, não é gramsciano. Pelo contrário, seu vínculo mais estreito parece se estabelecer com a obra de Marx, mediante a apreensão direta dos conceitos de O capital - e volta e meia tratou-se de defender Marx dos marxistas, como nos casos de seus escritos sobre Louis Althusser e Nicos Poulantzas. Essa recusa a ter parte no jogo tradicional das filiações e difusões, a tornar-se porta-voz periférico de aclamados epígonos marxistas, tem evidentes custos para sua alocação nas prateleiras do marxismo.

Em segundo lugar, o ceticismo com relação à revolução. Em suas obras de maior fôlego, publicadas ao longo dos anos 1960, parece haver uma leitura da história sempre pendente a limitar a margem do possível às transformações estruturais de mais longo cozimento. Ainda que retoricamente abertas à potência dos sujeitos transformadores, até mesmo pelos deveres da dialética, tais obras são mais afiadas para apontar contradições, impasses e movimentos moleculares do que propriamente superações abruptas. Se na periferia do capitalismo as revoluções tendem a se fazer contra o capital, como defendia Gramsci, a fidelidade de Cardoso pretende-se mais devota ao esquema de O capital do que a quaisquer ímpetos revolucionários.

Uma terceira característica crucial é a recorrente crítica do nacionalismo. Na América Latina, como em outras paragens periféricas, a história do marxismo costuma ser contada através das tensões e afinidades que entretém com o nacionalismo (Kaysel, 2018Kaysel, A. Entre a nação e a revolução: marxismo e nacionalismo no Peru e no Brasil (1928-1964). São Paulo: Alameda, 2018.). Seja para referendar táticas reformistas, seja como ambiência ideológica de projetos revolucionários, a nação sempre aparece como unidade de medida prioritária. Fernando Henrique Cardoso, na contramão, constrói sua obra mais atento à totalidade do sistema capitalista e ao lugar que a particularidade brasileira nela ocupa. Essa relativa prioridade da totalidade implica ceticismo, quando não crítica enfática, com relação aos projetos de emancipação nacional e sua vinculação a desideratos revolucionários. Trata-se de um marxismo com pendor cosmopolita, de forte tendência à desprovincianização (Schwarz, 1999Schwarz, Roberto. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.), concorrente com o “marxismo de matriz comunista” tradicionalmente hegemônico na esquerda brasileira ao menos durante a primeira metade do século XX (Brandão, 2007Brandão, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Hucitec, 2007.). Nesse sentido, é uma versão que, a nosso ver, passa ao largo do processo de nacionalização do marxismo (Ricupero, 2000Ricupero, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2000.; Gonçalves, 2018Gonçalves, Rodrigo Santaella. Teoria e prática em Fernando Henrique Cardoso: da nacionalização do marxismo ao pragmatismo político (1958-1994). Tese (doutorado em ciência política), São Paulo: FFLCH - Universidade de São Paulo, 2018.).

Outro elemento que ajuda a situar a difícil recepção da obra de Cardoso entre os marxistas brasileiros é sua proeminente capacidade de equilibrar dialeticamente as ambivalências constitutivas da realidade. Não se trata, necessariamente, de um déficit de negatividade, mas talvez da desconfiança com relação a seu excesso, onde a crítica se faz acompanhar de um permanente cuidado analítico com as potencialidades inscritas no presente. Para esse marxismo de reconciliação (Lima, 2015Lima, Pedro Luiz. As desventuras do marxismo: Fernando Henrique Cardoso, antagonismo e reconciliação. Tese (doutorado em ciência política), Rio de Janeiro: Iesp - Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2015.), em sentido hegeliano, o real nem sempre é racional (e por isso segue passível de crítica), mas o racional deve necessariamente ser real (e não mera derivação das brumas do pensamento). Avesso a idealismos, nele o esforço de manter as ambivalências em equilíbrio pode facilmente ser tomado por rebaixamento da crítica.

Não se pode, com justiça, afirmar que o viés explorado neste artigo seja único no tratamento da obra de Cardoso. As bases para um enquadramento diferente, digamos, contra-hegemônico do marxismo de Fernando Henrique Cardoso podem ser encontradas em artigos, seminários e entrevistas de Roberto Schwarz sobre a experiência do Seminário Marx e o papel desempenhado, nele e a partir dele, por Cardoso. Longe do registro apologético, Schwarz aponta para a “nova intuição do Brasil” produzida por aquele “marxismo crítico” e, ao inscrevê-lo na nervura política de sua quadra histórica, avança a análise para além dos vícios do “marxismo ocidental” (Schwarz, 1999______. Seja como for: entrevistas, retratos e documentos. São Paulo: Ed. 34, 2019.; 2017______. Nós que amávamos tanto O capital: leituras de Marx no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 25; 2019, p. 276). A ênfase no caráter universitário, no suposto insulamento do ambiente “uspiano”, que aparece em leituras como as de Arantes não condiz com o sentido da história que nos conta Schwarz. Pelo contrário, ali se trata de conferir a Cardoso relativo protagonismo no âmbito de “uma esquerda marxista sem chavão, à altura da pesquisa universitária contemporânea, aberta para a realidade, sem cadáveres no armário e sem autoritarismos a ocultar” (Schwarz, 1999______. Seja como for: entrevistas, retratos e documentos. São Paulo: Ed. 34, 2019., p. 90).

Com o rigor habitual, Schwarz dá o tom de uma outra história possível para a relação entre Fernando Henrique Cardoso e o marxismo no Brasil. História que ainda espera para ser propriamente escrita. E se de um lado Schwarz fornece a métrica para escrevê-la, de outro sugere ainda uma explicação para as vicissitudes da recepção da obra de Cardoso, dentro e fora do cânone marxista:

O Fernando Henrique tinha um ângulo analítico, em relação ao Brasil, da maior produtividade, escreveu livros evidentemente bons, mas sem o acabamento necessário ao clássico. Dependência e desenvolvimento na América Latina se mede facilmente com os grandes da reflexão social brasileira como originalidade de concepção, atualidade, capacidade de influir no mundo, mas literariamente não está à altura de suas próprias intuições sociológicas e nesse sentido não se completou. Não digo isso para botar defeito numa obra por cuja inteligência tenho grande estima e com a qual tenho muita dívida, mas para mostrar a complexidade objetiva do trabalho intelectual. […] quando se trata de afirmar a vitalidade do marxismo, é a análise da sociedade contemporânea que é a prova dos nove. O Fernando Henrique fez o trabalho, mas à maneira de um esforço. (Schwarz, 2019______. Seja como for: entrevistas, retratos e documentos. São Paulo: Ed. 34, 2019., pp. 279-80)

O descompasso entre forma literária e conteúdo sociológico fornece hipótese complementar, internalista, àquelas que exploramos ao longo deste artigo para compreendermos o não lugar de Fernando Henrique Cardoso no cânone do marxismo brasileiro. Certamente seu desdém pelo “espírito de catecismo” (Schwarz, 2017______. Nós que amávamos tanto O capital: leituras de Marx no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 22) também joga algum papel, como se percebe nos momentos em que revisita sua própria relação com o marxismo. Mas esses são fios que nos levam para além dos limites do presente artigo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Anderson, Perry. Considerations on Western Marxism. Londres: Verso, 1989.
  • Arantes, Paulo. “Um capítulo brasileiro do marxismo ocidental: reconstruindo a dialética com Ruy Fausto”. Folha de S.Paulo, Folhetim, 19 jun. 1983.
  • ______. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira: dialética e dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
  • ______. Um departamento francês de ultramar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
  • ______. O fio da meada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
  • Arruda, Maria Arminda de Nascimento. “A sociologia no Brasil: Florestan Fernandes e a ‘escola paulista’”. In: Miceli, Sérgio (org.). História das ciências sociais no Brasil, v. 2. São Paulo: Sumaré/Idesp/Fapesp, 1995, pp. 107-231.
  • Barboza Filho, Rubem. “FHC: os paulistas no poder”. In: Amaral, Roberto (org.). FHC: os paulistas no poder. Niterói: Casa Jorge, 1995.
  • Belinelli, Leonardo. Marxismo como crítica da ideologia: um estudo sobre os pensamentos de Fernando Henrique Cardoso e Roberto Schwarz. Tese (doutorado em ciência política). São Paulo: FFLCH - Universidade de São Paulo, 2019.
  • Brandão, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Hucitec, 2007.
  • Cardoso, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. São Paulo: Difel, 1962.
  • ______. Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil. São Paulo: Difel, 1964.
  • ______. “La Contribution de Marx à la théorie du changement social”. In: Marx et la pensée scientifique contemporaine. La Haye: Mouton, 1969, pp. 253-65.
  • ______. “Althusserianismo ou marxismo? A propósito do conceito de classes em Poulantzas”. In: Cardoso, Fernando Henrique. O modelo político brasileiro e outros ensaios. São Paulo: Difel, 1972.
  • ______. “Notas sobre Estado e dependência”. Cadernos Cebrap, São Paulo: 1973, v. 11.
  • ______. “Estado capitalista e marxismo”. Estudos Cebrap, v. 21, 1977, pp. 5-31.
  • ______. “A América Latina e o socialismo na década de 80”. In: Cardoso, Fernando Henrique; Trindade, Hélgio (orgs.). O novo socialismo francês e a América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982 (Coleção O Mundo Hoje, v. 37), pp. 13-29.
  • ______; Faletto, Enzo. Dependencia y desarrollo en América Latina. Cidade do México: Siglo XXI, 1969.
  • ______; Serra, José. “Las desventuras de la dialéctica de la dependencia”. Revista Mexicana de Sociología, v. 40, 1978, pp. 9-55.
  • Cohn, Gabriel. “Entre estruturas e estratégias”. Folha de S.Paulo, Caderno Mais!, 13/10/1996.
  • Del Roio, Marcos. “A teoria da revolução brasileira”. In: Del Roio, Marcos (org.). História do marxismo no Brasil, v. 4: Visões do Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.
  • Garcia Jr., Afrânio. “A dependência da política: Fernando Henrique Cardoso e a sociologia no Brasil”. Tempo Social, v. 16, n. 1, 2004, pp. 285-300.
  • Gonçalves, Rodrigo Santaella. Teoria e prática em Fernando Henrique Cardoso: da nacionalização do marxismo ao pragmatismo político (1958-1994). Tese (doutorado em ciência política), São Paulo: FFLCH - Universidade de São Paulo, 2018.
  • Hobsbawm, Eric. “Prefácio”. In: __. (org.). História do marxismo, v. 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
  • Kaysel, A. Entre a nação e a revolução: marxismo e nacionalismo no Peru e no Brasil (1928-1964). São Paulo: Alameda, 2018.
  • Konder, Leandro. Intelectuais brasileiros e marxismo. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1991.
  • Lima, Pedro Luiz. As desventuras do marxismo: Fernando Henrique Cardoso, antagonismo e reconciliação. Tese (doutorado em ciência política), Rio de Janeiro: Iesp - Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2015.
  • Limongi, Fernando. “Fernando Henrique Cardoso: teoria da dependência e transição democrática”. Novos Estudos Cebrap , v. 94, 2012, pp. 187-97.
  • Löwy, Michael. O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006.
  • Luce, Mathias Seibel. Teoria marxista da dependência: problemas e categorias, uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018.
  • Mantega, Guido. “Marxismo na economia brasileira”. In: Moraes, João Quartim de (org.). História do marxismo no Brasil , v. 2: Os influxos teóricos. Campinas: Ed. Unicamp , 1995.
  • Miceli, Sergio. “Condicionantes do desenvolvimento das ciências sociais”. In: Miceli, Sergio. (org.). História das ciências sociais no Brasil , v. 1. São Paulo: Vértice, 1989.
  • Musse, Ricardo. “As aventuras do marxismo no Brasil”. Cadernos CRH, v. 94, n. 28, 2015, pp. 409-25.
  • Packenham, Robert A. The Dependency Movement: Scholarship and Politics in Development Studies. Londres/Cambridge: Harvard University Press, 1992.
  • Ricupero, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2000.
  • Rodrigues, Lidiane Soares. A produção social do marxismo universitário em São Paulo: mestres, discípulos e “um seminário” (1958-1978). Tese (doutorado em história). São Paulo: FFLCH - Universidade de São Paulo, 2012.
  • ______. “Amar um autor: os marxistas nas universidades brasileiras e os ‘intérpretes do Brasil’”. Estudos Históricos, v. 32, n. 67, 2019, pp. 500-29.
  • Saes, Décio. “O impacto da teoria althusseriana da História na vida intelectual brasileira”. In: Moraes, José Quartim de (org.). História do marxismo no Brasil , v. 3: Teorias. Interpretações. Campinas: Ed. Unicamp , 1998.
  • Schwarz, Roberto. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
  • ______. Nós que amávamos tanto O capital: leituras de Marx no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2017.
  • ______. Seja como for: entrevistas, retratos e documentos. São Paulo: Ed. 34, 2019.
  • Singer, André. “A (falta de) base política para o ensaio desenvolvimentista”. In: __; Loureiro, Isabel (orgs.). As contradições do lulismo: a que ponto chegamos?. São Paulo: Boitempo, 2016.
  • Skinner, Quentin. “Meaning and Understanding in the History of Ideas”. History and Theory, v. 8, n. 1, 1969, pp. 3-53.
  • Toledo, Caio Navarro. “Intelectuais do Iseb, esquerda e marxismo”. In: Moraes, José Quartim de (org.). História do marxismo no Brasil , v. 3: Teorias. Interpretações. Campinas: Ed. Unicamp , 1998.
  • Torres Freire, Vinicius. “Sociólogo FHC mudou antes do FHC presidente”. Folha de S.Paulo, 19/7/1998.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    04 Fev 2022
  • Aceito
    04 Maio 2022
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento Rua Morgado de Mateus, 615, CEP: 04015-902 São Paulo/SP, Brasil, Tel: (11) 5574-0399, Fax: (11) 5574-5928 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: novosestudos@cebrap.org.br