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“MR. PERPETUAL MOTION” ENFRENTA O JIM CROW: ANDRÉ REBOUÇAS E SUA PASSAGEM PELOS ESTADOS UNIDOS NO PÓS-ABOLIÇÃO

“Mr. Perpetual Motion” faces Jim Crow: André Rebouças and his trip to the post-abolition United States

“Mr. Perpetual Motion” enfrenta el Jim Crow: André Rebouças y su viaje por los Estados Unidos en el post-abolición

Resumo

No verão de 1873, o jovem engenheiro afro-brasileiro André Rebouças chegava à cidade de Nova York. Segundo ele, conforme anotou no seu diário, a sua viagem era a “de alguém que vai estudar e aprender”. Porém, a passagem de Rebouças pelos Estados Unidos também foi marcada por repetidos episódios de racismo e segregação na Região Norte daquele país durante o período conhecido como Reconstrução. Com base no seu diário e matérias de jornais estadunidenses, este artigo vai utilizar a passagem de Rebouças pelos Estados Unidos para discutir as políticas de segregação racial vigentes naquele país, conhecidas como Jim Crow. Além disso, meu objetivo é situar Rebouças na condição de viajante negro, analisando sua condição racial, de classe e gênero para compreender as suas subjetividades e especificidades do seu lugar por diferentes sociedades pós-escravistas.

Palavras-chave:
André Rebouças; Estados Unidos; Jim Crow

Abstract

In the summer of 1873, the young Afro-Brazilian engineer André Rebouças arrived in New York City. According to the notes he made on his journal, his trip was that ‘of one who intends to study and learn.’ But the time spent by Rebouças in the United States was also marked by repeated episodes of racismo and segregation in the North during the period known as the Reconstruction era. Based on his journal and on American newspaper articles, the present article will use Rebouças’ trip to the United States to discuss the racial segregation policies in effect in that country, known as Jim Crow. My goal is also to place Rebouças in the condition of Black traveller, analyzing his racial condition, class status and gender in order to comprehend their subjectivities and the specificities of his position im different post-slavery societies.

Keywords:
André Rebouças; United States; Jim Crow

Resumen

En el verano del año 1873, el joven abolicionista André Rebouças llegaba a la ciudad de Nueva York. Según apuntó en su diario, su viaje era la de “uno que va a estudiar y aprender”. Pero el viaje de Rebouças por los Estados Unidos también fue marcado por repetidos episodios de racismo y segregación en la Región Norte de aquél país durante el periodo conocido como Reconstrucción. Con base en su diario y en artículos de periódicos estadunidenses, este artículo utilizará el viaje de Rebouças por los Estados Unidos para discutir las políticas de segregación racial vigentes en aquél país, conocidas como Jim Crow. Más allá de eso, mi objetivo es situar Rebouças en la condición de viajero negro, analizando su condición racial, de clase y género para comprender sus subjetividades e especificidades de su posición por diferentes sociedades post-esclavistas.

Palabras clave:
André Rebouças; Estados Unidos; Jim Crow

A década de 1870 foi intensa na cidade de Nova York. Nos anos finais do período pós-abolição, chamado de Reconstrução, o lugar de negros e brancos naquela sociedade ainda estava por ser definido, abrindo um tenso campo de disputas. De um lado, a população branca, inclusive aquela pobre, trabalhadora e imigrante, buscava caminhos para manter antigas regras de exclusão e desigualdade racial como forma de garantir privilégios. Do outro lado, estava a comunidade negra, ainda engajada em torno do movimento abolicionista, mantendo uma agenda de luta por direitos e cidadania. Um dos maiores objetivos do movimento abolicionista era garantir o cumprimento das leis federais que asseguravam o direito de voto, do livre trânsito entre as cidades, entre outras leis que reconheciam a cidadania de milhões de afro-americanos libertos em 1865.1 1 Sobre o movimento abolicionista estadunidense, ver Sinha (2016) e Brito (2014).

Nos anos finais da década de 1860 e ao longo da década seguinte, diversas ideias sobre o significado da liberdade, direitos e cidadania estavam sendo disputadas por diferentes grupos sociais e raciais. Trabalhadores brancos lutavam por melhores condições de trabalho ao mesmo tempo em que expressavam sua antipatia pela agenda dos trabalhadores negros. Os irlandeses, por exemplo, que até pouco tempo eram considerados os “negros da Europa”, adotaram a estratégia de atacar homens e mulheres negros utilizando as mesmas ferramentas de violência da população branca nacional para assim se afastarem do estigma da pobreza, escravidão e negritude. Dessa forma, reivindicaram o principal elo de ligação com a população branca local; a cor da pele (Harris, 1999HARRIS, Leslie M. From Abolitionist Amalgamators to Rulers of Five Points: The Discourse of Interracial Sex and Reform in Antebellum New York City. In: HODES, Martha (ed.). Sex, Love and Race: Crossing Boundaries in North American History. Nova York: New York University Press, 1999. p. 191-212.). Esse cenário de conflitos fez com que o pós-abolição e a fase pós-Reconstrução fosse um dos períodos mais violentos da cidade (Quigley, 2004QUIGLEY, David. Second Founding: New York City, Reconstruction and the Making of American Democracy. Nova York: Hill and Wang, 2004.).

Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, um jovem engenheiro negro se preparava para a viagem que marcaria sua vida. André Rebouças estava a caminho da Europa numa jornada que terminaria nos Estados Unidos, só que agora não mais como estudante, mas como engenheiro do Império Brasileiro. No auge da sua carreira, Rebouças estava ávido por conhecimento e pelo acesso a novas tecnologias que levariam o Brasil para o caminho do progresso, o que era sua grande meta. Nas notas que fez no seu diário antes de partir, ele expressou as suas expectativas sobre essa experiência da seguinte forma: “A sua viagem é de alguém que vai estudar e aprender” (Rebouças, 1938: 207.).

Ainda de acordo com seus registros pessoais, ao longo da sua estadia na Europa, Rebouças foi de fato tratado e reconhecido como um representante do Império Brasileiro. Nas palavras do historiador Leo Spitzer, naqueles dias em que estava em solo europeu, Rebouças certamente se sentia num ambiente seguro, afinal, na sua jornada de inserção no mundo das elites, a forma como era tratado entre os europeus poderia sugerir que ele haveria conquistado total reconhecimento. Ao que tudo indica, era assim que André Rebouças se percebia intimamente e publicamente, como um membro das elites intelectuais. Seu status social, sofisticação e habilidades profissionais, notadamente reconhecidos pelo imperador, fariam com que o engenheiro transitasse muito bem no universo das letras, das viagens e da cultura clássica. Spitzer esforça-se para traduzir o quão complexa era essa condição de pessoas que, como Rebouças, viviam entre “dois mundos”, sobretudo num momento das suas vidas em que buscavam reconhecimento, ascensão social e participação no mundo das elites (Spitzer, 1989: 3-6).

O livre acesso e diálogo com as elites europeias, sobretudo aquelas ligadas à sua área de atuação profissional, a engenharia, fez com que Rebouças tivesse notícias do que havia de mais moderno no campo das obras públicas, sobretudo o sistema marítimo e o transporte ferroviário. Foi ainda em Marselha, por meio do chefe marítimo daquela cidade, o doutor Pascal, que ele obteve as primeiras informações fora do Brasil sobre a vanguarda dos portos de Nova York. Segundo Rebouças, Pascal havia lhe dito que “no estado atual do comércio, com os caminhos de ferro, os vapores e o telégrafo elétrico, não há outras docas possíveis que as de Nova York” (Rebouças, 1938REBOUÇAS, André Pereira. Diário e notas autobiográficas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938.: 214). Todas essas notícias deixavam o jovem engenheiro ainda mais ansioso para ver de perto a tecnologia empregada nos sistemas públicos da cidade estadunidense. Num arroubo de excitação pela viagem que estava por vir, chegou a dizer que havia ouvido aquelas palavras com surpresa e prazer, e ainda disse mais, que “dou graças a deus por ter me inspirado desde 1867 nessas verdades (idem).

André Rebouças e o doutor Pascal compartilhavam a admiração pelas obras públicas dos Estados Unidos. Os portos, as linhas de trens, a arquitetura moderna, tudo isso eram aspirações dos dois engenheiros ansiosos por fazer parte do que havia de mais moderno no campo da tecnologia. O brasileiro observou que o engenheiro Pascal tinha na parede do seu escritório, emoldurado como uma obra de arte, o plano das docas de Nova York. Para aumentar ainda mais a admiração do jovem engenheiro brasileiro, naquela época com 35 anos, Pascal ainda lhe disse que as docas de Liverpool e Marselha deveriam ser demolidas e reconstruídas “no sistema dos americanos” (ibidem, p. 215).

Segundo o historiador Antônio Higino dos Santos (2018SANTOS, Antônio Higino dos. Por uma socionomia oitocentista: pensamento, vida e ação de André Rebouças, século Xix. Revista da ABPN, v. 10, n. 25, p. 8-25, mar - jun2018.), os planos de modernização do Brasil sonhados por Rebouças se sustentavam numa associação entre uso de tecnologia, liberalismo econômico, associacionismo e trabalho livre. Em 1867, Rebouças começou a defender que os serviços de embarque e desembarque das docas fossem pagos, e que assim custeassem o processo de modernização do porto do Rio de Janeiro. Em 1870, recebeu concessão imperial para explorar as atividades nas docas por meio da empresa que criou, as Docas Dom Pedro II. Não faltaram impasses às realizações dos planos de Rebouças, que acabou sendo demitido da empresa que ele mesmo havia criado. Diante de tamanha decepção, resolveu partir para a Europa e Estados Unidos em 1872. No seu diário, o jovem engenheiro afirmou que a viagem servia de pretexto para fugir do constrangimento de ver escapar-lhe das mãos o projeto das docas, projeto mediante o qual buscava realizar os seus maiores sonhos pessoais, que estavam diretamente ligados ao progresso do Brasil, tanto no regime de trabalho empregado, o livre, quanto no que diz respeito ao processo de modernização do País (ibidem: 8-25). Contudo, veremos que escapar de uma decepção profissional e uma dor pessoal não eram as principais razões da viagem de Rebouças. Sua viagem era uma turnê de pesquisa, de aprendizado, como ele mesmo afirmou.

Quanto às impressões dos Estados Unidos que foram sendo construídas ao longo da sua viagem, elas não eram aquelas do pós-abolição que mantinha a segregação racial e a violência contra pessoas negras livres nas regiões Norte e Sul. Para Rebouças, os Estados Unidos estavam representados na modernidade do seu sistema marítimo e ferroviário e também no país que havia abolido a escravidão mesmo que isso significasse a sua divisão. Aquela também seria a nação dos “direitos do homem”, que, desde o século XVIII eram descritos como criados iguais, ideia presente na carta de independência, fundadora daquela nação. As expectativas positivas sobre os Estados Unidos revelam que Rebouças não estava preparado para o que iria vivenciar, ou que até mesmo havia subestimado os efeitos do regime do Jim Crow sobre si mesmo.

É possível que Rebouças não soubesse que, mesmo sob o período da Reconstrução, os avanços sociais conquistados pelos afro-americanos nem sempre estavam assegurados, mesmo na Região Norte. Podemos sugerir que o engenheiro estava ansioso para ver de perto o regime de trabalho livre naquela região, onde a escravidão fora abolida gradativamente desde a primeira metade do século XIX. Contudo, também plausível pensar que Rebouças sabia da violência racial disseminada nos Estados Unidos na década de 1870, mas acreditava que não seria afetado pelo regime do Jim Crow, pois era estrangeiro e carregava o status de representante do Império do Brasil.

O objetivo deste artigo é utilizar a passagem de Rebouças pelos Estados Unidos para provocar duas reflexões. A primeira, e a mais importante neste texto, é entender o cenário social e racial da Região Norte dos Estados Unidos durante a Reconstrução (1865-1877), período de conquistas importantes para a população negra do País. Esse momento também foi de graves tensionamentos, uma vez que a população branca do País resistia a aceitar a população negra como parte do corpo social, como iguais e cidadãos. Assim, a passagem de Rebouças é um fio condutor para que conheçamos essa realidade, na qual as políticas de segregação racial, conhecidas como “Jim Crow”, ainda funcionavam de forma costumeira na Região Norte, e posteriormente ganhariam amplo status legal e se consolidariam após o fim de período.

O segundo objetivo deste texto é situar a passagem de Rebouças pelos Estados Unidos como uma experiência de um viajante negro. Assim, desejo refletir sobre as especificidades da população negra no mundo atlântico quando estavam em trânsito, sobretudo em sociedades em que os códigos raciais e sociais poderiam variar. Portanto, não se trata de fazer uma biografia de André Rebouças, já amplamente pesquisada e disponível nos trabalhos referenciais de Hebe Mattos (2016MATTOS, Hebe. De pai para filho: África, identidade racial e subjetividade nos arquivos privados da família Rebouças (1838-1898). In: MATTOS, Hebe; COTTIAS, Myriam (org.). Escravidão e subjetividades no Atlântico luso-brasileiro e francês (séculos XVII-XX). Marselha: OpenEdition Press, 2016.; 2018), Joselice Jucá, Leo Spitzer (1989SPITZER, Leo. Lives in between: Assimilation and Marginality in Austria, Brazil, West Africa, 1780-1945. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.), Maria Alice R. de Carvalho, Sydnei Santos, Antônio Higino dos Santos (2018SANTOS, Antônio Higino dos. Por uma socionomia oitocentista: pensamento, vida e ação de André Rebouças, século Xix. Revista da ABPN, v. 10, n. 25, p. 8-25, mar - jun2018.), entre outros. Nosso objetivo específico é pensar como as categorias de classe, raça e gênero operam de diferentes formas a depender do local por onde a pessoa negra viajante estivesse passando. Isso pode nos revelar não somente o quão complexas eram as identidades mobilizadas por estas pessoas, como também como os códigos de conduta e identificação racial, além de políticas de exclusão ou inclusão, poderiam variar de um destino para outro durante e após a abolição.

O Norte dos Estados Unidos na era do Jim Crow

Para a população negra dos Estados Unidos, viajar livremente era uma sinal de liberdade e de cidadania. Na contramão desse significado, na primeira metade do século XIX, quando os estados do Norte começaram um lento processo de abolição, homens e mulheres negras que viajavam, e que antes eram tidos como fugitivos, agora eram tratados como criminosos. O estado de Massachusetts, por exemplo, proibiu a entrada de imigrantes pobres em 1821, dificultando a entrada no estado de pessoas negras que vinham da Região Sul. Viajar era um privilégio que tinha classe, cor e gênero: somente homens brancos e de posses poderiam adentrar vagões de trem e navios sem o medo de que pudessem ser violentados, agredidos ou arrastados para fora do trem ou para uma parte mais barata e insalubre, mesmo tendo comprado uma passagem de primeira classe (Pryor, 2016PRYOR, Elizabeth Stourdeur. Colored Travelers: Mobility and the Fight for Citizenship Before the Civil War. Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 2016.: 44-47).

No pós-abolição, o uso da violência era uma resposta à reivindicação da população negra pela livre mobilidade como um direito. De acordo com a historiadora Elizabeth Pryor, a presença negra nos vagões contrastava com o significado das ferrovias, então associadas ao progresso e sofisticação. A década de 1860, que marcou uma revolução nos transportes, foi também a década da Guerra Civil e da abolição. Para a população branca, inclusive, e talvez sobretudo para aquelas pessoas que faziam parte da classe trabalhadora, a presença negra nos vagões era deslocada desse contexto de modernização. Assim, o Jim Crow era um repertório de leis que proibiam e criminalizavam a presença negra nos trens, gerando suspeição, vigilância e violência contra pessoas negras que estavam em trânsito (ibidem: 46-48).

Homens e mulheres negros viajando sozinhos, sobretudo se comprassem uma passagem de primeira classe, também representavam uma ameaça por conta do medo da amalgamação, ou mistura racial. Entendida como qualquer contato entre negros e brancos, fosse sexual ou não, a amalgamação atentava contra a ideia da pureza de sangue, que se confundia com a ideia de identidade nacional fortalecida no pós-abolição. Compartilhar o vagão ou o assento com um homem negro, ainda que ele fizesse parte da burguesia, significaria um atentado à segurança das mulheres brancas presentes, num momento em que o estigma do estuprador ou sedutor negro era uma grande preocupação das famílias brancas. Evidentemente que as mesmas preocupações não se aplicam às mulheres negras nos vagões, cuja presença só era relativamente tolerada quando viajavam na condição de acompanhantes das famílias brancas. Em situações diferentes dessa, elas eram alvo de abuso, assédio e violência (ibidem: 65-66).2 2 Sobre mistura racial nos Estados Unidos, ver Lemire (2002) e Brito (2014).

É importante situar que o Jim Crow surge na Região Norte, ainda na primeira metade do século XIX. Na Região Sul, no pós-abolição, vigoravam de forma específica leis chamadas de black codes, que passaram a valer logo após a abolição. Michelle Alexander (2017ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2017.: 66-73) define os “códigos negros” como leis criadas logo após o fim da Guerra Civil por elites brancas sulistas movidas por um forte sentimento de “supremacia branca”. Assim, os “black codes” eram leis que garantiam a permanência do trabalho forçado e criminalizavam práticas ordinárias da vida de homens e mulheres afro-americanas, sobretudo dos homens. As leis de vadiagem da época visavam punir e controlar pessoas negras com o intuito final de arrastá-las para o trabalho compulsório, mantendo assim o mesmo sistema de trabalho aplicado no regime escravista, então recém-extinto. De acordo com Alexander, tudo isso era possível por causa de uma brecha importante na lei da abolição declarada em 1863: ela acabava com o cativeiro, mas o mantinha como punição por crime.

Após o período conhecido por Reconstrução, que, a partir de 1867 revogou estes códigos negros, o Jim Crow se estabeleceria no Sul a partir de 1877 na forma de leis que só seriam derrubadas na década de 1960, com o movimento em prol dos direitos civis. No final do século XIX, aquilo que Jerrold Packard (2002PACKARD, Jerrold M. American Nightmare: The History of Jim Crow. Nova York: St. Martins Press, 2002.: 39-65) havia chamado de “proto-Jim Crow”, termo pelo qual se referiu aos códigos negros, agora voltaria aplicando os princípios de segregação racial, criminalização e vigilância da vida negra. Nesse sentido, a Ku Klux Klan cumpriria papel fundamental ao usar o terror e a violência como práticas para intimidar e amedrontar a população negra que ansiava por novas relações de trabalho, além de novas configurações sociais e politicas na Região Sul pós-abolição.

Podemos dizer que na Região Norte, onde a abolição foi um processo iniciado desde o início do século XIX, e onde vigoravam outras relações de trabalho, sociais e políticas, o medo da mistura racial, ou amalgamação, justificou o surgimento do Jim Crow. A mesma noção de white supremacy, em cada região, manifestou-se de formas distintas, mas produziu uma imagem estereotipada e racista a respeito de pessoas negras escravizadas, e, no Norte, sobretudo, das pessoas libertas. O exemplo da Região Norte nos revela que a abolição não necessariamente significou o fim das crenças em distinções raciais.

De acordo com o historiador Richard Archer (2017ARCHER, Richard. Jim Crow North: The Struggle for Equality in Antebellum New England. Nova York: Oxford University Press, 2017.: 92-93), não seria possível entender as origens do Jim Crow sem compreender as hierarquias raciais vigentes nos vagões dos trens da Região Norte. Segundo Archer, embora na década de 1830 não existissem leis segregacionistas na região, qualquer condutor poderia, após a solicitação de passageiro branco, expulsar uma pessoa negra de um vagão. O termo “Jim Crow” tem sua origem nas performances do artista branco Thomas Rice, que já em 1832, maquiado com blackface, fazia performances daquilo que acreditava ser o comportamento das pessoas negras. Obviamente, tais atuações eram carregadas de racismo e preconceito, manifestos numa forma jocosa de falar, andar e dançar que era característica de um dito personagem negro chamado de Jim Crow. As performances de Rice eram feitas com na música “Jump Jim Crow” como canção de fundo. Assim, já no início dos anos de 1830, “Jim Crow” era o termo pejorativo utilizado para se referir às pessoas negras e a tudo relativo a elas (ibidem: 94-95).

Num importante trabalho sobre a cultura negra produzida no atlântico escravista e pós-escravista, a historiadora Martha Abreu (2017ABREU, Martha. Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas Américas, 1870- 1930. Campinas: Editora da Unicamp, 2017. E-pub.) nos mostra como a cultura popular e o mercado de entretenimento nos Estados Unidos no século XIX desempenharam um importante papel na disseminação de uma imagem infantilizada, debochada e desumanizante da população afro-americana, fortalecendo o racismo e legitimando o Jim Crow. Ao mesmo tempo, aspectos da cultura negra estadunidense, danças como o cakewalk, além dos spirituals e outras expressões de resistência cultural, caíram no gosto de uma plateia branca em busca de diversão e exotismo. Assim, apropriações e paródias do que era um comportamento “tipicamente negro” encenado por artistas brancos, e também negros, circularam nos Estados Unidos e na Europa na segunda metade do século XIX, por meio de companhias de teatro e dança. Sendo um apreciador de arte e cultura, é possível que, mesmo antes da sua primeira viagem aos Estados Unidos, tenha sido mediante esses espetáculos, em solo brasileiro ou europeu, que Rebouças tenha construído algumas das suas impressões sobre os negros estadunidenses.

Pessoas negras que viajavam nos transportes públicos demandavam a mesma respeitabilidade dirigida aos homens e mulheres brancas. No caso dos homens negros, estes reivindicavam algo mais, que era o reconhecimento da sua masculinidade. Muitas dessas pessoas negras que enfrentavam as tais regras de trens segregados eram ativistas que denunciavam a existência de um espaço distinto e insalubre destinado a pessoas negras dentro dos trens. Este espaço, criado ainda nos finais dos anos 1830, foi chamado de “Jim Crow car”. O vagão segregado foi preservado até o século XX por trabalhadores brancos que garantiam que negros e negras não ultrapassassem aquele espaço, independente da sua classe social. Engajados no movimento abolicionista ou não, viajantes negros denunciavam a existência do “vagão do Jim Crow” e a violência que sofriam nesta parte do veículo (Pryor, 2016PRYOR, Elizabeth Stourdeur. Colored Travelers: Mobility and the Fight for Citizenship Before the Civil War. Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 2016.: 77-79).

No caso dos trens do Norte, esta era uma importante rota de abolicionistas e de negros fugitivos do Sul, que, escondidos ou disfarçados, rumavam para a região em busca da sua liberdade. Portanto, informações sobre o nível de vigilância e perseguição a pessoas negras, assim como o uso da violência e a existência de segregação no transporte público eram fundamentais. Entretanto, esse não foi o caso de André Rebouças, que, quando chegou a Nova York em 9 de junho de 1873, esperava somente ser tratado como representante do Império Brasileiro e reconhecido como um homem letrado, sofisticado e disposto a aprender com o progresso tecnológico daquela que acreditava ser uma grande nação. Possivelmente desavisado da dinâmica racial do País ou acreditando que as rígidas regras raciais não valeriam para ele, como estrangeiro, Rebouças não contava que os elementos que de alguma maneira lhe protegiam da violência racial no Brasil, nos Estados Unidos fariam pouca ou nenhuma diferença.

Rebouças encontra o Jim Crow

André Rebouças chegou aos Estados Unidos ainda durante a Reconstrução (1865-1877). Naquele momento, estava em questão um jogo de forças entre os republicanos, muitos deles negros, e democratas ainda desgostosos com os avanços no acesso a direitos conquistados pelos afro-americanos no pós-abolição.

No ano da chegada do engenheiro brasileiro, 1873, a cidade ainda refletia a tensão do ano de 1870, que foi a primeira vez, desde o início do século XIX, que homens negros votaram em condição de igualdade em relação aos homens brancos naquela cidade. Foram necessárias duas medidas federais, uma em 1870 e outra em 1871, para garantir o respeito à 15a emenda, que estabelecia o direito de voto sem discriminação de raça ou cor. Tropas federais encorajaram homens negros a se juntarem a eles na tarefa de assegurar um clima de estabilidade na cidade no dia da votação, sobretudo na região conhecida como “Black Manhattan”. Isso porque não faltaram atos de intimidação e violência praticados por eleitores brancos nos dias que antecederam a eleição. O motivo para tais atos era a inconformidade com o fato de milhares de eleitores negros agora estarem dispostos a fazer valer seu direito ao voto. A cidadania negra, garantida no período da Reconstrução pela 14a emenda, que reconhecia a cidadania da população negra, além do sufrágio negro, foi motivo de protestos e de conflitos violentos nas ruas da cidade. A luta por um significado de liberdade que se estendesse a todas as pessoas, nos anos 1870, acabou sendo uma ideia abandonada pelo governo federal e continuou a ser pauta dos movimentos abolicionistas mais radicais (Quigley, 2004QUIGLEY, David. Second Founding: New York City, Reconstruction and the Making of American Democracy. Nova York: Hill and Wang, 2004.: 71; 2003QUIGLEY, David. Jim Crow New York: A Documentary History of Race and Citizenship, 1777-1877. Nova York: New York University Press, 2003.: 300-306).

Assim, quando chegou a Nova York no verão de 1873, André Rebouças não esperava que o clima de tensão racial da cidade afetaria seus planos, de maneira que ele seria impedido de concretizar todos os seus projetos de viagem. Logo no desembarque, depois de quase 15 dias de viagem de Londres para Nova York, Rebouças demonstrou estranhamento com relação à forma como foi feita a revista da sua bagagem. O viajante descreveu a revista como “mais aparatosa do que rigorosa” (Rebouças, 1938REBOUÇAS, André Pereira. Diário e notas autobiográficas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938.: 245). Sem dar muitos detalhes, ele não explicou o que aconteceu, mas cabe notar que a tal “revista” foi tão marcante que já valeu um breve registro no seu diário. Como frequentemente acontece nos registros de viajantes sobre a primeira impressão de um destino, não foi o clima, a paisagem ou o primeiro contato com as pessoas locais que valeram o registro da sua primeira impressão sobre sua chegada aos Estados Unidos.

Rebouças chegou a Nova York sozinho e parecia não estar preparado para os perigos a que estava exposto, sobretudo se adentrasse espaços reconhecidamente hostis à população negra. Seu primeiro contato com o racismo “à moda dos Estados Unidos”, como sabemos por suas biografias e por seu próprio diário, foi nos hotéis. O nosso viajante não imaginava que encontrar uma hospedagem no Centro de Manhattan seria tarefa tão difícil para um homem negro. Na condição de visitante negro em uma cidade conflituosa e segregada, Rebouças ouviu várias negativas dos diversos lugares onde tentou se hospedar. O primeiro foi o 5th Avenue Hotel, fundado em 1856, que tinha a reputação de ser o mais elegante hotel da cidade. Reconhecido como um local das elites políticas e econômicas do País quando de passagem pela cidade, o hotel era conhecido como o local apropriado para a burguesia se hospedar quando a caminho do Norte do País. Certamente, Rebouças recebeu essa recomendação e acreditou que esse hotel era ideal para um homem como ele: sofisticado, membro das classes privilegiadas, que estava de passagem por Nova York.

Foi já nessa primeira busca por aposentos que Rebouças entendeu que os códigos raciais da sociedade estadunidense eram distintos daqueles dos países europeus por onde passara. De acordo com Leo Spitzer (1989SPITZER, Leo. Lives in between: Assimilation and Marginality in Austria, Brazil, West Africa, 1780-1945. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.), pessoas nessa condição de assimilação e mobilidade no mundo das elites não se percebem o tempo inteiro como membros de um grupo subalterno. No Brasil, sendo membro das elites nacionais e protegido por uma rede de amigos poderosos, como a própria família imperial, Rebouças custou a aceitar a fragilidade e a localidade da sua condição, que mudaria fora do território nacional. Ainda de acordo com Spitzer, momentos como esse, de exclusão e rejeição, eram geradores de crises existenciais e incertezas, e pessoas nessa condição “intermediária” questionavam sua identidade, suas escolhas e seu verdadeiro lugar no mundo (ibidem: 135; 145). No meio dessa possível crise de identidade provocada pela rejeição, Rebouças pode ter se sentido sozinho e inseguro como se tivesse sido descoberto, semelhante à maneira como se sente um impostor. Foi ele mesmo que, depois de algumas recusas, entendeu o motivo das recusas nos hotéis: “Depois de algumas tentativas, compreendi que era a dificuldade da cor a causa das recusas de aposento” (ibidem: 245-246).

Rebouças fez o que deveria ser feito em situações como essa. Buscou apoio na sua rede de proteção entre os amigos brasileiros, que eram cientes da sua condição de pessoa benquista pelo imperador. Dirigiu-se então ao consulado brasileiro, e foi o filho do cônsul quem se encarregou de lhe arranjar um quarto no Washington Hotel. Ainda assim, o problema não estava resolvido por completo: a hospedagem se daria sob a condição de que o hóspede negro fizesse as refeições no quarto, e nunca no restaurante. O quarto ficava no terceiro andar, num aposento que ele descreveu como um “quartinho muito sujo”. Lá, Rebouças teria contato com outros hóspedes no corredor, e, para evitar que isso ocorresse, ele logo foi transferido para outro aposento, dessa vez no térreo. O novo cômodo tinha saída direta para a avenida Broadway, e ali ele não teria contato com nenhum hóspede branco nos corredores ou em outras áreas de convívio, evitando assim que sua presença incomodasse outros visitantes (ibidem: 246).

Alguns fatores desse episódio nos revelam muito sobre as práticas segregacionistas dos Estados Unidos e o choque de Rebouças com o Jim Crow. A forma como esse incidente foi tratado pelo próprio cônsul brasileiro, Luiz Henrique Ferreira de Aguiar, nos revela a fragilidade das redes de solidariedade e influência de Rebouças quando em território estadunidense. Em se tratando de um representante do Império em visita oficial, questionamos se a questão da hospedagem de Rebouças não deveria ser resolvida pelo próprio cônsul, e não pelo seu filho. Além disso, a solução encontrada pelo filho do cônsul parecia estar longe de ser a mais apropriada, visto que as condições do quarto, tal como descritas pelo próprio Rebouças, estavam longe daquilo que era o ideal para alguém do seu prestígio.

O cônsul, assim como seu filho, desapareceram das páginas do diário de Rebouças dali por diante, não figurando entre as pessoas que o ajudariam em qualquer outro incidente. Como morador de Nova York, certamente o cônsul estava ciente dos limites que Rebouças encontraria no País, pois se tratava de um visitante negro. Não faltariam fontes desse tipo de informação ao diplomata, uma vez que episódios como este vivido pelo engenheiro brasileiro eram frequentemente noticiados na imprensa da época. Assim como aconteceu com Rebouças, outros viajantes negros também se mostraram surpresos com o ambiente de hostilidade racial, mesmo após a Guerra Civil e a abolição em todo o País.

Em 1866, portanto, um ano após o fim da Guerra Civil, o jornal abolicionista negro The Christian Recorder publicou um episódio envolvendo um jovem advogado negro inglês. Na carta publicada no jornal, o viajante denunciava o preconceito dos nortistas contra negros e pessoas de cor. Segundo o advogado, numa curta passagem por Nova York, ele já esperava ser tratado de forma discriminatória nos hotéis de Manhattan, mas seus companheiros de viagem o garantiram que tais preconceitos haviam cessado desde o fim da guerra, o que o convenceu a buscar hospedagem no mesmo hotel que seus amigos. Quando se dirigiram para o French Hotel, o mesmo em que Rebouças se hospedaria, como veremos adiante, o viajante encontrou resistência à sua acomodação. Por fim, aceitaram que ficasse somente por uma noite, saindo na manhã seguinte. O advogado também teve seu acesso negado em cafés, teatros e até mesmo na igreja. O problema da sua hospedagem foi resolvido pelo capitão do navio inglês, que permitiu que ele descansasse na sua cabine de viagem até que partisse para Liverpool.3 3 TREATMENT OF a Colored English Lawyer in New York City. The Christian Recorder, 15 de setembro de 1866.

Elizabeth Pryor (2016PRYOR, Elizabeth Stourdeur. Colored Travelers: Mobility and the Fight for Citizenship Before the Civil War. Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 2016.: 85-91) nos informa como as práticas segregacionistas também estavam carregadas de rituais de humilhação, sobretudo de uma classe média negra que exigia o direito ao acesso a consumo de bens que acreditavam ser mais adequados ao seu status social. De acordo com essa historiadora, a hostilidade e violência eram ainda maiores em relação aos membros da burguesia negra, que naquele momento debatiam diversas estratégias de respeitabilidade que pudessem amenizar a violência racial. Abolicionistas negros frequentemente debatiam a melhor forma de enfrentar o Jim Crow: se sendo pacífico ou reagindo à violência. Vestir-se ao modo das elites e adotar modos sofisticados também eram estratégias debatidas, mas que não funcionavam diante da rigidez da segregação racial, que não respeitava nem mesmo as personalidades negras mais conhecidas e influentes.

O Jim Crow também afetou os planos de Rebouças de outra forma. Uma prática que manteve nas cidades europeias, que era frequentar a ópera, foi impossível na Nova York segregada. É interessante perceber que Rebouças não se sentiu intimidado e tentou manter seus planos, inicialmente ignorando (ou enfrentando) o Jim Crow, mesmo depois dos episódios nos hotéis. Podemos nos questionar se alguém advertiu Rebouças, informando-o sobre as hostilidades e a tensão racial vigentes na cidade. Sendo um homem de gosto refinado e de grande acúmulo intelectual e cultural, certamente ser impedido de assistir a um espetáculo, sobretudo se o motivo era a cor de sua pele, teria lhe deixado chocado, mas, como veremos, mesmo assim ele não desistiu de levar adiante seus projetos de viagem (Rebouças, 1938REBOUÇAS, André Pereira. Diário e notas autobiográficas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938.: 246; Spitzer, 1989SPITZER, Leo. Lives in between: Assimilation and Marginality in Austria, Brazil, West Africa, 1780-1945. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.: 141).

Quando o incidente no teatro Opera House aconteceu, Rebouças estava acompanhado de José Carlos Rodrigues, jornalista brasileiro residente em Nova York. Foi ele quem explicou a Rebouças sobre os códigos raciais e a segregação nos Estados Unidos. Foi também Rodrigues que, para consolar o amigo, contou-lhe que até mesmo o grande abolicionista Frederick Douglass “velho amigo do presidente Grant”, havia sido rejeitado nos hotéis da capital, Washington (Rebouças, 1938REBOUÇAS, André Pereira. Diário e notas autobiográficas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938.: 247). Este episódio foi fundamental para que Rebouças entendesse a sua condição nos Estados Unidos, porque ele certamente encontrou muitos pontos em comum na sua trajetória e na do abolicionista. Ambos eram conhecidos das elites dos seus países, ele, do Imperador, e Douglass, do presidente Lincoln. Rebouças descreve Douglass como “o mulato Douglass”, fazendo menção à origem birracial dos dois. Não por acaso, Rodrigues usa o exemplo de Douglass e não dos diversos casos de anônimos vítimas do regime do Jim Crow. O reconhecido brilhantismo de Douglass como escritor e intelectual negro seria importante para que Rebouças entendesse que sua condição social não o protegeria da violência racial nos Estados Unidos.

Esse reconhecido pertencimento às elites intelectuais nos faze pensar em outras possíveis semelhanças entre as personagens de Frederick Douglass e André Rebouças. Segundo o historiador John Stauffer, a “autorrepresentação” foi uma estratégia muito empregada por Douglass para construir sua imagem de pessoa pública. A função de orador era a forma utilizada por Douglass para construir sua persona e convencer plateias de brancos e negros sobre os horrores da escravidão. Já Rebouças, talvez menos simpático aos parlatórios, legitimava-se social e politicamente como homem das ciências com os olhos voltados para o futuro. Assim, cada um a seu modo encontrou uma forma de se colocar socialmente, da maneira que consideraram digna, num ambiente em que supostamente não deveriam estar, desafiando de forma muito particular os códigos das sociedades escravistas americanas (Stauffer, 2007: 201-217).

Contudo, entre as várias diferenças nas vidas de André Rebouças e Frederick Douglass, a mais importante delas é que, enquanto Douglass falava na condição de um homem que havia vivido na condição de escravizado, André Rebouças descrevia as experiências de um homem livre, que nunca experimentara o cativeiro e que, a despeito da sua cor da pele, sempre vivera entre as elites políticas e intelectuais brasileiras. Essa grande diferença marcaria a forma como Douglass e Rebouças entrariam no cenário político dos seus países. Enquanto o engenheiro brasileiro teve acesso a toda uma educação formal, inclusive na Europa, focada principalmente, pelo menos até a década de 1860, no mundo da ciência e da tecnologia, Douglass entrou na vida pública ainda na condição de escravo, sendo uma voz importante do movimento abolicionista (idem).

Nesse sentido, pela experiência do cativeiro e pelo uso da oratória e da escrita como armas de denúncia contra os horrores da escravidão, e os clamores pela cidadania das populações negras nas Américas, podemos aproximar Douglass do abolicionista brasileiro Luis Gama, também ex-escravo que se tornou um dos maiores intelectuais brasileiros do século XIX, atuando como advogado abolicionista desde a década de 1860 (Ferreira, 2011FERREIRA, Lígia. Com a palavra, Luiz Gama. São Paulo: Editora Imprensa Oficial, 2011.). Diferenças a parte, as histórias de Douglass, Gama e André Rebouças demonstram o quão diversa poderia ser a experiência negra e masculina nas Américas ao mesmo tempo em que, a despeito das barreiras geográficas, todas as suas vidas e experiências eram marcadas pela sua condição racial.

Até antes da década de 1870, Rebouças não era um abolicionista e não se colocava publicamente como um homem negro. Enquanto isso, Frederick Douglass, já na década de 1830, era uma reconhecida liderança nacional e internacional do movimento abolicionista, e começou a desafiar a prática de Jim Crow nos trens, recusando-se a ir para um vagão de negros a partir de 1841 (Archer, 2017ARCHER, Richard. Jim Crow North: The Struggle for Equality in Antebellum New England. Nova York: Oxford University Press, 2017.: 98-99). Quando Douglass tentava ser atendido em qualquer estabelecimento público do Norte dos Estados Unidos, ele sabia que seria vítima do Jim Crow, não importava sua condição de amigo do presidente ou de personalidade negra pública. Ainda assim, Douglass fazia isso porque tinha em mente o acesso a espaços públicos como um direito, na condição de cidadão estadunidense. Ele também demandava respeitabilidade na condição de homem das elites intelectuais do País, e exigia que fosse tratado da mesma forma que um homem branco naquela condição. Douglass acreditava que as pessoas que compunham uma burguesia negra eram as maiores vítimas do ódio branco, porque desafiavam lugares raciais e estereótipos, contrariando argumentos de que pessoas negras deveriam estar num determinado lugar racial porque eram inferiores biológica e socialmente (Pryor, 2016PRYOR, Elizabeth Stourdeur. Colored Travelers: Mobility and the Fight for Citizenship Before the Civil War. Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 2016.: 67-68).

Frederick Douglass vivia o dilema de carregar em si o aparente paradoxo de ser negro e estadunidense, vivenciando aquilo que, anos mais tarde, o intelectual negro William Edward Burghardt du Bois (2003DU BOIS, William Edward Burghardt. The Souls of Black Folks. Nova York: Barnes and Noble Classics, 2003.: 9) chamaria de “dupla consciência”. Provavelmente, Rebouças não vivia exatamente esse mesmo sentimento naquele momento, visto que o fato de ser um homem negro, uma identidade que ele ainda não evocava veemente e publicamente naquela época, não estava em choque com sua condição de cidadão brasileiro. Pelo menos até certo momento, ser negro e ser brasileiro,, para Rebouças não era uma contradição. Talvez o fato de ele ser um dos atores principais da política nacional, e a sua proximidade com a família imperial e sua dedicação a projetos que estivessem voltados para a modernização da nação sejam indicativos do seu sentimento de pertencimento ao seu país. A historiadora Hebe Mattos (2018MATTOS, Hebe. Um livro “tosltoico” contra a “brutalidade yankee”: A África e a abolição da escravidão e da servidão no Brasil, nos Estados Unidos e na Rússia na escrita de si de André Rebouças (1870-1898). In: LIMA, Ivana Stolze; GRINBERG, Keila; REIS, Gabriel Aarão (org.). Instituições nefandas: o fim da escravidão e da servidão no Brasil, nos Estados Unidos e na Rússia. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2018. p. 74-123.: 74-123), que também se dedicou extensamente a entender como essa viagem para os Estados Unidos e o exílio no continente africano impactaram os projetos políticos e subjetividade de Rebouças, afirma que o engenheiro estava em busca de modelos de modernização em sociedades pós-escravistas que incluíssem pessoas negras nesse processo. Nesse sentido, Mattos, que acompanhou a trajetória de Rebouças até sua morte, mostra como, processualmente, o engenheiro vai entendendo seu lugar no mundo e a sociedade brasileira sob a chave do racismo, ao mesmo tempo que fortalecia sua identidade como homem negro. Esse processo, de forma mais intensa, é também tributário dessa viagem aos Estados Unidos e daquilo que viu, em termos de avanços tecnológicos, e daquilo que vivenciou numa sociedade segregada. Rebouças acreditava, até sua partida definitiva do Brasil, que seu país poderia agregar aquilo que nos Estados Unidos era impossível: modernização e cidadania para as pessoas negras.

Ainda segundo Mattos, é somente em 1892, quando decidiu imigrar para o continente africano, é que Rebouças manifesta publicamente seus dilemas na condição de cidadão negro de uma nação que não lhe acolhe. Foi nesse período que Rebouças passou a ver o continente africano como “terra de origem” e a se declarar como homem negro, meio brasileiro e meio africano. As motivações para seu exílio seriam idênticas àquelas que fariam Du Bois também migrar para a África e rejeitar a cidadania estadunidense (idem).

Na década de 1870, é possível que Rebouças acreditasse que episódios de preconceito racial como os vividos por seu pai enquanto era conselheiro do Império estivessem superados. Ele dificilmente seria barrado nos estabelecimentos públicos do Rio de Janeiro, visto que os códigos de discriminação racial no Brasil eram outros. Portanto, após uma passagem pela Europa, onde experimentou uma completa liberdade de trânsito e de acesso a locais públicos, a vivência com o Jim Crow nos Estados Unidos certamente foi objeto de dor pessoal e constrangimento registrados em segredo no seu diário. Enquanto isso, Frederick Douglass, que era um militante da causa da igualdade e cidadania para a população negra e das mulheres, transformava esses episódios em que era vítima de violência racial em fatos públicos e políticos. Além disso, ele estimulava toda a comunidade negra estadunidense a fazer a mesma coisa. Tornar público o preconceito e violência racial nos Estados Unidos, inclusive internacionalmente, era uma importante estratégia para evidenciar o racismo na nação que se proclamava “terra da liberdade” (Brito, 2014BRITO, Luciana da Cruz. Impressões norte-americanas sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil escravista. 2014. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.).

Longe de compartilhar do radicalismo abolicionista de Douglass, no verão de 1873, Rebouças ainda tentava sobreviver na Nova York segregada do pós-abolição, o que não deixava de, ao seu modo, ser uma forma de enfrentamento, como veremos. Os irmãos Lidgerwood, que eram seus amigos e também engenheiros, trataram de acompanhar Rebouças em sua jornada pela cidade já no dia 10 de junho, portanto, um dia após a sua chegada. Eles sabiam que, na condição de homens brancos, poderiam evitar muitos desses episódios ao atestarem que Rebouças era um homem negro confiável, ou sob controle. Rebouças logo entendeu isso, e registrou que, a partir daquele momento, pelo menos um dos irmãos ou o próprio José Carlos Rodrigues o acompanhariam para evitar “dificuldades do prejuízo de cor” (Rebouças, 1938REBOUÇAS, André Pereira. Diário e notas autobiográficas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938.: 246).

Foi John Lidgerwood quem o acompanhou quando deixou Nova York e seguiu mais para o norte do país em uma curta viagem em que esperava conhecer o sistema ferroviário e algumas fábricas ao longo do caminho. As dificuldades causadas pelo Jim Crow, obviamente, continuaram. Quando tomou o luxuoso navio Providence, construído em 1866 para fazer a rota de New York para o norte com destino final em Rhode Island, Rebouças não imaginava que, mesmo na companhia do amigo branco, teria que seguir viagem num vagão para coloreds. O brasileiro não mencionou esse fato no seu diário, somente registrou que os vagões eram muito simples, e que “os passageiros de menos educação jogavam cartas sobre as mesas e davam fortes socos sobre as mesmas” (ibidem: 248). Sendo o Providence um navio luxuoso, imaginamos que esse tipo de coisa não acontecia nas cabines regulares ou nas da primeira classe, nas quais provavelmente Rebouças encontraria em outras condições. Já que o transporte público também era segregado, fossem navios ou trens, Rebouças provavelmente não viajou na companhia do amigo, tendo sido conduzido para um vagão de negros. Tentar contestar o lugar da viagem poderia gerar um episódio de violência, como constantemente acontecia. Os vagões e cabines eram verdadeiras zonas de combate e disputas entre abolicionistas radicais que demandavam sua cidadania e funcionários de trens e vapores (Pryor, 2016PRYOR, Elizabeth Stourdeur. Colored Travelers: Mobility and the Fight for Citizenship Before the Civil War. Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 2016.: 86).

Ainda segundo Pryor, foram os trabalhadores dos trens que criaram o termo “Jim Crow car”. Quando negros reivindicavam um assento nos melhores vagões, para os trabalhadores brancos pobres, aqueles passageiros estavam invertendo a ordem da supremacia branca que lhes conferia privilégios raciais e que seguiria mantida no pós-abolição. O possível convívio entre negros e brancos numa condição de igualdade era entendido como um nivelamento das condições raciais, o que significaria a perda de vantagens garantidas pela cor da pele. O privilégio racial teria nesses trabalhadores seus maiores defensores, que garantiam que pessoas negras viajassem em vagões insalubres, impedindo que eles acessassem outros espaços. Frequentemente, estes trabalhadores contavam com o apoio de outros funcionários e viajantes para agredir pessoas negras que insistissem em reivindicar o direito aos melhores aposentos, ainda que tivessem comprado assentos na primeira classe (ibidem: 90-96).

Rebouças, então, talvez orientado pelo amigo, decidiu acatar as regras locais, ainda que a contragosto. Na sua viagem pelo Norte dos Estados Unidos, o dinheiro e o prestígio de representante oficial do Império Brasileiro não lhe permitiriam ter acesso aos bens de consumo sofisticados aos quais estava habituado. Ele reclamou de tudo, dos quartinhos sujos em que dormiu, do banheiro da barbearia onde foi obrigado a tomar banho, e cujas toalhas eram “pequenas e mesquinhas” (Rebouças, 1938REBOUÇAS, André Pereira. Diário e notas autobiográficas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938.: 246), dos passageiros barulhentos e mal educados do vagão em que viajou. Portanto, indagamos por que Rebouças não mencionou a dinâmica racial dos vagões? Por que omitiu esse fato? Por que resolveu negar a segregação dos vagões, afirmando que “os vagões de trem dos EUA não estavam divididos por classe como na Europa” (ibidem: 246). Rebouças de fato afirmou que havia vagões para imigrantes, mas omitiu a existência do Jim Crow car, mesmo que, provavelmente, tenha viajado em um deles.

Devemos fazer o esforço de entender o impacto dessa experiência de violência racial para responder a tais questões. O relativo silêncio de Rebouças a respeito de detalhes da segregação racial na sociedade estadunidense pode também ter sido orientado pela sua estratégia familiar de sobrevivência no mundo dos brancos. De acordo com Keila Grinberg, o pai de André, Antônio Rebouças, silenciou em vários dos episódios de violência racial que sofreu, inclusive com relação às acusações de estar envolvido em revoltas de escravos (2002: 67-95). Spitzer (1989SPITZER, Leo. Lives in between: Assimilation and Marginality in Austria, Brazil, West Africa, 1780-1945. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.: 121-122) interpreta o silêncio como uma forma de minimizar a existência da discriminação, que seria combatida com uma ação individual positiva e/ou uma leitura otimista dos fatos. Esse “otimismo” se manifestaria nos registros de demonstração de aceitação e integração no mundo das elites da época. Para Spitzer, foi essa estratégia, em vez de uma contestação aos privilégios e à necessidade de validação no mundo branco, o ensinamento que Antônio legou aos seus filhos para que ascendessem socialmente, ainda que numa sociedade escravista.

Contudo, é possível apontar outras possibilidades de interpretação destes supostos silêncios, se é que existiram por completo. A historiadora Hebe Mattos (2016MATTOS, Hebe. De pai para filho: África, identidade racial e subjetividade nos arquivos privados da família Rebouças (1838-1898). In: MATTOS, Hebe; COTTIAS, Myriam (org.). Escravidão e subjetividades no Atlântico luso-brasileiro e francês (séculos XVII-XX). Marselha: OpenEdition Press, 2016.), na busca por entender como o racismo impactou as subjetividades e a construção das identidades dos homens da família Rebouças, indica que o patriarca, o conselheiro Antônio Rebouças, apontou como a questão da raça era determinante na política imperial brasileira. Ele foi defensor da imigração de africanos livres, quando se afirmava publicamente que o africano era a causa do atraso e do barbarismo no Brasil. Além disso, ele denunciou quando argumentos relativos à cor da sua pele foram mobilizados por inimigos políticos, que inclusive o acusaram de líder de revoltas, ou “haitianismo”.

No caso de André Rebouças, é possível que a escolha por não revelar (ou denunciar) detalhadamente o sistema do Jim Crow fosse porque ele estava atento à dinâmica do racismo estadunidense e incerto, naquele momento, sobre os possíveis impactos de tais informações no Brasil. Tornar público o registro das práticas de segregação numa sociedade pós-abolição pode ter sido entendido como algo perigoso ou não apropriado no Império ainda escravista. André Rebouças também pode ter avaliado que divulgar as recusas da sua presença nos espaços públicos, podia significar mais exposição pessoal, munindo seus adversários com mais argumentos racistas em futuros conflitos. Talvez, antecipando ser ridicularizado na sua volta ao Brasil, é plausível pensar que possivelmente Rebouças deixou seus queixumes e indignação para as conversas com os amigos mais íntimos, como Rodrigues.

No mais, não só o racismo impactou sua viagem, como também a modernização que tanto queria ver de perto. Vejamos como André lançou mão desses registros de aceitação para provar aos outros, e a si mesmo, que os casos de violência racial eram pontuais, ainda que no Norte dos Estados Unidos durante o Jim Crow. Ao longo da viagem pelo Norte, o engenheiro vivenciou outros episódios de discriminação, sobretudo em restaurantes. Durante uma parada de 20 minutos para uma refeição na cidade de Wicca, ele registrou que aquela seria a primeira vez ao longo da viagem que o dono do restaurante reclamou sobre “sua cor”. Um fato a se notar é que Rebouças estava acompanhado do amigo John Lidgerwood, que estava tentando fazer o amigo acessar os mesmos lugares que ele, um homem branco. Isso fazia de Rebouças totalmente dependente da validação do anfitrião, que tinha a função de garantir que o colored que o acompanhava se comportaria bem. Não sabemos se Rebouças se recusou ou se John Lidgerwood não o orientou a utilizar banheiros, restaurantes e outros espaços destinados a pessoas de cor. John Lidgerhood optou por enfatizar a excepcional personalidade do amigo negro e sua condição de estrangeiro como uma forma de convencer o dono do restaurante de que Rebouças não fazia parte da dinâmica em que estavam localizados negros e brancos nos Estados Unidos.

Ainda em Wicca, também no restaurante, Rebouças registrou satisfeito que o amigo intencionalmente abusava a cada momento do tratamento de doctor ao se dirigir a ele. Essa era uma tentativa de fazer com que Rebouças fosse aceito nos espaços segregados, de distingui-lo dos demais negros, afastando assim o visitante brasileiro de qualquer associação com os milhões de afro-americanos trabalhadores que viviam no Norte do país. Aliás, parece que pouca ou quase nenhuma foi a interação entre Rebouças e a população negra local, à qual, de forma distante e em terceira pessoa, ele se referia como “negros”, “mulatos” ou “pretos”. Além da cidade de Titusville, o engenheiro notou que em Pittsburg e na Filadélfia o serviço nos trens e nos hotéis era feito por afro-americanos, que eram parcela considerável da população nesses locais. Na Filadélfia, por exemplo, era marcante a presença negra, tanto entre as elites quanto entre os trabalhadores sulistas empobrecidos que fugiam do Sul e imigravam para o Norte num movimento que ficou historicamente conhecido como “great migration” (Berlin, 2010BERLIN, Ira. The Making of African America: The Four Great Migrations. Nova York: Penguin Group, 2010.).

Além da rápida menção a Frederick Doulglass e às atividades dos trabalhadores, nada mais foi dito sobre a comunidade negra, mesmo aquela com que possivelmente Rebouças pudesse estabelecer uma identidade de classe, além de racial. Vindo de um país ainda escravista, Rebouças aparentemente não conheceu o movimento abolicionista negro estadunidense, nem mencionou ter tido acesso aos jornais da imprensa negra, ou mesmo ter frequentado espaços da comunidade negra. Ainda de acordo com Spitzer (1989SPITZER, Leo. Lives in between: Assimilation and Marginality in Austria, Brazil, West Africa, 1780-1945. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.: 119-126), isso fazia parte de um pacto silencioso entre a família Rebouças e as elites de quem buscavam acolhimento. O preço pela aceitação era o distanciamento dos outros membros da comunidade negra. Aqui, amplo conceito de embranquecimento utilizado por Spitzer, que o define como um franco processo de clareamento da pele por meio de relações sexo-afetivas com pessoas brancas. Entendo o embranquecimento também como uma espécie de “embranquecimento social”, que é esse mergulho no mundo das elites brancas como forma de aceitação social, sobrevivência e proteção individual, além de outras afinidades. Assim, a família Rebouças também afirmava, pelas palavras e pelos atos, que compartilhava dos valores desse universo social, sendo um deles o fato de também serem senhores de escravos.Contudo, é também possível que Rebouças simplesmente não tenha tido a chance de conhecer abolicionistas negros porque eles estavam fora do círculo de amizades dos seus anfitriões brasileiros, que eram brancos. Ademais, esse é o Rebouças do início da década de 1870, aquele das décadas seguintes, que evocava politicamente sua identidade racial, certamente haveria feito outras escolhas durante a viagem.

Ao longo da passagem pelo Norte, outros episódios de segregação nos restaurantes aconteceram. Sabemos que dormiu com fome por duas noites e só conseguiu se alimentar no hotel Binghamhouse, sob a condição de fazer as refeições no quarto. Ainda assim, a viagem pelo Norte também teve seus aspectos positivos, que também foram registrados. Tal como planejava, ele visitou diversas obras públicas e empreendimentos modernos, como estaleiros, fábricas de algodão, a ponte que transportava os carros dos Estados Unidos para ao navio para com destino para o Canadá, e considerou essa obra “uma das mais belas coisas que a engenharia tinha produzido” (Rebouças, 1938REBOUÇAS, André Pereira. Diário e notas autobiográficas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938.:249). Admirou a beleza de Niagara Falls, da cidade de Lowell, e dos edifícios de estilos diversificados da cidade de Boston. As cidades e estradas arborizadas lhe fizeram pensar em desenvolver a silvicultura no Brasil. Mas Rebouças não fez somente elogios a tudo o que viu; também foi crítico, e um exemplo disso foi quando recriminou as ruas da Filadéfia, que, segundo ele, eram “sujas e mal calçadas” (ibidem: 253).

Todas estas foram distrações importantes, que talvez tenham feito o jovem engenheiro se esquecer um pouco dos episódios ocorridos nos hotéis de Nova York, e que continuariam a acontecer na volta para a cidade, no dia 18 de junho. No seu retorno, vivenciou a mesma dificuldade de encontrar hospedagem. Já era noite, e Rebouças não havia encontrado um aposento, até que seu amigo John Lidgerwood decidiu compartilhar com ele um quarto de hotel. No dia seguinte, Rebouças mudaria novamente de hospedagem, e acabou se transferindo para o French Hotel após uma reserva feita pelo amigo brasileiro José Rodrigues, que o hospedou num quarto localizado bem próximo ao seu. Este era o mesmo estabelecimento em que um já mencionado homem negro de Liverpool havia encontrado recusas para se hospedar anos antes. Ao que parece, a esta altura, os irmãos Lidgerwood e o jornalista brasileiro estavam muito preocupados com o amigo viajante, e entenderam que deveriam permanecer bem próximo dele, evitando assim que ele se envolvesse em problemas. Podemos fazer um esforço e imaginar o quão constrangedor deve ter sido para Rebouças, um homem autônomo e sofisticado, depender dos seus amigos durante toda essa viagem para executar tarefas cotidianas. Mais ainda, podemos especular que o mais intrigante para ele era que isso ocorria na terra da liberdade, que tanto admirava. Outro fator que também certamente afetou Rebouças foi o motivo da rejeição que sofria: a cor da sua pele.

Com tantos episódios embaraçosos e constrangedores, deve ter sido importante para Rebouças ter recebido uma singela homenagem do guardador de livros do jornal Novo Mundo, periódico brasileiro que circulava naquela cidade desde 1870, e que tinha por editor chefe e fundador o já conhecido amigo de Rebouças, José Carlos Rodrigues. Na visita ao jornal, o engenheiro foi surpreendido com o entusiasmo de um funcionário, que, admirado com a jornada do viajante pelo Norte do país, propôs que fosse publicada uma matéria cujo título seria “Mr. Perpetual Motion Rebouças”. A alcunha de “Senhor em constante movimento” seria uma referência à sua inquietude e sede de conhecimento, que levava o jovem engenheiro a diversos destinos, a despeito dos desafios que encontrou. “Perpetual Motion” também dava uma ideia de progresso e mudanças, elementos que sempre fizeram parte dos projetos de Rebouças para um Brasil moderno. A modéstia do nosso engenheiro fez com que, ao que parece, ele não permitisse que o artigo sobre suas viagens pelo Norte dos Estados Unidos fosse publicado. Ainda que o fosse, o artigo não daria conta de expressar todas as suas experiências durante essa viagem. A insistência em manter sua agenda em Nova York fortalece ainda mais seu caráter de inquietude e busca, fazendo de André Rebouças um homem em constante movimento e em contínua transformação pessoal. Ao seu modo, também enfrentou as regras de segregação que lhes foram impostas, uma vez que não desistiu dos seus compromissos de viagem nem se intimidou diante das recusas que recebeu.

No ano de 1892, quando chegou no continente africano após abandonar seus sonhos para o Brasil moderno e livre, Rebouças seria um outro homem, diferente daquele que havia visitado os Estados Unidos na década de 1870. O objetivo da viagem também seria bem distinto daquele que o levara para os Estados Unidos. Conforme declarou, ele havia ido para a África do Sul para “combater a escravidão e o monopólio territorial” (Mattos, 2018MATTOS, Hebe. Um livro “tosltoico” contra a “brutalidade yankee”: A África e a abolição da escravidão e da servidão no Brasil, nos Estados Unidos e na Rússia na escrita de si de André Rebouças (1870-1898). In: LIMA, Ivana Stolze; GRINBERG, Keila; REIS, Gabriel Aarão (org.). Instituições nefandas: o fim da escravidão e da servidão no Brasil, nos Estados Unidos e na Rússia. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2018. p. 74-123.:92). Como nos mostrou Hebe Mattos na sua busca por evidências que deixassem pistas sobre um novo momento da vida do engenheiro, em que a identidade racial e o combate ao preconceito de cor eram sentimentos pulsantes, o Rebouças de então era um vocal combatente do racismo que chamava o Jim Crow de “brutalidade yankee”. Por uma coincidência muito interessante, naquele mesmo ano de 1892, a vida do engenheiro André Rebouças seria divulgada e celebrada nos jornais nortistas estadunidenses, que o descreviam como “o maior engenheiro do Brasil”. A biografia de Rebouças foi apropriada nos jornais num contexto de denúncia do Jim Crow estadunidense, através de uma conhecida estratégia, que era apontar o Brasil como uma nação sem preconceito racial.4 4 A biografia de André Rebouças, descrito como “melhor engenheiro do Brasil”, seria replicada em diversos jornais, tais como o Plaindealer (Detroit, Michigan), em 29 de julho de 1892, além do The Evening Star, de Washington, .DC., em 16 de julho de 1892, do Salt Lake Herald, em 29 de julho de 1892, o Chicago Daily Tribune, em 30 de julho de 1892, dentre outros.


State Capital, Springfield, Illinois, 13 de Agosto de 1892.

Ao longo do artigo, o exemplo brasileiro, evidenciado na trajetória do engenheiro Rebouças, era utilizado para questionar as crenças científicas muito consolidadas nos Estados Unidos desde a primeira metade do século XIX, que afirmavam que indivíduos de origem birracial, os ditos mulatos, carregavam as piores características dos ancestrais negros e brancos (Fredrickson, 1971FREDRICKSON, George M. The Black Image in the White Mind: The Debate of African-American Character and Destiny, 1817-1914. Nova York: Harper and Row Publishers, 1971.). Ao descreverem aquele que era anunciado como “o maior engenheiro do Brasil” como um mulato, Rebouças servia para eles como prova das capacidades intelectuais de negros e mulatos e da possibilidade de lealdade patriótica que potencialmente também carregavam os negros estadunidenses. Também circulava na matéria, que foi replicada em diversos jornais estadunidenses, o suposto episódio de um baile ocorrido no palácio real do Império Brasileiro em que Rebouças, desafiando mais uma vez o Jim Crow estadunidense, recebe uma negativa de uma visitante branca da cidade de Baltimore, após convidá-la para dançar. O constrangimento é resolvido quando a própria princesa Isabel convida o engenheiro negro para dançar com ela mesma, aos olhos de todos os convidados, inclusive da própria estadunidense. Essa seria uma forma de mostrar à estrangeira que, no Brasil, pelo menos para um grupo seleto de pessoas negras, as coisas eram diferentes do seu país segregado: no Império, o negro André era, antes de mais nada, o engenheiro André Rebouças, amigo da família imperial.

Considerações finais

Para os negros que viviam nos Estados Unidos no pós-abolição, ser cidadão também era ter direito a transitar por onde quisessem, além de poderem viajar sem correr o risco de sofrer um ataque, muitas vezes, violento. Segundo muitos deles, foi somente fora do país que experimentaram pela primeira vez a sensação de liberdade e tranquilidade durante uma viagem . Foi na Europa que abolicionistas negros como William G. Allen, Frederick Douglass, William Wells Brown, entre outros, afirmaram terem sido reconhecidos e tratados como homens e cidadãos. O respeito à sua condição racial, de gênero e de classe era aquilo que vinham exigindo no seu país natal. No pós-abolição, enquanto a população branca, composta tanto pelas elites quanto por trabalhadores pobres, tentava consolidar uma sociedade pós-escravista organizada por regras de hierarquia e diferenciação racial. E a população negra tinha outros planos, e tentavam imprimir naquele momento como uma nova fase de igualdade e cidadania expandida para todas as pessoas daquele país.

Quando estes abolicionistas negros estadunidenses estavam viajando pelo mundo, a ausência do Jim Crow os fazia acreditar que essa sociedade sem barreiras raciais era possível. Assim, os mesmos sujeitos, quando viajantes, transitando em realidades sociais distintas, poderiam vivenciar diferentes sensações e atribuir novos significados ao seu lugar no mundo e à sua terra natal. Nesse sentido, Paul Gilroy já havia indicado a importância de se analisar as experiências de viajantes negros como forma de se entender diferenças culturais importantes para a história do atlântico negro, além do impacto da transitoriedade na formação de novas identidades.

Quando André Rebouças chegou aos Estados Unidos em 1873, ele estava indo para um destino que estava na “contramão da cidadania”, mergulhando no paradoxo estadunidense nos anos finais da Reconstrução. A terra da liberdade e dos avanços tecnológicos, que ele tanto admirava, seria também a nação de um violento regime de segregação racial - o Jim Crow - que cada vez mais ganhava caráter legal. Durante a viagem, Rebouças foi forçado a entender que, naquele país, sua condição de homem negro, não importava a origem ou classe social, arrastava-o para a mesma condição da comunidade negra que vivia no Norte dos Estados Unidos. Portanto, a sua condição especifica de viajante não o mantinha na teia de proteção que lhe garantia privilégios no Brasil.

As experiências vividas como viajante negro nos Estados Unidos também devem ter lhe feito refletir sobre sua condição de homem negro na Europa, mas, sobretudo, sobre sua condição de homem negro no Brasil. Será que Rebouças pensou na fragilidade da sua cidadania ou nos seus privilégios de que gozava como membro das elites brasileiras? Será que pensou que a desigualdade seria o preço da modernidade? Será que era isso que ele imaginou que, no pós-abolição, o Brasil se tornaria: uma sociedade livre, moderna e desigual?

Os viajantes negros do século XIX nos fazem perceber a fragilidade da liberdade e da cidadania no mundo pós-abolição e também os diferentes caminhos que foram trilhados nas cidades americanas e europeias para, cada uma a seu modo, manter desigualdades. Ao mesmo tempo, a experiência desses viajantes também nos revela como eles e elas questionaram projetos nacionais marcados pela desigualdade e imprimiram seus sonhos e conceitos de igualdade por onde passaram. Ao fim e ao cabo, de um lado ou de outro do Atlântico, o que tanto Rebouças quanto os negros abolicionistas estadunidenses faziam quando viajavam era celebrar sua liberdade e sua autonomia, ao mesmo tempo em que imprimiam um conceito de cidadania que os contemplasse no período pós-abolição.

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  • 1
    Sobre o movimento abolicionista estadunidense, ver Sinha (2016) e Brito (2014).
  • 2
    Sobre mistura racial nos Estados Unidos, ver Lemire (2002) e Brito (2014).
  • 3
    TREATMENT OF a Colored English Lawyer in New York City. The Christian Recorder, 15 de setembro de 1866.
  • 4
    A biografia de André Rebouças, descrito como “melhor engenheiro do Brasil”, seria replicada em diversos jornais, tais como o Plaindealer (Detroit, Michigan), em 29 de julho de 1892, além do The Evening Star, de Washington, .DC., em 16 de julho de 1892, do Salt Lake Herald, em 29 de julho de 1892, o Chicago Daily Tribune, em 30 de julho de 1892, dentre outros.
  • Agradeço às/aos colegas da linha de pesquisa “Escravidão e Invenção da Liberdade”, da Universidade Federal da Bahia, que com seus comentários e observações contribuíram muito com a (re)escrita desse artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    15 Nov 2018
  • Aceito
    12 Fev 2019
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