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O perfeito cozinheiro da Antropofagia

Anthropophagy’s perfect cook

Resumo

O texto busca um precedente da complexa visão antropológico-filosófica da Antropofagia Ritual de Oswald de Andrade a partir dos experimentos textuais e gráficos presentes em O perfeito cozinheiro das almas desse mundo. De permeio, analisa recentes tentativas de ficcionalizar o evento da garçonnière onde o álbum foi produzido.

Palavras-chave:
Antropofagia; Oswald de Andrade; O perfeito cozinheiro das almas desse mundo

Abstract

This paper seeks to find a precedent for the complex anthropological-philosophical vision of Oswald de Andrade's ritual anthropophagy, based on the textual and graphic experiments present in O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. At the same time, the paper analyzes recent attempts to fictionalize the events at the garçonniere where the album was produced.

Keywords:
Anthropophagy; Oswald de Andrade; O perfeito cozinheiro das almas desse mundo.

Résumé

Le texte recherche un précédent à la vision anthropologique et philosophique complexe de l'anthropophagie rituelle d'Oswald de Andrade, et ce, à partir des expériences textuelles et graphiques présentes dans O Perfeito Cozinheiro das Almas deste mundo. Entre les deux, il analyse les tentatives récentes de fictionnalisation de la garçonnière où a été produit l’album.

Mots-clés:
Anthropophagie; Oswald de Andrade; O perfeito cozinheiro das almas desse mundo.

Assim como pôde existir a “musa dialógica da pré-história textual oswaldiana” - que Haroldo de Campos tomou como a autora em filigrana do famoso álbum semioticamente diagramado há pouco mais de 100 anos - e seguindo essa dica em seu texto de 1982 (CAMPOS, 1992CAMPOS, Haroldo de. Réquiem para miss Cíclone, musa dialógica da pré-história textual oswaldiana. In: ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ed. Globo , 1992. p. XIII-XXIII. (Obras completas de Oswald de Andrade).), proponho pensar este inaugural “não-livro” também como a proto-performance1 1 Richard Schechner define “proto-performance” como aquele estágio do “aquecimento” ou preparação para uma performance. Falando mais amplamente, cada ato que fazemos, por menos que seja, requer sempre sua preparação, como a própria palavra expressa (SCHECHNER, 2006, p. 225). da Antropofagia, deflagrada após 10 anos da data de confecção do álbum e cujos desdobramentos cobraram mais uns 20 anos de insistência no tema por parte de Oswald de Andrade.

Aqui não quero sugerir aquilo que a intuição certeira de Haroldo e a recuperação também sagaz de Isis Rost (neste volume) assinalaram, ou seja, a importância da musa da garçonière, Deisi, Miss Cyclone ou Graça Lohe. A grande ghost-writer (CAMPOS, 1982) do Perfeito Cozinheiro é também quem traça os rumos que levarão Oswald, anos mais tarde, a reconsiderar sua precedência essencial na construção do que depois viria a ser a Filosofia Antropofágica (Antropotrágica também, neste caso). Esse caminho de considerações já possui suas vozes necessárias.

Tampouco posso reivindicar originalidade no raciocínio, mas, evocando mais uma vez o texto de 1982 de Haroldo de Campos, concordo plenamente com seu arremate, no qual afirma: “O que nos interessa (e fascina) nesse livro passado é recapturar nele a figuração do futuro” (CAMPOS, 1992CAMPOS, Haroldo de. Réquiem para miss Cíclone, musa dialógica da pré-história textual oswaldiana. In: ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ed. Globo , 1992. p. XIII-XXIII. (Obras completas de Oswald de Andrade)., p. 22). A propósito disso, em nota ao seu ensaio e como sugestão geral, Haroldo alude às proximidades possíveis entre este álbum coletivo e outros eventos posteriores de mesmo viés - sempre com o concurso feminino - como “O Romance da Época Anarquista”, com Pagu.

Houve uma outra garçonière, frequentada pelos Modernistas de facto, os dois Andrades e as artistas do movimento - mas que não rendeu tal “livro de contas”. E essas práticas discursivas, ao mesmo tempo fragmentárias e autobiográficas, atravessam a obra inteira de Oswald. Parece possível armar um arame de signos que vão conectando o Perfeito Cozinheiro a outros feitos, tais como o próprio Manifesto antropófago, o já mencionado “Livro das horas de Pagu que são minhas”, Um homem sem profissão, Serafim Ponte Grande, suas não-peças de teatro e, finalmente, a tão mal falada - e tão ignorada - tese sobre a Crise da Filosofia Messiânica e todos os demais escritos que ora assomam à volta do finalmente publicado Diário Confessional (ANDRADE, 2022ANDRADE, Oswald de. Diário confessional. Organização de Manuel da Costa Pinto. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.).

Tentarei buscar esse rastro e fazer aqui o relato do que, modestamente, pude encontrar. Mas essa não é tarefa que se resolva em um pequeno ensaio, daí o “breve” do título. Que não me acusem de pretensão. Mas o aroma vindo do preparo da comida que pula me parece já estar na(s) mão(s) do Cozinheiro.

Aliás, a ideia de uma autoria coletiva casa muito bem com o esforço da Antropofagia, como proposta que é, de pelo menos reconsiderar o sentido “tribal” da vida na sociedade moderna, o sentido de ser um “bárbaro tecnizado”. Isso se vê nas duas “dentições” da revista em que é possível reencontrar o “abuso em blague” (Cristina Fonseca, a propósito de Juó Bananére) (FONSECA, 2001FONSECA, Cristina. Juó Bananere - o abuso em blague. São Paulo: ed. 34, 2001.) recorrente nos textos anônimos ou por pseudônimos do Moquém e de outras seções do jornal. Em O Homem do Povo, o breve periódico-pasquim mantido por Oswald com Pagu, o modo de escrita reincide em tom de esquerda militante, nunca submetido ao falatório meramente político da vertente sério-marxista. Muito ao contrário, et pour cause, deste jornal até o Diário Confessional, do puramente pessoal ao texto compartilhado, encontramos o Oswald de 18 a 54, fazendo-se constante crítico severo de si mesmo, um ironista, um gozador de seu infortúnio e um contínuo afirmador do devir ontológico que sempre defendeu: a devoração.

Signo dos signos em Oswald, a “devoração” é uma categoria de compreensão do mundo, portanto filosófica e semiótica. Faz parte da Fenomenologia (na acepção que lhe dá Charles Sanders Peirce) Oswaldiana, é o diagrama inaugural das relações, é aquilo que se traduz, no nível da terceiridade, em seu argumento fundante: a devoração, para Oswald, é o nexo entre as existências e, portanto, talvez, senão seu interpretante final (ainda peirceanamente) pelo menos a dinâmica essencial da própria vida.

Diria eu então que a Antropofagia estava em vista desde o descompromissado ajuntamento que é este álbum coletivo e segue se aperfeiçoando ao longo de toda a obra do nosso poeta.

Cardápios e receitas

Não deixa de ser curioso e digno de assinalar que a fórmula do álbum tenha sido imaginada por um seu inaugurador, Pedro Rodrigues de Almeida. Mário da Silva Brito explicou: foi “literato raté que acabou delegado de carreira, espírito perfeito de académicien escrevendo o médio do bom gosto” (BRITO, 1992BRITO, Mário da Silva. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. In: ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ed. Globo , 1992. p. VII-XII. (Obras completas de Oswald de Andrade)., p. VIII). Seu pseudônimo é João de Barros. O primeiro texto, o de apresentação, é um menu com entradas, prato principal e sobremesa, ao gosto francês. Mas já está presente também a lógica do cardápio (repetida algumas vezes, literalmente na página 86), e suas semelhantes como a receita médica e a bula de remédio. É esse mesmo João de Barros que se esmera retoricamente a fazer diagnósticos - verdadeiras etiologias - sobre uma idealização do feminino que, entretanto, mantém como dado da realidade sobre o qual sempre quer opinar. A mulher é isso ou aquilo, matéria e espírito. Enquanto desfila essas bobagens, Miramar e Cyclone desfilam suas trocas de ironias, seus desafios.

João de Barros é o tardo-romântico embalado na ideia “hygienista”. Chico Ventania, nessas primeiras páginas, assim como Ferrignac, seu outro apelido, tenta expressar em forma sintética, ao estilo de Miramar, o alcance do reinado de Cyclone. Mas é visível que o grande embate - e, portanto, o grande amor que ali está implicado - é o que envolve Cyclone e Miramar. E esse embate se dá em um torneio de trocadilhos, numa disputa poética que encontra os seus melhores contendores. Oswald só se deparará com “wit” poético semelhante muitos anos mais tarde, com Pagu. Deisi e Pagu são, assim, as duas figuras poéticas que alcançam e muitas vezes ultrapassam o voo Oswaldiano.

Torneio trocadilhesco, jogos de amor e a neve sobre São Paulo

Já a partir da página 18 o texto evolui para a paródia em tom de romance melodramático cujo modelo servirá, mais tarde, ao próprio Oswald para o seu Os condenados (1922). Na troca de mensagens dessa espécie de protótipo de rede social - guardadas todas as diferenças - postam constantemente Miramar, Cyclone, J de Barros, Ferrignac, Lobato e os demais. Trata-se de uma competição de clichês (os mais sagazes me parecem ser os de Cyclone, se descontarmos que alguns podem ter sido “ditados” ou “forjados” em nome dela) na tentativa de assinalar o quanto e a qual velocidade aqueles jovens protomodernistas enterravam o simbolismo anterior ainda reinante. O escárnio de uma estética decadente se dava por meio da constante ironia e pela cifra de duplos sentidos amorosos e jocosos. As cenas hilariantes se sucedem. Por exemplo:

Meus amigos, até a volta. A vida é boa. Viva a saudade! J. Barros Amanhã eu volto. J.B. Não chorem J.B. Último pensamento: A vida é como o disco comprado pelo Pedro: bem intencionada e mal comprehendida; João de Barros. …mal tocada, quer você dizer M. No entanto, outra coisa era a vida, ha pouco, para o Pedro - a gondola de vime, sem en- costo. Ao que a Cyclone observou que o Lobato não é besta - senta de atravessado na vida. Prolongando um trocadilho: Coração de Pedro, coração de pedra, coração de padre. M. Bis-Ultimo pensamento: O meu disco é uma péssima musica tocada por um grande artista; o amor é, a maior parte das vezes, uma grande músi- ca, tocada por um pessimo artista. Não lhe sabe este dar expressão e relevo, apezar de sua immensa belleza, como não consegue o outro corrigir os defeitos da composição falsa e apagada. João de Barros Se isso e piada comigo, fique sabendo que já toquei a Pathetica de Beethoven numa sanfona M E eu já executei Wagner no pente. De quem? (M.) J.B. É o que vale ser cégo de orchestra. M. PS: dos ultimos pensamentos: Não façamos piada, eu parto para Itaporanga: fique o meu disco de violoncello sendo a unica voz humana deste recinto. Adeus. É com pezar que os deixo, mas o dever me prova de os ver por mais tem- po (sem trocadilho). Adeus e muita saudade, acreditem. João de Barros. (ANDRADE, 1992ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ed. Globo, 1992. (Obras completas de Oswald de Andrade)., p. 19-20).

Exemplos como os vistos acima são constantes, vale a leitura direta, que é muito mais prazerosa. Indicam uma flutuação entre ficção e fatos que chama a atenção para os diferentes registros. João de Barros - que, como sabemos, é o escritor tornado delegado - se esforça, se esmera enquanto Miramar o espinafra sem conseguir resistir à piada constante. João lamenta. Todos amam Cyclone e têm ciúme, mas a comédia inteira é desconstruída durante a própria narrativa.

Teria sido esse flutuar que motivou um aficionado por essa história a descobrir que o apartamento onde “morou” a famosa garçonière ainda existia em 2015, descrito em minuciosa reportagem.2 2 Disponível em: https://arte.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/12/20/oswald-de-andrade/. Acesso em: 13 maio 2023. O aficionado foi José Roberto Walker, autor de uma espécie de “recognição” - eu diria um negativo em preto e branco - do álbum de que falamos aqui. Refiro-me a seu livro Neve na manhã de São Paulo (WALKER, 2017WALKER, José Roberto. Neve na manhã de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras , 2017.), uma espécie estranha de retro-ficção na qual, baseando-se no pretexto oferecido por uma situação climática inusitada na cidade de São Paulo em junho de 1918 (GERAQUE, 2016GERAQUE, Eduardo. SP teve 'neve de mentira' em manhã fria de 1918; caso virou folclore local. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 jun. 2016. ), o autor reimagina a garçonière e toda a história que envolveu Oswald e Deisi até seu trágico desfecho. O dia de provável neve na cidade é importante porque teria sido a ocasião de um encontro amoroso do casal naquele apartamento, debaixo do frio cortante, já que o lugar era despossuído de calefação. Deisi sofria de tuberculose crônica. A narrativa de Walker imagina que seria essa uma possível ocasião de gestação do filho que depois ocasiona sua morte de parto e o casamento in extremis. O tom de crônica mundana se acentua na medida em que Walker assume a persona de Pedro, o autor que, sob o pseudônimo de João de Barros, produz o cardápio de introdução do Perfeito Cozinheiro.

Baseando-se no próprio álbum, em Os Condenados e Um homem sem profissão, além das pesquisas que fez, Walker - que é publicitário e conhecedor da São Paulo de inícios do século,3 3 Disponível em: https://www.joserobertowalker.com.br/sobre /. Acesso em: 13 maio 2023. desdobra, em seu curioso “romance” de tom confessadamente nostálgico, o que seria uma espécie de “docudrama” do Perfeito Cozinheiro. Como delegado de polícia e escritor anacrônico, o personagem descreve situações como a que acabei de citar nas passagens do álbum do ponto de vista de Pedro, melhor amigo de Oswald. Obrigado a assumir o cargo, conquistado por concurso, em Tatuí, suas viagens frequentes espalham-se ao longo da narrativa. O tom da “ficção” “documenta” as situações, numa abordagem “teleteatral”, por assim dizer. Segue a pequena narrativa do primeiro encontro de Oswald e Deisi no apartamento, para o qual, a pedido do próprio Oswald, Pedro, o melhor amigo, deveria comparecer, a fim de manter a decência:

De todos nós, a única que parecia à vontade era ela. Oswaldo, um pouco sem jeito e muito contrariado por ter que dividir o seu tão esperado encontro romântico comigo; e eu, por estar naquela situação de tia velha que acompanha um casal de namorados. Daisy, no entanto, não fazia caso de nada disso e, logo que entramos na garçonnière, foi vasculhando os discos espalhados em ordem sobre os móveis e rapidamente pôs um deles na fonola e nós ouvimos: It’s a long way to Tipperary (WALKER, 2017WALKER, José Roberto. Neve na manhã de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras , 2017., p. 132).

A narrativa de Walker reconstrói-se também a partir do que Oswald narra em Um homem sem profissão, tentando abarcar uma amizade entre Pedro e Oswald que teria começado na escola e prosseguido por seu episódio da viagem a Paris, o encontro com Kamiá, seu pai, a morte de sua mãe, enfim, todo o enredo já descrito pelo próprio Oswald, além de então sugerir, ficcionalmente, um ponto de vista de alguém que pudesse ter testemunhado intimidades que superariam o que as memórias do poeta paulistano contam.

No começo de seu texto, o narrador em primeira pessoa se apresenta: “Eu me lembro. Eu me lembro de tudo. Vivo num mundo de lembranças” (WALKER, 2017WALKER, José Roberto. Neve na manhã de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras , 2017., p. 5). O discurso do personagem dá lugar, no final do livro, a uma cuidadosa anotação, em uma parte intitulada “Sobre este livro”. Walker, ele mesmo:

Este é um romance de não ficção. A realidade dos acontecimentos e as ideias do autor se cruzam incessantemente e muito do que vem neste livro foi obtido nos arquivos e registros deixados por seus protagonistas. Apenas Pedro, o narrador, é resultado da fusão de vários frequentadores da garçonnière e recebeu um tratamento ficcional (WALKER, 2017WALKER, José Roberto. Neve na manhã de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras , 2017., p. 312).

Considero no mínimo curiosa a identificação de Walker com o personagem que “perde” constantemente (a começar por não conseguir acompanhar o seu amigo na carreira de escritor) para, desse ponto de vista, observar o ambiente que, fotografado e registrado pelos jornais do início do século vinte e um, recuperam uma proto-história - fisicamente ainda existente - daquele lugar onde começa a aventura antropófaga antes mesmo de existir (GIRON, 2015GIRON, Luís A. Laboratório Modernista. Folha de São Paulo, São Paulo, 20 dez. 2015.; GONÇALVES, 2015GONÇALVES, Marcos A. Na era do Modernismo plantation. Folha de São Paulo, São Paulo, 20 dez. 2015.). Como vimos no começo, quando citei Mário da Silva Brito, houve um Pedro, que sob o pseudônimo de João de Barros, redige o Cardápio inicial. E esse Pedro, de fato, fez concurso para delegado de Polícia e teve de assumir seu posto em Tatuí.

Os frequentadores da garçonnière eram jovens reacionários de elite, por assim dizer. Convém lembrar que tudo se passa um ano após o infame artigo de Monteiro Lobato sobre Anita Malfatti.

Os projetos de devoração testemunham a participação tanto de um Lobato quanto de um Pedro /João de Barros que, na página seguinte ao trecho citado acima, em outro “post”, escreve: “Que grande alma o Miramar! Que encanto, a Daisy! Que paradoxo o João de Barros! Como os tres são bons! Como os tres se quérem!” (ANDRADE, 1992ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ed. Globo, 1992. (Obras completas de Oswald de Andrade)., p. 21).

“Quem come quem?”

A passagem do livro de Walker que citei acima é o início do romance de Daisy com Oswald, quando, segundo o narrador, ele ainda precisava que alguém ficasse por perto para acompanhar o playboy e a normalista nos momentos iniciais. Na narrativa, esse papel é exercido depois por um outro membro dos frequentadores e o expediente serve para introduzir a situação daquilo que Deisi chamará de “covil dos gravatas”:

Quando entrei pela primeira vez no Covil dos Gravatas, sabia que a partir daquele momento a minha vida passaria a ser somente minha; que eu estava pela primeira vez, e para sempre, me separando da minha existência anterior, da minha família e de tudo aquilo que eles queriam que eu fosse e que eu não queria ser. Era a minha vida, a minha vida verdadeira, aquela que me pertencia exclusivamente, que começava - ela me disse, muito séria, numa tarde em que a acompanhei no bonde muito tempo depois (WALKER, 2017WALKER, José Roberto. Neve na manhã de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras , 2017., p. 137).

Assumindo o discurso indireto de Daisi, Walker/Pedro aproveita para registrar o outro, o que poderia ter se convertido no texto que Oswald lamentará ter perdido durante as suas mudanças, anos mais tarde.4 4 Há, porém, adverte-nos Isis Rost, um outro “diário” que certamente não é o material que Oswald lamenta ter perdido em suas mudanças. Rost vale-se de informação sugerida por Maria Augusta Fonseca: “Diário de Miss Cyclone / Oswald e Cyclone’, entre aspas ‘Dazinha Astinha’. Iniciado a 18 de agosto” (FONSECA, 1990, p. 89 apudROST, 2022, p. 5). E também, dessa forma, garante a postura pioneira da “musa dialógica”.

Os meses se passam. Os personagens se multiplicam no Perfeito Cozinheiro. Já na página 100, Garôa, nova possibilidade de Miramar/Oswald, é citado no momento em que se alude ao pretexto do livro de 100 anos depois, o de Walker:

Garôa chegou de chapeu trocado e ar esbugalhado Nova aventura. Vivi Como é? Nove na banca!pra longe o baccará Garôa Como é Neve lá fora! p’ra longe o agouro! V Como é? Nevoa cá dentro! p’ra longe…. a viuva! V De Jeroly - Nevoa cá longe - pra dentro a viuva. Da Cyclone - Nevoa lá longe - pra cá a dita. Do Viruta - Eu dentro da viuva!!! G (...) Você comem a viuva? De facto, Virutinha, papamos a viuva. Tu papaste… as virgulas. V. (ANDRADE, 1992ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ed. Globo, 1992. (Obras completas de Oswald de Andrade)., p. 100-101).

Na página 102 estampa-se uma carta datada de 16 de julho remetida de “Tatuhy” por “Pedrinho”, pedindo notícias de todos e de Daisy, reclamando do frio e da falta de sol. E Pedro de Walker nos conta que sentia falta dos encontros na garçonnière e das visitas a uma certa viúva.

Ao longo das páginas do Cozinheiro os motes da comida e da fome vão e vêm. Página 117: “com fome; como uma maçã. Mas /cupidinho rompe n’um pranto immenso…”, depois de uma série anterior alusiva a Adão e Eva e ao Cupido, tudo regado a duplos e triplos sentidos. Mais adiante na mesma página, assinado por “Bengala”, lê-se “Miramar e Cyclone em idylio pathetico de bonne/digestion, condimentado a balas de chocolate”, e adiante, “Só agora comprehendo que o Miramar ama á / prestações… com sorteios bi-semanaes Cyclone”. Vaz e Lina, nome seguinte, depois assinando Viruta, sugere: “Charada velhissima:/Agarra e come - 2-2- conceito/ Homem do dia./ Dec. Ferrinhact C./ Viruta Y Cyclone ou c.nc. O VÇe na Hespana 2-1-. É um dos raros… pelo Viruta a Cyclone” e na página 121 confessa o mesmo convertido em “Virucyclo”: “La vita senza Cyclone non vale nulla…” (ANDRADE, 1992ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ed. Globo, 1992. (Obras completas de Oswald de Andrade)., p. 117-21).

Quem dá o título ao álbum contesta-o depois. O texto evolui ao sabor dos trocadilhos e até do meta-trocadilho, nos trechos em que discute o “calembur”. E, como convém, mais perto do fim, seu iniciador, João de Barros, diz que não colabora mais com o “Cozinheiro”:

Não collabóro mais no Perfeito Cosinheiro. Só encontro receitas indigéstas, o meu regimen culinario é mais sobrio. É incrível! tanto adubo extranho para gente de hospital, que já não tem nem estomago, nem figado! Tomem caldos de gallinha, vamos, patifes! J. de Barros (...) Cyclone em Cravinhos! Eu encravado em Tatuhy! JB (ANDRADE, 1992ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ed. Globo, 1992. (Obras completas de Oswald de Andrade)., p. 188).

Como sabemos, Cravinhos é o exílio e também a localização final do mal terrível que consumirá Dasy. O tempo avança, um almoço em homenagem a Lobato finalmente se realiza (“-Lobato, foste o cordeirinho pascal dessa farra de quaresma!”) e da página 195 em diante se contam as peripécias interioranas de um certo evento ao qual Oswald comparecera para permanecer próximo da Cyclone, no interior. Uma prosa fluida e antecipadora até o Acta est fabula da página 200, ao qual Cyclone acrescenta “E tanta vida, bem vivida, se acabou”. Segue-se a carta de Gracia Lohe pedindo as prendas da Garconnière e o obituário do jornal do 25 de agosto de 1919, dando conta do falecimento de D. Maria de Lourdes Castro de Andrade.

Disse depois Oswald que o homem vive dividido entre duas forças: o amor, onde ganha, e a morte, onde perde. Por isso e por tudo o que perpassa o Perfeito Cozinheiro - cujo nome não mudou - e cujos roteiros (roteiros, roteiros) verteram frutos, é possível afirmar que esse texto profetiza os demais de Oswald, incluindo sua filosofia antropófaga.

Terminando por onde Walker começa, os anos 1950, concluo que ele é um diagrama possível de tudo o que viria na vida do Oswald que paga o tributo dessa múltipla autoria (Deisi, Guy, Rao, Ferrignac e todos os demais) construindo sua obra polifônica em tudo devedora desse ponto de partida multivocal, esse álbum de vozes que somente foi resgatado como fábula dramática pelo folhetim de Walker, mas que merece ser lido por muito mais dos seus milhares de ângulos.

Referências

  • ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo São Paulo: Ed. Globo, 1992. (Obras completas de Oswald de Andrade).
  • ANDRADE, Oswald de. Diário confessional Organização de Manuel da Costa Pinto. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
  • BRITO, Mário da Silva. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. In: ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo São Paulo: Ed. Globo , 1992. p. VII-XII. (Obras completas de Oswald de Andrade).
  • CAMPOS, Haroldo de. Réquiem para miss Cíclone, musa dialógica da pré-história textual oswaldiana. In: ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo São Paulo: Ed. Globo , 1992. p. XIII-XXIII. (Obras completas de Oswald de Andrade).
  • FONSECA, Cristina. Juó Bananere - o abuso em blague São Paulo: ed. 34, 2001.
  • GERAQUE, Eduardo. SP teve 'neve de mentira' em manhã fria de 1918; caso virou folclore local. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 jun. 2016.
  • GIRON, Luís A. Laboratório Modernista. Folha de São Paulo, São Paulo, 20 dez. 2015.
  • GONÇALVES, Marcos A. Na era do Modernismo plantation Folha de São Paulo, São Paulo, 20 dez. 2015.
  • ROST, Isis. “Rastros do Modernismo n’ ‘O perfeito cozinheiro das almas deste mundo’”. Rio de Janeiro, 2022 (texto inédito).
  • SCHECHNER, Richard. Performance studies 2. ed. New York: Routledge, 2006.
  • WALKER, José Roberto. Neve na manhã de São Paulo São Paulo: Companhia das Letras , 2017.
  • 1
    Richard Schechner define “proto-performance” como aquele estágio do “aquecimento” ou preparação para uma performance. Falando mais amplamente, cada ato que fazemos, por menos que seja, requer sempre sua preparação, como a própria palavra expressa (SCHECHNER, 2006SCHECHNER, Richard. Performance studies. 2. ed. New York: Routledge, 2006., p. 225).
  • 2
  • 3
    Disponível em: https://www.joserobertowalker.com.br/sobre /. Acesso em: 13 maio 2023.
  • 4
    Há, porém, adverte-nos Isis Rost, um outro “diário” que certamente não é o material que Oswald lamenta ter perdido em suas mudanças. Rost vale-se de informação sugerida por Maria Augusta Fonseca: “Diário de Miss Cyclone / Oswald e Cyclone’, entre aspas ‘Dazinha Astinha’. Iniciado a 18 de agosto” (FONSECA, 1990FONSECA, Cristina. Juó Bananere - o abuso em blague. São Paulo: ed. 34, 2001., p. 89 apudROST, 2022ROST, Isis. “Rastros do Modernismo n’ ‘O perfeito cozinheiro das almas deste mundo’”. Rio de Janeiro, 2022 (texto inédito)., p. 5).
  • Parecer dos Editores Convidados

    Ana Luiza Fernandes e João Queiroz, acolhemos os pareceres recebidos e recomendamos o texto para publicação. O autor atribui ao Perfeito cozinheiro um papel categorial, ontológico-semiótico primitivo, de natureza icônica, que se "aperfeiçoa" ao longo da obra de Oswald de Andrade. Em sua abordagem, a "devoração" é um ícone, metassemiótico, de relações. Ele atua como um "diagrama inaugural" da relação ("quem come quem?") devorador-devorado. Associado, por C.S.Peirce, às formas criativas de pensamento ["O raciocínio diagramático é o único tipo realmente fértil de raciocínio", Peirce (1903)], o diagrama é um ícone especial. Ele possui um interpretante simbólico, que tem a natureza de uma lei, e que regula a relação entre as partes do signo, um análogo da estrutura de seu objeto, que para o autor do ensaio, é o "nexo entre as existências". A devoração (“signo dos signos”) distribui-se, metasemioticamente, como uma trajetória pela obra (e vida) de Oswald, como seu interpretante final.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2023
  • Aceito
    15 Ago 2023
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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