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A Amazônia judaica de Moacyr Scliar: a palavra alheia como afirmação da não-coincidência do outro em si

RESUMO

A partir de dois romances de Moacyr Scliar, Cenas da vida minúscula e A Majestade do Xingu, podemos propor um percurso de risco e reconhecimento da palavra alheia em permanente trânsito, para uma suposta afirmação do imaginário judaico tendo a região amazônica como cenário do percurso de enredos altamente inventivos do autor gaúcho. Em ambos os romances, há vozes orquestradoras e poderosas capazes de produzir linhas sinuosas de escavações dialógicas e que se remetem a produzir várias possibilidades de afirmação da voz do outro assimilada, por meio da evocação da própria força projetiva do processo de devoração do veio literário proposto. A compreensão da assimilação da palavra alheia torna-se instrumento essencial para entrar em contato com a complexidade de formação e fundação de tantas etnias que se cruzaram em terras brasileiras.

PALAVRAS-CHAVE:
Expressão amazônica; Expressão judaica; O outro no regionalismo brasileiro

ABSTRACT

By analyzing two of Moacyr Scliar’s novels, Cenas da vida minúscula [Scenes of a Minuscule Life] and A Majestade do Xingu [Xingu’s Magesty], this paper proposes a trajectory of risk and acknowledgment of the word of the other in permanent transit, for possibly affirming the Jewish imaginary, with the Amazon as background for highly inventive plots by the “gaucho” (from Rio Grande do Sul) writer. In both novels, there are powerful orchestrating voices, capable of producing labyrinthine dialogical excavations.1 Such voices refer to the production of several possibilities of affirming the assimilated voice of the other, evoking the projective force of devouring the literary perspective proposed. Understanding the assimilation of the word of the other becomes an essential instrument to contact the complexity of the formation and foundation of many ethnicities that intersected in Brazil.

KEYWORDS:
Amazonian expression; Jewish expression; The other in Brazilian regionalism

As letras amazônicas brasileiras contam com um rol de escritores que não necessariamente nasceram na região. Por se tratar de uma planície de difícil penetração humana colonial europeia, tornou-se uma espécie de desafio imaginário para tantos olhares curiosos, sejam os que desbravaram suas selvas, sejam aqueles que intelectualmente procuraram domesticá-la com a força alegórica das palavras. Entre alguns notórios ficcionistas que nunca chegaram a conhecer presencialmente a região encontram-se Jules Verne (A jangada), Conan Doyle (O mundo perdido), Gastão Cruls (Amazônia misteriosa)1 1 Gastão Cruls depois se “compadeceu” de ter escrito um romance sem pé nenhum na realidade e participou de uma expedição do Marechal Rondon, publicando um diário de viagem intitulado “A Amazônia que eu vi”. e Evelyn Waugh (Um punhado de pó). Esse fenômeno se explica pela enorme quantidade de relatos deixados desde o século XVI, a partir do frei dominicano Gaspar de Carvajal, que acompanhou a primeira expedição ao chamado rio das “Amazonas”. Esses relatos promoveram a ideia de um mundo misterioso que oscila entre o paraíso das riquezas naturais e o inferno da selva, com suas doenças tropicais, insetos incômodos, nativos agressivos, fome e ambientes labirínticos.

Sendo assim, poderíamos nos aventurar a dizer que a Amazônia foi inaugurada literariamente pelos relatos e olhares de espanto de tantos viajantes que tentaram apreendê-la discursivamente ao longo dos séculos com o auxílio de uma imaginação deslumbrada. Esse assombro diante do inesperado é algo que se mantém no século XXI. Ainda é possível entrarmos em contato com livros ou documentos que espelham essa persistência de buscar o inusitado a qualquer custo entre nós. A Amazônia se tornou um objeto de linguagem extremamente plástico, com as mais diferentes intenções pragmáticas e ideológicas. No mundo inteiro, surgem especialistas ávidos a dar palpites em relação ao grande vale verde, mesmo sem nunca terem colocado os pés na região. Por um lado, o perigo que representa a ação humana predatória, ameaçando o ecossistema do planeta; por outro, aqueles que veem o interesse estrangeiro sobre a região como um insistente sinal de avidez imperialista econômica; ou mais, por meio de um viés desenvolvimentista, podem vê-la como um espaço para se explorar as riquezas minerais em prol da nação. Em todas essas vertentes, sobram evidências de que a região estará sempre aberta a novas especulações imaginárias de toda ordem, pois a Amazônia, esse mundo vasto de surpresas ao olhar ainda insistentemente curioso, parece se comportar da mesma maneira desde que os primeiros desbravadores europeus se encontraram por aqui. E não se pode falar de Amazônia sem levar em conta a colisão entre tantas formas de comportamentos e olhares diferentes diante de uma espécie de “objeto enigma”.

No Brasil, também não são poucos os nomes de escritores de outras regiões do país, ou até mesmo de Portugal, que escreveram sobre a grande planície verde e humana; alguns se radicaram aqui, outros não: Alberto Rangel, Ferreira de Castro, Peregrino Júnior, José Potiguara, Antônio Callado, Darci Ribeiro, entre os mais conhecidos. De meados do século XX para cá, alguns nomes de escritores nascidos na região acabaram se projetando nacionalmente e provaram ser possível um diálogo com esferas mais profundas na investigação da alma humana ou das entranhas complexas da nossa formação étnica, econômica e política, em que se destacam Dalcídio Jurandir, Benedito Monteiro, Márcio Souza e Milton Hatoum2 2 Márcio Souza e Milton Hatoum mostraram que o escritor amazônico não apenas pode se projetar nacional e internacionalmente, como também é capaz de se tornar profissional das letras sem precisar exercer atividades paralelas desgastantes. . Com certeza, temos um amplo espectro de forças a ser medido ainda, mas os fundamentos estão lançados e os pesquisadores das letras regionais e nacionais encontrarão grande prado de possibilidades imagéticas em torno das produções contemporâneas. Por outro lado, o fundamental é notarmos o diálogo radical entre o hoje e o ontem, ou a maneira como as raízes coloniais se deitaram na Amazônia, e como isso repercute, ou repercutiu, de uma forma ou de outra nas letras locais.

Infelizmente, há cerca de vinte e cinco anos, quando iniciei minhas pesquisas sobre a literatura de expressão amazônica, não conhecia mais profundamente a obra de Moacyr Scliar (1937-2011); autor gaúcho, médico sanitarista de profissão, de raízes judaicas asquenazes, que produziu vasta e consagrada obra ficcional ao longo de uma vida. Dois de seus romances, Cenas da vida minúscula (1991) e A Majestade do Xingu (1997), têm suas problemáticas de enredo claramente localizadas na região amazônica. Em 2000, sairia Entre Moisés e Macunaíma: os judeus que descobriram o Brasil, obra que Moacyr Scliar produziria junto a Márcio Souza, escritor amazonense de raízes judaicas sefaraditas. Ambos vão descrever suas trajetórias como escritores e como devedores das raízes hebraicas em nosso país. Porém, acredito, não foi apenas o fato de ambos terem ascendência étnica comum que os fez escreverem esse livro, mas de, entre eles, encontrarmos a região amazônica como espaço de trânsito e atração por excelência entre os dois extremos do país que eles ocupavam. Um em Porto Alegre e o outro em Manaus.

O sentimento de itinerância judaica é fator determinante para que possamos falar de uma escrita de peculiaridades próximas, tanto do próprio escritor que nasceu judeu, como daquele que se identifica na maturidade, como foi o caso de Márcio Souza, com a busca de uma herança imaginária mais profunda desse sentimento de trânsito. O livro Entre Moisés e Macunaíma é um forte testemunho ensaístico literário desse processo de assimilação de marcas possíveis. Moacyr Scliar nos diz logo no início “que nunca rejeitei. Não poderia ter rejeitado, ainda que quisesse. O judaísmo é uma marca indissolúvel” (SCLIAR; SOUZA, 2000, p.25SCLIAR, M., SOUZA, M. Entre Moisés e Macunaíma: os judeus que descobriram o Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2000.). Lidar com as contradições que movem o sujeito errante em um país altamente assimilador como o Brasil torna-se, talvez, o grande mote e desafio para um escritor judeu entre nós. Esse tipo de problemática jamais seria sentida por escritores judeus americanos, como Philip Roth, Saul Bellow ou Woody Allen, por exemplo. No caso, o processo de assimilação é completamente distinto do nosso, já que não há um “risco” grande de eles se transformarem em cristãos. Em todo caso, mesmo o agnosticismo não apagaria as marcas hebraicas em suas personalidades ou escrita. Moacyr Scliar, mais que qualquer outro na literatura brasileira, soube explorar bem esse filão e sua obra permanece como tema de estudo por conta principalmente desse aspecto.

Não nos é difícil perceber que a questão da alteridade radical está em curso na fabricação das tramas e enredos que envolvem o processo de investigação das raízes judaicas do Brasil nos escritores. Temos uma clara disputa de espaços imaginários, por conta da herança étnica trazida de milênios por povos obrigados a transitar de um ponto a outro do planeta. Por outro lado, temos um esteio de atração que torna todas as formas díspares moldáveis a uma situação apaziguadora de unidade cultural e nacional luso-nativo-africana. No Brasil, as formas tortuosas que nos tangenciam também nos convidam a sonhar com convergências e riscos de permanência. A palavra escrita dos viajantes é mais que documento entre nós; ela é o testemunho de uma estética possível, por meio de um perfil que produz estilhaços de dinâmicas de significação num areal pantanoso de possibilidades sígnicas afirmativas entre possuir o olhar exógeno sobre o objeto moldável ou, então, ser o objeto plástico ativo na sua confluência de trânsitos. Não nos é difícil imaginar o que moveu um escritor tão inventivo como Moacyr Scliar, pois desde criança viveu na pele as condições contraditórias afirmativas de ser alguém que ele é e, ao mesmo tempo, se ver obrigado a enfrentar em solo hostil às ramificações originais. Um escritor como Márcio Souza, que apenas na idade adulta descobre a sua ligação com a ascendência hebraica, a identificação, mesmo que anacrônica, não pode negar quem ele é a partir dali ou o que ele sempre foi: um sujeito que pede passagem pelos trânsitos identitários tal como se navegasse pelos rios caudalosos e labirínticos da Amazônia. Como já foi percebido em sua obra, numa certa altura, “o ser judeu é remexido e reencontrado de maneiras desconcertantes pela sua pena ensaística” (CARVALHO, 2022, p.230CARVALHO, J. C. Márcio Souza e o judaísmo: a questão das nomenclaturas étnicas na literatura brasileira. Memorial e outros textos. Rio de Janeiro: Cultura em Movimento, 2022. p.222-244.). A escrita de ambos estará encharcada de evidências nesse sentido. Não há como fugir do ser que flutua entre significantes3 3 O deslizar metonímico proposto pelo olhar lacaniano só se dá pelos significantes que pedem um significado que nunca se sustenta inteiramente pelo tampão metafórico, exigindo outro salto ao abismo da não significação (VALLEJO; MAGALHÃES, 1981, p.93-97). que se estilhaçam para produzir novas itinerâncias, seja nos pampas, seja nas amazônias.

A questão a ser levantada aqui é: a quem pertence a palavra alheia em naufrágio sígnico? Esse é um dos grandes motes dos enredos dos romances de Moacyr Scliar a serem analisados neste artigo. Uma estudiosa de Bakhtin, explorando os aspectos pertinentes de pertencimento da “palavra alheia” como fundamentos da afirmação de uma consciência dialógica, diz-nos que

não é apenas a não-coincidência com o outro, contrária à fusão/identificação. Se a função da palavra alheia é dar sentido ao que carece de sentido para ser sujeito, seu destino é ser apropriada e monologizar-se, para se tornar de novo alheia, constituindo o sujeito em “outro do outro”, em outro de si próprio e em outro das vozes-sujeitos que circulam em seu discurso consciência monologizada. Mas não seria a própria linguagem a autora dessa infinita sucessão de deslocamentos? (LEMOS, 1994, p.42-43LEMOS, C. T. G. A função e o destino da palavra alheia. In: BARROS, D. L. P.; FIORIN, J. L. Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo: Edusp, 1994. p.37-43.).

É muito pertinente que se pense o olhar do outro como um objeto absorvível e em trânsito, pois essa problemática é o cerne de tudo que vai ser desenvolvido a partir das questões de alteridade que atravessam o autor judeu em um país tão assimilador como o Brasil. Não estamos tratando o judaísmo como mais uma religião, entre tantas que chegaram aos “trópicos tupiniquins”, mas como uma ferramenta de linguagem identitária pronta a ser explorada por diversas vertentes de potencial construtivo-discursivo de afirmação imaginária do próprio trânsito. O discurso do outro causa a sensação de estranhamento e desperta a lâmina afiada do “ouvido outro” que se afina na própria diferença4 4 O ouvido outro, ou Ouvido Outro, é a capacidade de auscultar dialogicamente a formação dilacerante de qualquer consciência que fala silenciosamente ao resto do mundo. . A tensão é provocada pela fricção das línguas e imaginários em disputa pelo espaço de afirmação da voz “entre vozes”. Ter a sua própria voz é não ter voz nenhuma, no final das contas. O que importa é exatamente que a voz transite em tensões provocativas para sua possível autoafirmação em trânsito. É esse aspecto o que mais importa para que o imaginário judaico possa buscar o risco e o reconhecimento de “ser quase” entre fronteiras de linguagens possíveis.

Se explorarmos o conceito de cronotopo bakhtiniano, como já foi percebido, o sentido de tempo e espaço se aproxima muito da física moderna. A maneira como observamos o objeto faz de nós parte integrante do objeto observado (SOBRAL, 2008, p.138-139SOBRAL, A. Filosofias (e filosofia) em Bakhtin. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2008. p.123-150.). Tempo e espaço dependem da maneira como ambos estão unidos na percepção privilegiada do outro. Assimilar o outro, ou ser assimilado, é o mesmo, se levarmos em conta que o que está em jogo são as premissas que movimentam as intenções da coisa em si. Ou seja, é o objeto que flutua nas intencionalidades do que se torna imanente que produz a dinâmica de significação e, no caso, o que é “realidade” se torna mais uma peça no tabuleiro dos mundos sendo reconstruídos discursivamente. Na discussão do tema em tela, o judaísmo assimilado não apaga os passos de origem, pois eles serão traduzidos em vozes de itinerância e, então, traz o perigo do real5 5 O real como uma realidade possível, mas que traz, na maioria das vezes o vazio da dinâmica significativa, beirando a “insignificância”. a cada instante de desafio autoafirmativo da voz. Nesse sentido, não é difícil entendermos a batalha travada por Moacyr Scliar, que sempre lidou, desde a infância, com a sua herança judaica e o apelo ficcional/friccional que isso gerou em seu imaginário fervilhante de invenções e alegorias para a afirmação do ser em trânsito por meio da literatura. Em Márcio Souza, a descoberta, já adulto, de sua herança hebraica sefaradita permitiu uma escavação mais perigosa de ausência de sentidos, já que, como agnóstico, não poderia estar simplesmente atrás de uma voz acalentadora religiosa, mas de uma justificativa para entender o próprio ser itinerante – também desde a infância – através dos estilhaços amazônicos em seu percurso. Requerer sua herança judaica foi um passo natural de mergulho mais fundo nas águas geladas de tantos igarapés sígnicos que permearam sua trajetória no naufrágio de divergentes intenções discursivas retroalimentares.

Chegamos ao ponto nodal das questões iniciais lançadas para serem desenvolvidas neste artigo: a palavra alheia, sem dúvida, depende essencialmente das permeabilidades a que ela está sujeita no processo de autoafirmação identitária, ou seja, é permanentemente um fenômeno que se articula com o jogo jogado, e precisa investir nas frinchas da permanência para fazer o percurso do risco e do reconhecimento enquanto própria possibilidade de permanência. A palavra alheia só é o que é porque naufraga quando se percebe pertencente a algum grupo ou esfera ideológica. Bakhtin nos lembra, ao estudar a obra de Dostoiévski, que a ideia do outro só pode ser se representada artisticamente. A voz outra, ou a voz alheia, só é em confronto dialógico, senão perece e morre, como qualquer organismo. Para se manter, terá de gerar novas ideias em um movimento próprio interativo, fluídico (BAKHTIN, 1981, p.73BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense, 1981.). São as possibilidades de ausência de significação que ajudam sempre a cumprir o percurso. O ser judeu em solo brasileiro urge por problematizar qualquer furo que possa querer atar todos os nós do percurso.6 6 De Clarice Lispector, passando por Rawet e Scliar, até Laub, – os principais escritores judeus em nosso país – é evidente que o ser em trânsito ganha diferentes perpendicularidades de visão de mundo, ou de plenitude, ou de esgotamento, num desenho dialético de afirmação/negação, muitas vezes em busca de uma síntese impossível. A ficção é o instrumento que Moacyr Scliar utilizará para (re)construir a saga invisível de tantos antepassados que foram assimilados por inúmeras tramas conjunturais que disfarçam as cicatrizes diaspóricas, naufragadas: “Brasileiros parecidos a outros brasileiros; brasileiros diferentes de outros brasileiros, porque depositários de uma diferente herança cultural... (...) O olhar do recém-chegado não é igual ao do nativo; ele vê coisas que o outro não vê...” (SCLIAR, SOUZA, 2000, p.59SCLIAR, M., SOUZA, M. Entre Moisés e Macunaíma: os judeus que descobriram o Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2000.). Haverá nesse percurso uma série de desafios ao escritor que se vê chamado a enfrentar suas marcas de fundação. O país que ele adota como seu se confundirá, na sua história, na sua geografia, com os apelos de busca, ou insistente percurso, de seus antepassados, provocando uma nova diáspora introspectiva que encontra no universo objetivo da ficção os desvios articulatórios de uma palavra que se afirma porque se sabe alheia e, por se saber outra, ela se destaca pela diferença, já que corre o risco de ser o simulacro de uma coragem de possível registro.

Tomando como base que a obra está no mundo e se gere junto ao mundo que a abarca, mas não necessariamente coincidente à visão ideológica do autor, podemos retomar o conceito de narrador-autor para discernir as condições de uso da palavra literária na ficção. A noção de paratopia de Dominique Maingueneau (2001, p.27)MAINGUENEAU, D. O contexto da obra literária: enunciação, escritor, sociedade. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 2001. nos dá bem o uso dessa inserção complexa do ser escritor na obra: “(...) alimenta sua obra como o caráter radicalmente problemático de sua própria pertinência ao campo literário e à sociedade”. A paratopia é uma “deslocalização” necessária para a literatura existir, de fato, sem prerrogativas estabelecidas como algo que necessariamente tenha de se encaixar no bom gosto ou nas necessidades “progressistas”. O escritor cria as próprias condições especiais para agir num espaço forjado pelas necessidades de articulação estética da escrita. Nesse sentido, a palavra alheia atua para dinamizar as proposições arquitetônicas do discurso em transe, que dialogiza para se monologizar e novamente se abre para novas intrusões. A não-coincidência do “outro em si” já é a palavra literária representando todos os possíveis da autonomia do discurso que expressa o lugar no não-lugar. Essa fabricação é a noção mais próxima da potência verbal como representativa dos pontos críticos radiografados pelos “desacomodamentos” infernais do mundo objetivo da prosa. A ficção indica o mundo referência, ao mesmo tempo que o libera para a ação do narrador-autor. Este encarna e reencarna os papéis que vão muito além do pretenso “primado da palavra literária”. Nos transcursos alegóricos, evidenciam-se as minúcias dos deslocamentos e afirmações projetivas da palavra que mimetiza e se ausenta do objeto representado, pois sua autonomia lhe dá condições para toda forma de articulação da palavra do “outro” por meio das máscaras ou encarnações possíveis em meio a um intenso tiroteio dialógico.

No caso, na ficção de Moacyr Scliar, encontramo-nos com a problemática do ser judeu em trânsito de forma muitas vezes obsessiva, mas que não necessariamente reproduz o que o escritor pensa integralmente a respeito da sua própria posição no mundo. A sua literatura libera os trânsitos de um imaginário altamente inventivo e suas alegorias tentam nos convencer de sua própria realidade como se ela fosse apenas invenção, quando ela reparte, no fundo, seus compromissos com toda sorte de possíveis alteridades. É nessa frincha que o que é literário se afirma como condutor de legados de culturas e histórias que só confirmam a intraduzibilidade do mundo tal e qual o narrador-autor intenta projetar originalmente. Ou seja, a ficção é ficção porque não parece ficção, mas ao mesmo tempo nos conduz por caminhos outros onde encontramos e nos desencontramos pelas possíveis identificações de estradas inventivas viáveis. Na verdade, o que temos são ínvios percursos entre realidades que demonstram muito mais um caráter de suspeita de ser do que um espelhamento das expectativas a priori de uma “denúncia” social do sujeito em busca de uma localização7 7 Reduzir qualquer obra ficcional a um objetivo de conteúdo social é, efetivamente, atribuir-lhe um papel arbitrário a que ela deve ocupar no mundo, a priori da ação crítica. . A sua deslocalização é que move essa literatura e a problemática do lugar da voz do autor, ou da voz da própria literatura.

Em Cenas da vida minúscula (1991), Habacuc, filho do sábio e lascivo rei Salomão, por meio da inspiração de uma das supostas filhas de seu pai, Sulamita, que intenta escrever ou reescrever a Bíblia, torna-se um êmulo de Deus, ao tentar recriar o homem. A livre imaginação permite que o narrador-autor possa reinventar a saga das Amazonas e misturá-la ao trânsito judaico, logo no início do romance:

(...) inquietas, resolveram guerrear Troia. Lá morreu sua rainha, Pentesileia. As Amazonas então se dispersaram; algumas integraram-se às expedições fenícias, e assim chegaram àquelas terras longínquas. A região onde se localizaram – de imensas florestas e rios caudalosos – ficou conhecida por seu nome: amazonas. Ali chegaram também as frotas comissionadas pelo sucessor de David, homenageado na denominação do maior rio da terra das amazonas: Solimões, rio de Salomão (SCLIAR, 2003, p.11SCLIAR, M. Cenas da vida minúscula. 3.ed. Porto Alegre: L&PM, 2003.).

Esse tempero bem brasileiro descrito configura uma necessidade de integração extraordinária a partir da própria condição diaspórica que o povo judeu se encontra com outras fontes de origem, além das de narrativa bíblica. A aproximação entre a dispersão das Amazonas, as mulheres guerreiras, e o sentimento de trânsito judaico não é gratuita na configuração alegórica que se articula. A tensão entre o texto já escrito e a ação da escrita eleva a temperatura e a fricção entre as épocas, na própria voz de Sulamita: “(...) para mim o tal José tinha problemas com as mulheres. Agora: não posso falar disso. Tenho de relatar os triunfos dele, a interpretação dos sonhos do faraó, aquela coisa das vacas magras e das vacas gordas” (SCLIAR, 2003, p.20SCLIAR, M. Cenas da vida minúscula. 3.ed. Porto Alegre: L&PM, 2003.). A autoridade da palavra escrita, apesar de inicialmente desprezá-la, dará a Habacuc uma liberdade de adaptação, ainda sob a perspectiva de Sulamita: “Deus é onisciente, mas eu sou mais onisciente do que Deus, eu sei o que ele pensa. Ele não me derrotará, Habacuc, nem ele, nem seu preposto Salomão. Ele criou o céu e a terra, mas eu crio o texto que ele habita” (SCLIAR, 2003, p.21SCLIAR, M. Cenas da vida minúscula. 3.ed. Porto Alegre: L&PM, 2003.). Eis que surgem as chances de articulação por meio da força da palavra que colocará Habacuc, agora mago, numa posição privilegiada de criador, homenageando, a posteriori, a própria Sulamita, já morta. Nesse sentido, o deslocamento de trânsitos de autores, ou recriadores, dá ao posicionamento do narrador-autor uma fome de projeção extraordinária. Há um jogo de espelhos que permite que os papéis se proponham dentro do complexo inventivo para a afirmação da palavra literária, antes de tudo, e que os papéis adotados não sejam mais que personae em um prosseguimento narrativo inevitável. A questão que se levanta é: qual o papel da Amazônia nesse caso? No meu modo de ver, ela receberá o alimento ficcional como repositório de séculos de histórias que a saga judaica inspira a partir da pena scliariana.

A escrita, como vimos, dá um poder divino a Sulamita, que o transfere para Habacuc. Este tenta gerar um novo homem, o que também pode torná-lo um êmulo de Deus: “Quero criar um ser vivo...” (SCLIAR, 2003, p.26SCLIAR, M. Cenas da vida minúscula. 3.ed. Porto Alegre: L&PM, 2003.). Designado pelo seu pai Salomão a encontrar a mulher perfeita, Habacuc sai em peregrinação pelo mundo. Influenciado pelos matemáticos pitagóricos, Habacuc mergulha em segredos misteriosos que permitirão passar o sonho de seu pai para frente. Em algumas poucas linhas, se chega a Idade Média: “É desta forma, o Livro está falando em torres e castelos, em cavaleiros com armaduras e servos trabalhando nas glebas: a Europa medieval. Nela, continua a saga dos antepassados” (SCLIAR, 2003, p.52SCLIAR, M. Cenas da vida minúscula. 3.ed. Porto Alegre: L&PM, 2003.). Estamos em pleno andamento da afirmação da escrita. O imbróglio apresentado serve de pretexto para o narrador-autor se consolidar como aquele que desliza entre o risco e o reconhecimento buscando um acolhimento nos trânsitos possíveis narrados ou por narrar. O que interessa, sobretudo, é a continuação do percurso. A narrativa se alimenta dos seus próprios impasses, ao tentar traduzir uma possível saga diaspórica judaica no Ocidente.

Agora, o que está em jogo são as curvas da permanência, do registro que ousa dar prosseguimento muito além dos postulados iniciais pelas próprias narrativas sagradas. O judeu que transita é aquele que faz da errância o instrumento dos contatos enriquecedores:

(...) e viveu o cenário e na época ideais. A Europa do século dezesseis era um lugar extraordinário: ali pululavam alquimistas, cartógrafos, astrólogos, astrônomos, bruxas, cabalistas, geômetras, utopistas, artistas, feiticeiros, navegadores, místicos, financistas, curandeiros, arquitetos. Os canhões derrubavam as muralhas medievais, a imprensa difundia novos conhecimentos, barcos sulcavam os mares em busca de terras desconhecidas; através das lunetas, olhos percorriam a abóbada celeste procurando os segredos do infinito, enquanto o relógio mecânico, um dos engenhos da época, marcava inexoravelmente o tempo (SCLIAR, 2003, p.53-54SCLIAR, M. Cenas da vida minúscula. 3.ed. Porto Alegre: L&PM, 2003.).

A enumeração tenta dar conta dos infinitos referentes que enfeixam o universo que a saga judaica empreendeu pelo mundo. O mundo moderno está pronto para receber o ser errante e este continua aberto para apreender os signos que lhe darão as condições de trânsito. O sonho de criar um “ser vivo” se mantém, e já podemos entender isso como uma metáfora poderosa de adaptação do ser errante: “(...) unir a filosofia à cabala. Acreditava numa rede de ocultas conexões estendida por todo o universo” (SCLIAR, 2003, p.54SCLIAR, M. Cenas da vida minúscula. 3.ed. Porto Alegre: L&PM, 2003.). Juntando figuras históricas eminentes, como Agrippa Von Nettesheim, Pico dela Mirandola e Santo Agostinho, a figuras quase lendárias, como Johann Faust (inspirador de grandes obras dramáticas), que o ensina a invocar “Mefistófeles”, estamos diante de uma verdadeira mixórdia alquímica que alimenta a própria força ficcional em direção aos prolegômenos que permitam sonhar o novo homem: semear a raiz da mandrágora com o esperma de um condenado à morte e depois pedir auxílio a uma bruxa. Nessa busca, Habacuc contrai sífilis e se vê à procura de uma cura impossível, entrando em contato com novas figuras históricas: o médico Girolamo Frascatoro, o escritor François Rabelais, o astrólogo e vidente Nostradamus, o alquimista Paracelso, enfim, uma série de personagens que se une a outras personagens e que revela as condições privilegiadas da trama que faz da própria escrita o ser em construção. Não há dúvida, em certa altura do romance, que é a própria literatura, com sua liberdade inventiva, proporcionada pela antena irônica do narrador-autor, que produz a fórmula que manterá o estímulo para o prosseguimento narrativo. Esse romance é um tributo a todos os escritos e pensadores gerados pela inspiração bíblica, com seus neoparâmetros filosófico-religiosos platônicos, aristotélicos, gnósticos, místicos, enfim, toda uma malha de referências dialógica que alimentará uma fome simbólica extraordinária.

Ao lado de Paracelso, misturando cabala à alquimia, Habacuc é quase o homemdeus, o sujeito que estará pronto para gerar um novo ser vivo, o homúnculo. Depois, desiludido com médicos e alquimistas, volta-se à tradição judaica e aos estudos do Talmude, sem abandonar a cabala. Entra em contato com outras figuras proeminentes, como o talmudista Rabi Löw, o dominicano Campanella, o filósofo político Maquiavel, o teólogo protestante Lutero e o pensador católico Thomas Morus. Diante de tantos apelos utópicos, chega à conclusão de que a Europa está muito corrompida para que sua criação de um homúnculo possa se efetivar. Tudo agora aponta para o Novo Mundo, entre notícias de Colombo e Vespúcio. Lembra-se do encontro com Francisco de Orellana, o primeiro navegador a atravessar o rio das Amazonas:

A Habacuc, descrevera com arroubos de linguagem, imensas florestas, de árvores gigantescas; flores de inusitado colorido; animais estranhos; aves que voavam sem cessar, que punham os ovos no ar e no ar chocavam. E as amazonas! Ah, sim, as amazonas: descreveu minuciosamente as famosas guerreiras: altas, fortes, lindas. Tinham um dos seios amputados: ali firmavam o arco com que disparam flechas mortais contra seus inimigos (SCLIAR, 2003, p.78SCLIAR, M. Cenas da vida minúscula. 3.ed. Porto Alegre: L&PM, 2003.).

Diante da sedução das narrativas, começa a vislumbrar uma verdade em tudo isso. A atmosfera que se cria é propícia para sonhar com a terra do Eldorado, e tudo convida a uma situação criativa inevitável, mesmo perdidos no meio da floresta: “Exuberância, era o que Habacuc tinha diante de si, pura, inocente exuberância” (SCLIAR, 2003, p.81SCLIAR, M. Cenas da vida minúscula. 3.ed. Porto Alegre: L&PM, 2003.). A Amazônia se projeta como a terra acolhedora dos signos primevos. Habacuc, em torno de seu povo cheio de expectativas, torna-se o mago-profeta capaz de dar um sentido a tudo, criando o homúnculo e também o mulherúnculo; porém, por outro lado, frustrando seus seguidores. Ameaçado, se vê compelido a fugir com suas criaturas e, como um deus, os decreta marido e mulher, antes de morrer, já centenário (aliás, bem mais que isso, já que se passaram dois mil e tantos anos desde que Habacuc recebeu a missão de seu pai para encontrar a mulher perfeita). Um povo de gente minúscula, então, surge na floresta amazônica. Como legado de uma trajetória, restou o Livro das Origens de Habacuc. Tudo pode se tornar lenda ou verdade, ou seja, História, ou quase isso, com o passar do tempo, pois o narrador-autor, que se considera um descendente desse processo de busca, articula a guerra de superposição dos referenciais:

Séculos se passaram. Reis surgiram e morreram, generais surgiram e morreram, artistas, sábios, artesãos surgiram, e no devido tempo morreram. Máquinas novas foram inventadas: embarcações mais aperfeiçoadas subiam o Amazonas. Os índios foram expulsos; os novos povoadores da região acharam minerais, até ouro – mas nunca encontraram o Eldorado, nem as mulheres guerreiras e muito menos as minúsculas criaturas de cuja existência ninguém jamais suspeitou. De outra parte, meus antepassados nunca os viram (nem mesmo seus vultos no horizonte – horizonte é algo que não existe na selva); assim como nunca viram a mula sem cabeça, que bota fogo pelas ventas; nem a Uiara, a fascinante sereia do Amazonas; nem o mapinguari, gigante peludo, os beiços tintos do sangue de suas vítimas, cujo único ponto vulnerável é o umbigo; nem o Curupira, que bate nas árvores com o pênis; nem o Caapora, duende de um olho só, que percorre a mata montado num porco selvagem. Quanto ao Saci, lamento sinceramente que minha gente não tenha conhecido o travesso menino negro de uma perna só (nem sabiam o que era “negro”; ignoravam que, enquanto corriam livres pela mata, escravos eram trazidos de um continente de selvas, a África, para trabalhar nas plantações). Com ele, teríamos afinidades. Que se saiba, o moleque nunca se ressentiu da ausência do membro inferior, nunca padeceu a dor fantasma dos amputados, nunca viu, em sonhos ou pesadelos, a hipotética perna pulando a seu redor; nunca sofreu a nostalgia do jamais possuído. De forma equivalente, não suspirávamos pela estatura que não havíamos alcançado. Não acusávamos a História, ou o Destino, ou os maus espíritos de nos terem roubado a altura que poderíamos ter, mas não tínhamos: não acreditávamos em maus espíritos, o Destino não entrava em nossas cogitações, e quanto à História, para nós não existia (SCLIAR, 2003, p.97-98SCLIAR, M. Cenas da vida minúscula. 3.ed. Porto Alegre: L&PM, 2003.).

A fome de transferências simbólicas traz uma urgência que é bastante emblemática nessa longa passagem acima. O ontem e o hoje se imbricam de tal maneira que permitem um diálogo radical com as sobras discursivas de tantas trajetórias que se cruzam na América e, em particular, na Amazônia. O destino diaspórico revela as tramas da linguagem como único abrigo para as tergiversações dos referentes em jogo. A questão alegórica que se alavanca aí coloca o judeu numa situação de trânsito irremediável, portanto. O romance intenta trazer à cena um percurso lendário para afirmar a palavra em naufrágio permanente. A Amazônia é o espaço propício para que a apropriação da palavra alheia se torne posse enquanto deslocalização. A condição de seres minúsculos (invisíveis?) produz o espectro de trânsito como um fator necessário de afirmação em um meio estranho, onde todos os signos importados são possíveis. A Amazônia é o último espaço que resguarda ainda a expectativa de imaginário de conquista no mundo, lembremos. Pensar que, desde a Antiguidade, ela possa estar aguardando, como uma terra prometida, um signo potente de iridescência de diversos vagidos especulares, é o que a torna sempre fascinante, assim como os povos que ali se abrigam. A transformação e aclimatação do povo judaico é inevitável: “(...) os traços algo semitas de meus antepassados deram lugar a feições indiáticas – biologia não é Destino” (SCLIAR, 2003, p.98SCLIAR, M. Cenas da vida minúscula. 3.ed. Porto Alegre: L&PM, 2003.). A Amazônia é o espaço a ser apropriado, mas também de apropriação da voz outra. O “em si” conserva a multiplicidade que garante o retorno à origem: “Nós, os puros, nos mantivemos fiéis ao legado espiritual de Habacuc. Por esta razão, o Livro das Origens estava em nosso poder” (SCLIAR, 2003, p.99SCLIAR, M. Cenas da vida minúscula. 3.ed. Porto Alegre: L&PM, 2003.). O “texto sagrado” nada mais é que o subterfúgio para a afirmação da palavra em pleno naufrágio signo, em que a “invisibilidade” daquele povo possa se projetar em sua plenitude fragmentária. O romance segue em frente e chega aos tempos contemporâneos, quando uma “mulherinha” é sequestrada por um turista e obriga a que um membro minúsculo da comunidade, o próprio narrador-autor, vá a São Paulo à sua procura, garantindo um sentido de trânsito e adaptação perene como desafio de permanência, agora na realidade urbana.

Em A Majestade do Xingu (1997), temos como destaque a figura quase lendária do médico Noel Nutels, judeu russo, que emigra para o Brasil em 1921 e se torna um devoto à causa indígena como médico daquela população esquecida. O narrador-autor conhece Noel no navio de emigração. Muitos judeus fugiam da revolução bolchevique, temerosos de novas perseguições sistemáticas como os pogroms, sob o beneplácito das novas autoridades comunistas. O narrador-autor é dono de uma prodigiosa imaginação, por meio de uma verve ficcional como poucos, mas vive uma vida medíocre e rotineira em São Paulo. O paralelo das duas vidas movimentará a narrativa do romance. Na cama do hospital, já morrendo, indício de que supostamente a narrativa já estaria pronta, ele começa a relatar ao seu médico a própria vida e a de Noel Nutels. O confronto se dá por uma série de identificações que quase se inicia por traçar as fronteiras rígidas entre o eu e o outro, ação tão cara para a sobrevivência dos judeus através dos séculos:

Quando o gói estendia a mãozorra em direção à nossa cabeça – era para nos acariciar ou para nos golpear? Quando o gói mostrava os dentes – estava sorrindo ou querendo nos devorar? A mente gói para nós era insondável, um mistério impenetrável. Escura caverna. Densa floresta. Vasto mar, cheio de criaturas estranhas, polvos e grandes peixes prontos a devorar profetas ou substitutos. Na face gói procurávamos, ansiosos, um sinal tranquilizador – o sorriso – ou ominoso: sorriso (SCLIAR, 2009, p.50-51SCLIAR, M. A Majestade do Xingu. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.).

Nesse caso, o outro é uma percepção metamórfica necessária para o entranhamento da voz, num espaço novo, à chegada ao Brasil, terra estranha para o emigrante, para o desafio de adaptação, mas povoada de memórias pregressas:

Viagem penosa, aquela no Madeira. Não tão penosa quanto a viagem dos índios, naturalmente, nem tão demorada. Milhares de anos antes de nós, milhares de anos antes de Colombo, milhares de anos antes dos vikings, milhares de anos antes que as naus do rei Salomão chegassem à Amazônia em busca de ouro e madeiras preciosas para o templo de Jerusalém, enfim, milhares de anos antes da história, tribos tinham saído da Ásia e, movidas pela fome ou por misterioso tropismo, tinham se dirigido primeiro para o noroeste, para o que hoje é a Sibéria, e depois, atravessando o que hoje é o estreito de Bering, haviam chegado ao que hoje é o Alasca, descendo para o sul e se espalhando ao longo do que hoje é a América (SCLIAR, 2009, p.42SCLIAR, M. A Majestade do Xingu. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.).

A comparação de trajetórias dá aos indígenas um extraordinário portento de origem, o que torna sua voz uma espécie de primeiro significante8 8 Ou significante mestre, na terminologia lacaniana, ou o que desencadeará a cadeia metonímica (VALLEJO; MAGALHÃES, 1981, p.129-132). na relação especular que se cria a partir de então entre o povo nativo e o judeu, este último, neófito numa terra estranha inicialmente, aguardando o entranhamento dos novos signos. Toda a memória tem o peso lendário, por isso mais verdadeira na sua sanha devoradora de imagens e sentidos novos. Há uma alusão ao seu romance Cenas da vida minúscula, o que não é difícil de perceber e entender, já que ambos os livros se tocam em propor uma escavação do outro em si, tendo a Amazônia como pano de fundo. A questão indígena, nesse caso, entranhará de maneira idiossincrática no narrador-autor, a fim de se perceber a si em um novo espaço geográfico, externo e interno, que precisa ser apreendido de um jeito ou de outro para que o trânsito nunca cesse:

Porque no fundo eu, judeuzinho russo, tinha afinidades com os índios antropófagos. Eu não tinha vindo, como eles, pelo estreito de Bering, tinha vindo com o Madeira, mas havia uma certa identificação, se não atávica, pelo menos psicológica. O que era eu, doutor, senão um canibal em potencial, capaz de devorar, ainda que, metaforicamente, as pessoas a meu redor? (SCLIAR, 2009, p.66SCLIAR, M. A Majestade do Xingu. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.).

Sendo assim, as questões colocadas se voltam a uma radicalidade de leitura da presença do outro como elemento de valor simbólico alterável ao seu bel prazer imaginário. Eis o grande instrumento de artifício para que o narrador e sua voz possam se afirmar a um novo suposto meio inóspito: as condições de uso da palavra dependem da maneira como elas se apresentam na perspectiva de um mundo sempre em construção. Não há saída fora do trânsito e a metáfora da devoração premiará aquele que souber recolher os seus próprios rastros na sanha perceptiva privilegiada do outro, ou o estranho que não será mais desconhecido fora de si, mas já devidamente apreendido no curso da própria narrativa que projeta a sanha de sobrevivência pela própria e extraordinária fome de signos novos, mas identificáveis em um plano sempre metamórfico.

Separado de Noel Nutels, depois que chegaram ao Brasil juntos, o narrador-autor terá informações do amigo apenas pelo noticiário e acompanhará todo o trajeto ideológico e sanitarista do famoso médico judeu, agora naturalizado brasileiro: “Só mais tarde, quando se tornou famoso e começaram a escrever sobre ele, pude reconstituir sua trajetória” (SCLIAR, 2009, p.77SCLIAR, M. A Majestade do Xingu. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.). O destino do romance está atrelado ao curso que as variáveis imaginárias puderem dar de cor e calor ao percurso do médico indigenista. Incapaz de uma ação concreta que o retirasse do seu acomodamento pequeno-burguês, o narrador-autor só pode apreciar, de longe, toda a movimentação política daquele período dos anos 1930, quando Noel Nutels se tornara um fervoroso esquerdista: “Eu disse que admirava os comunistas? Não: eu os invejava. Não por causa das ideias, que a mim pouco importavam, mas pela convicção com que defendiam tais ideias, pela fraternidade que os unia...” (SCLIAR, 2009, p.85SCLIAR, M. A Majestade do Xingu. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.). Instala-se aqui uma fronteira ideológica importante que se tornará a voz altamente dialógica por meio de um observador arguto das possibilidades do próprio prosseguimento narrativo. As questões que enfeixam o contexto histórico não seriam suficientes para esse prosseguimento, então isso permite que se mergulhe em um sabor próprio de apreensão e autonomia para que o outro em si possa sempre falar mais alto. O narrador-autor, no entanto, precisa do gatilho de um confronto entre ele e Noel Nutels – no caso, ele, o sedentário, o acomodado, e Noel, o aventureiro –; com isso, há também uma oposição entre as regiões: “Por que Noel teria de marchar para o Oeste? (...) No país atrasado que era o Brasil, o Leste era a civilização... (...) No Oeste era uma aldeia...” (SCLIAR, 2009, p.96SCLIAR, M. A Majestade do Xingu. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.). Nesse sentido, o estímulo que movimenta o imaginário do narrador-autor vem exatamente da divergência da perspectiva de dois mundos: “Eu, o covarde, imóvel; Noel, o corajoso, em movimento. Em constante e dinâmico movimento. (...) O Noel não parava quieto: ele ia avançando, embrenhando-se mato adentro, cada vez mais dentro do Brasil, cada vez mais brasileiro, brasileiro como a paca, brasileiro como a onça, brasileiro como o saci” (SCLIAR, 2009, p.97SCLIAR, M. A Majestade do Xingu. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.). As ferramentas estão dadas pela situação descrita, mais ainda pelas possibilidades de que a voz do romance possa prever a sua circularidade em torno do papel mítico que o narrador-autor puder projetar sobre seu suposto êmulo.

O processo integrativo-mítico fará de Noel Nutels um passageiro indócil na trama narrativa que se avizinha, pois o confronto é cada vez maior entre um estilo de vida e outro, e todo sabor de prosseguir catando informações, entre o risco e o reconhecimento das avarias do percurso das imagens, dará ao narrador-autor as demarcações necessárias para o seu poder descritivo idealizado:

O Noel estava virando índio. Índio judaico, mas índio. Índio buliçoso, mais buliçoso do que os próprios índios. Índio inquieto, a percorrer sem cessar as trilhas do Brasil central. Trilhas que poderiam levar a qualquer lugar, mas nunca passariam por uma loja chamada A Majestade. Nossos caminhos tinham se afastado para sempre (SCLIAR, 2009, p.97SCLIAR, M. A Majestade do Xingu. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.).

Seu território tem uma definição bem estabelecida espacialmente, e sem dúvida não pode se conter dentro desse enfadonho espaço de trabalho. O narrador-autor viajará pelas estradas imaginárias para que seu próprio mundo seja nutrido pela projeção do amigo aventureiro distante e sua loja possa se transformar, enfim, na “Majestade do Xingu”, a fim de desencadear seu poder devorador-narrativo:

Uma noite Noel abriria a porta de sua modesta casa no meio do Xingu, e ali ficaria, imóvel, fumando seu cachimbo da noite tropical. Dessa escuridão, olhos o mirariam, olhos brilhantes. Canibais? Talvez canibais. Onças? Talvez bugios. Talvez o caapora, peludo e gigantesco, chefe dos porcos-do-mato. Talvez o curupira, deus das florestas, pequeno tapuio de pés voltados para trás. Todos a olhá-lo. E entre as onças e os bugios, entre o caapora e o curupira, entre os canibais – eu. Invisível para as onças e bugios, invisível para o caapora e o curupira, invisível, felizmente, para os canibais – eu, imóvel, a mirar o imóvel Noel. O amigo invisível a olhá-lo, triste, saudoso. Imóvel (SCLIAR, 2009, p.97-98SCLIAR, M. A Majestade do Xingu. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.).

No meio da selva, os referentes pululam para dar curso ao olhar privilegiado do narrador-autor. Este quer apenas observar o amigo aventureiro e ataviá-lo com os requintes de sua imaginação indócil, idealizada, cheia de realidades e fantasias. O narrador se comporta como um voyeur que tenta traduzir suas próprias ansiedades do não realizado:

Eu nada tinha a ver com os macacos, com formigas, com jiboias. Tinha a ver com os livros que lia na loja; tinha a ver com as letras, as palavras; e acaso tais livros falavam em índios, e muitas vezes falavam em índios, eu lia o que ali estava escrito, mas recusava as imagens que as palavras evocavam, recusava-me a ver os índios, mesmo em fotos, mesmo em imaginação – eu não tinha nada a ver com os índios? Como é que o Noel, nascido na Rússia como eu, judeu como eu, emigrante como eu – como é que Noel tinha tudo a ver com os índios? Eu não entendia. Não entendia Noel no mato, não entendia o mato, coisa estranha, misteriosa (SCLIAR, 2009, p.98-99SCLIAR, M. A Majestade do Xingu. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.).

Como podemos notar, o narrador-autor se vê entranhado por uma voz exógena, e seu desconforto é exatamente assimilar essa voz para tentar orquestrar as condições de uso da palavra, como um articulador de fantasmas aos quais ele teima em recolher no seu percurso espacial físico à passagem para o ilimitado de sua imaginação. Ser o outro é a tarefa, agora, da autonomia da voz, aquela que possui a palavra alheia, seja por que vias, para que sua presença seja notada por si mesmo em relação à imagem que guarda do amigo distante. Tudo, portanto, é projeção da palavra alheia que provoca a presença, ou a verdade adiada: “o que iria dizer-lhe ficou no rol das cartas imaginárias...” (SCLIAR, 2009, p.99SCLIAR, M. A Majestade do Xingu. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.). Ou, mais adiante, quando tenta configurar uma situação dramática de encontro, no meio da selva, disfarçado na própria personae do mecanismo retroalimentador da palavra alheia: “(...) Noel, é seu amigo do Madeira, me vesti de bugre para gozar com a sua cara. O Noel cai na gargalhada e me abraça, e me convida para passar uns dias com ele no Xingu...” (SCLIAR, 2009, p.100SCLIAR, M. A Majestade do Xingu. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.). Com todo o aparato de imagens que emanam do seu trabalho rotineiro na loja Majestade, o narrador-autor se torna um devorador de trilhas estilhaçadas a serem angustiadamente retraduzidas cada vez que evocar a presença de Noel; por outro lado, ele também será um sujeito devorado pelos próprios interditos que a palavra assimilada lhe impuser.

Na selva, com os índios no Xingu, Noel Nutels ganha a autonomia da projeção da palavra assimilada e em trânsito pelo narrador-autor. Este pode, agora, dominar ao seu bel prazer o trajeto do amigo em terras estranhas. Seu percurso terá de ser exemplar, ao entrar em contato com os primeiros nativos, ao produzir a primeira cura com a penicilina, quase tornando-se um “deus branco” no meio daquela gente remota. Enfrentará inimigos, como o invejoso pajé, ou mesmo o olhar perscrutador dos jagunços locais:

Agora João Mortalha não entende mais nada: um judeu russo sai de sua terra, forma-se em medicina – para acabar no meio do mato, cuidando de índios? Que história é essa? Nunca viu um judeu, mas só os imagina em lojas, ganhando dinheiro. Sempre pensei que judeu gostasse de grana fácil, murmura, não de índio. Noel solta uma gargalhada: pois aqui você está vendo um judeu diferente, um judeu pobre e burro (SCLIAR, 2009, p.121SCLIAR, M. A Majestade do Xingu. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.).

A grande maestria do narrador-autor é tentar capturar os momentos chave que redefinam a posição do judeu no mundo, por meio da personagem Noel Nutels. O sentimento de estrangeiridade entranha por todos os lados as falas em curso. O judeu é o elemento estranho no Xingu, lidando com os índios que também acabam sendo vistos como párias de uma civilização que avança e os deslocaliza no seu próprio meio de origem. A palavra alheia que se assimila é aquela que legitimará as condições de trânsito da linguagem, tanto para a afirmação do judeu, como a do índio, pelas próprias habilidades a serem desenvolvidas à sua sobrevivência. Para o narrador-autor, resta essa posição privilegiada e orquestradora de observação: “É o nosso sonho, Noel, o sonho que a gente tinha no Madeira, eu meio que desisti desse sonho, mas você não, você venceu, Noel, você é um homem importante neste país” (SCLIAR, 2009, p.122SCLIAR, M. A Majestade do Xingu. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.). Os índices apontam para que a transferência de uma dinâmica significativa seja apreendida pela projeção de um ideal por meio de uma fala solitária, mas túrgida de evocações de toda ordem afirmativas. O sujeito que tira o pó da loja e abre um livro, todos os dias, e fica aguardando fregueses que nunca entram, é o orquestrador das falas e que precisa, para existir, e resistir, recriar a figura mítica heroica do amigo que fará um percurso exemplar para representar a adaptação de todos os judeus, mesmo em situações inóspitas à civilização não índia.

Após, uma série de encontros hipotéticos são evocados pelo narrador-autor, misturando diversos referentes históricos que ajudaram a compreender a Amazônia e seus mistérios, com os quais a figura de Noel Nutels atravessará com o seu caráter aventureiro e heroico: Rondon, os irmãos Villas-Boas, Darcy Ribeiro, Percy Fawcett e sua cidade perdida, ou seja, a sanha devoradora discursiva promoverá todo tipo de especulação ao processo de trânsito para que o local da fala, a partir da lojinha em São Paulo, ganhe sua autonomia dialógica. Essa sanha projetiva é constatada pela própria autoconsciência do processo criativo em jogo, que, como já foi dito, depende de um veio altamente inventivo para fazer da mesmice do cotidiano uma dinâmica de cotidianidade transferível a outros eventos9 9 A cotidianidade se diferencia do cotidiano por conter as reminiscências que podem perdurar um uma memória perceptiva e privilegiada, no sentido heideggeriano. . Carlos Alberto Faraco (2008, p.47)FARACO, C. A. Autor e autoria. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2008. p.37-60. tocou nessa problemática ao enfatizar o valor artístico-formal da autoconsciência das personagens dostoievskianas a partir das teorias dialógicas de Bakhtin. O processo de construção narrativa depende da capacidade de autoassimilação do narrador-autor, e é o que acontece de maneira bastante equilibrada nesse romance, em que uma voz orquestradora se sobrecarrega de responsabilidades heurísticas como uma ponte entre o ontem e o hoje: “Na loja, caminho sobre mortos. Sobre caveiras e vértebras, sobre fêmures e costelas, sobre perônios e falanges. Sobre sonhos e terrores. Não só eu, claro: quem sabe do mal que se esconde sob o assoalho das casas brasileiras?” (SCLIAR, 2009, p.176SCLIAR, M. A Majestade do Xingu. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.). Com a palavra alheia devidamente autoassimilada, nada é estranho a esse narrador que se aventurou por onde quis com sua imaginação, seguindo os hipotéticos passos de seu suposto ídolo, ou êmulo, Noel Nutels, figura histórica que ganha projeções heroicas e míticas por meio da captura de uma trajetória realista de um país que tentava se conhecer por dentro, por intermédio de seus sertanistas.

Tanto em Cenas da vida minúscula, como em A Majestade do Xingu, temos trajetórias muito próximas em termos inventivos para retraduzir o trânsito do judeu no mundo e no Brasil, em particular tendo a Amazônia como pano de fundo para capturar as itinerâncias propostas de reconhecimento a partir dos restolhos do espanto de tantas eras atravessadas. No primeiro romance estudado, a trajetória envereda pelo modo fantástico-maravilhoso, a fim de dar um contorno mais ambicioso de um percurso ancestral. No segundo romance, no entanto, as demarcações entre a realidade e a fantasia estão bem palmilhadas e o processo de reconhecimento se dá entre as fronteiras estabelecidas pela própria sede de idealização do narrador-autor em relação à figura de um sertanista. Em termos de equilíbrio narrativo, percebo que A Majestade do Xingu é muito mais interessante, mas ambos utilizam a Amazônia como um referente altamente moldável à sanha projetiva da problemática de afirmação histórica da questão judaica. A absorção da palavra alheia é o grande desafio das comunidades judaicas que se espalharam pelo mundo, por meio de diversas diásporas, o que as obriga a se reinventarem permanentemente a partir do olhar do outro por intermédio de uma voz que é sua e não é; ou de um lugar que é seu e não é. Esse sentido diaspórico encontra na Amazônia, por intermédio da ficção scliariana, um trampolim para toda forma de condições de uso de um imaginário indócil, ou de um imaginário que faz do desconhecido o mote para a afirmação a partir do outro em si em permanente trânsito dialógico-monológico, entre o risco e o reconhecimento de se naufragar signicamente em busca de um suposto porto imaginário “seguro” por intermédio da palavra alheia.

  • 1
    Gastão Cruls depois se “compadeceu” de ter escrito um romance sem pé nenhum na realidade e participou de uma expedição do Marechal Rondon, publicando um diário de viagem intitulado “A Amazônia que eu vi”.
  • 2
    Márcio Souza e Milton Hatoum mostraram que o escritor amazônico não apenas pode se projetar nacional e internacionalmente, como também é capaz de se tornar profissional das letras sem precisar exercer atividades paralelas desgastantes.
  • 3
    O deslizar metonímico proposto pelo olhar lacaniano só se dá pelos significantes que pedem um significado que nunca se sustenta inteiramente pelo tampão metafórico, exigindo outro salto ao abismo da não significação (VALLEJO; MAGALHÃES, 1981, p.93-97VALLEJO, A.; MAGALHÃES, L. C. Lacan: operadores de leitura. São Paulo: Perspectiva, 1981.).
  • 4
    O ouvido outro, ou Ouvido Outro, é a capacidade de auscultar dialogicamente a formação dilacerante de qualquer consciência que fala silenciosamente ao resto do mundo.
  • 5
    O real como uma realidade possível, mas que traz, na maioria das vezes o vazio da dinâmica significativa, beirando a “insignificância”.
  • 6
    De Clarice Lispector, passando por Rawet e Scliar, até Laub, – os principais escritores judeus em nosso país – é evidente que o ser em trânsito ganha diferentes perpendicularidades de visão de mundo, ou de plenitude, ou de esgotamento, num desenho dialético de afirmação/negação, muitas vezes em busca de uma síntese impossível.
  • 7
    Reduzir qualquer obra ficcional a um objetivo de conteúdo social é, efetivamente, atribuir-lhe um papel arbitrário a que ela deve ocupar no mundo, a priori da ação crítica.
  • 8
    Ou significante mestre, na terminologia lacaniana, ou o que desencadeará a cadeia metonímica (VALLEJO; MAGALHÃES, 1981, p.129-132).
  • 9
    A cotidianidade se diferencia do cotidiano por conter as reminiscências que podem perdurar um uma memória perceptiva e privilegiada, no sentido heideggeriano.
  • Declaração de disponibilidade de conteúdo

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  • Pareceres
    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtinina. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.

REFERÊNCIAS

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  • FARACO, C. A. Autor e autoria. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2008. p.37-60.
  • LEMOS, C. T. G. A função e o destino da palavra alheia. In: BARROS, D. L. P.; FIORIN, J. L. Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo: Edusp, 1994. p.37-43.
  • MAINGUENEAU, D. O contexto da obra literária: enunciação, escritor, sociedade. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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  • SCLIAR, M. Cenas da vida minúscula 3.ed. Porto Alegre: L&PM, 2003.
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  • VALLEJO, A.; MAGALHÃES, L. C. Lacan: operadores de leitura. São Paulo: Perspectiva, 1981.

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Parecer I

O título, “A Amazônia judaica de Moacyr Scliar: a palavra alheia como afirmação da nãocoincidência do outro em si”, está adequado e coerente com relação ao trabalho. Propõese, a partir da palavra alheia, a analisar os romances Cenas da vida minúscula e A Majestade do Xingu, de Moacyr Scliar, com o propósito de evidenciar uma suposta afirmação do imaginário judaico, tendo a região amazônica como cenário do percurso de Scliar nas duas narrativas. As análises, trazidas ao longo do artigo, mostram uma retradução do trânsito do judeu na região amazônica, as quais “utilizam a Amazônia como um referente moldável à sanha projetiva da problemática de afirmação histórica da questão judaica”. Há, assim, explicitação do objetivo do trabalho e coerência em seu desenvolvimento. Quanto à teoria proposta, vale-se da ideia de palavra alheia, mas não traz as ideias desenvolvidas por Mikhail Bakhtin, ancora-se em leitores de sua teoria. Há, por outro lado, uma reflexão importante sobre a absorção da palavra alheia pelas comunidades judaicas, em especial às evidenciadas nos romances de Scliar. Mostra, assim, por meio de diásporas singulares, uma reinvenção a partir da alteridade, ou seja, de vozes outras e de lugares outros. Uma das conclusões trazidas no estudo é de o sentido diaspórico encontrar na Amazônia, por intermédio da ficção de Moacyr Scliar, “um trampolim para toda forma de condições de uso de um imaginário indócil, ou de um imaginário que faz do desconhecido o mote para a afirmação a partir do outro em si em permanente trânsito dialógico-monológico, entre o risco e o reconhecimento de se naufragar signicamente em busca de um suposto porto imaginário ‘seguro’ por meio da palavra alheia”. Há, finalmente, clareza, correção e adequação da linguagem a um trabalho científico. Somos, portanto, favoráveis à aprovação da proposta. Sugerimos fortemente, porém, a inserção da compreensão de palavra alheia trazida por Bakhtin, encontradas em diversas obras suas e do Círculo, a exemplo de Problemas da poética de Dostoiévski, ensaios de Estética da criação verbal, Marxismo e filosofia da linguagem. APROVADO COM SUGESTÕES

  • recomendação: revisão

Histórico

  • Parecer recebido em
    11 Dez 2022

Parecer II

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer II

Considero o título do artigo, “A Amazônia judaica de Moacyr Scliar: a palavra alheia como afirmação da não-coincidência do outro em si”, adequado. Sou de opinião de que o artigo merece ser publicado; apenas sugiro uma revisão gramatical para tratar de pequenos problemas de concordância, etc, e trechos que mereciam um esclarecimento. Estou enviando o texto do arquivo original com trechos realçados, que, na minha opinião, deveriam ser revistos. APROVADO COM SUGESTÕES

  • recomendação: revisão

Histórico

  • Parecer recebido em
    24 Dez 2022

Disponibilidade de dados

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    16 Set 2022
  • Aceito
    13 Mar 2023
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