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A figura de Palestrina na estética musical de Nietzsche* * Tradução de Márcio José Silveira Lima

The Figure of Palestrina in Nietzsche´s Musical Aesthetics

Resumo

Na estética musical de Nietzsche, o nome de Wagner domina largamente, gradualmente competindo com Bizet. Palestrina é certamente muito mais discreto mas não menos significativo, de Humano, demasiado humano a O caso Wagner. Este artigo mostra o papel desempenhado pelo compositor da Renascença, cuja obra é repleta de religiosidade, na estética musical de Nietzsche. Inicialmente antitético à cultura da ópera, que Nietzsche critica em O Nascimento da Tragédia, também incorpora a perfeição artística, notadamente da tradição coral medieval. Por fim, Palestrina representa para Nietzsche uma alternativa à estética schopenhaueriana e ao wagnerismo triunfante da década de 1880.

Palavras-chave:
arte; música; ópera; Wagner; Renascença

Abstract

In Nietzsche’s musical aesthetics, Wagner’s name dominates, progressively rivalled by Bizet’s. Palestrina is certainly much more discreet but no less significant, from Human, All Too human to The Case of Wagner. This article shows the role played by this Renaissance composer, whose work is marked by religiosity, on Nietzsche’s musical aesthetics. At first antithetical to opera culture, which Nietzsche criticizes in The Birth of Tragedy, he also embodies artistic perfection, especially of the medieval choral tradition. Finally, Palestrina represents for Nietzsche an alternative to the Schopenhauerian aesthetic and the triumphant Wagnerism of the 1880s.

Keywords:
Art; music; opera; Wagner; Renaissance

Palestrina, figura discreta, mas essencial da estética musical nietzschiana

Quando se considera a estética musical de Nietzsche, um nome domina por sua presença e pelo valor que nosso filósofo lhe confere: Wagner. O compositor alemão, como sabemos, ocupa o centro da refleção nietzscshiana sobre a música e, de forma mais ampla, o centro de uma reflexão sobre a cultura europeia, na qual o autor de Lohengrin desempenha, por sua vez, o papel daquele que opera um verdadeiro renascimento da cultura trágica para, alguns anos mais tarde, tornar-se o artista decadente por excelência, a quem Nietzsche chamará de “Cagliostro da modernidade” (WA/CW 5, KSA 6.23). Diante de Wagner, como sua antítese, encontramos, a partir dos anos 1880, Bizet, o autor da ópera que Nietzsche se gabará de ter visto vinte vezes,1 1 Cf. WA/CW 1, KSA 6.13: “Ontem - vocês acreditarão? Ouvi pela vigésima vez a obra-prima de Bizet”. Parece entretanto que Nietzsche só assistiu a cinco apresentações de Carmen, de acordo com a correspondência. Cf.Grzelczyk, 2015, § 21 e seguintes. Carmen, obra que carrega em si os valores saudáveis ​​e viris do Sul da Europa e que se opõe às brumas nórdicas da música alemã. Ao lado desses dois nomes que estruturam a concepção muito específica que Nietzsche tem da música, encontramos evidentemente Bach, Beethoven, Liszt, Schumann, Chopin mas também Haydn, Mozart, Brahms ou ainda Rossini; uma lista muito incompleta, que de resto realça uma incrível análise do papel, da função e do valor da figura do músico na história da cultura ocidental e sobre a qual Nietzsche vai constituir gradualmente uma verdadeira “fisiologia da arte”. Não se pode esquecer também que a música, independentemente de seus grandes nomes, é o ponto de partida de uma inversão que ganha corpo a partir de O nascimento da tragédia e que impõe o primado do musical sobre o textual, o privilégio da melodia e do ritmo sobre a ação e a narrativa, sendo os poetas gregos, líricos ou trágicos, o símbolo dessa hierarquia que Nietzsche nos diz ter sido pura e simplesmente esquecida, ignorada, reprimida pela estética moderna. Nesse contexto, complexo e múltiplo pelos problemas que coloca, um nome surge de forma mais discreta, mas também significativa: Palestrina. Compositor italiano da Renascença, conhecido sobretudo por ter sido um dos primeiros a musicar o Stabet Mater do franciscano italiano Jacopone da Todi, o nome de Giovanni Pierluigi da Palestrina aparece várias vezes sob a pena de Nietzsche, ainda que o número de ocorrências dessa referência permaneça muito limitada no corpus. Porém, apesar de sua raridade, ela está presente desde a primeira obra de Nietzsche, retorna em Humano, demasiado humanoNIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano II. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2008. assim como em seu primeiro apêndice Miscelância de opiniões e sentenças, para reaparecer finalmente em O caso Wagner, escrito durante o ano de 1888. Portanto, se o nome de Palestrina aparece com muita parcimônia, não deixa de estar menos presente de uma ponta a outra da obra - e no meio dela - atestando assim sua importância.

Trata-se aqui de interrogar essa referência, a fim de compreender como e por que Nietzsche, em meio a todos os problemas que levanta relativamente à música, recorre a esse artista da Renascença, cuja obra é essencialmente marcada por sua coloração religiosa e seu caráter sacro, pondo, dessa forma, a questão do seu valor, de sua função e de seu status no seio do corpus nietzschiano. À questão de “como interpretar a presença de Palestrina no seio da estética nietzschiana”, respondemos que a música desse precursor do Stile Antico serve como um modelo em vários níveis: em primeiro lugar, como antítese à cultura da ópera que Nietzsche critica em sua primeira obra; depois, como modelo de perfeição artística, no sentido de que todo o desenvolvimento da tradição coral da Idade Média encontra o seu apogeu na arte do compositor italiano, o que permite a Nietzsche mostrar que, do ponto de vista da música, a Renascença é, de fato, uma tentativa fracassada de reencontrar o espírito da antiguidade; enfim, se Palestrina, em O nascimento da tragédia, serve ao projeto estético do jovem Nietzsche, na época sob a influência de Wagner e Schopenhauer, seguir-se-á uma completa inversão de perspectiva a esse respeito, com Palestrina passando a desempenhar um papel de baluarte contra a estética schopenhaueriana e como antítese ao wagnerismo triunfante do início da década de 1880.

Palestrina, o “velho mestre”: da música religiosa à musica moderna

Antes de abordar mais detidamente a forma como Nietzsche interpreta a música de Palestrina e assim ver a função que ele lhe atribui nesse quadro de reflexão sobre a música - e mais geralmente no quadro de sua reflexão sobre a cultura -, não é inútil recordar quem é esse compositor italiano ao qual Nietzsche se refere, pois habitualmente este último não se preocupa com detalhes biográficos de quem lhe interessa, pois parte do princípio que o músico de que fala é perfeitamente conhecido de seus leitores. Contudo, o nome de Palestrina está longe de ser uma referência comum ou popular, pois, na medida que representa a música antiga e religiosa, ele pertence a uma tradição desconhecida - ao menos esquecida - já à época de Nietzsche, e a fortiori mais ainda para nós contemporâneos. A despeito disso, Giovanni Pierluigi da Palestrina é de fato um cantor, compositor e mestre de capela incontornável da Renascença, figurando em meio a Josquin des Prés e a Roland de Lassus como uma figura maior da música do século XVI. Daremos primeiro algumas indicações sobre sua vida.

Descoberto muito cedo por seus talentos vocais, Palestrina ingressou em 1536, por volta dos onze anos, no coro infantil na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma, particularmente conhecida pelo nível de excelência de seu coral. Concluídos os estudos musicais, a liturgia completa e a gramática, Palestrina se inicia e se aperfeiçoa nas técnicas do canto gregoriano e polifônico, bem como nos conhecimentos teóricos necessários à sua prática, ao contraponto, à composição e ao órgão, cujo estudo é obrigatório. Ao fim de sua formação, começa sua carreira de mestre de capela; a partir do ano de 1544, atua como organista e instrutor religioso na Catedral de Santo Agapito para, sete anos mais tarde, ser promovido à direção do coro da capela de Giulia da Basílica de São Pedro, no Vaticano. Esse posto é tanto mais importante porque vem logo após o de dirigir o coro pontifício, ou seja, o coro pessoal do papa. A importância da capela Giulia é igualada apenas pela de Santa Maria Maior e de São João de Latrão; todas as três possuem um coro formado por adultos e meninos, enquanto a capela pontifícia tem apenas um coro feito de cantores adultos, mas escolhidos entre os melhores que a Europa pode oferecer. Por outro lado, é lógico que Palestrina, em sua ascensão meteórica, integrará mais tarde o coro pontifício, dessa vez como cantor, impulsionado pelo papa Júlio III, que já havia trabalhado largamente para sua entrada na capela Giulia. Carreira, porém, de curta duração, pois o Papa morreu alguns meses mais tarde e Palestrina será demitido do coro por decisão do Papa Paulo IV, retornando, após algum tempo, ao posto de Mestre de Capela na Basílica São João de Latrão; continuará, depois, sua carreira na Basílica de Santa Maria Maior, onde passou seus anos de aprendizado, antes de retornar ao cargo que ocupara na Capela Giulia, no qual serviu até sua morte em 1594. Esse lembrete biográfico2 2 O conjunto dos elementos biográaficos aqui apresentados provêm das monografias de BianchI, 1994 e Gautier, 1994. para mostrar que Palestrina é um puro produto da igreja católica romana e que incorpora a excelência trazida pelas autoridades religiosas da época em termos de música e canto como parte de sua liturgia. Mas se Palestrina se distingue pela sua extraordinária carreira como maestro cantorum, é sobretudo pela composição que se destaca entre seus contemporâneos. Por outro lado, sua produção também é coerente, pois ela é constituída de uma centena de missas, dois Stabat Mater e duzentos e cinquenta motetos (a 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 vozes). Paralelamente a suas obras religiosas, ele compôs igualmente em torno de duzentos e quarenta madrigais, obras profanas, mas não menos espirituais, então em voga no fim do século XVI, que vem completar uma obra já imponente, cuja lista detalhada se encontra nos 32 volumes das obras completas de Palestrina que foram publicadas pela Breitkopf & Härtel entre 1862 e 1907.

Inútil dizer que a sua posteridade foi imensa, com inúmeras gerações de músicos e compositores referindo-se diretamente à sua arte, isso até ao século XIX, quando a sua influência sobre certos românticos era palpável. Prova disso é Victor Hugo, que não hesitará em elogiar o compositor italiano num poema intitulado Que la musique date du XVIe siècle, poema que se encontra na coletânea Les Rayons et les Ombres, publicada em 1840HUGO, V. Les Rayons et les Ombres. In: Œuvres complètes, Poésie, VII, Paris: Delloye libraire, 1840, pp. 295-296.:

Potente Palestrina, velho gênio, com velha maestria
Eu te saúdo aqui, pai da harmonia.
Pois, onde os humanos bebem, como um grande rio
Toda esta música, em tuas mãos, fluiu!
Porque Gluck e Beethoven, ramos sob os quais se fantasia,
Nascem do teu tronco e são feitos da tua ambrosia!
Porque Mozart, teu filho, teus altares assumira
Desconhecida dos mortais, esta nova lira
Mais trêmula que a grama ao sopro das auroras,
Nascido no século XVI entre tuas mãos sonoras!
Pois, mestre, é para ti que vai todo o nosso suspirar
Assim que uma alma responder e uma voz cantar.3 3 Puissant Palestrina, vieux maître, vieux génie,/Je vous salue ici, père de l’harmonie,/Car, ainsi qu’un grand fleuve où boivent les humains,/Toute cette musique a coulé dans vos mains !/Car Gluck et Beethoven, rameaux sous qui l’on rêve,/Sont nés de votre souche et faits de votre sève !/Car Mozart, votre fils, a pris sur vos autels/Cette nouvelle lyre inconnue aux mortels […]/Plus tremblante que l’herbe au souffle des aurores,/Née au seizième siècle entre vos doigts sonores !/Car, maître, c’est à vous que tous nos soupirs vont,/Sitôt qu’une voix chante et qu’une âme répond !). Cf. Hugo, 1840, pp. 295-296.

Lembremos, no entanto, que, numa época em que o público só ouvia Rossini e Meyerbeer, talvez Offenbach, o fato de Victor Hugo elogiar Palestrina não é insignificante, pois o conhecimento da música do passado era então excepcional: a do século XVI, em particular, era percebida apenas como boa para os curiosos sobre antiguidades musicais ou para aqueles que eram simplesmente músicos, compositores ou regentes por formação ou profissão. Por ser os três ao mesmo tempo, o próprio Wagner não só conheceu muito bem Palestrina, como se empenhou, em 1848, em arranjar seu Stabat Mater para solista e coro duplo, cuja apresentação ocorreu pela primeira vez em 8 de março naquele ano, no teatro da corte em Dresden. Segundo suas próprias palavras, Wagner teria, durante esse arranjo e no decorrer da execução da obra, sentido os tremores da mais sagrada devoção e uma alegria artística indescritivelmente edificante. Muitos anos depois, em 1879, após um concerto privado de composições de Palestrina dado no Teatro de Festival de Bayreuth, Wagner diria novamente que as notas longas de Palestrina “são prismas que desafiam a eternidade”.4 4 Em uma nota de 10 de julho de 1879, Cosima Wagner registra esse acontecimento em seu diário: “À tarde, durante um grande temporal, concerto no templo. Todos os tipos de problemas [...]. O concerto, porém, nos interessa, certas coisas como os responsórios de Palestrina nos fascinam e nos elevam a alma”. Ver Wagner, 1979, p. 405. A música de Palestrina estaria, assim, no cerne da concepção wagneriana de uma música religiosa autêntica,5 5 Para sublinhar a influência de Palestrina em Wagner, pode-se consultar: Bell, 2013; o autor indica que Wagner teria se inspirado nesse trabalho de arranjo do Stabat Mater para o prelúdio do primeiro ato de Lohengrin. concepção, como veremos, que está longe de ter escapado a Nietzsche.

O papel de Palestrina em O nascimento da tragédia: um antídoto para a ópera

Passando agora à relação de Nietzsche com Palestrina, podemos compreender de imediato por que, desde o O nascimento da tragédia e das notas preparatórias à sua primeira obra, Nietzsche invoca o músico italiano, algo conhecido por Wagner, que, obviamente, não era alheio ao projeto estético do nosso filósofo naquela época.6 6 Por outro lado, é possível supor que Nietzsche descobriu Palestrina através do futuro mestre de Bayreuth, uma vez que não há vestígios de qualquer referência ao mestre de capela italiano, nem na correspondência, nem nos escritos de sua juventude, nem nos cadernos anteriores a 1869. Ver Liebert, 2012, p. 22, em que o autor supõe que Nietzsche, habituado à música religiosa como menino do coro e jovem devoto, tinha um conhecimento preciso de Palestrina: “No início do verão de 1860, quando tinha então dezesseis anos, Nietzsche terminou um Miserere no qual ele habilmente se lembra de Palestrina”. No entanto, o autor não menciona qualquer referência para apoiar esse fato. E, de fato, Nietzsche se interessará de perto por Palestrina, como atestam os fragmentos póstumos de 1871, ano em que elabora uma teoria que constituirá a essência do capítulo 19 de O nascimento da tragédia, cuja tese principal é que devemos “aniquilar a ópera”, mais precisamente a “cultura da ópera” que teria nascido, segundo Nietzsche, no final da Renascença e que se teria desenvolvido até ao século XIX, ou seja, até o aparecimento de Wagner e a ruptura radical que este último opera em termos de estética. É precisamente nesse contexto que a referência a Palestrina ganha forma, pois, desde o início do capítulo 19, Nietzsche coloca a questão sobre a origem dessa cultura da ópera que se funda sobre o que ele chama de “estilo representativo” e que introduz o “recitativo” em música, enquanto, ao mesmo tempo, a arte de Palestrina, essencialmente baseada no canto coral sacro, atinge seu apogeu.

Mas, para melhor compreender o ataque de Nietzsche à ópera, é preciso voltar a um ponto importante da estética que atravessa O nascimento da tragédia e que opõe a cultura trágica que Nietzsche defende, por meio da união entre Apolo e Dionísio, e a cultura que Nietzsche denomina de socrática ou alexandrina, que domina a Antiguidade a partir do século IV ate nossa época. É precisamente sobre o pano de fundo de uma oposição entre o homem trágico da Grécia arcaica e o homem teórico da Grécia clássica, de quem “Sócrates é o primeiro antepassado”, que Nietzsche interpreta o que está em jogo na Renascença, uma época considerada como um retorno à Antiguidade e ao espírito dos antigos. No entanto, esse renascimento, segundo Nietzsche, é totalmente perdido, pois vê o retorno daquilo que na antiguidade grega não é propriamente o espírito dos antigos helenos, mas de uma civilização já pervertida por um espírito teórico e científico incapaz de apreender a essência da arte e menos ainda a essência da música. Se Sócrates está na origem dessa perversão, devemos sobretudo a Platão e Aristóteles uma concepção errônea da arte - e a fortiori da música - uma vez que os dois filósofos irão fundar sua teoria estética na noção de imitação (mimesis), fazendo da música não só uma arte mimética, à maneira de todas as outras artes, mas sobretudo fazendo-a depender da palavra. Platão afirma no livro III da Répública que a música é essencialmente constituída por palavras, harmonia e ritmo, e especifica que “a harmonia e o ritmo devem estar de acordo com as palavras”7 7 Cf. Platon, 2016, 398d. , “e não as palavras à métrica e à melodia”.8 8 Cf. Platon, 2016, 400a-d. A questão do primado do texto e da sua inteligibilidade sobre a música, a qual deveria ser apenas um suporte, uma decoração ou uma imitação está, nesse caso, no centro das discussões do final da Renascença, como atesta um longo fragmento póstumo de 1871, no qual Nietzsche retoma o debate que agita os novos cantores da época, os quais exigem doravante serem compreendidos por seus ouvintes, que também pretendem compreender o texto cantado. Nesse sentido, Nietzsche cita uma carta do conde Bardi da Vernio dirigida a Giorgio Caccini, na qual o conde escreve “tanto quanto a alma é mais nobre que o corpo, assim também as palavras são mais nobres que o contraponto [...]”. Algumas linhas depois, Nietzsche, para sublinhar essa nova tendência, cita então o cantor Jacopo Peri, que afirma: “Não me cansarei jamais de elogiar essa forma tão plenamente artística de recitar cantando [...]” (NF/FP 1871, 9 [5 ], KSA 7.271).

Nietzsche, sem se deter nesse aviso relativo às discussões da época, que não cessam de repetir com complacência que a fala deve ser imitada pelo canto, com essa nova exigência de que o cantor seja perfeitamente compreendido, continua:

É crível que essa música da ópera, completamente exteriorizada e incapaz de devoção, pudesse ter sido acolhida e estimada com exaltado fervor, como o renascimento de toda a verdadeira música, por uma época em que a música inefavelmente sagrada acabava de elevar-se, no fundo a única música clássica, a de Josquin e Palestrina. […] Que na mesma época, e com o mesmo querer, ao lado das abóbadas da harmonia palestriniana, que toda a Idade Média cristã havia edificado, despertou-se essa paixão por um modo de falar meio musical, não sei explicar de outro modo senão pela essência do recitativo, que é preciso agora expor (NF/FP 1871, 9[5], KSA 7.272).

O conjunto do fragmento será retomado quase palavra por palavra no capítulo 19 de O nascimento da tragédia, que, de modo mais desenvolvido, formula o problema, incluindo, de um lado, a cultura socrática e alexandrina como sendo o modelo dessa nova concepção, desse novo gosto musical e sumprimindo, por outro lado, o nome de Josquin des Près para manter apenas o de Palestrina.9 9 Cf. GT/NT 19, KSA 1.120: “Não se poderia definir ou penetrar melhor o conteúdo mais íntimo dessa cultura socrática do que nomeá-la cultura da ópera: porque, é precisamente nesse domínio que ela se exprimiu, com singular ingenuidade, sobre os seus saberes e as suas intenções, por mais surpreendente que nos pareça, quando confrontamos a gênese e a evolução da ópera para a verdade eterna do apolíneo e do dionisíaco. Em primeiro lugar, recordarei as origens do stilo rappresentativo e do recitativo. É crível que essa música da ópera, completamente exteriorizada e incapaz de devoção, pudesse ter sido acolhida e estimada com exaltado fervor, como o renascimento de toda a verdadeira música, por uma época em que acabava de elevar-se a música inefavelmente sublime e sagrada de Palestrina. Que na mesma época, no mesmo povo, despertasse, ao lado das catedrais da harmonia palestriniana, em que toda a Idade Média cristã trabalhou, essa paixão a um modo de falar meio musical, não posso explicá-la a mim mesmo senão pelo efeito de uma tendência extra-artística que opera na própria essência do recitativo”.

É possível, pois, constatar que, em oposição a essa cultura da ópera e desse novo gosto pelo recitativo e pelo estilo representativo, repousa em toda sua grandeza Palestrina, símbolo de toda uma tradição antípoda da nova moda, aquele que, através de sua arte do contraponto, de sua polifonia e de seu coro sacro dá sentido preciso à devoção, mas acima de tudo assegura a ligação profunda com as forças da vida. “Apenas na música não somos ainda nem homens da ciência nem da história: vivemos ainda com Palestrina: uma prova de que estamos aqui realmente vivos” (NF/FP 1871, 13[2], KSA 7.372), afirmará Nietzsche em um póstumo um pouco mais tarde, sublinhando a potência de uma música que não foi corrompida pelas novas exigências dos cantores e dos ouvintes. Precisamente a música de Palestrina ainda escapa dessa exigência de inteligibilidade, inteiramente imersa na polifonia e na arte do contraponto que a constituem, ainda que seja preciso reconhecer que a Igreja, sob o impulso do Concílio de Trento, também exigirá que, de sua parte, Palestrina concentre-se na compreensão da mensagem religiosa, impondo-lhe a redução drástica do uso da polifonia, exigência a que Palestrina se submeterá tardiamente, mas sem sacrificar a polifonia ou o contraponto, ou seja, a própria música.10 10 Sobre esse ponto, ver Goléa, 1977, p. 97 e ss.: ele explica que Palestrina, que dependia, para o seu trabalho e sua obra, dos papas e dos dignitários eclesiásticos da época, teve problemas com eles e com o Concílio de Trento como introdutor da polifonia nas obras religiosas. Essas autoridades o censuraram por impedir assim a inteligibilidade das palavras do texto religioso e queriam proibir toda música polifônica na igreja. Palestrina, portanto, corria perigo como compositor, chegando perto do pior (a proibição de sua música), mas foi protegido e sua música salva por outros protetores, o papa Júlio III, seu sucessor, o papa Marcelo II (cometa fugaz no trono papal) e o Cardeal Borromeo. E conseguiu, segundo Goléa, defendendo sua visão, fazer uma síntese entre as demandas contraditórias às quais foi submetido. Gostaria de salientar que devo essa referência a Éric Blondel, a quem agradeço vivamente.

Nietzsche está perfeitamente ciente desse fato, pois em um fragmento póstumo do ano de 1869,11 11 Cf. NF/FP 1869, 1[41], KSA 7.20: “Em 1564 uma comissão de oito cardeais estabeleceu que as palavras sagradas do canto deveriam ser ouvidas de forma clara e contínua. Foi a essa exigência que Palestrina respondeu. As composições de Palestrina estão calculadas para um contexto determinado, e pensadas para um lugar preciso no culto. Caráter dramático das ações litúrgicas. As formas da frase artificial deixaram de ser fins em si mesmo: são meios de expressão”. no qual evoca pela primeira vez o nome do músico italiano, ele revolve a pressão que Palestrina sofrerá de certos cardeais, obrigando-o a fazer uma síntese quase impossível que, não obstante, conseguirá produzir sem sacrificar a sua música. Nesse ponto da análise, Nietzsche sublinha uma característica comum entre a poesia lírica dos Antigos e a música religiosa, da qual Palestrina é o ilustre representante, por mais distantes que essas artes possam parecer culturalmente. Podemos ler numa nota póstuma do ano de 1871 o seguinte:

Não se deveria aqui compreender o que é o poeta lírico, isto é, o homem artístico, que deve significar a música para si pelo simbolismo das imagens e dos afetos, mas nada tem a comunicar ao ouvinte e que até mesmo esquece, em completo êxtase, daqueles que avidamente o escutam de perto. E como o poeta lírico canta o seu hino, assim o povo canta a canção popular, para si, com um ímpeto interior, sem se preocupar se as palavras são inteligíveis para quem não participa da canção. Pensemos em nossas próprias experiências nos domínios superiores da música artística: o que entendemos do texto de uma missa de Palestrina? […] Mas a ópera começa, de acordo com os documentos mais explícitos, com essa exigência do ouvinte, de compreender as palavras. O quê? O ouvinte exige? É preciso compreender a palavra? (NF/FP 1871, 12[1], KSA 7.369)

A posição de Nietzsche é, pois, muito clara sobre a relação texto/música, confirmando uma tese que é anunciada com clareza desde o capítulo 6 de O nascimento da tragédia: “a música em si mesma, escreve Nietzsche, em sua completa soberania, não precisa nem da imagem, nem do conceito, mas apenas os tolera ao seu lado” (GT/NT 6, KSA 1.51). A preeminência da música sobre o texto encontra-se, pelo viés de Palestrina, confirmada. A razão disso foi terem os cantores e ouvintes da Renascença se cansado dessa música antiga,12 12 Cf. Dufour, 2005, p. 112. demasiado musical para eles, reorientando o seu gosto para o madrigal e depois para as primeiras óperas. Se Nietzsche, no fragmento acima, cita, por outro lado, o nome de Caccini, é porque este último vai introduzir novas exigências musicais a partir de uma reativação do platonismo renascente e de toda uma estética sujeita à inteligibilidade do texto. Autor, em 1601, de Novas músicas, que prefaciou com um pequeno tratado, Giulio Caccini (1551-1618) escreveu:

[…] esses senhores tão eruditos sempre me encorajaram, e convenceram-me por razões muito claras, a não valorizar essa espécie de música que, não permitindo que as palavras sejam bem compreendidas, estraga a ideia e o verso, alongando aqui e encurtando ali as sílabas para adaptar-se ao contraponto, [que é uma] laceração da Poesia, mas aderindo [antes] ao modo tão elogiado por Platão e outros filósofos, que afirmam que a música não é outra coisa senão o texto, o ritmo e, finalmente, o som, e não o contrário […]13 13 Cf. Caccini, 1997, § 5, p. 49, ApudBeland, 2020, p. 117.

Como lembra Martine Béland, que cita justamente esse texto, em um artigo dedicado à aniquilação da ópera como terapêutica e crítica em Nietzsche, esse trecho mostra antes de tudo que “Caccini representa tudo o que Nietzsche critica na música representativa”, e que ele nega, ponto a ponto, especialmente as características específicas da música de Palestrina: “Caccini justifica racionalmente sua prática de composição recitativa; cita Platão; critica o contraponto; afirma que a música deve atuar no espírito e falar a sua linguagem, tanto na sua composição como na sua recepção”.14 14 Cf. Beland, 2020, p. 117. Contra Caccini e com Palestrina, Nietzsche afirma, ao contrário, a autonomia da música, sua superioridade sobre todas as outras artes, mas sem cair em um romantismo à Novalis que reivindica “o primado da música instrumental”15 15 Cf. Novalis, 1966, p. 301: "sonatas, sinfonias, fugas, variações - eis a musica propriamente dita". sobre o Lied, nem no formalismo que Edouard Hanslick desenvolveria em sua obra intitulada Do belo musical16 16 Cf. Hanslick, 1877. (1854), que Nietzsche criticou por não conseguir se desvincular de uma concepção representativa da música e dos “pressupostos originais da cultura socrática” (GT/NT 19, KSA 1.127 ) que a sustenta. Contra essas duas estéticas, que atestam cada uma, à sua maneira, a primazia da música sobre o texto, Nietzsche opta por seguir Schopenhauer, que afirma, por seu lado, que a música “está colocada completamente fora das outras artes” e que “não podemos mais encontrar nela a cópia, ou a reprodução da Ideia do ser”.17 17 Cf. Schopenhauer, 2003, § 52, p. 327. Além disso, se a música é subtraída da imitação, Schopenhauer passa a considerá-la como uma “linguagem universal” que “nunca expressa o fenômeno, mas a essência íntima, o interior do fenômeno, a própria vontade”. A música é “a expressão do mundo”18 18 Cf. Schopenhauer, 2003, p. 334 e seguintes. , não sua representação. Tese que Wagner e Nietzsche assumirão por conta própria, como sabemos, mas que, no caso de Nietzsche, sofrerá uma notável transformação a partir de Humano, demasiado humanoNIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano II. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2008., como veremos em breve.

Mas antes de abordar esse ponto, é preciso concluir sobre o papel de Palestrina em O nascimento da tragédia e compreender que, através dele, Nietzsche não apenas encontra a resistência ideal contra a cultura da ópera que pretende fazer desaparecer, mas sobretudo mostra que a Renascença não reviveu nada em matéria musical, pois o auge da música naquela época vem de uma tradição que é de fato a mesma da Idade Média. Palestrina, compositor da Renascença, é o fruto tardio e de maior êxito da música medieval. Diante dele, os compositores e madrigalistas italianos do fim do século XVI anunciam, na melhor hipótese, o regresso de um espírito decadente próprio de uma certa Antiguidade que não hesitou em desfazer-se da cultura trágica para melhor estabelecer o seu espírito teórico, erudito e sábio, mas que em nenhum caso pode ser considerada como um verdadeiro renascimento. Na música, a Renascença é, portanto, um malogro, pois não retorna a essa cultura trágica que forma a essência da Antiguidade; é de fato a arte de Wagner, por mais anacrônica que pareça nesse contexto, que encarna o espírito trágico dos antigos helenos e por isso o autor do Anel (Ring), nesse sentido, pode ser considerado um “autêntico renascentista”.19 19 Cf. Bouriau, 2015, p. 26-35.

A música de Palestrina como termômetro de uma época

O anacronismo, poder-se-ia objetar, não é um capricho de Nietzsche, que desconstrói e reconstrói a história à vontade e não sem razão. É o que mostra Humano, demasiado humanoNIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano II. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2008., obra em que Nietzsche evoluiu bastante, notadamente em sua rejeição ao wagnerismo, mas na qual reencontraremos Palestrina, dessa vez sob uma perspectiva muito nova, como mostra o aforismo 219 do primeiro volume, publicado em 1878:

A música cheia de alma surge no catolicismo restaurado após o Concílio de Trento, graças a Palestrina, que transmitiu em sons o espírito de fervor e a emoção profunda desperta em uma nova via [...] sem essa renovação profundamente religiosa, sem essas ressonâncias de uma alma tocada pelo fervor, a música teria permanecido erudita ou operística [...] Tal é a profundidade da nossa dívida para com a vida religiosa (MA/HTH I, 219, KSA 2.179-180).

A primeira observação que se pode fazer ao ler essa passagem é que Palestrina, aqui, não é mais considerado tanto como um resultado, mas como uma origem, mais como a origem da música moderna, ou seja, como música expressiva. E é ao fervor religioso que Nietzsche atribui essa renovação, ou seja, a uma certa exaltação do sentimento e da emoção, contra uma música douta e erudita, obcecada pela inteligibilidade ou mesmo contra a música profana da ópera, incapaz de devoção, marcada, como ela é, pelas exigências do entretenimento. Nietzsche mantém, portanto, uma oposição entre Palestrina e os representantes do madrigal e da ópera, mas isso é deslocado para a questão da transmissão das emoções e da capacidade musical de expressar, de comunicar o que há de mais profundo na alma. Como lembra Olivier Ponton, em sua obra Nietzsche, Philosophiede la légèretéPONTON, O. Nietzsche. Philosophie de la légèreté. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 2007., “essa definição do artista como alma que comunica e se comunica com outras almas remete à descrição do processo de formação do coro trágico em O nascimento da tragédia”.20 20 Cf. Ponton, 2007, p. 203. Palestrina renovaria, assim, essa capacidade de comunhão e elevação das almas que o coro permitia na tragédia, reforçando o sentimento religioso por meio do coro polifônico sacro. E não, portanto, pelas palavras, mas por sons, que Palestrina, mais uma vez, conseguiria realizar esse tour de force. Encontramos, aqui, o sentimento de Victor Hugo em relação a Palestrina e o lugar que lhe atribuiu na história da música, tornando-o pai de Mozart, Gluck ou Beethoven. Para Nietzsche, como para Hugo, Palestrina é, portanto, um ponto de partida na forma pela qual a música é agora capaz de restaurar, através do canto e da música, a própria essência da vida.

Mas talvez deveríamos esclarecer que essa restituição refere-se antes de tudo a um certo tipo de vida e não da vida em geral. Pois se há uma evolução na estética musical de Nietzsche nesse período, é porque ele coloca em xeque o caráter universal da música, tal como Schopenhauer havia afirmado em seu tempo e a quem ele parecia subscrever no início dos anos 70. Ora, encontramos no aforismo 171 de Miscelância de opiniões e sentenças o início de uma teoria que vem, por um lado, justamente confirmar que a música não é uma linguagem universal e que justifica, por outro, os aparentes anacronismos que o pensamento nietzschiano usa em termos de estética.

De todas as artes que costumam brotar num determinado solo cultural, em determinadas condições políticas e sociais, a música aparece como a última das plantas, no outono e fenecimento da cultura que lhe é própria: enquanto os primeiros sinais e arautos de uma nova primavera já se fazem notar geralmente; sim, por vezes a música soa, no interior de um mundo novo e assombrado, como a linguagem de uma era desaparecida, vindo tarde demais. [...] um amante de imagens sensíveis pode dizer que toda música verdadeiramente significativa é canto de cisne. - Pois a música não é uma linguagem universal, supratemporal, como frequentemente se diz em sua homenagem, mas corresponde exatamente a uma medida de sensibilidade, calor e tempo, que uma cultura bem determinada, delimitada no tempo e no espaço, traz em si como uma lei interior: a música de Palestrina seria totalmente inacessível a um grego, e, por sua vez - o que ouviria Palestrina na música de Rossini? (VM/OS, 171, KSA 2.450).21 21 Veja a passagem contida neste mesmo aforismo: “Apenas na música de Haendel ressoou o melhor da alma de Lutero e seus pares, o grande traço heroico-judaico que gerou todo o movimento da Reforma. Apenas Mozart resgatou a época de Luís XIV e a arte de Racine e de Claude Lorrain em ouro sonante. Apenas na música de Beethoven e de Rossini o século XVIII cantou derradeiramente, o século do entusiasmo, dos ideais partidos e da felicidade fugaz”. 22 22 A tradução dessa citação, assim como a da nota anterior, é de Paulo César de Souza, conforme obra indicada nas referências (N.T.).

O estatuto da música evolui, portanto, significativamente, uma vez que Nietzsche a arranca da universalidade em que se apoiava na interpretação dada por Schopenhauer; mas o que mais surpreende é que, segundo Nietzsche, a música se diferencia das outras artes na medida em que ela implica sempre um atraso no tempo, uma mudança em sua potência que sempre se expressa somente no final de uma época, talvez mesmo na época seguinte. Nesse contexto, Palestrina oferece, evidentemente, um exemplo perfeito para mostrar a lacuna que simboliza em sua própria época, a saber, a Renascença, pois é o caminho sublime, sagrado e realizado da Idade Média. O mesmo vale para Mozart, a quem Nietzsche atribui ser o grande clássico por excelência, embora sua época seja a do Iluminismo. Esta última tese, se parece trazer algo de novo em relação à questão da universalidade da música, não deixa de ser um eco do que Nietzsche escreveu no capítulo 19 de O nascimento da tragédia, quando afirmou que qualquer forma artística é a manifestação de uma certa “forma de existência”. Desse ponto de vista, Miscelância de opiniões e sentenças assume essa posição, acrescentando-lhe o elemento do atraso temporal, fazendo com que a música seja não apenas a temperatura de uma certa época, mas que seu espírito só pode ser realizado quando essa própria época estiver prestes a ser superada, ou talvez já superada. É preciso destacar outro elemento igualmente essencial nessa passagem: é a forma como Nietzsche divide os diferentes músicos, impedindo que cada um deles se comunique com o outro. Palestrina incompreensível para um grego e Rossini impensável para um Palestrina. Aqui está em jogo a questão da singularidade da música, própria do espírito do seu tempo e da qual cada músico detém o privilégio exclusivo. Mas esse aforismo também toca na questão da durabilidade e da solidez da própria música como fenômeno cultural, pois Nietzsche não hesita em afirmar, na continuação do aforismo 171: “é da natureza da música que os frutos de seus grandes anos de cultura murchem mais cedo e se estraguem mais rapidamente do que os frutos das artes plásticas, ou mesmo do que aqueles que crescem na árvore do conhecimento: de todos os produtos do senso artístico da humanidade , as ideias são de fato as mais duradouras” (VM/OS, 171, KSA 2.451). A inversão que Nietzsche opera aqui é muito interessante. Pois se ele faz das ideias o que tem mais chances de durar - e de certa forma só Platão e Aristóteles manifestaram essa resistência das ideias ao tempo, ele sublinha a extrema fragilidade da música em sua capacidade de enfrentar este último. E essa observação é carregada de consequências porque diz respeito principalmente a Wagner, cujo nome também aparece no aforismo 171. Se o primeiro volume de Humano, demasiado humanoNIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano II. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2008. havia silenciado quanto ao nome de Wagner, assim como O andarilho e sua sombra também não o menciona, ele aparece duas vezes em Miscelância de opiniões e sentenças. Em primeiro lugar, no aforismo 134, Nietzsche critica severamente a “melodia infinita” da qual Wagner é o iniciador, procedimento que esquece o ritmo propício à dança em favor de uma música em que “é preciso nadar” (VM/OS, 134, KSA 2.434) e na qual se acaba por “afundar”; depois no aforismo 171, no qual Nietzsche indica, pela primeira vez, que o espírito do wagnerismo, por um lado, “conduz, no sentido da reação, à última campanha contra o espírito da filosofia do Iluminismo” (VM/OS, 171 , KSA 2.451), e, por outro, coloca a questão de seu futuro. Tal como os seus predecessores, e talvez mais cedo do que o próprio Wagner imagina, pode muito bem sair de moda, “de modo que um belo dia”, como disse Nietzsche, “essa arte sublime e maravilhosa possa tornar-se incompreensível, desaparecer sob teias de aranha e o esquecimento” (VM/OS, 171, KSA 2.451). Wagner, que acreditava firmemente em sua música como a música do futuro, teria, portanto, o mesmo destino daqueles que o precederam, sucumbindo às garras vorazes do tempo e às modas constantemente renovadas.

Palestrina contra Wagner

Nesse sentido, o aforismo 171 de Miscelância de opiniões e sentenças nos conduz a um fato textual notável: não é fortuito que os nomes de Palestrina e Wagner se encontrem no mesmo aforismo. Já haviam sido reunidos em O nascimento da tragédia, com Palestrina justificando a concepção wagneriana de música que Nietzsche defendia àquela época. E porque Palestrina está desde o início ligada ao mestre de Bayreuth, é lógico que Nietzsche reaproxime os dois músicos, começando pelo segundo volume de Humano, demasiado humano, e depois com O caso Wagner, no capítulo 6, e na carta de Turim, escrita em maio de 1888. Com efeito, notamos que, nesse texto, Palestrina não só é colocado ao lado de Wagner, mas que ele é, sobretudo, justaposto a Parsifal, ópera que Nietzsche criticará muito fortemente, na medida em que considera que com ela Wagner nega a si mesmo, atirando-se “aos pés da cruz cristã” (MA II/HH II, Prefácio, 3, KSA 2.372). Nesse contexto, Nietzsche critica Wagner por ter abandonado a melodia e a beleza em favor da paixão e do idealismo. Fazendo Wagner falar como se se dirigisse a jovens discípulos, fazendo talvez os próprios wagnerianos falarem, Nietzsche escreve:

A paixão sobretudo transtorna. - Vamos nos entender sobre a paixão. [...] Pode-se prescindir de todas as virtudes do contraponto, não é preciso ter aprendido nada - sempre se sabe tocar com paixão! A beleza é difícil: guardemo-nos da beleza!… E sobretudo com a melodia! Caluniemos, meus amigos, caluniemos, se ainda temos algum pouco ideal, caluniemos a melodia. Nada é mais perigoso do que uma bela melodia! Nada certamente corrompe mais o gosto! Estamos perdidos, meus amigos, se voltarmos a amar belas melodias!... Princípio: a melodia é imoral. Prova: Palestrina. Aplicação: Parsifal. A ausência de melodia até santifica... E essa é a definição de paixão. Paixão - ou a ginástica do feio na corda da enarmonia. - Atrevamo-nos, meus amigos, ousemos ser feios (WA/CW 6, KSA 6.25).

E Nietzsche conclui: “Wagner ousou!” (WA/CW 6, KSA 6.25). É bem verdade que essa passagem de O caso Wagner é bastante enigmática porque faz alusão, de forma muito vaga e casualmente, a problemas bastante complexos e sujeitos a evoluções no pensamento de Nietzsche, como tentamos mostrar até agora. E se uma leitura rápida e superficial pode levar à interpretação segundo a qual Nietzsche finalmente aproxima Palestrina e Wagner, em 1888, para melhor dispensá-los, é preciso admitir que não é esse o caso e que, ao contrário, ele se esforça, agora, para arrancar Palestrina da interpretação moral e idealista de Wagner. Mas vamos pegar ponto por ponto o essencial desse capítulo 6:

1. Wagner destruiu a melodia (que para Nietzsche, como para Palestrina, carrega a expressão e o sentido da vida, dos afetos e das paixões). Como ele a destruiu? Introduzindo em seus dramas o que ele chama de “melodia infinita” (unendliche Melodie), que, em Miscelância de opiniões e sentenças, como vimos anteriormente, já havia sido severamente criticada: ora, “a melodia infinita”, se ela rompe com “a proporção matemática do tempo e da potência essencial” (VM/OS, 134, KSA 2.434) e com qualquer rítmica digna desse nome, também enfatiza a repetição constante, de um extremo o outro da obra, de uma mesma célula melódica indefinidamente variada e repetida, o que implica também uma prática constante de dissonância. Repetição e dissonância, ou seja, desarticulação da linha melódica segundo Nietzsche, que zomba da expressão “melodia infinita”, traduzindo-a por “melodia sem fim”. Nietzsche considera que, segundo Wagner, a melodia, nesse sentido, é imoral. Porque ao contrário, para o nosso filósofo, a música, enquanto construção, repousa precisamente na melodia: uma estrutura que permite dar unidade orgânica à obra musical.

2. Que Palestrina seja a prova de que a melodia é imoral não deve ser interpretado como se sua música fosse desprovida de melodia e ele próprio tivesse se conformado à moral, mas remete ao fato de que a Igreja, como vimos anteriormente, havia pedido ao compositor italiano para renunciar à polifonia, com Palestrina agindo como um resistente, ao conseguir salvar sua música diante da pressão das autoridades eclesiásticas. A esse respeito, Nietzsche critica justamente Wagner por ter cedido à mistura de gêneros: para ele, o drama wagneriano não é mais música, é teatro onde se fala demais, o que remete à crítica dirigida à ópera em O nascimento da tragédia, mas dessa vez aplicada ao próprio Wagner. Nesse sentido, o drama wagneriano é um pot-pourri de elementos heterogêneos, não pode ser uma obra orgânica e musical como a de Palestrina.

3. A crítica ao abandono da melodia combina-se aqui com a reprovação fundamental mencionada antes, quando tratamos do capítulo 6, ou seja, o abandono do contraponto,23 23 Na música, o contraponto (em sentido rigoroso) é uma forma de escrita musical, que tem sua origem na polifonia, nascida na Idade Média, e que consiste na superposição organizada de linhas melódicas distintas. O contraponto é particularmente usado durante a Renascença até o período barroco. Compositores como Palestrina, William Byrd, ou mesmo Georg Friedrich Handel, mas sobretudo Johann Sebastian Bach, dedicaram suas horas de glória à arte do contraponto. A palavra contraponto vem do latim punctus contra punctum a morticulum, literalmente “ponto contra ponto”, isto é, “nota contra nota”. O contraponto é mais antigo que a harmonia tonal. Modal em seu início, é a base da polifonia que prevaleceu no Ocidente até o início do período barroco, quando a harmonia adquire importância crescente com o desenvolvimento da tonalidade. A música de Bach é geralmente considerada a referência para o equilíbrio desses dois aspectos da escrita musical. Contraponto e harmonia estão intimamente ligados. Entre os dois existe “mais diferença de ponto de vista do que de essência”: ponto de vista vertical para a harmonia; horizontal para o contraponto (Cf. Honegger, 1976). A escrita harmônica é baseada na sequência de acordes que dão origem às linhas melódicas. Cada nota é escrita de acordo com sua harmonia em relação às demais, e lidas verticalmente entre as linhas melódicas. A escrita contrapontística considera a qualidade das linhas melódicas. Os acordes são um fenômeno secundário, percebidos em momentos rítmicos específicos. Cada nota é escrita em relação às demais, e lidas horizontalmente, dentro da linha melódica, tendo em vista a qualidade da melodia. Na escrita contrapontística, as linhas melódicas devem ser tão conjuntas quanto possível, e devem respeitar certas regras de movimento. As regras harmônicas existem, e são destinadas a enquadrar as composições. Deve-se evitar especialmente certos intervalos dissonantes, e certas formações do acorde que estariam em contradição com os fundamentos dessa disciplina. Por exemplo, a segunda inversão é proibida, pois tem funções muito precisas - passagem, bordaduta e cadências - e que não teriam sentido no contraponto. Essas regras harmônicas são, portanto, mais restritivas do que as vigentes na harmonia tonal. Assim como na harmonia, dissonâncias temporárias são permitidas e também regidas por regras. Elas acrescentam um interesse musical à obra. O contraponto realizado de acordo com as regras dessa arte em nada implica a identidade ou o parentesco dos temas cujas melodias se sobrepõem. Basta que sejam respeitadas as regras relativas às consonâncias e dissonâncias, a modulação, as falsas relações, etc. Foi, aliás, a marca dos maiores mestres saber produzir tais combinações de temas distintos, e depois de Palestrina, Bach e Handel, não foram abandonadas. análogo ao abandono da polifonia solicitado a Palestrina pela Igreja. A paixão, aqui, se opõe à construção contrapontística, da qual Palestrina é aliás um dos primeiros mestres, e essa paixão é o nome adulterado dado aos afetos decadentes e “histéricos” (WA/CW 5, KSA 6.22), em particular aqueles das heroínas wagnerianas e das mulheres wagnerianas em geral, conforme observado no capítulo 9 e no segundo post scriptum de O caso Wagner (WA/CW 9, KSA 6.34 e segundo post scriptum, KSA 6.48).

4. Por fim, a referência a Parsifal, nesse contexto, não deve ser compreendida como uma continuidade com Palestrina nem como a realização do espírito que sua música carrega, mas sim como sua falsificação, na medida em que Wagner usa em sua última ópera todos os truques e artimanhas possíveis para fazer crer numa religiosidade que, segundo Nietzsche, nada mais é do que devoção fanática e “pura tolice” (WA/CW, post scriptum, KSA 6.43). Aqui, Wagner não é mais o grande encantador da Quarta Extemporânea comunicando sua alma a outras almas, mas apenas um “velho encantador” (WA/CW 3, KSA 6.16), um antigo sedutor, “o grande latifundiário do reino de sons” (WA/CW 8, KSA 6.31), como diria Nietzsche, cuja arte se parece essencialmente a uma atividade comercial. Nessas condições, Wagner obviamente não pode reivindicar aquela pureza alcançada por Palestrina em seu tempo.

Palestrina ou o equilíbrio entre a “bela forma'” e a “embriaguez do êxtase”

Concluiremos, portanto, afirmando que, se a referência a Palestrina permanece rara no corpus nietzschiano, não deixa de ser capital na medida em que vem sempre ilustrar os momentos fortes e as mudanças que Nietzsche opera na evolução de sua estética musical, elaborada na complexa relação que mantém com o mestre de Bayreuth. Se o nome do compositor italiano foi positivamente ligado a Wagner em O nascimento da tragédia (e, portanto, à metafísica da música de Schopenhauer), Nietzsche não deixará, em seguida, de libertá-lo, primeiro, da estética schopenhaueriana e, depois, do próprio Wagner, fazendo os dois compositores ocupar posições contrárias, para sem dúvida melhor apropriar-se de Palestrina e torná-lo um pivô essencial de sua própria concepção de música. Em primeiro lugar porque Palestrina corresponde largamente à estética musical nietzschiana, que nunca deixa de sublinhar, como tão acertadamente diz Martine Béland, “a importância da harmonia e do ritmo e sobretudo da existência, na criação musical, de um equilíbrio entre a procura racional de uma ‘bela forma’ e o abandono da racionalidade pelo êxtase”.24 24 Cf. Béland, 2009, p. 246. Mas também porque Palestrina encarna uma forma de comunicação baseada em “um estado estético que é o ápice da comunicabilidade e da transmissibilidade entre os seres vivos”, “estado estético” que aliás será pensado por Nietzsche, como lembra um póstumo de 1888, como sendo “a fonte de todas as línguas” (NF/FP 1888, 14[119], KSA 13.296).

Referências

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  • *
    Tradução de Márcio José Silveira Lima
  • 1
    Cf. WA/CW 1, KSA 6.13: “Ontem - vocês acreditarão? Ouvi pela vigésima vez a obra-prima de Bizet”. Parece entretanto que Nietzsche só assistiu a cinco apresentações de Carmen, de acordo com a correspondência. Cf.Grzelczyk, 2015GRZELCZYK, J. Nietzsche et le cas Bizet. In: Studia Nietzscheana, 2015, http://www.nietzschesource.org/SN/grzelczyk-2015.
    http://www.nietzschesource.org/SN/grzelc...
    , § 21 e seguintes.
  • 2
    O conjunto dos elementos biográaficos aqui apresentados provêm das monografias de BianchI, 1994BIANCHI, L. Giovanni Pierluigi da Palestrina. Trad. Françoise Malettra et Claudine Melatitre. Paris: Fayard, coll. « Bibliothèque des grands musiciens », 1994. e Gautier, 1994GAUTIER, J.-F. Palestrina, ou l’esthétique de l’âme du monde. Arles: Actes Sud, coll. “Musique”, 1994..
  • 3
    Puissant Palestrina, vieux maître, vieux génie,/Je vous salue ici, père de l’harmonie,/Car, ainsi qu’un grand fleuve où boivent les humains,/Toute cette musique a coulé dans vos mains !/Car Gluck et Beethoven, rameaux sous qui l’on rêve,/Sont nés de votre souche et faits de votre sève !/Car Mozart, votre fils, a pris sur vos autels/Cette nouvelle lyre inconnue aux mortels […]/Plus tremblante que l’herbe au souffle des aurores,/Née au seizième siècle entre vos doigts sonores !/Car, maître, c’est à vous que tous nos soupirs vont,/Sitôt qu’une voix chante et qu’une âme répond !). Cf. Hugo, 1840HUGO, V. Les Rayons et les Ombres. In: Œuvres complètes, Poésie, VII, Paris: Delloye libraire, 1840, pp. 295-296., pp. 295-296.
  • 4
    Em uma nota de 10 de julho de 1879, Cosima Wagner registra esse acontecimento em seu diário: “À tarde, durante um grande temporal, concerto no templo. Todos os tipos de problemas [...]. O concerto, porém, nos interessa, certas coisas como os responsórios de Palestrina nos fascinam e nos elevam a alma”. Ver Wagner, 1979WAGNER, C. Journal, tome III, 1878-1880. Trad. M.-F. Demet. Paris: Gallimard, NRF, 1979., p. 405.
  • 5
    Para sublinhar a influência de Palestrina em Wagner, pode-se consultar: Bell, 2013BELL, R. H. Wagner’s Parsifal: An Appreciation in the Light of His Theological Journey. Eugene: Cascade Books, 2013.; o autor indica que Wagner teria se inspirado nesse trabalho de arranjo do Stabat Mater para o prelúdio do primeiro ato de Lohengrin.
  • 6
    Por outro lado, é possível supor que Nietzsche descobriu Palestrina através do futuro mestre de Bayreuth, uma vez que não há vestígios de qualquer referência ao mestre de capela italiano, nem na correspondência, nem nos escritos de sua juventude, nem nos cadernos anteriores a 1869. Ver Liebert, 2012LIEBERT, G. Nietzsche et la musique. Paris: PUF, Quadrige, 2000, rééd. 2012., p. 22, em que o autor supõe que Nietzsche, habituado à música religiosa como menino do coro e jovem devoto, tinha um conhecimento preciso de Palestrina: “No início do verão de 1860, quando tinha então dezesseis anos, Nietzsche terminou um Miserere no qual ele habilmente se lembra de Palestrina”. No entanto, o autor não menciona qualquer referência para apoiar esse fato.
  • 7
    Cf. Platon, 2016PLATON, -, La République. Trad. Georges Leroux. Paris: Flammarion, 2016., 398d.
  • 8
    Cf. Platon, 2016PLATON, -, La République. Trad. Georges Leroux. Paris: Flammarion, 2016., 400a-d.
  • 9
    Cf. GT/NT 19, KSA 1.120: “Não se poderia definir ou penetrar melhor o conteúdo mais íntimo dessa cultura socrática do que nomeá-la cultura da ópera: porque, é precisamente nesse domínio que ela se exprimiu, com singular ingenuidade, sobre os seus saberes e as suas intenções, por mais surpreendente que nos pareça, quando confrontamos a gênese e a evolução da ópera para a verdade eterna do apolíneo e do dionisíaco. Em primeiro lugar, recordarei as origens do stilo rappresentativo e do recitativo. É crível que essa música da ópera, completamente exteriorizada e incapaz de devoção, pudesse ter sido acolhida e estimada com exaltado fervor, como o renascimento de toda a verdadeira música, por uma época em que acabava de elevar-se a música inefavelmente sublime e sagrada de Palestrina. Que na mesma época, no mesmo povo, despertasse, ao lado das catedrais da harmonia palestriniana, em que toda a Idade Média cristã trabalhou, essa paixão a um modo de falar meio musical, não posso explicá-la a mim mesmo senão pelo efeito de uma tendência extra-artística que opera na própria essência do recitativo”.
  • 10
    Sobre esse ponto, ver Goléa, 1977GOLÉA, A. La Musique de la nuit des temps aux aurores nouvelles. Paris: Leduc, 1977., p. 97 e ss.: ele explica que Palestrina, que dependia, para o seu trabalho e sua obra, dos papas e dos dignitários eclesiásticos da época, teve problemas com eles e com o Concílio de Trento como introdutor da polifonia nas obras religiosas. Essas autoridades o censuraram por impedir assim a inteligibilidade das palavras do texto religioso e queriam proibir toda música polifônica na igreja. Palestrina, portanto, corria perigo como compositor, chegando perto do pior (a proibição de sua música), mas foi protegido e sua música salva por outros protetores, o papa Júlio III, seu sucessor, o papa Marcelo II (cometa fugaz no trono papal) e o Cardeal Borromeo. E conseguiu, segundo Goléa, defendendo sua visão, fazer uma síntese entre as demandas contraditórias às quais foi submetido. Gostaria de salientar que devo essa referência a Éric Blondel, a quem agradeço vivamente.
  • 11
    Cf. NF/FP 1869, 1[41], KSA 7.20: “Em 1564 uma comissão de oito cardeais estabeleceu que as palavras sagradas do canto deveriam ser ouvidas de forma clara e contínua. Foi a essa exigência que Palestrina respondeu. As composições de Palestrina estão calculadas para um contexto determinado, e pensadas para um lugar preciso no culto. Caráter dramático das ações litúrgicas. As formas da frase artificial deixaram de ser fins em si mesmo: são meios de expressão”.
  • 12
    Cf. Dufour, 2005DUFOUR, É. L’Esthétique musicale de Nietzsche. Villeneuve d’Ascq: Presses universitaires du Septentrion, 2005., p. 112.
  • 13
    Cf. Caccini, 1997CACCINI, G. Le nuove musiche. Trad. Jean-Philippe Navarre. Paris: Cerf, 1997., § 5, p. 49, ApudBeland, 2020BÉLAND, M. “Anéantir l’opéra” pour guérir la musique? Critique et thérapeutique dans l’esthétique musicale de Nietzsche. In: Wienand, I. et Wotling, P. (dir.), Die Frage der Medizin in Nietzsches Philosophie / La question de la médecine dans la philosophie de Nietzsche. Bâle: Schwabe Verlag, 2020., p. 117.
  • 14
    Cf. Beland, 2020BÉLAND, M. “Anéantir l’opéra” pour guérir la musique? Critique et thérapeutique dans l’esthétique musicale de Nietzsche. In: Wienand, I. et Wotling, P. (dir.), Die Frage der Medizin in Nietzsches Philosophie / La question de la médecine dans la philosophie de Nietzsche. Bâle: Schwabe Verlag, 2020., p. 117.
  • 15
    Cf. Novalis, 1966NOVALIS, - (HARDENBERG, G. P. F. von). Encyclopédie. Trad. et présentation Maurice de Gandillac. Paris: Minuit, 1966., p. 301: "sonatas, sinfonias, fugas, variações - eis a musica propriamente dita".
  • 16
    Cf. Hanslick, 1877HANSLICK, E. Du beau dans la musique: essai de réforme de l’esthétique musicale. Trad. sur la 5e édition Charles Bannelier. Paris: Brandus & Cie, 1877..
  • 17
    Cf. Schopenhauer, 2003SCHOPENHAUER, A. Le Monde comme volonté et comme représentation. Trad. Auguste Burdeau et Richard Roos. Paris: PUF, 2003., § 52, p. 327.
  • 18
    Cf. Schopenhauer, 2003SCHOPENHAUER, A. Le Monde comme volonté et comme représentation. Trad. Auguste Burdeau et Richard Roos. Paris: PUF, 2003., p. 334 e seguintes.
  • 19
    Cf. Bouriau, 2015BOURIAU, C. Nietzsche et la Renaissance. Paris: PUF, 2015., p. 26-35.
  • 20
    Cf. Ponton, 2007PONTON, O. Nietzsche. Philosophie de la légèreté. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 2007., p. 203.
  • 21
    Veja a passagem contida neste mesmo aforismo: “Apenas na música de Haendel ressoou o melhor da alma de Lutero e seus pares, o grande traço heroico-judaico que gerou todo o movimento da Reforma. Apenas Mozart resgatou a época de Luís XIV e a arte de Racine e de Claude Lorrain em ouro sonante. Apenas na música de Beethoven e de Rossini o século XVIII cantou derradeiramente, o século do entusiasmo, dos ideais partidos e da felicidade fugaz”.
  • 22
    A tradução dessa citação, assim como a da nota anterior, é de Paulo César de Souza, conforme obra indicada nas referências (N.T.).
  • 23
    Na música, o contraponto (em sentido rigoroso) é uma forma de escrita musical, que tem sua origem na polifonia, nascida na Idade Média, e que consiste na superposição organizada de linhas melódicas distintas. O contraponto é particularmente usado durante a Renascença até o período barroco. Compositores como Palestrina, William Byrd, ou mesmo Georg Friedrich Handel, mas sobretudo Johann Sebastian Bach, dedicaram suas horas de glória à arte do contraponto. A palavra contraponto vem do latim punctus contra punctum a morticulum, literalmente “ponto contra ponto”, isto é, “nota contra nota”. O contraponto é mais antigo que a harmonia tonal. Modal em seu início, é a base da polifonia que prevaleceu no Ocidente até o início do período barroco, quando a harmonia adquire importância crescente com o desenvolvimento da tonalidade. A música de Bach é geralmente considerada a referência para o equilíbrio desses dois aspectos da escrita musical. Contraponto e harmonia estão intimamente ligados. Entre os dois existe “mais diferença de ponto de vista do que de essência”: ponto de vista vertical para a harmonia; horizontal para o contraponto (Cf. Honegger, 1976HONEGGER, M. (dir.). Dictionnaire de la musique: Science de la musique: Formes, technique, instruments, vol. 1. A-K. Paris: Bordas, 1976.). A escrita harmônica é baseada na sequência de acordes que dão origem às linhas melódicas. Cada nota é escrita de acordo com sua harmonia em relação às demais, e lidas verticalmente entre as linhas melódicas. A escrita contrapontística considera a qualidade das linhas melódicas. Os acordes são um fenômeno secundário, percebidos em momentos rítmicos específicos. Cada nota é escrita em relação às demais, e lidas horizontalmente, dentro da linha melódica, tendo em vista a qualidade da melodia. Na escrita contrapontística, as linhas melódicas devem ser tão conjuntas quanto possível, e devem respeitar certas regras de movimento. As regras harmônicas existem, e são destinadas a enquadrar as composições. Deve-se evitar especialmente certos intervalos dissonantes, e certas formações do acorde que estariam em contradição com os fundamentos dessa disciplina. Por exemplo, a segunda inversão é proibida, pois tem funções muito precisas - passagem, bordaduta e cadências - e que não teriam sentido no contraponto. Essas regras harmônicas são, portanto, mais restritivas do que as vigentes na harmonia tonal. Assim como na harmonia, dissonâncias temporárias são permitidas e também regidas por regras. Elas acrescentam um interesse musical à obra. O contraponto realizado de acordo com as regras dessa arte em nada implica a identidade ou o parentesco dos temas cujas melodias se sobrepõem. Basta que sejam respeitadas as regras relativas às consonâncias e dissonâncias, a modulação, as falsas relações, etc. Foi, aliás, a marca dos maiores mestres saber produzir tais combinações de temas distintos, e depois de Palestrina, Bach e Handel, não foram abandonadas.
  • 24
    Cf. Béland, 2009BÉLAND, M. “Le rire de Tirésias”. Une perspective nietzschéenne sur l’extase chez Glenn Gould. In: Topique, n.109, p. 245-255, 2009/4. DOI: 10.3917/top.109.0245.
    https://doi.org/10.3917/top.109.0245...
    , p. 246.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    09 Out 2022
  • Aceito
    11 Dez 2022
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