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Representações sociais sobre vigilância sanitária entre trabalhadores

Resumos

Estudo qualitativo, exploratório-interpretativo, com o objetivo de conhecer as representações sociais sobre vigilância sanitária entre trabalhadores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, no Rio Grande do Sul. Verificou-se que vigilância sanitária é representada pelos sujeitos como um processo que, apesar das contradições, vem sendo construído e vivenciado no cotidiano da profissão, com sinais de renovação das representações existentes. Assim, proteção à saúde adquire novo entendimento, distanciando-se dos limites da prevenção que tradicionalmente focaliza a doença, para voltar-se à noção de promoção. Também, a imagem de polícia sanitária desloca-se da punição para a educação sanitária, estabelecendo os elos entre os fazeres normativo e educativo. Além disso, o profissionalismo assenta-se em responsabilidade e conhecimento, e a desvalorização profissional ancora-se na idéia de exclusão. Os resultados propiciam análise dos elementos que podem estar causando permanências e influenciando os movimentos da prática cotidiana, podendo reverter em benefício da construção de um perfil profissional.

vigilância sanitária; regulação sanitária internacional; recursos humanos em saúde; políticas públicas em saúde


This is a qualitative, exploratory-interpretative study, with the purpose of investigating the social representations of health surveillance among members of the National Health Surveillance Agency - ANVISA, in Rio Grande do Sul State. It was found that health surveillance is represented by subjects as a process that, despite the contradictions, is being constructed and lived in the job routine with signs of renovation of existing representations. Thus, health protection acquires a new understanding, deviating from the prevention limits that traditionally focus on disease in order to return to promotion itself. Also, the image of health police is displaced from punishment to health education, establishing links between normative and educative performance. Moreover, professionalism is based on responsibility and knowledge, and professional devaluation is anchored in the idea of exclusion. The results allow for an analysis of the elements that can be causing permanencies and influencing the movements of daily practice, being able to revert into a benefit for the construction of a professional profile.

health surveillance; international health regulation; health manpower; public policies in health


Estudio cualitativo, exploratorio-interpretativo con el objetivo de conocer las representaciones sociales de trabajadores acerca de la vigilancia sanitaria en la Agencia Nacional de Vigilancia Sanitaria - ANVISA, RS. Vigilancia sanitaria fue representada por los sujetos como un proceso, el cual, a pesar de las contradicciones viene siendo construido y vivenciado en el cotidiano profesional con signos de renovación frente a las ya existentes. Así la protección de la salud adquiere una nueva comprensión, que se aleja de los límites de prevención, los que tradicionalmente enfocan a la enfermedad, para dirigirla en base a la noción de promoción. De la misma forma, la imagen de policía sanitaria, pasa de punición para educación sanitaria, estableciendo los ejes entre el hacer normativo y educativo. Por otro lado, el profesionalismo se fundamenta en la responsabilidad y conocimiento y en la falta de valor profesional basado en la exclusión. Los resultados favorecen un análisis de los elementos que pueden estar ocasionando su permanencia e influyendo en la práctica cotidiana, para posiblemente volverse en un beneficio para la construcción del perfil profesional.

vigilancia sanitaria; regulación sanitaria internacional; recursos humanos en salud; políticas públicas en salud


ARTIGO ORIGINAL

Representações sociais sobre vigilância sanitária entre trabalhadores

Dirciara Barañano SouzaI; Clarice Maria Dall AgnolII

IEnfermeira, Mestre em Enfermagem, e-mail: dirciara.cramer@anvisa.gov.br

IIDoutor em Enfermagem, Docente da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, e-mail: clarice@adufrgs.ufrgs.br

RESUMO

Estudo qualitativo, exploratório-interpretativo, com o objetivo de conhecer as representações sociais sobre vigilância sanitária entre trabalhadores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, no Rio Grande do Sul. Verificou-se que vigilância sanitária é representada pelos sujeitos como um processo que, apesar das contradições, vem sendo construído e vivenciado no cotidiano da profissão, com sinais de renovação das representações existentes. Assim, proteção à saúde adquire novo entendimento, distanciando-se dos limites da prevenção que tradicionalmente focaliza a doença, para voltar-se à noção de promoção. Também, a imagem de polícia sanitária desloca-se da punição para a educação sanitária, estabelecendo os elos entre os fazeres normativo e educativo. Além disso, o profissionalismo assenta-se em responsabilidade e conhecimento, e a desvalorização profissional ancora-se na idéia de exclusão. Os resultados propiciam análise dos elementos que podem estar causando permanências e influenciando os movimentos da prática cotidiana, podendo reverter em benefício da construção de um perfil profissional.

Descritores: vigilância sanitária; regulação sanitária internacional; recursos humanos em saúde; políticas públicas em saúde

INTRODUÇÃO

Ao se buscar os registros de medidas que sinalizam o início das práticas atuais de vigilância sanitária em portos, aeroportos, fronteiras e recintos alfandegados (VISAPAF), verificou-se que datam de 1348, com a abertura dos Portos em Veneza, ganhando destaque no Brasil em 1808, quando da chegada da Família Real. Historicamente, estas ações foram se conformando num caráter fiscalizador, cuja principal função era impedir a entrada de doenças nos países e dar garantias internacionais às cargas transportadas e aos viajantes(1). No cenário contemporâneo, a globalização da economia, do comércio, da produção, da circulação dos meios de transporte e das pessoas impulsiona a uma reordenação nas práticas e a abertura de um debate sobre o tema em diversos âmbitos sociais. Desta forma, a cadeia de negociação para um agir participativo social vem desafiando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), criada no final da década de 90(2), a coordenar estratégias de discussões em nível local, regional, nacional e internacional.

Neste estudo, buscou-se conhecer as representações sociais sobre vigilância sanitária entre trabalhadores da Coordenação de Vigilância Sanitária de Portos, Aeroportos, Fronteiras e Recintos Alfandegados no Estado do Rio Grande do Sul, considerando-se sua construção na perspectiva dos universos reificado e consensual, expressa em mecanismos de objetivação e ancoragem. Ressalta-se que, embora "as ações de vigilância sanitária constituem a mais antiga face da saúde pública"(3), somente nas últimas décadas passam a ser tema de estudos. Estes, na maioria tratam de sua construção histórica a partir do contexto sócio-político-econômico, situando-a no espaço das relações sociais de produção e consumo(3-4). Na literatura específica sobre VISAPAF, com exceção de dois estudos(5-6), sinaliza-se a carência de citação sobre quem realiza as ações de controle sanitário, bem como, a escassez de informações sobre a organização do processo de trabalho. Percebe-se uma conformação histórico-cultural de silenciamento dos trabalhadores desta vigilância, como um sentimento de desvalorização das ações desenvolvidas pelo grupo, compreendida e manifestada pelos próprios trabalhadores no dia-a-dia. Mas como é possível haver uma vigilância sanitária, ou uma história desta, sem sujeitos? Quem são os sujeitos responsáveis pelas ações de vigilância sanitária? Como é construído o conhecimento e como se manifesta nas práticas cotidianas?

Nesta perspectiva, o conceito de representações sociais abriu possibilidades para analisar estes questionamentos, uma vez que é contrário à epistemologia do sujeito ou do objeto puro(7-8). A investigação sobre as representações sociais que os trabalhadores da VISAPAF têm sobre a vigilância sanitária também conferiu destaque por integrar as dimensões cognitiva e afetiva que se estruturam sobre a realidade social em que estes sujeitos estão inseridos. O pressuposto foi utilizar-se, explicitamente, na condução da pesquisa, uma modalidade de saber gerado através da comunicação na vida cotidiana, que tem a finalidade prática de orientar os comportamentos em situações sociais. Da mesma forma, buscou-se uma abordagem que considerasse a complexidade histórico-sócio-cultural com que foi se construindo a VISAPAF.

CAMINHO METODOLÓGICO

Neste estudo, do tipo exploratório-interpretativo, desenvolveu-se uma abordagem qualitativa, adotando-se as bases conceituais da Teoria das Representações Sociais, por constituírem um vasto campo para estudos que pretendam englobar as dimensões cognitivas, afetivas e sociais(9). Enquanto corrente complementar à teoria moscoviciana, tomou-se como referência a perspectiva mais fiel as proposições originais, liderada por Denise Jodelet, em Paris. Isto porque, "esta corrente é utilizada por pesquisadores que queiram dar conta de uma maneira maximamente compreensiva da representação de um dado objeto por um dado conjunto social"(10).

Local e Sujeitos

O campo de estudo compreendeu três postos de vigilância sanitária: Posto de Fronteira de Uruguaiana, Posto Aeroportuário de Porto Alegre e Posto Portuário de Rio Grande, vinculados à Coordenação de Vigilância Sanitária de Portos, Aeroportos, Fronteiras e Recintos Alfandegados-CVSPAF da ANVISA, no Estado do Rio Grande do Sul (RS). Esta Coordenação é gestora de onze postos no Estado e dispõem de uma equipe de trabalhadores composta por homens e mulheres de diversas categorias profissionais com diferentes níveis de escolaridade desde o ensino fundamental incompleto, nível superior até pós-graduados, sendo que todos realizam as mesmas atividades. Para a seleção dos sujeitos, como critérios de inclusão, considerou-se o trabalhador que realizava atividades de fiscalização e que manifestou interesse em falar sobre o tema do estudo. Foram excluídos aqueles que estavam ausentes no período da coleta de informações por motivos diversos (licença de saúde, licença de interesse, férias, etc.) ou que não quiseram participar quando da seleção.

Coleta de Informações e Procedimentos de Análise

A coleta de informações ocorreu, entre novembro de 2005 e junho de 2006. Para disparar o processo de apreensão dos elementos constitutivos das representações sociais, buscando-se a primeira noção do sujeito de pesquisa sobre o objeto de estudo, utilizou-se a técnica de associação livre de palavras como primeiro recurso. A operacionalização se deu através da evocação de palavras, utilizando-se a expressão vigilância sanitária, como indutora das associações, com o objetivo de identificar as representações que os trabalhadores da VISAPAF têm sobre a vigilância sanitária. Fez-se a seguinte pergunta: Quais as três primeiras palavras que lhe vêm à cabeça quando você escuta a expressão vigilância sanitária? Logo após, solicitou-se que organizassem estas três palavras destacando as duas mais significativas e/ou importantes. Este procedimento foi realizado com quarenta e quatro trabalhadores, tendo em vista que dos cinqüenta e dois trabalhadores que representam o total dos três postos envolvidos, um desenvolvia atividades exclusivamente administrativas, dois se encontravam de licença médica e cinco não quiseram participar. Através do programa Microsoft Excel 2003, os produtos das evocações foram organizados em listas de freqüência, ordem de aparecimento das três palavras evocadas e importância atribuída a elas pelos participantes.

Posteriormente, procurou-se aprofundar os significantes, levantados a partir do teste de evocação de palavras, por meio de associações ou confrontamento com os significados explorados dos depoimentos obtidos pelas entrevistas semi-estruturadas. Considerando-se as perspectivas de estudos franceses para se alcançar o índice de saturação de entrevistados(11), chegou-se a um número de 30 participantes. Estes foram escolhidos através da técnica "bola de neve" (snowball technique). Para cada um dos campos de estudo, selecionou-se através de um sorteio, o primeiro trabalhador e, no final da entrevista, solicitou-se ao respondente que indicasse um colega para participar e, assim sucessivamente, até completar o número de entrevistas previstas para cada local. Quando ocorria a impossibilidade de participação de algum dos sujeitos indicados, o processo "bola de neve" era repetido com uma nova indicação. Foram respeitadas as diferenças nos contingentes quantitativos dos trabalhadores entre os três postos para a distribuição das trinta entrevistas. Após a transcrição literal do material gravado, realizou-se leituras flutuantes para captação dos conteúdos a serem analisados, preparando o texto para apreensão dos temas até chegar às categorias centrais. Cabe ressaltar que na delimitação das categorias temáticas também se ponderou os dados obtidos no teste de evocação de palavras.

Seguindo o compasso de alguns estudos(12), considerou-se que os temas, em sua concepção, aparecem como o centro da consciência fundamentado na experiência, onde a estruturação temática coincide de algum modo, com o trabalho de objetivação da representação. Assim, os elementos afetivos, cognitivos e sociais que organizam e fizeram emergir os temas, indicaram o segundo ponto primordial para entendimento das representações sociais, ou seja, a ancoragem.

Precauções com os Aspectos Éticos

Em se tratando de pesquisa com seres humanos, atendeu-se a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e outros dispositivos(13). Em um primeiro momento, buscou-se anuência formal junto a CVSPAF/RS, deixando claros os objetivos da pesquisa, finalidades, metodologia e precauções com aspectos éticos. A coleta de dados foi precedida da homologação do projeto no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob número 2005427. Quanto ao Termo de Consentimento Livre e Informado, o mesmo foi assinado em duas vias, ficando uma com o sujeito e outra com as pesquisadoras. Com relação à gravação em áudio das entrevistas, as fitas foram inutilizadas após transcrição, mantendo-se guarda do material transcrito por cinco anos, a contar da publicação dos resultados. A todos os sujeitos participantes foi assegurada uma devolutiva dos resultados após conclusão do estudo e uma das formas de divulgação do trabalho consiste em veicular o teor do mesmo na Intravisa - sistema de informação interno, acessado somente pelos trabalhadores da ANVISA.

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

A partir dos dados obtidos através do teste de evocação de palavras e do teor das entrevistas chegou-se às principais categorias temáticas: Proteção da Saúde, Identidade Profissional e Polícia Sanitária: os elos entre o fazer normativo e a educação sanitária. Destaca-se que a técnica de entrevista propiciou a contextualização das informações obtidas no teste de evocação de palavras. Esta contextualização, por sua vez, subsidiou a organização das palavras evocadas, dando contorno à categorização temática, conforme são apresentadas a seguir.

Proteção da Saúde

Na categoria proteção da saúde, tem-se uma das objetivações da representação sobre vigilância sanitária, ancorada em elementos da realidade como ações de prevenção, qualidade de vida da população, higiene, bem comum e direito à saúde. Esses temas foram reforçados no teste de associação de palavras, com destaque para saúde e prevenção pela maior freqüência, ordem de aparecimento e importância atribuída pelos sujeitos, tendo sido mencionados com destaque nas três seqüências de evocações. Destaca-se que, a transformação da idéia de vigilância sanitária em proteção da saúde, enquanto imagem cristalizada, possível de ser compreendida e transmitida por estas pessoas, tem como principal ponto de ancoragem o tema prevenção. Porém, prevenir adquire o significado de controlar para evitar a entrada de doenças no País, vinculando-se diretamente à noção de barreira enquanto escudo. Assim, a saúde apresenta-se fortemente vinculada a idéia de doença e com a ação normativa de cuidar das fronteiras.

Verifica-se um discurso desconectado entre as ações da VISAPAF com as ações de atenção à saúde. Neste sentido, torna-se necessário que os trabalhadores construam novos entendimentos e conceitos sem fugir das perspectivas do Sistema Único de Saúde. Contudo, é importante ressaltar que as práticas neste campo do conhecimento não se limitam às atividades básicas de atenção de saúde, conforme a própria definição legal(2). Trata-se de uma área específica, pois regula e monitora a qualidade de bens de saúde que circularão e terão seus efeitos em âmbito nacional e internacional. Portanto, extrapola as fronteiras geográficas, seja em termos de risco à saúde ou efeitos econômicos de sua regulação. Por outro lado, percebe-se a expressão promoção da saúde circulando ainda timidamente entre os trabalhadores de VISAPAF. Isto pode estar indicando um movimento de mudança na representação sobre vigilância sanitária, pois vizualiza-se uma possibilidade de deslocamento do foco prevenção. A promoção da saúde interligada a proposta de proteção, na análise do autor(5), surgiu como uma tentativa da ANVISA de superar o caráter policialesco das ações de vigilância, que se construiu ao longo dos anos e partir na direção de estabelecer novos conceitos que fundamentem as práticas.

Identidade Profissional

Esta categoria desdobrou-se em dois eixos, constituindo as subcategorias: profissionalismo e desvalorização profissional. Os trabalhadores da VISAPAF ao falarem de si e da vigilância sanitária dão destaque à construção de um saber e de um fazer que foi sendo elaborado no cotidiano de trabalho, pois não tinham conhecimento da dimensão deste campo de atuação. A concepção de uma profissão definida na prática é trazida, neste estudo, pelo conjunto de trabalhadores como uma organização dos seus modos de ver (apreender) o objeto de trabalho e os instrumentos necessários para a realização das ações de vigilância sanitária. Para alguns autores(14) a falta de formação acadêmica e qualificação profissional dos trabalhadores desta área da saúde pública representa um entrave para a transformação das práticas de vigilância. Nesta construção, existe uma associação da vigilância sanitária à categoria temática profissionalismo que se configura como a cristalização da representação social sobre o objeto, onde se encontra a materialização do que era abstrato aos sujeitos, ou seja, através do pensamento e da fala dos trabalhadores da VISAPAF. Este processo de objetivação, "fundamenta-se na arte de transformar uma representação na realidade da representação, transformando a palavra que substitui a coisa, na coisa que substitui a palavra"(8). A representação sobre vigilância sanitária apresenta-se, a partir da análise das entrevistas, ancorada em elementos relacionados à responsabilidade, segurança, conhecimento e trabalho. Neste sentido, os termos responsabilidade, trabalho, segurança e conhecimento evocados no teste de associação de palavras ganharam sentido, reforçando as idéias e sentimentos que se organizam em imagem ou conceito de profissionalismo.

A noção de responsabilidade(3) se estende aos danos à saúde que possam ocorrer em conseqüência de uma falha neste processo de vigilância, de comprometimento com a população. Portanto, a pertinência está relacionada à complexidade e implicações ético-jurídicas da natureza dos danos que ameaçam a saúde e a vida. Desta forma, responsabilidade constitui-se em aspecto angular na administração dos objetos de vigilância sanitária, vinculando-se à responsabilização. Percebe-se, no discurso dos trabalhadores, que há preocupação com a responsabilidade pela vida, saúde, doença e morte das pessoas, a partir de sua intervenção sobre os objetos sujeitos às ações de vigilância sanitária.

O trabalho aparece relacionado à necessidade de melhor especificação dos objetos de vigilância, e parece estar em associação direta com a idéia de responsabilidade. Isto por se entender que os trabalhadores estão num movimento, mesmo que inconsciente, de construir e marcar seu espaço de atuação a partir do que há de específico na profissão. Assim, buscam uma organização das atividades e de um comportamento, de forma a atenderem a complexidade dos objetos que têm interface com a vigilância sanitária estruturando requisitos que sustentem um perfil profissional(15). Neste sentido, há uma busca por um saber específico desta vigilância, dando significado ao tema conhecimento. Este se vincula diretamente com o tema segurança, ou seja, significa contar com um respaldo técnico-científico que minimize as inseguranças diante da complexidade dos objetos. Por outro lado, revela-se uma imagem de desvalorização profissional, sugerindo um possível entrave para as inovações das práticas, mesmo que estas inovações sejam percebidas como necessárias. Esta imagem ancora-se em elementos como: exclusão, baixa remuneração salarial e insegurança profissional. No teste de evocação de palavras destacam-se as expressões: pouco caso e baixos salários, por apresentarem-se como primeira evocação e serem relacionadas pelos sujeitos como as mais importantes. Chama-se a atenção para o termo "ação da ponta" utilizado para nominar o trabalho da VISAPAF. Esta expressão sugere uma carga simbólica impregnada de valores e sentimentos que reduzem os sujeitos a uma visão simplista de executores. Esta posição pode estar indicando a influência do universo reificado(8) como força repressora e coercitiva que leva os indivíduos a se assumirem como constituídos. Por outro lado, é preciso refletir sobre o que significa dizer que "talvez seja cômodo pensar que uma boa parte das sociedades é fabricada fora de nós, sem nossa intervenção"(9).

A noção de exclusão desvenda uma mágoa dos trabalhadores, pois havia uma expectativa de consolidação e reconhecimento da profissão com a criação da Agência, em 1999. Porém, não foram enquadrados na carreira da Agência e sim no seu quadro especial. Acena-se aqui o que poderia estar indicando a palavra "pouco caso" evocada pelos trabalhadores. Depara-se com um conflito instalado levando à dualidade entre os "antigos" e "novos", que correspondem, respectivamente, aos sujeitos deste estudo e aos profissionais concursados que integraram o quadro de Especialistas e Analistas da Agência em 2004. No discurso emerge um período pré e pós ANVISA, onde a criação da Agência surge como um marco a partir do qual os trabalhadores deixaram de ser necessários. Diante de tal condição e, na mesma perspectiva de valorização destes profissionais da saúde pública, compraz o aceno de que "estes trabalhadores da área da saúde, ora são apontados como potenciais sujeitos de mudança e reformulação das práticas e ora um fardo, um problema a ser resolvido"(14). Desta forma, os trabalhadores experimentam um momento de tensão e insegurança que se justifica tanto pela chegada dos novos profissionais quanto pelo receio de sobrevir uma descentralização da gestão da VISAPAF. Quanto a este último tensionamento, considera-se que emerge ligado a toda gama de relações com as experiências passadas que a maioria destes trabalhadores vivenciou com o desmantelamento do ex-INAMPS a partir das diretrizes estabelecidas pelo SUS, quando se sentiram na iminência de perder a identidade. Para eles, foi uma experiência negativa que os incita a vincular o SUS a esta idéia, um possível motivo que os leva a não se perceberem como integrantes do próprio Sistema.

Polícia Sanitária: os elos entre o fazer normativo e a educação sanitária

Desde sua origem, a vigilância sanitária foi conformando suas práticas em ações respaldadas em normas, assumindo um caráter julgador e punitivo(3,16) o que leva, muitas vezes, a um distanciamento entre sua imagem e sua prática de saúde. As memórias e experiências dos trabalhadores da VISAPAF, embora integrem a vigilância sanitária à idéia de saúde, ainda fornecem elementos vinculados à solidez da noção de polícia como poder repressivo. Esta estabilidade encontra justificativa na dependência das representações à memória dos grupos, uma vez que "a solidez da memória impede que as representações sofram modificações súbitas, fornecendo-lhes certa dose de independência dos acontecimentos atuais"(8). Assim, sinaliza-se na noção de polícia sanitária a objetivação da representação sobre vigilância sanitária que se faz real ao ser produzida socialmente pelos trabalhadores através dos elementos de ancoragem: fiscalização, controle sanitário, barreira sanitária, risco, poder e educação sanitária.

A legislação aparece como principal ferramenta norteadora das ações da VISAPAF, embora se perceba um deslocamento da noção de controle sanitário para além do ordenamento jurídico. Pensa-se que os medos e ansiedades que giram em torno da idéia de risco tenham revelado o início de uma prática que tende ultrapassar a limitação da norma. Entretanto, verifica-se que na consciência dos trabalhadores a orientação do arcabouço legal ainda imprime o que deve ou não ser controlado. Porém, ao revelarem o medo do desconhecido, sinalizando a falta de indicadores de risco em vigilância sanitária, os trabalhadores trouxeram para a visibilidade esta abordagem mais ampla de controle.

A fiscalização sanitária abarca o que há de mais significativo no exercício do poder de polícia, na prática de vigilância. Ao estabelecer uma relação entre fiscalização e controle verifica-se na literatura(3) um entendimento de que a abrangência do controle é maior e, portanto, inclui a fiscalização, sendo esta uma verificadora do cumprimento da norma. Entretanto, na percepção dos trabalhadores, a noção de fiscalização engloba o fazer concreto da vigilância que, por sua vez, levaria ao controle de risco. Assim, já ultrapassa a ação de fiscalizar com o objetivo de verificação do cumprimento de normas, indicando algo maior que envolve comportamento, atitude e responsabilidade com a sociedade. A fiscalização começa a ser discutida atrelada à educação. Neste sentido, instala-se um impasse, pois parece que uma só pode ocorrer em detrimento da outra e vice-versa. Desta forma, sobressai a polêmica sobre como fiscalizar e educar? Esta dúvida parece ter relação com o significado dispensado para a familiarização destes dois termos. A fala dos trabalhadores traz registros de memórias que associam a prática de fiscalizar à ação de punir e a prática educativa a gestos agradáveis, de compreensão, de parceria com o regulado. Parece que o entendimento do que seja educar, para alguns, está circulando em torno do pedido, da conversa com o regulado para que corrija irregularidades. Enfim, a ação de fiscalização acontece no âmbito de certa informalidade, como repasse de informação(16). Se a idéia de educação aparece atrelada a coisas positivas, isto explicaria a dificuldade de unir a ação de fiscal à de educador. Portanto, um conflito insurgiu entre os trabalhadores revelando um momento de tensão o que remete ao significado implícito de caminhar para as transformações(8).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partindo de questões iniciais deste estudo acerca da existência de uma história da vigilância sanitária sem sujeitos, conclui-se que estes são a própria revelação desta história e vice-versa. Portanto, começam a ser vistos. Porém, estudar a vigilância sanitária, a partir dos sujeitos, foi um desafio diante dos espaços vazios constatados na literatura. Associado a isto, soma-se o desafio da Teoria das Representações Sociais como lentes para as interpretações. Apesar da amplitude da teoria, as possibilidades metodológicas ainda se encontram em fase de descobrimento, cabendo ao pesquisador a arte de movimentar-se na construção de um melhor caminho, como tão bem assinala o autor(10). Sinaliza-se a possibilidade de visualização dos conceitos que sustentam as representações dos trabalhadores, oferecendo subsídios para análise dos elementos que podem estar causando permanências e influenciando os movimentos da prática cotidiana. Aponta-se para a importância da adoção de uma postura crítica pelos sujeitos, que os coloque na posição (re)agir. Isto é, que assumam a condição de constituintes da sociedade, tanto na dimensão consensual como na reificada e, em decorrência, também na esfera da VISAPAF.

A construção teórica produzida nesta pesquisa acena a possibilidade de abertura de novos caminhos que permitam ampliar o olhar sobre as relações dos trabalhadores com o trabalho, suas práticas e a sociedade. Além disto, pressupõe-se que estes resultados possam se reverter em benefício da construção de um perfil profissional, se forem estabelecidos num movimento participativo entre a Instituição-ANVISA e os trabalhadores da VISAPAF.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2008
  • Data do Fascículo
    Jun 2008

Histórico

  • Aceito
    17 Mar 2008
  • Recebido
    23 Jul 2007
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