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Sofrimento moral em trabalhadores de enfermagem

Resumos

OBJETIVO: analisar a frequência e a intensidade de sofrimento moral vivenciado por trabalhadores de enfermagem do Sul do Brasil, contemplando elementos do seu cotidiano profissional. MÉTODO: survey realizado em dois hospitais do Rio Grande do Sul, Brasil, com 247 profissionais de enfermagem. A coleta dos dados ocorreu mediante aplicação da adaptação do Moral Distress Scale. RESULTADOS: a percepção de situações que conduzem ao sofrimento moral é intensificada em enfermeiros e em trabalhadores de enfermagem que atuam em instituições com maior abertura ao diálogo, realizam reuniões de equipe e têm menores jornadas de trabalho. Essa percepção também é intensificada quando se observa maior relação no número de profissionais por pacientes. CONCLUSÃO: compreender o sofrimento moral permite ir além da resolução dos problemas dos próprios trabalhadores, possibilitando a elaboração de uma ética de sujeitos ativos e de amplas possibilidades, definidas principalmente pelas relações consigo mesmos.

Enfermagem; Ética de Enfermagem; Esgotamento Profissional


OBJECTIVE: to analyze the frequency and intensity of moral distress experienced by nursing personnel in southern Brazil, covering elements of their professional practice. METHOD: a survey was undertaken in two hospitals in Rio Grande do Sul, Brazil, with 247 nurses. Data was collected by means of the adapted Moral Distress Scale. RESULTS: the perception of situations that lead to moral distress is enhanced in nurses and in nursing staff working in institutions with greater openness to dialogue, which hold team meetings, with fewer working hours and a greater ratio of professionals to patients. CONCLUSION: understanding moral distress allows us to go beyond solving the problems of the workers themselves, enabling the development of an ethics of active individuals and wide opportunities, defined mainly by the relationship with oneself.

Nursing; Nursing Ethics; Burnout


OBJETIVO: analizar la frecuencia e intensidad del sufrimiento moral vivido por los profesionales de enfermería del sur de Brasil, abarcando los elementos de su rutina profesional. MÉTODO: investigación survey en dos hospitales, con 247 profesionales de enfermería. Los datos fueron recolectados mediante aplicación de la adaptación del Moral Distress Scale. RESULTADOS: la percepción de situaciones que conducen al sufrimiento moral es intensificada en enfermeros; en trabajadores de enfermería que actúan en instituciones con mayor apertura al dialogo, que realizan reuniones de equipo, con menos horas de trabajo y mayor relación del número de profesionales por paciente. CONCLUSIÓN: entender el sufrimiento moral permite ir más allá de la resolución de los problemas de los propios trabajadores, lo que posibilita la elaboración de una ética de sujetos activos y de amplias posibilidades, definidas principalmente por la relación consigo mismo.

Enfermería; Ética en Enfermería; Agotamiento Profesional


ARTIGO ORIGINAL

Sofrimento moral em trabalhadores de enfermagem

Sufrimiento moral en trabajadores de enfermería

Edison Luiz Devos BarlemI; Valéria Lerch LunardiI; Guilherme Lerch LunardiI; Jamila Geri Tomaschewski-BarlemII; Rosemary Silva da SilveiraI; Graziele de Lima DalmolinII

IPhD, Professor, Universidade Federal do Rio Grande, Brasil

IIDoutoranda, Universidade Federal do Rio Grande, Brasil

Endereço para correspondência

RESUMO

OBJETIVO: analisar a frequência e a intensidade de sofrimento moral vivenciado por trabalhadores de enfermagem do Sul do Brasil, contemplando elementos do seu cotidiano profissional.

MÉTODO: survey realizado em dois hospitais do Rio Grande do Sul, Brasil, com 247 profissionais de enfermagem. A coleta dos dados ocorreu mediante aplicação da adaptação do Moral Distress Scale.

RESULTADOS: a percepção de situações que conduzem ao sofrimento moral é intensificada em enfermeiros e em trabalhadores de enfermagem que atuam em instituições com maior abertura ao diálogo, realizam reuniões de equipe e têm menores jornadas de trabalho. Essa percepção também é intensificada quando se observa maior relação no número de profissionais por pacientes.

CONCLUSÃO: compreender o sofrimento moral permite ir além da resolução dos problemas dos próprios trabalhadores, possibilitando a elaboração de uma ética de sujeitos ativos e de amplas possibilidades, definidas principalmente pelas relações consigo mesmos.

Descritores: Enfermagem; Ética de Enfermagem; Esgotamento Profissional.

RESUMEN

OBJETIVO: analizar la frecuencia e intensidad del sufrimiento moral vivido por los profesionales de enfermería del sur de Brasil, abarcando los elementos de su rutina profesional.

MÉTODO: investigación survey en dos hospitales, con 247 profesionales de enfermería. Los datos fueron recolectados mediante aplicación de la adaptación del Moral Distress Scale.

RESULTADOS: la percepción de situaciones que conducen al sufrimiento moral es intensificada en enfermeros; en trabajadores de enfermería que actúan en instituciones con mayor apertura al dialogo, que realizan reuniones de equipo, con menos horas de trabajo y mayor relación del número de profesionales por paciente.

CONCLUSIÓN: entender el sufrimiento moral permite ir más allá de la resolución de los problemas de los propios trabajadores, lo que posibilita la elaboración de una ética de sujetos activos y de amplias posibilidades, definidas principalmente por la relación consigo mismo.

Descriptores: Enfermería; Ética en Enfermería, Agotamiento Profesional.

Introdução

A formação profissional da enfermagem está dirigida para a importância de uma prática ética, buscando preparar os seus futuros trabalhadores a exercerem competentemente o enfrentamento cotidiano de problemas éticos e morais nos ambientes de trabalho, ou seja, o enfrentamento da incerteza moral, de dilemas morais e do sofrimento moral(1).

Cotidianamente, verifica-se o quanto a vivência de rotinas exaustivas, estresse, precariedade de cuidados de enfermagem, falta de diálogo, banalização da morte e burocracia, entre outras, acompanhadas de sentimentos de impotência frente às situações de aparente descaso em relação aos pacientes, influencia a forma de ser e fazer dos trabalhadores de enfermagem(2-3), o que lhes pode provocar desconforto e sofrimento, sem comumente identificá-lo como sofrimento moral (SM).

Considerado como "inconsistência entre as ações e convicções dos profissionais de enfermagem", ou ainda, como sentimento doloroso ou desequilíbrio psicológico que resulta do reconhecimento de uma ação ética que não pode ser adotada, o SM apresenta como causas usuais de ocorrência, nas equipes de enfermagem, o baixo número de trabalhadores associado à alta demanda de cuidados, à falta de tempo para realização das atividades e ao exercício de poder capaz de inibir uma ação moral, política, institucional ou de ordem jurídica(4).

Essas características demonstram, numa perspectiva foucaultiana que, para que haja a adoção de uma ação ética, condizente com as perspectivas dos trabalhadores de enfermagem, não basta um ato ou a repetição constante de uma conduta. Sua ação encontra-se atrelada a algo mais intenso e profundo, ligada a uma relação de si, a uma constituição pessoal de si como experiência viva de sujeito moral(5).

O SM pode ser entendido como dor ou angústia que pode afetar a mente, o corpo ou as relações interpessoais no ambiente de trabalho, em resposta a uma situação na qual a pessoa reconhece sua responsabilidade moral diante dos conflitos e faz um julgamento moral sobre a conduta correta, porém, sente-se impotente para executá-la por constrangimentos, forças opositivas, reconhecendo como inadequada sua participação moral(6).

Embora sofrimento possa ser experimentado por aqueles que trabalham em cuidados de saúde, principalmente atrelado a altas demandas de trabalho e à exigência constante de produtividade, privatização e mercantilização da saúde e seus espaços, o SM se refere ao fenômeno do sofrimento associado à dimensão ética dos cuidados na prática da saúde. Quando profissionais de enfermagem e demais profissionais de saúde enfrentam limitações em suas capacidades para a prática ética, sentindo-se forçados a comprometer seus valores e normas pessoais, podem experimentar SM(7).

Ao se refletir sobre o SM e os problemas da profissão, lida-se com algo maior do que uma análise de como as relações de poder se constroem e se desconstroem na enfermagem e na saúde, avançando-se para o modo como os profissionais da enfermagem se transformam em sujeitos, se subjetivam e se constroem como seres éticos(8), percebendo o SM e enfrentando, ou não, os problemas morais a ele relacionados.

Nos primeiros estudos sobre SM, predominantemente com abordagens qualitativas, foram entrevistados profissionais, individualmente ou em pequenos grupos(9). Diferentemente, um instrumento denominado Moral Distress Scale (MDS)(4) vem sendo aplicado em estudos quantitativos, em distintas realidades(10-14). Suas questões focam dilemas, problemas éticos, futilidade terapêutica, condições inseguras de trabalho, entre outros, sendo possível identificar a vivência de diversos comportamentos relacionados ao SM, em diferentes culturas.

A adaptação transcultural para a língua portuguesa do MDS foi realizada em estudo com enfermeiros brasileiros(2), quando foram identificados e validados quatro constructos relacionados à percepção do SM: negação do papel da enfermeira como advogada do paciente; falta de competência na equipe de trabalho; desrespeito à autonomia do paciente e obstinação terapêutica. Ao término desse estudo, foi possível confirmar-se que o instrumento não parecia ter explorado suficientemente o SM referente a problemas morais relacionados, principalmente, a problemas organizacionais já identificados no cotidiano dos profissionais de enfermagem, como a insuficiência de profissionais, a precariedade de recursos materiais e a falta de autonomia profissional(15). Ainda, considerando-se que, no Brasil, a enfermagem é exercida por três diferentes categorias, questionou-se como os trabalhadores de enfermagem, e não apenas os enfermeiros, vivenciam o SM.

Assim, justificando-se a necessidade de melhor explorar o SM em trabalhadores de enfermagem, considerando-se especificidades do seu cotidiano organizacional, previamente detectadas, este estudo teve como objetivo: analisar a frequência e intensidade de sofrimento moral vivenciado por trabalhadores de enfermagem do Sul do Brasil, contemplando elementos do seu cotidiano profissional.

Método

Pesquisa quantitativa, do tipo survey, exploratório-descritiva e de delineamento transversal. Foram sujeitos dessa pesquisa enfermeiros, técnicos de enfermagem e auxiliares de enfermagem de dois hospitais, localizados no Sul do Brasil, um público (H1), compreendendo 185 leitos e 295 trabalhadores de enfermagem; um filantrópico (H2), compreendendo 658 leitos e 387 trabalhadores de enfermagem. Os hospitais foram escolhidos intencionalmente por servirem de campo para outras pesquisas desenvolvidas anteriormente pelos autores, em temáticas afins, possibilitando o aprofundamento necessário para este estudo.

No H1, atuavam profissionais de enfermagem concursados, com estabilidade profissional e jornadas semanais de 30h, asseguradas após amplo movimento de greve e reivindicação das equipes de enfermagem. No H2, os profissionais de enfermagem tinham contratos regidos pela Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) e exerciam carga semanal de trabalho de 36h. A relação de trabalhadores de enfermagem no H1 é de 1,59 trabalhadores por leito, enquanto no H2 essa relação é de 0,58 trabalhador por leito.

Para a coleta de dados, utilizou-se uma adaptação do MDS(4), realizada pelos autores desta pesquisa, previamente testado em estudo anterior(2), validado em língua portuguesa com 21 questões(2), incluindo-se, para reformulação do instrumento nesta pesquisa, dezoito questões decorrentes do conhecimento produzido por estudos orientados/desenvolvidos também por esses mesmos autores(2-3,15-16).

A coleta dos dados ocorreu de setembro de 2010 a abril de 2011, por meio de questionário autoadministrado, contendo três páginas, possuindo na primeira página instruções detalhadas sobre o SM e o preenchimento do instrumento, além de questões sobre a caracterização dos sujeitos, seguidas, na segunda e terceira páginas, de 39 questões operacionalizadas em uma escala Likert de sete pontos, variando de (0) para nunca ocorre ou nenhuma frequência, a (6) para sofrimento muito intenso ou muito frequente, relacionadas a situações específicas que podem provocar SM, enfrentadas no cotidiano da profissão; e uma 40a questão, também operacionalizada em uma escala Likert de sete pontos, mas mais genérica: "de modo geral, as situações vivenciadas no trabalho me provocam SM?".

O questionário foi aplicado em duas versões; uma para os enfermeiros e outra para os técnicos de enfermagem e auxiliares de enfermagem, diferindo apenas nos itens referentes à caracterização dos sujeitos. Das 39 questões propostas pelo instrumento, mediante análise fatorial, 23 foram validadas neste estudo, sendo dez provenientes do instrumento primeiramente validado para a língua portuguesa(2) e treze da versão proposta pelo atual estudo.

As 23 questões do instrumento foram validadas em cinco constructos, denominados nesta pesquisa como: falta de competência na equipe de trabalho, definido como ausência de habilidade ou competência técnica que cada categoria profissional deveria apresentar ao executar uma atribuição própria da sua profissão(11); negação do papel da enfermagem como advogada do paciente, definido como o potencial não utilizado pela enfermagem para reivindicar os direitos dos pacientes(17); negação do papel da enfermagem como advogada do paciente na terminalidade, definido como o potencial não utilizado pela enfermagem para reivindicar os direitos dos pacientes no seu processo de terminalidade(17); condições de trabalho insuficientes, caracterizado como a falta de condições materiais e/ou humanas para a realização do trabalho de enfermagem(18); desrespeito à autonomia do paciente, definido como o desrespeito ao autogoverno, privacidade, escolha individual e liberdade de vontade do paciente(19).

O alfa de Cronbach do instrumento foi 0,95, variando entre 0,79 e 0,91 nos cinco constructos identificados. A variância total explicada pelo instrumento validado foi de 68,99%. A medida de adequação da amostra obtida (KMO) foi de 0,941.

O tamanho amostral foi definido por fórmula matemática específica(20), estabelecendo-se o número mínimo de 245 sujeitos para garantir a confiabilidade estatística do estudo. Foram entregues 350 questionários aos trabalhadores de enfermagem dessas instituições, retornando 291, o que representou 83,14% de retorno. Excluíram-se 44 instrumentos, seja por apresentarem incorreção na marcação das questões, marcação de uma única resposta ao longo de todo o instrumento (somente zero ou somente seis) ou estarem em branco, sendo a mostra constituída por 247 questionários.

Os dados foram submetidos a três análises distintas, utilizando-se o software estatístico SPSS, versão 13.0, (Statistical Package for Social Sciences): 1) estatística descritiva, mediante a utilização de médias e distribuição de frequência, para identificar a intensidade e frequência com que vivenciam o SM; 2) análises de variância entre grupos de respondentes (diferentes hospitais, unidades, categorias profissionais), de acordo com características da amostra para verificar possíveis diferenças significativas entre os grupos de sujeitos respondentes; 3) análise de regressão, buscando avaliar quais constructos possuíam maior efeito na percepção dos profissionais de enfermagem acerca da vivência do SM. O projeto foi antecipadamente julgado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, com Parecer nº70/2010.

Resultados

A amostra foi constituída por 47 (19%) enfermeiros, 31 (12,5%) auxiliares de enfermagem e 169 (68,5%) técnicos de enfermagem, sendo 212 (86,0%) trabalhadores do sexo feminino, respectivamente, 43 (17,5%) enfermeiras, 26 (10,6%) auxiliares de enfermagem e 143 (57,9%) técnicas de enfermagem; 67 (27,1%) profissionais de enfermagem são do H1 e 180 (72,9%) do H2. Em relação à idade, 129 (52,2%) trabalhadores de enfermagem apresentavam idade superior a 30 anos, aproximando-se da maturidade. O tempo de trabalho na profissão teve média aproximada de seis anos (5,8), com mediana de quatro anos, considerando-se tempo razoável de atuação profissional. O tempo médio de atuação desses profissionais na sua instituição hospitalar era de 4 anos, com mediana de dois anos.

Em relação à qualificação profissional, 72,3% dos 47 enfermeiros realizaram uma pós-graduação: no H1, onze enfermeiros possuíam o título de mestre e dezessete o título de especialista; no H2, apenas seis profissionais concluíram o curso de especialização. Em relação aos técnicos e auxiliares das duas instituições, 70,5% concluíram apenas o seu curso de formação inicial. Ao serem questionados sobre abertura ao diálogo, no H1, 68,6% dos sujeitos afirmaram que sua instituição era aberta ao diálogo, enquanto que apenas 31,1% dos sujeitos da instituição H2 reconheceram essa característica em sua instituição.

A análise descritiva (Tabela 1) permitiu identificar as percepções das equipes de enfermagem perante o SM vivenciado. Cada um dos cinco constructos identificados na pesquisa foi operacionalizado por meio de um valor numérico, que representa a média aritmética das 23 questões agrupadas, previamente, pela análise fatorial. As médias de intensidade de SM variaram de 3,77 a 4,37 e as frequências de ocorrência de situações que conduzem ao SM variaram de 1,98 a 2,57.

Das análises de variância realizadas (Tabela 2), algumas correlações importantes foram identificadas, com índice de significância no nível de 5%. Primeiramente, através do teste t, buscando encontrar diferenças significativas entre os grupos de dados, verificou-se que quanto mais aberta ao diálogo for a instituição maior a abertura ao diálogo por parte das chefias e das equipes de enfermagem, além de ser maior a percepção do SM dos trabalhadores em quatro constructos, exceto no constructo desrespeito à autonomia do paciente.

Ainda, foram obtidas correlações no nível de 5%, com a realização de análises post-hoc no teste de Duncan (Tabela 2), possibilitando identificar grupos homogêneos com cada uma das variáveis. Percebeu-se que, em relação ao tipo de unidade de atuação, as unidades mistas e privadas agrupam-se em bloco distinto, evidenciando-se que o SM é percebido com maior intensidade pelos trabalhadores que atuam em unidades SUS, se correlacionado à questão q-40, e em todos os cinco constructos. Ainda, na correlação entre categorias profissionais e o constructo negação do papel da enfermagem como advogada do paciente na terminalidade, técnicos e auxiliares de enfermagem constituem um grupo isolado, apresentando médias menores de percepção de SM em relação aos enfermeiros.

Destacou-se, também, que a percepção do SM dos trabalhadores de enfermagem do H1 mostrou-se superior em relação aos do H2, nos cinco constructos. Ainda, identificou-se a percepção superior do SM nos constructos falta de competência na equipe de trabalho e negação da enfermagem como advogada do paciente na terminalidade em profissionais que afirmam realizar reuniões com a equipe de trabalho.

Na avaliação dos efeitos dos cinco constructos, em relação à percepção do SM, mediante o modelo de regressão linear, fixando-se a questão q-40 como variável dependente, os resultados identificaram relação de significância no nível de 5%, em quatro constructos, com exceção do constructo negação do papel da enfermagem como advogada do paciente (Tabela 3). O teste obteve como coeficiente de determinação ajustado (R2) valor de 0,24, representando um valor de 24% de explicação do SM, com base no questionário usado nesta pesquisa.

Discussão

A falta de competência na equipe de trabalho constituiu o constructo que apresentou a maior causa de SM nos trabalhadores, destacando-se a questão18 - "Prestar auxílio a um médico que, em sua opinião, está agindo de forma incompetente para com o paciente" (4,52), e as demais questões relacionadas ao trabalho com profissionais médicos (4,38), enfermeiras (4,36), técnicos e auxiliares de enfermagem (4,38), que não apresentam a competência necessária para atuar ou com estudantes de enfermagem e medicina (4,36).

A percepção do SM, nesses casos, parece fortemente associada à necessidade de exercício de poder desses trabalhadores, o que pode representar a necessidade de enfrentamentos de conflitos com os demais profissionais ou futuros profissionais, de modo a evitar riscos aos pacientes, garantindo sua segurança. Essas situações demonstram que, para os profissionais de enfermagem, suas ações não devem estar pautadas apenas no seguimento de condutas ou regras, mas, em algo mais intenso e profundo, ligado a uma relação de si, a uma constituição pessoal de si como experiência viva de um sujeito moral(5).

Em relação ao constructo que causa maior efeito na percepção de SM, mediante a realização do modelo de regressão, identificou-se que desrespeito à autonomia do paciente alcançou a maior média no estudo, seguido do constructo condições de trabalho insuficientes. Situações relativas aos constructos desrespeito à autonomia do paciente e condições de trabalho insuficientes podem ser vivenciadas cotidiana e rotineiramente, sem que sua esfera moral seja reconhecida e destacada pelos trabalhadores, causando, dessa forma, uma normalidade aparente, que pode se refletir na qualidade do cuidado que, além de uma atividade técnico-científica, também é uma prática moral(21).

Ainda, em relação ao hospital H2, cuja percepção do SM apresentou-se reduzida, diversas situações podem estar associadas, dentre as quais pode-se citar, além da menor abertura ao diálogo institucional, e por consequência das chefias e equipes de saúde, a instabilidade laboral, menor relação profissional/leito, maior carga horária de trabalho semanal e menor qualificação dos profissionais. Essas situações, entretanto, parecem bastante comuns no cotidiano de muitos profissionais de enfermagem, mantidos como "fatores históricos relacionados ao desenvolvimento da profissão"(22), podendo encontrar na mortificação de seus desejos e na renúncia pessoal(23) uma forma de enfrentamento dos seus problemas cotidianos, com implicações tanto para o cuidado de si quanto para o cuidado do outro.

Assim, tais formas de renúncia relacionam-se ao modo como esses trabalhadores exercem sua liberdade, submetendo-se a estados em que, possivelmente, percebam poucas possibilidades de mudanças, com características de mortificação que podem se reproduzir enquanto não forem construídas estratégias de resistência, numa perspectiva ética.

Em contrapartida, no hospital H1, destacou-se que o desrespeito à autonomia do paciente apresenta-se como o constructo de maior intensidade de percepção de SM. Nesse sentido, considera-se que os trabalhadores dessa instituição, ao usufruírem de estabilidade empregatícia, maior incentivo à qualificação profissional com programa de progressão funcional e estímulo salarial, maior relação de profissionais por leito, menor carga horária semanal de trabalho, resultante de movimento político de reivindicação coletiva, e ao vivenciarem maior abertura ao diálogo, ou seja, tendo seus direitos como cidadãos, aparentemente, mais reconhecidos e respeitados, possivelmente estejam mais sensibilizados para o reconhecimento dos direitos dos pacientes também como sujeitos, no que se refere ao conhecimento sobre si, seu corpo e sua saúde, à decisão sobre si, quanto ao consentimento prévio necessário para o manuseio do seu corpo, assim como para sua reanimação, ou não, em caso de parada cardíaca. Essa organização do trabalho no H1, muitas vezes conquistada sob forma de enfrentamento e lutas travadas nos microespaços, onde a enfermagem atua, demonstra que se pode ser muito mais livres do que se pensa poder ser(8). Tais avanços, aparentemente, favorecem aos trabalhadores o exercício de seus direitos e deveres, de forma mais ampla, contribuindo para que a enfermagem se efetive como profissão que advoga pelos direitos do paciente(11).

A advocacia dos interesses do paciente na terminalidade, em situações de morte evitável(3), de ser cuidado no seu processo de morrer, de ser informado sobre sua condição, consultado acerca de como deseja vivenciar esse processo, respeitado em suas manifestações, evidencia uma relação direta com a moral, constituindo-se em atividade fundamental da enfermagem, podendo gerar SM quando o profissional de enfermagem não consegue desempenhar esse papel de maneira que satisfaça seus ideais(15).

Ao se mencionar os profissionais de enfermagem, cabe destacar as diferenças existentes em sua composição como equipe. Esses trabalhadores apresentam diferentes formações profissionalizantes e até mesmo culturais, sendo oriundos de distintos contextos sociais. Neste estudo, constataram-se diferenças significativas no nível de 5% na percepção do SM, de acordo com a categoria profissional, ou seja, maior intensidade de percepção do SM nos profissionais enfermeiros no constructo negação do papel da enfermagem como advogada do paciente na terminalidade.

Essa percepção ampliada pode estar associada a diversos fatores, tais como: formação profissional em nível de graduação, pautada em diretrizes curriculares que direcionam o profissional enfermeiro ao cuidado integral; qualificação profissional com realização de cursos de pós-graduação; maior conhecimento em relação ao viver saudável, adoecer e morrer dos pacientes, aos seus direitos de acesso a informações sobre o processo saúde/doença vivido e de decisão quanto à melhor conduta em seus cuidados e tratamentos, elementos que, aparentemente, contribuem para as diferenças identificadas.

Constatou-se, também, que apenas 29,5% dos técnicos de enfermagem e auxiliares de enfermagem investiram em sua formação profissional após o término de seu curso de formação inicial. Assim, a percepção dos problemas na área da saúde e da enfermagem, em sua esfera moral, parece favorecida quando a qualificação e competência profissional são mais elevadas(2). Uma estratégia, identificada para os profissionais de enfermagem, compreendeu a importância de agirem coletivamente e de quanto o seu conhecimento profissional poderia modificar a realidade e a educação em enfermagem(24).

A percepção mais intensificada do SM por trabalhadores que atuam em unidades SUS em comparação aos de unidades privadas ou mistas (SUS/privadas) foi verificada. Essa situação pode estar associada ao exercício mais pleno do papel da enfermagem na advocacia do paciente, principalmente quando, em algumas unidades SUS, o atendimento se destina a pacientes cujas condições sociais e econômicas são pouco favorecidas, o que pode dificultar ou diminuir seu acesso a melhores esclarecimentos, se comparados a pacientes de unidades privadas(25).. Pacientes em condições sociais e econômicas menos favorecidas, muitas vezes, não são suficientemente orientados sobre seus direitos ou, até, sobre seu direito a usufruir de direitos.

Verificou-se, no entanto, que no hospital H1, cuja percepção do SM em todos os constructos foi mais intensa, o atendimento é restrito a pacientes conveniados ao SUS, situação que pode ter influenciado positivamente a percepção do SM nessas unidades.

Outra situação de destaque é a relação da instituição aberta ao diálogo com chefias e equipes, destacando-se a comunicação e seu potencial positivo no trabalho quando efetiva e aberta. Foi identificado que a instituição aberta ao diálogo se reflete em maior abertura ao diálogo com chefias e equipes, conforme indicaram os resultados. O diálogo parece situar-se como relevante para a percepção do SM e, conforme achados de estudo que aplicou o MDS em enfermeiras americanas, até mesmo para seu enfrentamento(11).

A realização de reuniões com a equipe de enfermagem demonstrou ser importante, uma vez que maior percepção do SM foi constatada nos ambientes em que se realizam reuniões. Diferentemente do estudo desenvolvido anteriormente com enfermeiros brasileiros(2), em que 70,2% dos enfermeiros afirmaram realizar reuniões com a equipe, percebeu-se que a frequência de ocorrência das reuniões foi baixa; no entanto, comparando as informações sobre a realização de reuniões com os dados relacionados à percepção do SM, distinta nos dois hospitais, verificou-se que eles apresentam significativa relação.

Na instituição H2, cuja percepção do SM é menor, apenas 36,6% dos trabalhadores afirmaram que participam de reuniões com suas equipes, enquanto que, na instituição H1, o número de sujeitos que afirmaram participar de reuniões aumenta para 46,3%, dados que podem estar também associados às características organizacionais dessa instituição. Nesse sentido, destaca-se a estabilidade dos profissionais de enfermagem, o que pode favorecer a existência de maiores espaços para o diálogo, a comunicação e expressão de sentimentos e percepções, o que, possivelmente, ocorrerá em reuniões de trabalho.

Conclusão

Ambientes hospitalares com organizações distintas podem ser relevantes para as diferenças identificadas quanto à percepção do SM, uma vez que maior abertura ao diálogo, liberdade para agir, habilidade de resolução, estabilidade profissional, maior relação de trabalhadores de enfermagem por leito, melhores salários, entre outros, podem contribuir para maior percepção e enfrentamento das situações que conduzem ao SM.

Nesse enfoque, compreender o SM permite ir além do enfrentamento dos problemas morais dos próprios trabalhadores, chegando a configurar, de maneira mais ampla e reflexiva, a situação da própria instituição e do sistema de saúde. Esses, a instituição e o sistema de saúde, podem estar imperceptivelmente dificultando os cuidados de enfermagem e a atenção integral na saúde, provocando, consequentemente, a necessidade da elaboração de uma ética de sujeitos ativos e de amplas possibilidades, definidas principalmente pelas relações consigo mesmos.

Quando os profissionais pautam suas ações em valores reconhecidos como éticos na área da saúde e da enfermagem, parece que estão mais protegidos em suas decisões, o que pode favorecer a si e ao próprio paciente. Nessa perspectiva, parece ser uma alternativa eficaz aos profissionais de enfermagem questionarem-se, estranharem os fatos diários, problematizando o cotidiano e as relações instituídas, buscando, nas pequenas singelezas do dia a dia, formas de desnaturalizar práticas previamente estabelecidas e comumente aceitas.

Este estudo sofreu algumas limitações, em virtude de ter sido realizado com uma amostra de profissionais de enfermagem de uma região do Sul do Rio Grande do Sul. Esta amostra, apesar de representativa, possivelmente não se assemelha aos múltiplos contextos de saúde identificados no Brasil, não podendo, portanto, ter seus resultados generalizados.

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  • Corresponding Author:

    Edison Luiz Devos Barlem
    Universidade Federal do Rio Grande
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    Examinations for government positions. Translator's note.
  • 2
    Brazilian State Health Service. Translator's note.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Mar 2013
    • Data do Fascículo
      Fev 2013

    Histórico

    • Recebido
      07 Jun 2012
    • Aceito
      05 Set 2012
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