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É a cronicidade do HIV/aids frágil? Biomedicina, política e sociabilidade em uma rede social on-line* * Apoio Financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) - Processo 2018/07846-6 e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico (CNPq) - Processo 430361/2018, Brasil.

Resumos

Objetivo:

compreender como as relações entre cronicidade e política modelam a sociabilidade e a ajuda mútua entre pessoas que vivem com HIV/aids.

Método:

trata-se de uma etnografia virtual em um grupo fechado no Facebook. Para coligir as informações, utilizaram-se observação participante on-line e análise documental. Analisaram-se 37 postagens por meio do software NVivo 12 Pro e pela técnica de codificação temática.

Resultados:

emergiram duas categorias temáticas: Faça o tratamento e o tempo se encarregará do resto: ajuda mútua e HIV/aids como condição crônica; e Sim, há perigo na esquina, meu bem: política, conflitos e sociabilidade no grupo. O aspecto mais relevante deste estudo diz respeito à evidência da fragilidade do discurso da cronicidade do HIV/aids.

Conclusão:

por meio da análise da sociabilidade e da ajuda mútua produzidas entre os membros do grupo investigado foi possível apreender os modos como, em suas experiências de viver com o HIV/aids como condição crônica, as relações entre saúde-doença, política e tempo evidenciaram a dependência entre cronicidade e Estado, e seus impactos na vida cotidiana.

Descritores:
HIV; Síndrome da Imunodeficiência Adquirida; Antropologia Médica; Doença Crônica; Rede Social; Política


Objective:

to understand how the relationships between chronicity and politics shape sociability and mutual help among people living with HIV/AIDS.

Method:

This is a virtual ethnography in a closed group on Facebook. To collect the information, on-lineparticipant observation and documental analysis were utilized. 37 posts were analyzed using the softwareNVivo 12 Pro and the thematic coding technique.

Results:

Two thematic categories emerged: Do the treatment and time will take care of the rest: Mutual help and HIV/AIDS as a chronic condition; and Yes, there is danger around the corner, my dear: Politics, conflicts and sociability in the group. The most relevant aspect of this study concerns the evidence of the fragility of the discourse on the chronicity of HIV/AIDS.

Conclusion:

Through the analysis of sociability and mutual help produced among the members of the investigated group, it was possible to apprehend the ways in which, in their experiences on living with HIV/AIDS as a chronic condition, the relationships between health-disease, politics and time showed the dependence between chronicity and the State, and its impacts on daily life.

Descriptors:
HIV; Acquired Immunodeficiency Syndrome; Anthropology, Medical; Chronic Disease; Social Networking; Politics


Objetivo:

comprender cómo las relaciones entre cronicidad y política configuran la sociabilidad y la ayuda mutua entre las personas que viven con el VIH/SIDA.

Método:

una etnografía virtual en un grupo cerrado en Facebook. Para recopilar la información, se utilizó la observación participante en línea y el análisis de documentos. Se analizaron 37 publicaciones utilizando el software NVivo 12 Pro y la técnica de codificación temática.

Resultados:

surgieron dos categorías temáticas: Haga el tratamiento y el tiempo se encargará del resto: ayuda mutua y VIH/SIDA como condición crónica; y Sí, hay peligro en la esquina, cariño: política, conflictos y sociabilidad en el grupo. El aspecto más relevante de este estudio se refiere a la evidencia de la fragilidad del discurso sobre la cronicidad del VIH/SIDA.

Conclusión:

a través del análisis de la sociabilidad y la ayuda mutua producida entre los miembros del grupo investigado, fue posible comprender las formas en que, en sus experiencias de vivir con el VIH/SIDA como una condición crónica, las relaciones entre salud-enfermedad, política y tiempo mostró la dependencia entre la cronicidad y el Estado, y su impacto en la vida diaria.

Descriptores:
VIH; Síndrome de Inmunodeficiencia Adquirida; Antropología Médica; Enfermedad Crónica; Red Social; Política


Introdução

No início da década de 1980, a epidemia causada pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV)/síndrome da imunodeficiência adquirida (aids) trouxe à tona e atualizou antigas representações sociais vinculadas às doenças infectocontagiosas: mal, horror, definhamento, contaminação, desordem, transgressão e morte(11 Wilson D, Whiteside A. AIDS at 35: A midlife crisis. Afr J AIDS Res. 2016 Dec 14;15(4):3-4. doi: 10.2989/16085906.2016.1254374.
https://doi.org/10.2989/16085906.2016.12...
). Desde então, em todo o mundo, 32 milhões de pessoas morreram de doenças relacionadas à aids e, em 2018, estimava-se que havia 37,9 milhões de pessoas vivendo com HIV/aids (PVHA), sendo a maioria adultos (36,2 milhões)(22 Joint United Nations Programme on HIV/AIDS. Communities at the centre: defending rights, breaking barries, reaching people with HIV services - Global AIDS Update 2019. [Internet] Geneva: UNAIDS; 2019 [cited Oct 20, 2019]. Available from: https://www.unaids.org/en/resources/documents/2019/2019-global-AIDS-update
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). Nesse panorama, destaca-se a incidência desigual do HIV/aids entre regiões e países, o que requer atenção para dificuldades estruturais (educação, economia, custos, estigma, sistema de saúde, etc.) que não são mitigadas apenas pelo sistema de saúde(33 McGrath JW, Winchester MS, Kaawa-Mafigiri D, Walakira E, Namutiibwa F, Birungi J et al. Challenging the paradigm: anthropological perspectives on HIV as a chronic disease. Med Anthropol. 2014 Mar 24;33(4):303-17. doi: 10.1080/01459740.2014.892483.
https://doi.org/10.1080/01459740.2014.89...

4 Scandlun J. When AIDS became a chronic disease. West J Med. 2000 Feb;172(2):130-2 doi: 10.1136/ewjm.172.2.130.
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-55 Sangaramoorthy T. Chronicity, crisis, and the 'end of AIDS'. Glob Public Health. 2018 Jan 11;13(8):982-96. doi: 10.1080/17441692.2018.1423701.
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). Calcula-se que, em 2018, do total de PVHA no mundo, apenas 23,3 milhões tinham acesso à terapia antirretroviral (TARV)(22 Joint United Nations Programme on HIV/AIDS. Communities at the centre: defending rights, breaking barries, reaching people with HIV services - Global AIDS Update 2019. [Internet] Geneva: UNAIDS; 2019 [cited Oct 20, 2019]. Available from: https://www.unaids.org/en/resources/documents/2019/2019-global-AIDS-update
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).

Apesar desses números, a incidência da infecção pelo HIV e a mortalidade por aids globais têm diminuído: de 2,9 milhões em 1997 para 1,7 milhões em 2018; redução de 55% desde 2004 (1,7 milhão) em relação a 2018 (770 mil), respectivamente(22 Joint United Nations Programme on HIV/AIDS. Communities at the centre: defending rights, breaking barries, reaching people with HIV services - Global AIDS Update 2019. [Internet] Geneva: UNAIDS; 2019 [cited Oct 20, 2019]. Available from: https://www.unaids.org/en/resources/documents/2019/2019-global-AIDS-update
https://www.unaids.org/en/resources/docu...
). No Brasil, o número de casos de infecção pelo HIV notificados aumentou de 7.290 em 2007 para 43.941 em 2018. Atribui-se esse aumento à notificação compulsória instituída em 2014. A taxa de detecção de aids, por 100 mil habitantes, apresentou queda (21,7 em 2012 para 17,8 em 2018). O coeficiente de mortalidade padronizado por aids teve redução de 24,1% no período de 2008 (5,8/100 mil hab.) a 2018 (4,4/100 mil hab.)(66 Ministério da Saúde (BR). Boletim Epidemiológico - AIDS e IST 2019. [Internet] 2019 [Acesso 16 fev 2020];49(53). Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2019/boletim-epidemiologico-de-hivaids-2019
http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2019/bo...
).

Tal cenário, associado aos avanços biomédicos e do acesso à TARV pelas políticas públicas, alavancou o discurso de que a infecção pelo HIV já não é uma sentença de morte, pois se não é curada, pode ser controlada, o que a tornou crônica(77 Joint United Nations Programme on HIV/AIDS. The gap report. Geneva: UNAIDS; 2014. [Internet]. 2014 Jul 16 [cited Oct 20, 2019]. Available from: https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/UNAIDS_Gap_report_en.pdf
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). A década de 2010 foi marcada por anúncios de agências governamentais, cientistas e ativistas sobre o “fim da aids”(55 Sangaramoorthy T. Chronicity, crisis, and the 'end of AIDS'. Glob Public Health. 2018 Jan 11;13(8):982-96. doi: 10.1080/17441692.2018.1423701.
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,88 Kenworthy N, Thomann M, Parker R. From a global crisis to the 'end of AIDS': new epidemic of signification. Glob Public Health. 2017 Aug 22;13(8):960-71. doi: 10.1080/17441692.2017.1365373.
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). A partir da perspectiva dos estudos socioantropológicos sobre enfermidades crônicas e HIV/aids, este artigo problematiza tal discurso, uma vez que pesquisadores das ciências sociais e saúde pública destacam que o otimismo e triunfalismo tanto da cronicidade do HIV/aids quanto do seu fim precisam ser analisados por um crivo crítico, tendo em vista a dependência do acesso à TARV para garantir a cronicidade da infecção(33 McGrath JW, Winchester MS, Kaawa-Mafigiri D, Walakira E, Namutiibwa F, Birungi J et al. Challenging the paradigm: anthropological perspectives on HIV as a chronic disease. Med Anthropol. 2014 Mar 24;33(4):303-17. doi: 10.1080/01459740.2014.892483.
https://doi.org/10.1080/01459740.2014.89...

4 Scandlun J. When AIDS became a chronic disease. West J Med. 2000 Feb;172(2):130-2 doi: 10.1136/ewjm.172.2.130.
https://doi.org/10.1136/ewjm.172.2.130...
-55 Sangaramoorthy T. Chronicity, crisis, and the 'end of AIDS'. Glob Public Health. 2018 Jan 11;13(8):982-96. doi: 10.1080/17441692.2018.1423701.
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,88 Kenworthy N, Thomann M, Parker R. From a global crisis to the 'end of AIDS': new epidemic of signification. Glob Public Health. 2017 Aug 22;13(8):960-71. doi: 10.1080/17441692.2017.1365373.
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).

Diante do exposto, questiona-se como o discurso da cronicidade do HIV/aids modula a sociabilidade e ajuda mútua entre PVHA em uma rede social on-line. Nesses termos, tem-se enfatizado a premência de investigações que analisem as políticas relacionadas à aids em nível mundial, nomeadamente no Sul global, e realçado a importância das pesquisas antropológicas, dada sua aptidão de produzir interpretações críticas, reflexivas e politicamente engajadas(88 Kenworthy N, Thomann M, Parker R. From a global crisis to the 'end of AIDS': new epidemic of signification. Glob Public Health. 2017 Aug 22;13(8):960-71. doi: 10.1080/17441692.2017.1365373.
https://doi.org/10.1080/17441692.2017.13...
). Teve-se com objetivo compreender como as relações entre cronicidade e política modelam a sociabilidade e a ajuda mútua entre PVHA.

Método

A etnografia foi empregada aqui como metodologia, estratégia de pesquisa e postura intelectual, pois permitiu inteligir aspectos da vida social a partir de perspectiva descentrada e da compreensão do ponto de vista de quem vivencia um dado fenômeno(99 Magnani JGC. Ethnography as practice and experience. Horiz Antropol. 2009 Jul-Dec;15(32):129-56. doi: 10.1590/S0104-71832009000200006.
https://doi.org/10.1590/S0104-7183200900...
). Dado o objeto deste estudo (a sociabilidade entre pessoas na internet), realizou-se uma etnografia virtual. Dedicou-se atenção especial à compreensão de um continuum on-line/off-line para evitar as interpretações apressadas que concebem a sociabilidade na internet como uma mera virtualidade do real, dada a ausência de espacialidade física(1010 Miller D, Slater D. Ethnography on and off-line: cybercafé in Trinidad. Horiz Antropol. 2004 Jan-Jun;10(21):41-65. doi: 10.1590/S0104-71832004000100003.
https://doi.org/10.1590/S0104-7183200400...
).

Esta etnografia foi desenvolvida em um grupo fechado no Facebook composto por mais de 3.400 pessoas que vivem ou convivem com HIV/aids, dos quais 122 tiveram suas postagens ou comentários incluídos no corpus deste artigo. Os interlocutores foram selecionados de forma intencional e por conveniência de acordo com o conteúdo que produziram e publicaram no grupo. O convite para participar do estudo ocorreu por meio de mensagem fixada na página pelos administradores do grupo, a qual continha: objetivos, procedimentos de coleta de dados e questões éticas da investigação. Os 122 interlocutores incluídos não manifestaram discordância com o desenvolvimento da pesquisa no grupo, o que poderia ocorrer por escrito na forma de comentário à mensagem fixada. Tendo em vista os termos de uso do Facebook e as regras do grupo, o conteúdo publicado na página foi considerado como material para pesquisa, guardadas as precauções éticas. A postagem com informações sobre a pesquisa não recebeu objeções pelos membros do grupo.

Dentre as características dos participantes, a maioria era homem cisgênero (80%), gay (43%), com idade entre 20 e 40 anos, residente na Região Sudeste (45%) do Brasil, classe média de origem popular, soropositiva (93%) e branca (48%). Essas informações foram coletadas a partir das descrições pessoais dos interlocutores em três postagens feitas pelos administradores que solicitavam que os mesmos se apresentassem no grupo.

Os dados apresentados neste artigo fazem parte de uma etnografia mais ampla desenvolvida neste grupo fechado no Facebook, cujo trabalho de campo ocorreuentre abril de 2017 e agosto de 2019. O coordenador da pesquisa conheceu o grupo em dezembro de 2016, porém seu ingresso como participante se deu em fevereiro de 2017, mediante preenchimento de um formulário com dados pessoais e perguntas sobre motivação e condição sorológica disponibilizado no site da Rede que administra o grupo. Feito isso, as informações foram analisadas e avaliadas (aprovada ou reprovada) pelos moderadores. O pesquisador utilizou seu perfil pessoal no Facebook em suas incursões em campo. Posteriormente, foi solicitada e obtida autorização dos administradores para realização da pesquisa. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo nos termos da Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde.

O material empírico deste estudo foi coletado por meio de duas técnicas de pesquisa: observação participante on-line e codificação temática do conteúdo do grupo. Os dados foram recolhidos por um pesquisador que acessava o grupo, em média, duas vezes por semana. O tempo de permanência on-line variou entre três e cinco horas. Ao final de cada incursão em grupo eram produzidos diários de campo. Durante essas incursões, eram feitas leituras das postagens disponíveis na página do grupo por meio do que se buscava apreender os fluxos e dinâmicas interacionais (sociabilidade) entre os interlocutores e o conteúdo que publicavam ali (textos, vídeos, fotografias, links de sítios na internet). O pesquisador interagia no grupo através das ferramentas oferecidas pelo Facebook como reagir (curtir, amar, demonstrar tristeza ou raiva, etc.) e comentar.

Foram selecionadas postagens e seus respectivos comentários cujos assuntos abordados contribuíam para responder a questão norteadora da investigação. Este material, uma vez selecionado, era copiado e colado em arquivos de texto (um para cada postagem) no qual constava uma tabela com os seguintes campos: nº da postagem; data e hora de publicação no grupo; data da coleta; temáticas principais; tipo de texto (postagem principal, comentário e resposta ao comentário); interlocutor; e conteúdo. Este material compôs o corpus submetido à análise temática.

Ao longo do trabalho de campo foram coletadas 95 postagens, com seus respectivos comentários. O corpus das análises apresentadas aqui derivou de 37 postagens e envolveu 122 membros. A análise dos dados envolveu duas etapas: a codificação no software NVivo 12 Pro; e a produção de categorias temáticas. A codificação do corpus foi realizada por um pesquisador e requereu: (1) importação dos arquivos para o software; (2) edição dos arquivos; (3) leitura analítica do conteúdo; e (4) codificação do conteúdo por meio da vinculação do texto ao caso (cada interlocutor individualmente), ao relacionamento (por exemplo: A comentou postagem de B), aos nós (nove no total) e aos sub-nós (93 ao todo). Em seguida foram extraídos do software relatórios de resumo da codificação por arquivo e por nó.

Esse material foi submetido à codificação temática mediante análise detalhada de passagens do texto pelos três autores. Analisados todos os relatórios, produziu-se uma tabela na qual se definiram os núcleos de significados. Por fim, tendo como base os núcleos de significados gerados, foram construídas as categorias temáticas(1111 Flick U. An introduction to qualitative research. 6th ed. London: Sage; 2019.). Para validação e confiabilidade desta pesquisa utilizaram-se os seguintes critérios: triangulação de dados, de teoria e de pesquisadores; longo período de trabalho de campo; e ricas e detalhadas descrições do campo(1212 Hayashi P Jr, Abib G, Hoppen N. Validity in qualitative research: a processual approach. Qual Rep. 2019 Jan;24(1):98-112. Available from: https://nsuworks.nova.edu/tqr/vol24/iss1/8
https://nsuworks.nova.edu/tqr/vol24/iss1...
). Os excertos empregados neste artigo estão acompanhados do nome fictício do interlocutor, escolhido aleatoriamente pelos autores, e da data da postagem.

Resultados

Após análise e interpretação do material empírico, obtiveram-se duas categorias temáticas: Faça o tratamento e o tempo se encarregará do resto: ajuda mútua e HIV/aids como condição crônica; e Sim, há perigo na esquina, meu bem: política, conflitos e sociabilidade no grupo. O conteúdo êmico de cada uma delas é mostrado a seguir.

Faça o tratamento e o tempo se encarregará do resto: ajuda mútua e HIV/aids como condição crônica

O caráter crônico do HIV/aids era acionado em postagens de membros novatos no grupo e/ou recém diagnosticados, pessoas com problemas de saúde mental e de adesão à TARV. Nessas ocasiões, salientava-se que o HIV/aids passou de uma doença fatal para algo com o que é possível viver, sendo comparado com outros adoecimentos, por exemplo diabetes mellitus, câncer e insuficiência renal crônica. A gravidade era critério para estabelecer diferenciações e hierarquizações. Somos normais como alguém que vive com diabetes ou outra doença crônica (Felipe, 13/01/2019); A nossa vida é normal como a de qualquer pessoa, apenas temos um vírus que, se não tratado, pode nos matar (Ana, 09/01/2019); Sem querer relativizar as dores, mas vocês gostariam de estar prostrados em uma cama de hospital, fazendo tratamento de hemodiálise, câncer, etc.? (Artur, 17/05/2019);

A ideia de uma vida normal significava a possibilidade de manter um sentido de continuidade e de coesão no conjunto das relações sociais. Você vai poder ter uma vida normal como qualquer pessoa sem HIV e fazer tudo que fazia antes (Pedro, 17/03/2019).Em geral, essa condição de normalidade só se estabelecia após decorrido algum tempo do diagnóstico. Este era experienciado como um momento de devastação, perda de chão, choque, sufocamento, impossibilidade de pensar o futuro. Tais emoções eram rememoradas na ajuda mútua entre pessoas recém diagnosticadas e aquelas que viviam com o vírus há mais tempo. Estou sem chão, sem saber com quem contar e me sentindo sufocada (Paula, 09/01/2019, postagem feita ao ingressar no grupo após um mês de diagnóstico). Em resposta a Paula, Gustavo comentou: No início é assim mesmo: a gente fica sem chão, sem saber o que fazer. Mas falo por experiência própria, vai passar! Você será capaz de enxergar que um vírus não te define. Hoje eu vivo tão bem com isso [HIV] que nem lembro que tenho (09/01/2019).

A normalidade implicava, assim, no controle físico, emocional e das relações sociais. Tenha calma! Eu sei o que você está passando, mas não é o fim da vida. Chore muito, desabafe para aliviar, mas não alimente a tristeza. Cuide da sua saúde a partir de agora, faça o tratamento e exames necessários e viva sua vida como sempre viveu (Emanuel, 09/01/2019, em resposta à postagem de Paula). Esse projeto de uma vida normal dependia, principalmente, da adesão à TARV.

De acordo com Ícaro, a TARV deveria ser vista como uma parceira que ajuda a manter a saúde, possibilita realizar os sonhos e prepara para os novos avanços da medicina (16/03/2019). Nesse sentido, os avanços biotecnológicos no tratamento do HIV/aids nas últimas décadas eram enfatizados e comparados com dificuldades enfrentadas nas décadas de 1980 e 1990. Quando fui diagnosticadanão tinha medicamentos. Eles chegaram e não eram tão bons quanto os de hoje, mas eu continuo aqui. O mesmo vai te acontecer, garanto! (Maria, 09/01/2019, em resposta à postagem de Paula); Descobri o HIV em 1989. Vi muitos amigos e conhecidos falecerem. Era a época do Cazuza. Quando surgiu o medicamento em 1996, eu estava com aids e hoje estou aqui (Otávio, 01/05/2019).

Diferente daquele cenário, os interlocutores assinalavam a bênção de ter um tratamento de maior qualidade, gratuito, de distribuição universal que permite viver com o HIV/aids por décadas. Assim, a adesão ao tratamento se colocava como um imperativo moral. Hoje somos abençoados por termos tratamento de qualidade. Nos anos 80 e 90 não tinha medicação. Quantos se foram por causa desse vírus que a medicina não sabia como parar? (Bruno, 03/08/2019).

Nessas discussões, os interlocutores destacavam o papel do tempo nas experiências de viver com o HIV/aids. Aqui o tempo não se referia, apenas, às comparações entre as primeiras décadas da epidemia e o período recente, pois era significado como um agente que conferia novos sentidos e arranjos de vida. Com o tempo tudo se ajusta. Com o tempo (bendito tempo) e o tratamento (abençoado tratamento) a vida fica com mais valor do que antes (Nádia, 13/08/2019); Sou soro há três anos e sei que não é fácil no início, mas, com o tempo, tudo vai se ajeitando e percebemos que podemos levar uma vida normal (Bruno, 03/08/2019); Com o tempo nos damos conta que há tratamento e que funciona mesmo. Após alcançar o status indetectável, ficamos mais fortes, mais confiantes (Carlos, 15/02/2019).

Sim, há perigo na esquina, meu bem: política, conflitos e sociabilidades no grupo

No início do trabalho de campo, a sociabilidade entre membros do grupo costumava se orientar pelas regras de uso, estabelecidas pelos administradores, que destacavam colaboração, acolhimento, respeito, fortalecimento, ajuda mútua, privacidade e liberdade de falar sobre o viver/conviver com o HIV. O conteúdo das postagens costumava se centrar em aspectos da experiência de PVHA: adesão ao tratamento, relacionamentos afetivo-sexuais, preconceitos e discriminação, doenças oportunistas e estratégias para manter a sorologia em segredo. Dessa forma, os conteúdos confluíam para a afirmação da adesão ao tratamento (não sem tensionamento por alguns membros) e, consequentemente, da responsabilização das PVHA.

A partir da eleição presidencial brasileira em 2018, o escopo das postagens e comentários, bem como as formas de interação começaram a mudar. No período em tela, os conflitos ganharam maiores relevos devido à inclusão de pautas políticas, no sentido institucional e partidário, ao rol de temas discutidos e compartilhados.

Essas pautas se davam, principalmente, por meio de compartilhamentos de reportagens como: Política de prevenção a HIV não pode ofender as famílias, afirma novo ministro (Folha de São Paulo, 31/12/2018); Diretora do Departamento de HIV/Aids do Ministério da Saúde é exonerada (Estadão, 10/01/2019); Política de morte: o fim do departamento de AIDS (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, 22/05/2019); Ministério da Saúde comprará remédios cancelados no SUS no setor privado (Exame, 17/07/2019); e INSS corta benefícios e expõe pessoas com HIV ao desemprego e à fome (GGN, 08/08/2019). De maneira geral, esses conteúdos denunciavam o recrudescimento do conservadorismo e da extrema direita no Brasil, os ajustes da política econômica e previdenciária, o desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS) e suas consequências na política de enfrentamento à epidemia de HIV/aids, na estrutura e atuação do Ministério da Saúde.

Essas postagens pareciam ir à contramão da possibilidade de ter uma vida normal, uma vez que poderia desmoronar o seu pilar fundacional (tratamento-tempo-normalidade). Nesse cenário, alguns interlocutores temiam a impossibilidade de cumprirem o tratamento, porém, não em decorrência de suas ações e desejos, mas pela atuação do Estado. Misericórdia! Só faz três meses que descobri [o HIV]. Ainda nem estou indetectável, meu Deus! Como vamos fazer para sobreviver caso eles tirem nossos medicamentos? (Gláucio, 05/01/2019).

Eram nessas ocasiões que as tretas (termo êmico que significa conflitos) emergiam entre aqueles que concordavam e acreditavam que havia perigo na esquina: Vejo pessoas nesse grupo tentando amenizar os fatos. Colegas, lembrem-se que para uma parte significativa da sociedade não temos essa moral toda, pelo contrário. Então fiquem atentos... Um governo conservador pode e vai tentar precarizar nosso tratamento e todo um trabalho de décadas. NÃO SOMOS PRIORIDADE! Acordem para a vida! Vocês estão achando que ele vai sucatear da noite para o dia? Não! É todo um processo covarde de desmonte. Quando percebermos será difícil reverter (George, 11/01/2019); os que discordavam das denúncias, pois viam a política de aids como intocável, logo essas postagens produziam pânico: Essas falas sensacionalistas são só para causar. A distribuição de medicamentos para ISTs é lei! Eles podem até não gostar, mas não podem mudar. Até porque entre o custo de prevenir e o de remediar, eles vão preferir prevenir. É uma questão matemática e não humanitária (Sávio, 05/01/2019); Esse povo aqui está colocando coisas na cabeça à toa (Júlio, 23/05/2019); e as pessoas que percebiam os perigos, mas não os consideravam razão para pânico: Não é impossível, mas não é fácil. Acredito que não ficaríamos assistindo a um movimento desses sem fazer nada. É preciso estar atento, mas criar um clima de medo não ajuda. A gente tem que lembrar que nem todo mundo aqui está com a saúde mental 100%. Criar este clima afeta mais essas pessoas (Leonardo, 23/05/2019).

Além dessas tretas terem resultado na saída de algumas pessoas do grupo, como Júlio que se desvinculou após uma discussão com Marina, o suposto pânico ou o clima de medo, produzia sentimentos diversos em interlocutores que acompanhavam essas postagens: Roberto, você lembra quantas vezes eu te liguei chorando ou mandando áudio [pelo WhatsApp] sobre este governo? Você lembra que no resultado do primeiro turno [da eleição 2018] passei a noite inteira chorando com MEDO? Infelizmente está começando o que sempre falei e alertei. Meu amigo, o preconceito nós enfrentamos, mas se porventura ficarmos sem nossas doses diária de vida, como faremos? (Sílvia, 11/01/2019).

Finalmente, destaca-se a produção de estratégias de luta e de resistência contra o cenário que se apresentava. Tais estratégias evocavam o engajamento no movimento social de aids em seu formato mais “clássico” e a construção de performances políticas que conservassem o segredo da sorologia. Acredito que vocês tenham que se aproximar do movimento de aids. Agora o momento é de agregar. No atual contexto, manifestações isoladas levarão a nada (Lúcia, 14/05/2019). Lúcia estava se referindo à proposta de Marina de levar cartazes sobre falta de medicamentos para diversas doenças, incluindo HIV/aids, em manifestações políticas ocorridas em todo país naquele mês. Em resposta, Marina comentou: Eu tenho insegurança em entrar em contato [com movimento social], porque já vi, ouvi e li o discurso de “ter que sair do armário” e isso é algo IMPOSSÍVEL para mim! Aqui mesmo já dei sugestões de como chamar a atenção sem estar com a sorologia escrita na testa. Porém, sempre tem alguém que chega para menosprezar e pressionar a exposição (14/05/2019).

Discussão

O aspecto mais relevante dos resultados deste estudo diz respeito à evidência da fragilidade do discurso da cronicidade da infecção pelo HIV dada sua intrínseca dependência do acesso à TARV. A cronicidade da infecção pelo HIV remonta ao final da década de 1980 com a emergência do “coquetel” de comprimidos que possibilitou avanços no tratamento e mudou a ênfase da urgência da aids para um modelo de sobrevivência de longo prazo(33 McGrath JW, Winchester MS, Kaawa-Mafigiri D, Walakira E, Namutiibwa F, Birungi J et al. Challenging the paradigm: anthropological perspectives on HIV as a chronic disease. Med Anthropol. 2014 Mar 24;33(4):303-17. doi: 10.1080/01459740.2014.892483.
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). Desde os primeiros medicamentos, a escalada biotecnológica, associada a políticas de distribuição universal, possibilitou significativos avanços no tratamento, salientando, cada vez mais, a crença na sua longa duração(1313 Schwartz C, Bouchat S, Marban C, Gautier V, Van Lint C, Rohr O, et al. On the way to find a cure: purging latente HIV-1 reservoirs. Biochem Pharmacol. 2017 Dec 15;146:10-22. doi: 10.1016/j.bcp.2017.07.001.
https://doi.org/10.1016/j.bcp.2017.07.00...

14 Boffito M, Venter F. The triumph of HIV treatment: another new antiretroviral. Lancet. 2017 Aug 31;390(10107):2019-21. doi: 10.1016/S0140-6736(17)32297-3.
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-1515 Barros SG, Vieira-da-Silva LM. Antiretroviral combination therapy, national anti-Aids policy and transformations of the AidsSpace in Brazil in the 1990s. Saúde Debate. 2017 Sep;41(n.spe3):114-28. doi: 10.1590/0103-11042017s309.
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).

No Brasil, a Lei Federal nº 9.313/1996 tornou-se um marco político-legal na resposta brasileira à infecção ao instituir a distribuição gratuita da TARV, o que colocou o Brasil na vanguarda global do combate à epidemia(1616 Greco DB, Simão M. Brazilian policy of universal access to aids treatment: sustainability challenges and perspectives. AIDS. 2007 Jul 1;21(Supl 4):S37-S45. doi: 10.1097/01.aids.0000279705.24428.a3.
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). No cenário mundial, a década de 2010 teve início com uma nova fase na luta contra a aids. Diversos órgãos governamentais, como a UNAIDS, passaram a propagar o discurso de que estamos prestes a alcançar uma geração livre da aids(77 Joint United Nations Programme on HIV/AIDS. The gap report. Geneva: UNAIDS; 2014. [Internet]. 2014 Jul 16 [cited Oct 20, 2019]. Available from: https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/UNAIDS_Gap_report_en.pdf
https://www.unaids.org/sites/default/fil...
). Essa onda de otimismo sobre a possibilidade da cura ou fim da aids ganhou apoiadores de diversos setores sociais(88 Kenworthy N, Thomann M, Parker R. From a global crisis to the 'end of AIDS': new epidemic of signification. Glob Public Health. 2017 Aug 22;13(8):960-71. doi: 10.1080/17441692.2017.1365373.
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).

Para alguns pesquisadores, esse discurso está assentado na biomedicalização das respostas à epidemia e na consequente cronificação da infecção pelo HIV. Nesse sentido, destaca-se que o que a torna crônica é o acesso contínuo e confiável à TARV, tendo em vista que sua natureza fisiopatológica, clínica e epidemiológica é infectocontagiosa(33 McGrath JW, Winchester MS, Kaawa-Mafigiri D, Walakira E, Namutiibwa F, Birungi J et al. Challenging the paradigm: anthropological perspectives on HIV as a chronic disease. Med Anthropol. 2014 Mar 24;33(4):303-17. doi: 10.1080/01459740.2014.892483.
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,55 Sangaramoorthy T. Chronicity, crisis, and the 'end of AIDS'. Glob Public Health. 2018 Jan 11;13(8):982-96. doi: 10.1080/17441692.2018.1423701.
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,88 Kenworthy N, Thomann M, Parker R. From a global crisis to the 'end of AIDS': new epidemic of signification. Glob Public Health. 2017 Aug 22;13(8):960-71. doi: 10.1080/17441692.2017.1365373.
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,1717 Benton A, Sangaramoorthy T, Kalofonos I. Temporality and positive living in the age of HIV/AIDS. Curr Anthropol. 2017 Jul 11;58(4):454-76. doi: 10.1086/692825.
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). Em países com sistema nacional de saúde universal e gratuito, como o Brasil, essa particularidade introduz o Estado como um agente primordial na garantia do status de condição crônica conferido ao HIV/aids.

É contra este panorama que os dados etnográficos deste estudo evidenciaram como PVHA membras do grupo fechado no Facebook produziam práticas de sociabilidade e ajuda mútua ao considerar a possibilidade de ter uma vida normal, como quem vive com diabetes mellitus, desde que a adesão à TARV estivesse garantida. Além disso, salientou-se como pautas políticas que denunciavam as transformações da resposta brasileira à epidemia nos últimos anos pareciam alertar a alguns membros a fragilidade da cronicidade do HIV/aids, dada sua dependência de práticas estatais e, não somente, do desenvolvimento biotecnológico e da adesão individual à TARV.

Assim como evidenciado em uma etnografia em Uganda(33 McGrath JW, Winchester MS, Kaawa-Mafigiri D, Walakira E, Namutiibwa F, Birungi J et al. Challenging the paradigm: anthropological perspectives on HIV as a chronic disease. Med Anthropol. 2014 Mar 24;33(4):303-17. doi: 10.1080/01459740.2014.892483.
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), para os nossos interlocutores viver cronicamente com o HIV/aids assinalava: o gerenciamento da incerteza do seu curso; a ênfase no autocuidado combinado com manejo biomédico; as estratégias para produzir uma vida normal; o trabalho sobre a identidade necessário para se tornar uma pessoa doente, mas com uma vida normal; e as implicações psicossociais do engajamento contínuo no cuidado biomédico. Em suas experiências, tal condição implicava na produção de uma gramática temporal, polissêmica e tributária da biomedicina que: 1) limitava e fixava a letalidade da aids num tempo distante dado os avanços legais, políticos e biotecnológicos; 2) produzia, no presente, uma gestão da vida cotidiana mediada por compromissos e moralidades associados à TARV; e 3) atuava como um agente que reescrevia a vida.

Como destacado em outras etnografias conduzidas na Flórida e em Maryland (Estados Unidos)(55 Sangaramoorthy T. Chronicity, crisis, and the 'end of AIDS'. Glob Public Health. 2018 Jan 11;13(8):982-96. doi: 10.1080/17441692.2018.1423701.
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) e no Rio de Janeiro (Brasil)(1818 Cunha C. Subject-making methods in AIDS policies: managing youth living with HIV/AIDS. Século XXI. 2014 Dec;4(2):91-132. doi: 10.5902/2236672517039.
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), nossos interlocutores construíam narrativas nas quais HIV e aids eram representados como crises do passado, cujas marcas negativas deveriam ser esquecidas. Assim, vislumbravam novas economias morais num futuro onde o estigma seria reduzido pelo acesso ao tratamento(55 Sangaramoorthy T. Chronicity, crisis, and the 'end of AIDS'. Glob Public Health. 2018 Jan 11;13(8):982-96. doi: 10.1080/17441692.2018.1423701.
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) e a saúde se colocaria como “um dever, uma ética e estética que inviabiliza o aparecimento da feiura, da dor, do adoecimento e da morte”(1818 Cunha C. Subject-making methods in AIDS policies: managing youth living with HIV/AIDS. Século XXI. 2014 Dec;4(2):91-132. doi: 10.5902/2236672517039.
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). Essa moralidade permitia a positivação da vida com o HIV/aids - uma forma de vida produzida pela modelação de si mesmos, de seus atributos pessoais, de suas emoções e da transformação dessas pessoas em governantes de si(1717 Benton A, Sangaramoorthy T, Kalofonos I. Temporality and positive living in the age of HIV/AIDS. Curr Anthropol. 2017 Jul 11;58(4):454-76. doi: 10.1086/692825.
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-1818 Cunha C. Subject-making methods in AIDS policies: managing youth living with HIV/AIDS. Século XXI. 2014 Dec;4(2):91-132. doi: 10.5902/2236672517039.
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).

Ademais, uma das dimensões fundamentais desse autogoverno consistia em forjar um projeto de vida normal cuja viabilidade dependia da adesão ao tratamento. Diante do abençoado tratamento, porque de qualidade, gratuito e universal - diferente do cenário crítico do passado - cabia-lhes o dever de não ficar prostrados em uma cama de hospital, em comparação a pessoas com doenças consideradas, pelos interlocutores, menos controláveis que a aids. O tempo aqui atuava como uma tecnologia de controle, gerenciamento, sincronização, o que caracterizava uma temporalidade específica, conforme demonstrado em uma etnografia multissituada desenvolvida em Moçambique, Estados Unidos e Serra Leoa(1717 Benton A, Sangaramoorthy T, Kalofonos I. Temporality and positive living in the age of HIV/AIDS. Curr Anthropol. 2017 Jul 11;58(4):454-76. doi: 10.1086/692825.
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). Esta temporalidade implicava, portanto, na sincronização da “vida” do vírus à da pessoa afetada; do tempo cotidiano ao “tempo da adesão”; e da rotina diária à burocracia farmacêutica dos sistemas de saúde(1717 Benton A, Sangaramoorthy T, Kalofonos I. Temporality and positive living in the age of HIV/AIDS. Curr Anthropol. 2017 Jul 11;58(4):454-76. doi: 10.1086/692825.
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). Assim, ter uma vida normal significava “um relacionamento contínuo, simbiótico, produtivo e limítrofe de um indivíduo com o vírus ao longo da vida”(1717 Benton A, Sangaramoorthy T, Kalofonos I. Temporality and positive living in the age of HIV/AIDS. Curr Anthropol. 2017 Jul 11;58(4):454-76. doi: 10.1086/692825.
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).

A sociabilidade e ajuda mútua produzida no grupo reforçavam a atuação do tempo como agente que trabalhava nas relações e reescrevia a vida(1919 Das V. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press; 2006.). Diante das rupturas biográficas(2020 Bury M. Chronic illness as biographical disruption. Sociol Health Illn. 1982 Jul 1;4(2):167-82. doi: 10.1111/1467-9566.ep11339939.
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) produzidas pelo diagnóstico - esgarçando a ordem, o sentido, a coerência e o controle sobre a vida -, reconquistar a normalidadesignificava, além de restabelecer uma nova ordem de vida, elaborar o sofrimento e o medo do HIV/aids como emoções de uma história distante, da época do Cazuza,quando não se tinha o suporte político, social e biotecnológico de que se dispõe hoje.

Nesse contexto, a função da biomedicina e das políticas de saúde era, na perspectiva dos interlocutores, delinear as linhas do papel sobre as quais se escreveria esses projetos de vida. Essa “escrevivência” dos atores sociais derivava das modelações de suas subjetividades e do tempo como agente que trabalhava nos relacionamentos, possibilitando reescrever, reenquadrar, reinterpretar as memórias e os textos do sofrimento(1919 Das V. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press; 2006.) que, no caso em tela, decorria da impossibilidade de pensar o futuro após o choque do diagnóstico.

O trabalho do tempo(1919 Das V. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press; 2006.) mostrou-se relevante para alguns membros do grupo, visto que as experiências de sofrimento compartilhadas costumavam estar relacionadas à permanência do estigma. Foi possível compreender o artesanato do viver com HIV/aids, onde as promessas oferecidas pela biomedicina pareciam não dar conta de explicar as vicissitudes de vidas que se desenvolvem num espaço social localizado entre “estar doente enquanto se está normal”(33 McGrath JW, Winchester MS, Kaawa-Mafigiri D, Walakira E, Namutiibwa F, Birungi J et al. Challenging the paradigm: anthropological perspectives on HIV as a chronic disease. Med Anthropol. 2014 Mar 24;33(4):303-17. doi: 10.1080/01459740.2014.892483.
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).

Em nossa análise, essas gramáticas temporal e emocional, assim como a TARV, pareciam ter “efeitos colaterais”, pois os processos de subjetivação por elas engendrados se pautavam numa “ontologia individual liberal”(2121 Seffner F, Parker R. The waste of experience and precariousness of life: contemporary political moment of the Brazilian response to aids. Interface. (Botucatu). 2016 Apr-Jun;20(57):293-304. doi: 10.1590/1807-57622015.0459.
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) que, ao atar a “história negativa da aids”(1818 Cunha C. Subject-making methods in AIDS policies: managing youth living with HIV/AIDS. Século XXI. 2014 Dec;4(2):91-132. doi: 10.5902/2236672517039.
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) num passado superado pelo progresso, parece ter aprisionado, também, a compreensão da aids como um “problema político”(2121 Seffner F, Parker R. The waste of experience and precariousness of life: contemporary political moment of the Brazilian response to aids. Interface. (Botucatu). 2016 Apr-Jun;20(57):293-304. doi: 10.1590/1807-57622015.0459.
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). Estas gramáticas guardavam fortes vínculos com o otimismo e os discursos triunfalistas sobre o “fim da aids”(88 Kenworthy N, Thomann M, Parker R. From a global crisis to the 'end of AIDS': new epidemic of signification. Glob Public Health. 2017 Aug 22;13(8):960-71. doi: 10.1080/17441692.2017.1365373.
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).

No plano da saúde global, a literatura já sinalizou para os efeitos desse entusiasmo na formulação de políticas públicas e na organização dos serviços de saúde(88 Kenworthy N, Thomann M, Parker R. From a global crisis to the 'end of AIDS': new epidemic of signification. Glob Public Health. 2017 Aug 22;13(8):960-71. doi: 10.1080/17441692.2017.1365373.
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,2121 Seffner F, Parker R. The waste of experience and precariousness of life: contemporary political moment of the Brazilian response to aids. Interface. (Botucatu). 2016 Apr-Jun;20(57):293-304. doi: 10.1590/1807-57622015.0459.
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). No Brasil, observa-se que, nos últimos anos, “grande número de ações em aids perdeu esta noção de projeto político, e associamos isso a um dos efeitos do tratamento, que individualiza as abordagens, não necessita e não deseja lidar com sujeitos coletivos ou movimentos sociais. A medicalização convive muito bem com a individualização: com o indivíduo isolado, que é sempre um outro(2121 Seffner F, Parker R. The waste of experience and precariousness of life: contemporary political moment of the Brazilian response to aids. Interface. (Botucatu). 2016 Apr-Jun;20(57):293-304. doi: 10.1590/1807-57622015.0459.
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).

O esvaziamento da aids como “intensa questão política”(2121 Seffner F, Parker R. The waste of experience and precariousness of life: contemporary political moment of the Brazilian response to aids. Interface. (Botucatu). 2016 Apr-Jun;20(57):293-304. doi: 10.1590/1807-57622015.0459.
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) na sociabilidade e ajuda mútua entre os interlocutores parecia reproduzir uma “estufa” que tentava equilibrar a ética e a estética do soropositivo feliz(1818 Cunha C. Subject-making methods in AIDS policies: managing youth living with HIV/AIDS. Século XXI. 2014 Dec;4(2):91-132. doi: 10.5902/2236672517039.
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) com os gradativos assaltos sofridos pela resposta brasileira à epidemia. Na “estufa” estamos “nós”, os que têm acesso aos serviços e biotecnologias, os aderentes, os indetectáveis, os normais. Fora dela estão os “outros”, os distantes de mim, os que não aderem, os que vão buscar medicamento e recebem quantidades fracionadas (ou não recebem). Nessa “estufa da aids”, recebeu-se as postagens com denúncias do desmonte do SUS e suas consequências na política de aids, como pedras lançadas contra um teto de vidro frágil.

As “rachaduras” abertas desestabilizaram o tênue equilíbrio mantido entre um passado atado, um presente desgarrado e um futuro sempre precário, vulnerável, dependente. Os conflitos que ganharam relevo na sociabilidade entre os membros do grupo expressavam esses movimentos entre o interior e o exterior da “estufa da aids”. Traziam para o grupo as cisões políticas e ideológicas que marcam na atualidade a vida pública brasileira(2222 Machado J, Miskolci R. From the june demonstrations to the moral crusade: the role of social media networks in political polarization.Sociol Antropol. 2019 Sep-Dec;9(3):945-70. doi: 10.1590/2238-38752019v9310.
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). Mais que isso, os conteúdos postados e as tretas ilustravam os efeitos de um tempo que parecia querer voltar pelas veias abertas pelo crescimento do conservadorismo, da extrema direita no Brasil e seus impactos na política de aids.

No presente, os tentáculos desse tempo, que pareciam interditados pela ciência, atualizavam emoções significadas como pânico e clima de medo, próprias das décadas de 1980 e 1990. Com isso, desvelavam rupturas e continuidades entre a “crise do passado”(55 Sangaramoorthy T. Chronicity, crisis, and the 'end of AIDS'. Glob Public Health. 2018 Jan 11;13(8):982-96. doi: 10.1080/17441692.2018.1423701.
https://doi.org/10.1080/17441692.2018.14...
) e as promessas de um futuro livre da aids(77 Joint United Nations Programme on HIV/AIDS. The gap report. Geneva: UNAIDS; 2014. [Internet]. 2014 Jul 16 [cited Oct 20, 2019]. Available from: https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/UNAIDS_Gap_report_en.pdf
https://www.unaids.org/sites/default/fil...
). Outrossim, aproximavam as arenas pública e privada da vida cotidiana ao trazer para perto processos e decisões políticas, na medida em que estas se faziam sentir na ameaça de impossibilidade de cumprirem o tratamento como imperativo moral.

Estes achados contribuem para o avanço do conhecimento científico sobre o enfrentamento da epidemia de HIV/aids, pois evidenciou a íntima relação entre práticas estatais, econômicas, socioculturais e biomédicas na garantia de acesso à TARV e, consequentemente, à possibilidade de ter uma vida normal com o HIV/aids por longos períodos de tempo. Fez isso ao demonstrar a cronicidade como uma categoria construída socialmente e não dada a priori em termos biomédicos. Por fim, salientam-se as limitações do estudo, dado seu caráter circunscrito ao contexto investigado e por não ter incluído aqui outras técnicas de coleta de dados como entrevistas semiestruturadas.

Conclusão

Esta pesquisa buscou compreender como as relações entre cronicidade e política modelam a sociabilidade e a ajuda mútua entre participantes de um grupo fechado no Facebook. O estudo permitiu apreender as gramáticas temporal e emocional que orientavam a sociabilidade no grupo e suas relações com o discurso da cronicidade da infecção. Além disso, destacaram-se as práticas estatais como um agente fundamental, no contexto brasileiro, para a manutenção da política de aids, da cronicidade da infecção pelo HIV e da possibilidade de ter uma vida normal, apesar da infecção. No contexto investigado, as relações entre saúde-doença, tempo, emoção e política têm produzido sociabilidades, ajuda mútua, materialidades e performances que destacaram a fragilidade da cronicidade e a necessidade de estar atentos, sabendo que sim, há perigo na esquina!

  • *
    Apoio Financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) - Processo 2018/07846-6 e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico (CNPq) - Processo 430361/2018, Brasil.

References

Editado por

Editora Associada: Andrea Bernardes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    02 Out 2019
  • Aceito
    14 Mar 2020
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