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EDITORIAL

Particularmente nas últimas duas décadas, tem havido, no Brasil, por parte de órgãos públicos, expressiva produção de dados quantitativos que têm permitido conhecer melhor as diversas faces da educação no país. O presente número da Revista Brasileira de Educação expressa a crescente preocupação de pesquisadores em dar inteligibilidade e interpretar esses dados, com base no debate teórico realizado na área. Dois artigos publicados utilizam as informações produzidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), com esse objetivo. Em "Titulação escolar, condição de ‘elite’ e posição social", utilizando os microdados dos censos, Odaci Luiz Coradini estabelece relações entre titulação universitária, ocupação profissional e posição social no Brasil, nas últimas décadas, mostrando que os usos sociais da titulação universitária inscrevem-se numa diversidade de mercados e de relações diferenciadas com a estrutura de poder. Por um lado, ocorre o crescimento da proporção daqueles que têm alguma ocupação de "elite"; por outro, a forte polivalência nos usos da titulação universitária resulta também na grande quantidade dos que exercem alguma ocupação com rendimento inferior ao daqueles da categoria ocupacional correspondente ao título. Por sua vez, em "Uma análise acerca do boicote dos estudantes aos exames de avaliação da educação superior", Thiago Leitão, Gabriela Moriconi, Mariangela Abrão e Dayse Silva, eles próprios pesquisadores do INEP, analisam o fenômeno denominado boicote aos exames do sistema de avaliação do ensino superior no Brasil, dando ênfase ao Exame Nacional de Avaliação do Desempenho do Estudante (ENADE). O trabalho busca evidenciar a magnitude do fenômeno, ao longo do tempo, nas instituições públicas e privadas, por tipo de boicote. Por meio da análise econométrica realizada, tomando por base os dados do último triênio de avaliação do ENADE, foi possível identificar as variáveis que mais afetaram a decisão do aluno em adotar esse comportamento e traçar um perfil do estudante que aderiu ao fenômeno.

Ainda em uma abordagem predominantemente quantitativa, temos o artigo "Grupos de pesquisa sobre infância, criança e educação infantil no Brasil: primeiras aproximações". Nele, com base nas informações do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq, dos Cadernos de Indicadores dos Programas de Pós-Graduação em Educação e da base Lattes do CNPq, Isabel de Oliveira e Silva, Iza Rodrigues da Luz e Luciano Mendes de Faria Filho apresentam um mapeamento dos grupos e instituições que produzem pesquisas na área de educação sobre infância, criança e educação infantil no Brasil, por regiões geográficas e principais temas investigados. Esse tipo de levantamento certamente auxilia novos pesquisadores a produzir conhecimento sobre temáticas ainda não suficientemente investigadas.

É essa preocupação com a necessidade de que as pesquisas efetivamente contribuam para o avanço do conhecimento que está na base das reflexões contidas no artigo "Sobre a proximidade do senso comum das pesquisas qualitativas em educação: positividade ou simples decadência?", de autoria de Catia Piccolo Viero Devechi e Amarildo Luiz Trevisan. Superadas as polarizações entre pesquisa quantitativa e pesquisa qualitativa, característica dos meios educacionais brasileiros nos anos de 1980, temos, na atualidade, certo consenso de que as duas abordagens, com suas especificidades, limitações e potencialidades, podem trazer contribuições para a compreensão do fenômeno educacional, em suas múltiplas dimensões.

A reflexão sobre a pesquisa também é o tema central de três artigos publicados na seção Espaço Aberto deste número. Carlos Roberto Jamil Cury, em "O debate sobre a pesquisa e a avaliação da pós-graduação em educação", faz uma apresentação dos dois trabalhos que vêm a seguir, originalmente apresentados na mesa de abertura do IX Encontro de Pesquisa da Região Sudeste, realizado na Universidade de São Carlos, em julho de 2009. De início, destaca a importância do debate sobre a pós-graduação brasileira, em termos da produção de pesquisa qualificada e da importância da avaliação conduzida pela CAPES. Coloca em questão o dilema por ela enfrentado atualmente: conciliar a gestão burocrática, própria do sistema, e gestão democrática, exigida inclusive pela autonomia universitária. Em "A pesquisa em educação no Brasil", Elizabeth Macedo e Clarilza Prado debatem a política de pós-graduação na área de educação, entendendo-a, a partir de E. Laclau e C. Mouffe, como politização incessante habitada pela indecidibilidade. Após traçarem um breve quadro do sistema a partir dos resultados da avaliação do triênio 2004-2006, as autoras analisam dois aspectos que julgam centrais em relação à noção de qualidade: a articulação dos programas em torno de linhas de pesquisa e a produção/disseminação do conhecimento. Em relação à articulação, defendem que as linhas podem ser entendidas como uma expressão da forma como os programas estão pensando o próprio campo da educação, num exercício que tem envolvido interdisciplinaridade e flexibilidade. Quanto à produção/disseminação do conhecimento, discordam de tese corrente de que a avaliação da pós-graduação tem levado a área a um produtivismo desenfreado, entendendo-a como nostalgia restauradora. No último texto que compõe a seção, "A pesquisa em educação: um balanço da produção dos programas de pós-graduação", Paolo Nosella identifica dois principais momentos na trajetória da pós-graduação no Brasil. Ao primeiro momento, que compreende o período de 1965 a 1985, associa duas características: a escolarização da produção da pesquisa, decorrência da institucionalização da pós-graduação, e o desenvolvimento de um forte pensamento crítico, como reação aos governos militares. Os anos de 1985 até hoje, considerados o segundo momento, caracterizam-se pela consolidação e expansão da pós-graduação e as pesquisas desse período são teoricamente marcadas pela chamada crise dos paradigmas. Para o autor, o desafio teórico hoje é articular o particular escolar (dado empírico) com o movimento geral da história (totalidade). Identifica, ainda, outros desafios, como aprimorar o texto ou a "narração" dos relatórios, modificar a avaliação dos programas de pós-graduação em educação feita pela CAPES e institucionalizar a pesquisa nas novas universidades do país.

Temos, por fim, publicados neste número, cinco artigos que expressam outras abordagens teórico-metodológicas que compõem a multiplicidade da pesquisa no campo da educação: o ensaio e a pesquisa documental ou histórica. No artigo que abre o número, "Formação de professores e pedagogias críticas. É possível ir além das narrativas redentoras?", Gustavo Enrique Fischman e Sandra Regina Sales apresentam reflexões sobre a pedagogia crítica como narrativa redentora nos cursos de formação de professores. Para os autores, para que a pedagogia crítica se torne um discurso político-educacional viável na formação docente é necessário considerar novas estratégias que superem as posições redentoras, abandonando essencialismos dicotômicos e a figura do "superprofessor consciente crítico", como agente de mudança educacional. Por sua vez, Marcelo Andrade, em "A banalidade do mal e as possibilidades da educação moral: contribuições arendtianas", revisita a obra de Hannah Arendt, filósofa que pensou e viveu em tempos sombrios, a fim de entender alguns conceitos fundamentais para repensar hoje a educação moral ou a educação em valores. Com pesquisa centrada nas obras Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal e A vida do espírito, o trabalho visa compreender como e por que Hannah Arendt cunhou o conceito de banalidade do mal e em que sentido ele se relaciona com o vazio do pensamento e com uma proposta de educação em valores.

No artigo "Ensinando sobre a diferença na literatura para crianças: paratextos, discurso científico e discurso multicultural", Rosa Maria Hessel Silveira, Iara Tatiana Bonin e Daniela Ripoll analisam como os paratextos dos livros de literatura infantil que têm como temática a questão da diferença ensinam e buscam influenciar condutas e atitudes em relação a ela. Nos títulos analisados, foram esquadrinhados dois tipos de discursos: multiculturalista e científico-informativo. Em "Sobre a constituição da disciplina curricular de língua portuguesa", Émerson de Pietri analisa a constituição dessa disciplina curricular no Brasil, fundamentado em uma perspectiva discursiva, tomando por base documentos produzidos na década de 1970. A análise revelou características importantes a respeito dos modos de apropriação, com objetivos pedagógicos, de saberes acadêmicos sobre a linguagem e possibilitou evidenciar a complexidade desse momento histórico, caracterizado pela diversidade de aspectos acadêmicos, políticos e didáticos em concorrência. Por fim, apresenta-se o artigo de autoria de Marlos Rocha, "O ensino elementar no Decreto Leôncio de Carvalho: ‘visão de mundo’ herdada pelo tempo republicano?". Nele, o autor analisa o predomínio de uma ideia que surgiu ao final do Império, a de incúria do povo, e que, na República, transformou-se em insuficiência cívica desse mesmo povo. O trabalho funda-se interpretativamente no resgate da tradição e na emergência do novo, recorrendo a um procedimento hermenêutico sobre os discursos dos ministros do Império, bem como sobre os textos dos projetos e decretos.

Os artigos publicados neste número parecem, pois, expressar o estado atual da produção acadêmica na área de educação, marcada pela diversidade de abordagens teórico-metodológicas e pela análise e reflexão sistemática acerca do próprio processo de produzir conhecimento, em um contexto em que mecanismos de avaliação internos e externos aos programas de pós-graduação definem, em grande parte, o quê e como se deve pesquisar e socializar o que se pesquisa.

A Comissão Editorial

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2010
  • Data do Fascículo
    Abr 2010
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