RESUMO
Este texto pretende discutir a célebre restrição imposta às sociedades parciais no Capítulo III do Livro II do Contrato social. Defende-se a hipótese de que essa proibição pode frutiferamente ser considerada à luz das especificidades da dinâmica de cooperação/competição entre grupos e seus efeitos no processo legislativo e, por extensão, na coesão social.
Palavras-chave:
J.-J; Rousseau; Processo legislativo; Competição/ cooperação; Faccionalização
ABSTRACT
This text intends to discuss the famous restriction imposed on partial associations in Social Contract, Book II, Chapter III. It is suggested that this prohibition can be fruitfully considered in the light of the specificities of the dynamics of cooperation/competition among groups and its effects on the legislative process and, by extension, on social cohesion.
Keywords:
J.-J; Rousseau; Legislative process; Competition/cooperation; Factionalization
O processo legislativo, como ação coletiva, envolve, tipicamente, os elementos de competição e de cooperação que caracterizam a socialidade1 1 Uso “socialidade”, em lugar do termo mais comum “sociabilidade”, para designar mais enfaticamente a capacidade humana de viver em sociedade, suas características e suas condições de possibilidade. O termo “sociabilidade”, nos seus usos correntes, parece-me enfatizar mais a referência ao “gosto” especial pela interação social ou, então, ao “impulso” que leva os indivíduos a procurarem o convívio social, gosto e impulso esses que, por sua vez, dependem daquela capacidade (ou do conjunto de capacidades) que torna possível, em primeiro lugar, a vida social. humana. Segundo a ênfase que escolhemos, podemos modelizar esse processo como uma competição (como uma disputa em torno do controle dos meios necessários para dominar a tomada de decisões coletivas ou como uma competição para definir o que seja o interesse comum, por exemplo) ou como um procedimento cooperativo (uma ação conjunta, envolvendo elementos de intencionalidade compartilhada e um sujeito plural).
Em sua descrição do sufrágio (sobretudo no Livro IV, Cap. II do Contrato social), Rousseau enfatiza justamente os aspectos cooperativos, mantendo, ao mesmo tempo, uma consciência aguda dos elementos competitivos: no modelo que propõe, o processo legislativo é um empreendimento cooperativo, que, supondo o compartilhamento de uma concepção do bem ou interesse comum, consiste em um processo de “cognição social”.2 2 A expressão é usada por Thompson (2017). Tracemos as linhas gerais desse processo, antes de darmos atenção especial a uma de suas condições, que aparece na forma da limitação às sociedades parciais.
Três instâncias devem ser levadas em conta na tentativa de reconstruir o processo legislativo segundo Rousseau: o soberano, o legislador e o governo.
Cabe precipuamente ao soberano, como se sabe, a tarefa de legislar, que ele não pode delegar ou dividir com nenhuma outra instância, ao menos no que se refere ao momento de decisão. “Toda lei que o Povo em pessoa não ratificou é nula; não é de modo algum uma lei”, diz Rousseau no célebre capítulo sobre os representantes no Livro III do Contrato social (Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 430). O sujeito eminente do processo legislativo, portanto, só pode ser o soberano: é a ele que inere o poder legislativo, de modo que o exercício da soberania quase se confunde com a legislação. Mas, na prática, o processo legislativo implica, sim, uma divisão do trabalho, com duas outras instâncias assumindo papéis importantes: o governo e o legislador. Comecemos por examinar o papel desta figura curiosa, que é o “grande Legislador”.
Rousseau tem o cuidado de insistir que o legislador, mesmo que cumpra uma função importante (e mesmo necessária) na instituição de um corpo político, não faz parte de sua constituição3 3 “O legislador é, sob todos os aspectos, um homem extraordinário no Estado. Se deve sê-lo por seu gênio, não o é menos por sua função. Não é magistratura, não é soberania. Essa função, que constitui a república, não entra em sua constituição” (Rousseau, 1964b, p. 382). - pelo menos não no mesmo sentido em que soberano e governo o fazem. Isso, no entanto, merece algumas qualificações.
Rousseau parece atribuir dois papéis principais ao legislador, no que diz respeito ao que nos interessa aqui (ou seja, a legislação e o processo legislativo). O primeiro é a tarefa (relativamente) simples e pontual de redigir originalmente as leis. Nesse papel, o legislador aparece como uma espécie de especialista que, após estudar um povo, dá a redação mais adequada às leis necessárias para que esse povo se institua como um corpo político.4 4 “Como antes de erguer um grande edifício o arquiteto observa e sonda para ver se o solo pode sustentar o peso, o sábio instituidor não começa redigindo leis que sejam boas em si mesmas, mas examina previamente se o povo ao qual as destina é próprio para suportá-las” (Rousseau, 1964b, p. 385).
Mas devemos lembrar que decidir o que será a lei é apenas uma das funções do poder legislativo. Outra de suas funções, especialmente em seu papel de controle do executivo, é a de manter as leis: “O poder legislativo consiste em duas coisas inseparáveis: fazer as leis e mantê-las; isto é, inspecionar o poder executivo” (Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 826). Como sabemos (e voltaremos a isso), nas assembleias periódicas em que o soberano se reúne sempre se põe em questão a permanência do governo vigente (cf. Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 436). Esse papel de vigilante que o soberano assume é dependente de sua integridade, garantida e mantida tanto pelo “quarto tipo de leis” (costumes e opinião), quanto por instituições que reforçam sua autoridade. Essas instituições, de certa forma, correspondem a uma outra função do legislador, uma função não mais pontual (como a redação original das leis no momento da instituição), mas permanente.
Efetivamente, podemos argumentar que, apesar dos exemplos reiterados de Rousseau, o legislador pode ser pensado menos como uma pessoa do que como um conjunto de instituições que têm parte no esforço de manutenção das leis, de modo que podemos, em algum sentido, incluí-lo como parte constituinte do corpo político, para além de seu papel no momento da instituição.5 5 Ver, sobre isso, Reis (2017), especialmente pp. 16-20.
O legislador aparece, assim, como uma espécie de metonímia para nos referirmos seja a determinadas condições da instituição do soberano, seja a determinados aspectos da própria constituição do corpo político, em sua função legislativa (que inclui, como foi dito, o papel de controle do executivo).
Diante do papel que é finalmente atribuído ao legislador na instituição do corpo político, poderíamos ficar tentados a pensar, a partir dele, uma divisão substantiva no processo legislativo, que corresponderia, grosso modo, à distinção entre um processo originário (constituinte, dando origem a uma constituição) e um processo ordinário (que daria origem à legislação ordinária). Neste ponto também cabe fazer algumas qualificações.
Antes de mais nada, vale lembrar que Rousseau rejeita a ideia de uma lei fundamental, pensada nos moldes do que associamos modernamente à Constituição - ou seja, uma lei que contém, entre seus dispositivos, um conjunto de normas destinadas a limitar o exercício da autoridade soberana.6 6 “[...] é contrário à natureza do corpo político que o soberano imponha a si mesmo uma lei que não possa infringir. [...] não há nem pode haver nenhum tipo de lei fundamental obrigatória para o corpo político, nem mesmo o pacto social” (Rousseau, 1964b, p. 362). Ver, sobre isso, Schwartzberg (2003), Daly (2017) e Radica (2016). A tarefa do legislador, ainda que comprometida, em algum sentido, com a instituição do corpo político, não deve ser confundida com a de um poder constituinte, que se incumbiria de dotar o Estado de uma Constituição (no sentido moderno estrito).7 7 Em contrapartida, Rousseau diz que o legislador se ocupa da “verdadeira constituição do Estado” (“constituição” assumindo, aqui, um sentido lato): ocupa-se dos “costumes” e da “opinião”, que Rousseau reconhece como um “quarto tipo” de lei, ao lado das leis políticas (ou “fundamentais”, no plural) e das leis civis e penais (cf. Rousseau, 1964b, p. 394). O momento instituinte, a que se liga o legislador, poderia ser entendido como um “momento constituinte”, se tomarmos a ideia de constituição nesse sentido lato que aparece no contexto referido acima.
Mas o papel mais significativo do legislador no processo legislativo está associado à necessidade que preside sua introdução em primeiro lugar: trata-se da necessidade de diminuir ou eliminar a distância entre “as deliberações do povo” e a correta expressão da vontade geral.
Cabe ao legislador “unir entendimento e vontade” (cf. Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 380), dando uma formulação suficientemente clara do interesse ou do bem comum, que, uma vez conhecido, impõe-se necessariamente à vontade (cf. Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 371). Assim considerado, o “grande Legislador” tem uma função quase heurística (sobre isso, ver Reis, 2010______. “Vontade geral e decisão coletiva”. Trans/Form/Ação, Vol. 33, Nr. 2, pp. 1134, 2010.), por assim dizer, tornando possível que os particulares escolham o que veem como sendo o bem público (mas nem sempre escolhem, em função do viés do interesse privado) e que o público veja o que é o bem comum (que, por definição, sempre escolheria - porque toda pessoa, inclusive as pessoas morais, sempre deseja o seu próprio bem -, se soubesse em que consiste). Sua atribuição principal, enfim, é fornecer ao soberano uma formulação clara e o mais precisa possível do que seja o bem comum. Isso, por sua vez, é um ingrediente essencial do processo legislativo e nisso consiste a outra contribuição importante do legislador para a legislação (ao lado de seu papel na manutenção das leis, como apontado acima).
Examinemos agora, em seguida, o papel do governo no processo legislativo.
Uma das ideias fortes do Contrato social (e um dos pontos mais originais da teoria proposta por Rousseau nessa obra) é a distinção cuidadosa que o Genebrino estabelece entre governo e soberano. Apresentados inicialmente como poderes distintos (correspondendo à divisão entre função executiva e função legislativa), ao final do Livro III do Contrato social são tratados (para usar a expressão de Florent Guénard, comentando a sétima das Cartas da montanha: cf. Guénard, 2005GUÉNARD, F. “Puissance legislative et puissance exécutive: la marche vers le despotisme. Lettres de la montagne, VII”. In: B. Bernardi et al (eds.), 2005, pp. 127-145., p. 129) como “potências em conflito”.
Como poderes separados, governo e soberano devem cooperar para garantir a boa ordem da república. Essa cooperação, que deveria se pautar pela estrita subordinação da instância governamental à instância soberana, no entanto, como sugere Rousseau, tende a degenerar ao longo do tempo, por diversas razões - mas, sobretudo, em função da pressão do governo contra essa subordinação imposta pela constituição. E essa pressão se reflete, inevitavelmente, no exercício do poder legislativo, ou seja, no próprio exercício da soberania.
Em função disso, Rousseau propõe diversos princípios destinados a “manter a autoridade soberana” - entre eles a necessidade de assembleias fixas e periódicas, definidas em lei, e cuja convocação, portanto, independe do governo. Notemos que esse ponto diz respeito diretamente ao que talvez seja a crítica mais importante que Rousseau endereça à constituição de Genebra. Na sétima das Cartas da montanha, o Genebrino aponta para o absurdo de um “corpo soberano” que, no entanto, está, na prática, impedido de constituir-se (se former) ou de operar (former aucune opération) por si mesmo - a referência é ao artigo da Mediação que restringia aos Síndicos, ao Pequeno e ao Grande Conselhos a iniciativa legislativa, ou seja, a proposta de matérias que poderiam ser levadas ao Conselho Geral (cf. Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 827).
Rousseau, no entanto, no Contrato social, exime-se da tarefa de descrever o funcionamento dessas assembleias periódicas, alegando que tal matéria demandaria um tratado à parte, provavelmente por ultrapassar os limites dos princípios gerais do direito político que pretendia analisar nessa obra (cf. Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 439). Além do mais, apesar do ponto levantado na sétima carta e mencionado acima, sobre a necessidade de que o desenho institucional preserve a hierarquia adequada entre governo e soberano, em vários momentos Rousseau defende a restrição do poder de propor novas leis.8 8 Ver, por exemplo, a “Dedicatória” do Discurso sobre a origem da desigualdade (Rousseau 1964b, p. 114) e, nas Cartas da montanha, id., pp. 846 e 872. Ver ainda id., pp. 439 e 1492, nota 1. Sobre o papel do governo no processo legislativo e seu controle da agenda, ver Putterman (2010), especialmente cap. 2; e Scott (2005). Essa restrição, de resto, é consistente com sua defesa da parcimônia legislativa: um Estado bem constituído precisa de poucas e duradouras leis. Nessa confluência de indicações, sugestões e lacunas, o trabalho do leitor e intérprete não fica mais fácil.
Mas lembremos de que o exercício do poder legislativo para Rousseau não se esgota no processo legislativo, envolvendo também o que chama de “manutenção das leis” e que identifica com o controle do governo pelo soberano. Sua indicação mais concreta sobre o funcionamento das assembleias fixas vai exatamente nessa direção: trata-se da evocação das duas questões que devem sempre abrir essas assembleias.9 9 “A primeira: se apraz ao Soberano conservar a presente forma de governo. A segunda: se apraz ao Povo deixar a administração nas mãos daqueles que se ocupam dela presentemente” (Rousseau, 1964b, p. 436; grifos no original).
Essas assembleias fixas e periódicas, assim, não são necessariamente sessões legislativas: seu “único objeto”, lembra Rousseau, “é a manutenção do tratado social” (Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 434), e legislar, não obstante sua importância capital e sua centralidade (a alma do corpo social reside no poder legislativo, lembra Rousseau), não é a única maneira de se manter o “tratado social” (ou seja, de relembrar os cidadãos do compromisso conjunto que assumiram no “pacto”). Na verdade, essas assembleias periódicas estariam mais próximas, aparentemente, dos momentos eleitorais10 10 Rousseau pouco discute no Contrato social questões como as formas de eleição dos governantes ou a necessidade ou conveniência de se fixar uma duração limitada para o mandato dos ocupantes do poder executivo (há uma referência à necessidade de limitar o mandato do ditador, cf. Rousseau, 1964b, p. 458), mas notemos, de passagem, que esse controle periódico recorrente do governo pelo soberano, por meio das assembleias periódicas, garante a possibilidade da alternância dos membros do executivo. O mandato executivo, portanto, tem, a princípio, a duração do intervalo entre as assembleias periódicas, seja ele qual for, mas, dada a forma como Rousseau pensa a extensão da autoridade soberana, provavelmente para ele o soberano tem a prerrogativa de renovar indefinidamente o mandato dos governantes. nas democracias contemporâneas do que dos momentos legislativos - e talvez não fosse inadequado pensar que, tal como Rousseau talvez as imaginasse, assumiriam mais o molde de grandes festivais públicos do que o de reuniões deliberativas com fim legislativo.
Ao lado das assembleias fixas, Rousseau prevê também outras, eventuais ou extraordinárias, convocadas ao sabor dos imprevistos. Tudo indica que a convocação dessas assembleias extraordinárias seja de competência exclusiva do governo. Rousseau enfatiza bem esse ponto: “toda assembleia do Povo que não tenha sido convocada pelos magistrados autorizados a isso e de acordo com as formas prescritas devem ser consideradas ilegítimas, e tudo o que se faz nelas, como nulo” (Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 426).
Ora, podemos especular que é provavelmente nessas assembleias extraordinárias que o processo legislativo vai ocorrer com mais frequência. Convocadas para fazer face a imprevistos, que, nessa qualidade, não haviam, naturalmente, sido considerados no momento da instituição das leis, devem resultar frequentemente na reforma da lei ou na criação de novas. O ponto mais relevante aqui é que, competindo exclusivamente ao governo convocar essas assembleias, cabe-lhe também, aparentemente, a iniciativa de definir a agenda ou a pauta. Esse controle da agenda legislativa põe nas mãos do governo um poder não negligenciável e garante a essa instância um lugar decisivo no processo legislativo.
Em suma, o processo legislativo, na origem ou instituição, começa com a “redação” das leis pelo “grande Legislador”, passando, em seguida, para o soberano, que ratifica essas leis. Em sua versão ordinária, o processo é ou lançado por iniciativa do governo ou de algum modo controlado por ele, que, portanto, tem um peso definitivo na definição da pauta sobre a qual o soberano delibera, opina e vota. Notemos aqui de passagem (e teremos oportunidade de voltar a isso) que, no processo legislativo, a relação entre governo e soberano envolve uma dose importante de competição, já antecipando um elemento que reaparecerá com relação às “sociedades parciais”.
Seja na sua versão instituinte, seja na sua versão ordinária, o processo legislativo, como parece estar sugerido por Rousseau, não é necessariamente iniciado pelo soberano. Não obstante, o momento decisivo do processo, envolvendo os três elementos da deliberação, da opinião e do voto,11 11 Esses três elementos são mencionados por Rousseau em nota na sétima carta das Cartas escritas da montanha (Rousseau, 1964b, p. 833). pertence exclusivamente ao soberano, e é a ele que Rousseau dá mais atenção no Contrato social. Examinemos agora, brevemente, as condições que Rousseau impõe a esse momento da decisão, no sentido de garantir a confiabilidade do processo - ou seja, garantir que resulte na efetiva expressão da vontade geral.
No Contrato social (Livro IV, cap. II), Rousseau avança uma concepção fortemente epistêmica do processo legislativo:
Quando uma lei é proposta à assembleia do povo, o que lhes é perguntado não é precisamente se aprovam a proposição ou a rejeitam, mas se ela está ou não conforme à vontade geral, que é a deles; cada um dando seu sufrágio dá, sobre isso, sua opinião, e do cálculo das vozes tira-se a declaração da vontade geral. (Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., pp. 440/441, grifos meus)
O sufrágio exprime um juízo ou uma opinião (avis é o termo usado por Rousseau) e não uma preferência, e está sujeito a uma avaliação de conformidade com algo que existe independentemente do próprio juízo (e é, portanto, dotado de objetividade, em algum sentido).12 12 Bachofen sugere que o bem comum não pode ser descrito “em termos essencialistas, segundo um modelo de tipo platônico” (Bachofen, 2014, p. 401). Ainda assim, parece-me inescapável, pelas formulações de Rousseau a respeito do sufrágio, que ao bem ou interesse comum a que se refere a vontade geral deve ser atribuído um tipo de objetividade - que, certamente, não precisa ser pensada nos termos “essencialistas” ou “platônicos” criticados por Bachofen. Também a ideia de que a “vontade geral é indestrutível”, como diz Rousseau no capítulo que abre o Livro IV do Contrato social, contribui para reforçar essa atribuição de objetividade ao bem comum (cf. Rousseau, 1964b, p. 437 ss.). Complementarmente, deve-se lembrar que Rousseau caracteriza o interesse comum como aquilo que constitui uma espécie de interseção entre os vários interesses privados (é o que há de comum entre esses interesses: Rousseau, 1964b, pp. 371, 374). Esse conjunto interseção, que constitui o interesse comum ou o bem comum que é seu objeto, pode e vai variar de sociedade para sociedade e também, para cada grupo, ao longo do tempo. Isso não diminui sua “objetividade” peculiar, como padrão (independente) para a tomada de decisões. Esse padrão anterior à decisão funciona como uma condição que restringe ou constrange (cf. Sreenivasan, 2000SREENIVASAN, G. “What is the general will?” The Philosophical Review, Vol. 109, Nr. 4, pp. 545-581, 2000.) o processo, garantindo-lhe confiabilidade.
Se há, portanto, um elemento de decisão no sufrágio, há também elementos de descoberta no processo que leva a essa decisão (cf. Reis, 2010______. “Vontade geral e decisão coletiva”. Trans/Form/Ação, Vol. 33, Nr. 2, pp. 1134, 2010.; Brooke, 2007BROOKE, C. “Aux limites de la volonté générale: silence, exil, ruse et désobéissance dans la pensée politique de Rousseau”. Les Études Philosophiques, 2007/4, Nr. 83, pp. 425-444, 2007.). O que nós devemos fazer (nossa vontade geral) é algo que precisa ser decidido, mas essa decisão envolve necessariamente elementos de descoberta: precisamos, antes, descobrir ou saber o que é bom para nós (nosso bem ou interesse comum). Eis aí, mais uma vez, o papel que Rousseau atribui ao “grande Legislador”.
Isso se reflete diretamente sobre como devemos entender a deliberação. “Deliberar”, lembra Rousseau, é “pesar o pró e o contra” (Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 833). Em certa medida, podemos projetar nessa caracterização as análises aristotélicas da deliberação. Em particular, podemos afirmar que, para Rousseau, assim como argumenta Aristóteles, deliberamos sobretudo sobre os meios, mas não sobre os fins - isto é, sobre os meios conducentes à realização do bem comum, mas não diretamente sobre o que é o bem comum (que se supõe já conhecido). Esse bem comum, nas duas narrativas de fundação desenvolvidas no Contrato social (a do pacto e a do legislador), está dado pelo próprio pacto e, especialmente, é articulado de forma clara e vívida - até mesmo existencialmente, por assim dizer, na forma dos costumes - pelo “grande Legislador”. A questão que se põe no sufrágio não é “qual é o nosso interesse (ou bem) comum?”, mas, sim, “dado que nosso bem (nosso interesse comum) é X, quais os melhores meios para realizá-lo?”.
É nesse sentido que devemos entender as variações de Rousseau a respeito da deliberação (entendida como um debate público em que prós e contras são pesados) e sobre o lugar e a importância da unanimidade: os debates (sobre os fins) indicam o declínio do Estado;13 13 “Os longos debates, as dissensões, o tumulto anunciam a ascendência dos interesses particulares e o declínio do Estado” (Rousseau, 1964b, p. 439), no que diz respeito aos fins ou ao bem (interesse) público seria sempre desejável, para o Genebrino, algo próximo da unanimidade - o que não impede que se valorize a deliberação (e os debates públicos14 14 Em uma passagem bem conhecida, diretamente relacionada às questões aqui discutidas, Rousseau enuncia, entre as condições para que a deliberação seja boa, a de que não haja comunicação entre os cidadãos “quando o povo, suficientemente informado, delibera” (Rousseau, 1964b, p. 371). Aqui talvez Rousseau caia, ele próprio, no equívoco estimulado pela ambiguidade semântica que denuncia na nota, já citada, das Cartas da montanha (cf. nota 11, acima). A proibição da comunicação entre os cidadãos talvez se aplique especificamente ao momento do voto (momento final em que o cidadão exprime sua opinião) e não ao da deliberação (entendida como “pesar o pró e o contra”). Proibir a comunicação entre os cidadãos, assim, não significa condenar o debate público, mas garantir a integridade do voto assegurando sua confidencialidade (trata-se da sugestão do instituto do voto secreto). Sobre o caráter “antideliberativo” da teoria exposta no Contrato social, ver a discussão já clássica de Manin (1985). ) sobre os meios que melhor conduzem a esse fim.15 15 Sobre isso, ver Reis (2010); ver ainda Consani (2018), Consani e Klein (2017).
Em suma, a estrutura do processo legislativo, com a participação das três instâncias envolvidas, e a concepção epistêmica do voto, com os constrangimentos impostos à deliberação (em especial, a postulação de um padrão independente do bem comum), enfatizam, justamente, os aspectos cooperativos do processo legislativo. A busca pela resposta à questão sobre o que nós devemos fazer, para Rousseau, é fundamentalmente um empreendimento cooperativo,16 16 Runciman e Sen (1965) já apresentavam a vontade geral e o bem comum em Rousseau como a solução cooperativa para um jogo de soma não zero. uma espécie de investigação, que ganha momentum, inclusive, em função do alargamento da participação e do ganho epistêmico que isso representa (sobre isso, ver Waldron, 1995WALDRON, J. “The Wisdom of the Multitude: Some Reflections on Book 3, Chapter 11 of Aristotle’s Politics”. Political Theory, Vol. 23, Nr. 4, pp. 563-584, 1995.).
Nesse contexto, podemos agora tentar entender melhor a célebre cláusula da proibição das sociedades ou associações parciais (ou facções - usarei essas expressões como equivalentes), que aparece no Capítulo III do Livro II do Contrato social - capítulo, de resto, central na argumentação do Genebrino.
Essa restrição às facções já recebeu inúmeras interpretações, e não é minha intenção retomar ou fazer um inventário dessas diversas leituras.17 17 Quatro tendências (não exclusivas) merecem menção: a que segue a pista da referência a Maquiavel que o próprio Rousseau faz em uma nota (Rousseau, 1964b, p. 372; ver, sobre isso, Moscateli, 2015); a que identifica, nessa recusa das “sociedades parciais”, mais uma evidência das afinidades “totalitárias” da filosofia política de Rousseau (ver, por exemplo, Crocker, 1968, p. 69 ss.; contra esse tipo de leitura, ver Alves, 2019); a que ressalta a importância do “modelo espartano” de Licurgo para Rousseau (por exemplo, Shklar, 1969; Oprea (2019) modula essa leitura, defendendo a importância do “modelo romano” para Rousseau); e a que tenta interpretar essa recusa à luz de uma reflexão sobre as condições em que decisões coletivas são tomadas (ver, por exemplo, Grofman e Feld, 1988; Estlund et al., 1989; Trachtenberg, 1993; Bovens e Beisbart, 2007; Cohen, 2010) ou sobre as condições em que a vontade geral ainda pode ser reconhecida na “pluralidade” ou na maioria (ver Goldschmidt, 1983, p. 686 ss. e Reis, 2010). Destaco aqui apenas, uma vez que foi enfatizada acima a interpretação epistêmica do sufrágio em Rousseau, a leitura condorcetiana, expressa, por exemplo, em Grofman e Feld (1988)GROFMAN, B., FELD, S. “Rousseau’s general will: a Condorcetian perspective”. The American Political Science Review, Vol. 82, Nr. 2, pp. 567-576, 1988. e discutida em Estlund et al. (1989)ESTLUND, D. et al. “Democratic Theory and the Public Interest: Rousseau and Condorcet Revisited”. The American Political Theory Review, Vol. 83, Nr. 4, pp. 1317-1340, 1989.. Segundo essa interpretação, a proibição das sociedades parciais liga-se à necessidade de manter-se o tamanho efetivo da assembleia, em termos de número de votos: votos agrupados tendem a diminuir o tamanho da assembleia e, com isso, a acurácia da decisão (cf. Grofman; Feld, 1988GROFMAN, B., FELD, S. “Rousseau’s general will: a Condorcetian perspective”. The American Political Science Review, Vol. 82, Nr. 2, pp. 567-576, 1988., p. 571). No contexto de uma interpretação epistêmica do voto, assim, haveria uma razão, a princípio, para restringir a influência das facções: a influência crescente das associações parciais diminui, na mesma proporção, a confiabilidade do procedimento, ao tornar cada vez mais difícil reconhecer na “pluralidade” (no voto vencedor ou na maioria) os caracteres da vontade geral (cf. Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 441).
Proponho aqui examinar essa questão, no contexto do processo legislativo, sob outro ponto de vista, complementar a esse mencionado, enfatizando a perspectiva da interdependência e da combinação peculiar de cooperação e competição que caracteriza a socialidade humana, em particular o processo legislativo, como apresentado acima. A esperança é que essa pequena variação na perspectiva lance luzes interessantes sobre o problema, aumentando nossa compreensão dessa cláusula restritiva.
A primeira ideia importante já foi evocada no início: a socialidade humana, refletindo o fato de que os indivíduos são interdependentes, envolve uma mistura de doses de competição (ou conflito) e de cooperação; indivíduos tipicamente competem entre si, por diferentes razões, o que se manifesta não apenas nos casos de conflito direto, mas também na tentação sempre presente de “desertar” e “aproveitar-se” dos benefícios da cooperação sem contribuir (o problema do free rider18 18 Mantenho aqui a expressão em inglês, ainda usual neste contexto para designar o “problema do aproveitador” (até porque não há uma tradução consensualmente usada no Brasil da expressão “free rider” neste contexto), central em diversas abordagens da ação coletiva. Para uma visão geral do problema, vale consultar Hardin (2020). ); ao mesmo tempo, indivíduos também tipicamente cooperam entre si - e necessitam cooperar, dado o fato de que são interdependentes -; de resto, a espécie humana, com suas capacidades desenvolvidas de intencionalidade compartilhada, é particularmente apta para esse comportamento.
A essa se junta agora uma segunda ideia importante: a de que aquela competição pode assumir diversas formas, e, particularmente, acontece em diferentes níveis. Notadamente, pode dar-se entre indivíduos e entre grupos.
Ora, levando-se em conta o nível em que a competição se dá - se no nível individual ou grupal, ou seja, dentro do grupo ou entre grupos -, os efeitos sobre a cooperação são diversos: a competição entre indivíduos dentro do grupo tende, naturalmente, a enfraquecer a cooperação; a competição entre grupos, ao contrário, tende a fortalecer a cooperação dentro de cada grupo, incentivando sua coesão (cf. Turchin, 2016TURCHIN, P. “Ultrasociety: How 10,000 Years of War Made Humans the Greatest Cooperators on Earth”. Chaplin: Beresta Books, 2016., p. 73).
Notemos agora que, como diz Rousseau no Discurso sobre a economia política,
Toda sociedade política é composta por outras sociedades menores de diferentes tipos, cada uma com seus interesses e máximas; mas aquelas sociedades que todos conhecem porque têm uma forma pública e autorizada não são as únicas que existem em um Estado; todos os particulares unidos por um interesse comum compõem outras tantas sociedades, permanentes ou passageiras, cuja força não é menos real por ser menos visível [...] (Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 245).
A sociedade é um grande grupo formado não (apenas) por indivíduos, mas (também) por grupos menores - alguns institucionalizados (como, por exemplo, o conjunto que Rousseau chama genericamente de “governo” ou “magistrado”), outros, permanentes ou passageiros, formados ao sabor da confluência de interesses privados. Esses grupos, considerados, por sua vez, como sujeitos plurais, competem e cooperam entre si, como indivíduos. Em especial, como grupos, e, portanto, dotados de um grau de unidade, possuem uma vontade própria - uma “vontade de corpo”, para usar uma expressão empregada por Rousseau (cf. Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 400), que contrasta tanto com a vontade particular (ou privada) quanto com a vontade geral. Assim como a vontade particular está voltada para o interesse privado e a vontade geral, para o comum, a vontade de corpo está atrelada ao interesse próprio do grupo que é seu sujeito - ao interesse corporativo, digamos assim, compartilhado pelos membros do grupo.
Agora é preciso lembrar, antes de mais nada, que é a oposição dos interesses privados que torna necessária a política (cf. Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 368), e essa oposição pode dar-se tanto entre interesses privados individualizados quanto entre interesses privados agrupados. Mais importante, é preciso notar que as relações entre grupos (ou interesses privados agrupados), em especial as relações competitivas, não fazem apenas repetir ou ecoar, em outro nível, as relações entre indivíduos (ou interesses privados individualizados). Em especial, no nível do grupo, novos efeitos são introduzidos, aprofundando o problema que a política (a instituição da lei) tem de resolver. Esses novos efeitos têm uma relação direta com as especificidades da dinâmica do conflito e da cooperação entre grupos.
Antes de mais nada, grupos tendem a ser mais conflituosos e menos cooperativos do que indivíduos.19 19 As razões para isso são variadas. Do ponto de vista da psicologia social, ver Dovidio et al. (2006), cap. 8; Tajfel e Turner (1979); Sherif et al. (1961). Do ponto de vista da psicologia moral, que tem particular interesse para a compreensão das divisões políticas, ver Haidt (2012), parte III. E do ponto de vista da biologia evolutiva, ver Sterelny (2014). Ver ainda Wildschut e Insko (2007), Puurtinen et al. (2015). Em outros termos, a competição entre interesses privados agrupados tende a ser mais conflituosa do que a que vige entre interesses privados individualizados. Podemos esperar, portanto, que o conflito que provém da oposição de interesses privados seja intensificado, em algum sentido, no nível do grupo. Desse ponto de vista, a criação de mecanismos para diluir os interesses privados e dificultar o surgimento de facções pode ser interpretada como uma estratégia de diminuição dos conflitos que surgem com a oposição dos interesses (e não como estratégia para a eliminação de interesses privados tout court). Rousseau parece sugerir algo nessa direção, ao apontar como alternativa ao banimento das facções a multiplicação dessas sociedades parciais.20 20 Cf. Rousseau, 1964b, p. 372: “Se há sociedades parciais, é necessário multiplicar o seu número e prevenir sua desigualdade, como fizeram Sólon, Numa e Servius”.
Acrescente-se a isso o fato de que o conflito ou a competição entre grupos tende a reforçar a cooperação intragrupo.21 21 Cf. Puurtinen e Mappes (2009). Essa tese ganhou destaque em algumas teorias que se propõem a explicar a evolução da cooperação humana. Ver, p. ex., Turchin (2010), Bowles (2009), Sterelny (2014). Suponhamos agora que grupos mais cooperativos sejam também mais coesos. Por analogia, em grupos constituídos por outros grupos, a competição entre subgrupos naturalmente diminui a cooperação dentro do grupo mais abrangente (diminui sua coesão), ao mesmo tempo que aumenta a coesão dos mesmos subgrupos - tem, portanto, um duplo efeito: diminuir a coesão social e reforçar a fragmentação e a faccionalização.22 22 Aqui poderia ser interessante retomar algumas observações de Saint-Preux sobre a sociedade parisiense, no romance A Nova Heloísa. Diz Saint-Preux: “Não é necessário conhecer o caráter das pessoas, mas apenas seus interesses, para mais ou menos adivinhar o que dirão sobre cada coisa. Quando um homem fala, são, por assim dizer, suas vestes, e não ele, que têm uma opinião, e ele as mudará sem cerimônia tão frequentemente quanto muda de condição” (Rousseau, 1964a, p. 233). Essa abdicação da própria perspectiva e até mesmo do próprio interesse em benefício do grupo, que Saint-Preux lamenta na sociedade parisiense, pode ser interpretada como um dos sintomas da faccionalização aos olhos de Rousseau. Uma última observação de passagem: um pouco mais adiante, em outras duas cartas (as cartas XVI e XVII da segunda parte do romance), Saint-Preux critica a falta de caracteres originais na grande sociedade parisiense. Há um paralelo sugerido ali entre a faccionalização e o enfraquecimento da individualidade, e esse é um ponto interessante, a que voltaremos brevemente no fim deste texto.
Esses efeitos, projetados sobre os sufrágios, tendem a tornar o processo legislativo menos cooperativo. Os debates públicos, conduzidos por associações parciais ou facções, tendem a se transformar, como em um crescendo, em dissensões e logo em tumultos, para lembrar a passagem já citada (ver nota 13). Não demora para que as dissensões sobre os meios de alcançar o bem comum se tornem discordâncias cada vez mais profundas sobre o que é efetivamente esse bem comum ele mesmo. O processo legislativo não tem mais um padrão do bem comum a que se referir, perdendo sua confiabilidade. E a unidade social vê-se enfim fatalmente comprometida.
Dessa perspectiva, a limitação à participação das sociedades parciais no processo legislativo justifica-se como parte do esforço de garantir e reforçar os aspectos cooperativos do processo legislativo. Se lembrarmos que Rousseau pensa esse processo em termos cognitivos, as restrições às sociedades parciais devem ser tomadas como medidas contra a faccionalização e, dessa perspectiva, devem ser vistas à luz das condições que tornam esse processo confiável.
E note-se que o que é imperativo, efetivamente, é uma limitação, e não, a rigor, uma proibição. Rousseau ele próprio, como já foi notado acima (cf. nota 21), faz essa ressalva. A referência a Servius nessa passagem, em particular, é relevante e vai ser retomada na discussão que faz Rousseau das instituições romanas no Livro IV do Contrato social (sobre isso, ver Oprea, 2019OPREA, A. “Pluralism and the General Will: The Roman and Spartan Models in Rousseau’s Social Contract”. The Review of Politics, Vol. 81, pp. 573-596, 2019.). O modelo espartano, “monstruoso em sua perfeição”, para retomar uma expressão de Montaigne resgatada no Discurso sobre as ciências e as artes,23 23 Rousseau, 1964b, p. 24. Rousseau refere-se aqui especificamente ao sistema educativo de Licurgo, mas a observação pode, talvez, ser estendida a toda a obra do legislador espartano. é o limite extremo, o grau máximo na “escala”24 24 A ideia de que o Contrato social poderia ser considerado como uma “escala” está sugerida no Emílio (cf. Rousseau, 1969, p. 837). Sobre isso, ver Nascimento (1988). normativa proposta pelo Contrato social,25 25 O oximoro da perfeição monstruosa ecoa um aspecto recorrente do pensamento do Genebrino e faz lembrar algumas reflexões de Rousseau sobre os personagens da Nova Heloísa no “Prefácio dialogado”, além de passagens de seus Diálogos. Julie, Saint-Preux, Emílio, o próprio Jean-Jacques e, genericamente, o “homem da natureza” aparecem como monstros aos olhos do moderno burguês, ganhando, por isso mesmo, na esteira da condenação de que é alvo o bourgeois, um status normativo próprio. mas não precisa ser a única resposta institucional possível para garantir o mesmo fim. Rousseau, de fato, discute algumas dessas alternativas, tanto no próprio Contrato social (ao discutir os comícios romanos, por exemplo) quanto em outros lugares (em suas reflexões sobre a Polysynodie do Abade de Saint-Pierre e nas considerações constitucionais que dirige à Córsega e à Polônia, por exemplo).26 26 Sobre isso, ver Oprea (2019), Salinas Fortes (1976). Ao lado (ou para além) da medida drástica da proibição, há um leque de soluções, inclusive as que jogam, em alguma medida, com a ideia dos check and balances, central nos modelos liberais de democracia - a começar pelo modelo madisoniano, tantas vezes oposto ao modelo rousseauniano.
Aqui caberia retomar uma discussão mais pormenorizada sobre o papel e o impacto de uma sociedade parcial especialmente importante na vida do corpo político (e no processo legislativo, em particular), que é o governo.
Já foi evocado acima o caráter potencialmente conflituoso das relações entre o governo e o soberano, tantas vezes ressaltado por Rousseau. Não é por acaso que o tema que domina a parte final do Livro III do Contrato social (dedicado ao estudo do “governo”) é a questão da morte do corpo político, já que nisso o governo desempenha um papel central. Há uma tensão permanente entre soberano e governo, tensão que pode ser interpretada agora à luz do que foi dito acima sobre a dinâmica da competição entre grupos. Se, de jure, o governo é um corpo subordinado, cuja autoridade deriva de uma delegação por parte do soberano, na prática trata-se de um grupo particularmente coeso, ativo e forte, dotado de uma vontade e de um interesse próprio: “Assim como a vontade particular age sem cessar contra a vontade geral, também o governo faz um esforço contínuo contra a soberania”, diz Rousseau (Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 421). Entre governo e soberano estabelece-se a mesma dinâmica de cooperação e competição, com o elemento competitivo favorecendo a coesão, sobretudo, do governo.
Os remédios propostos por Rousseau vão em duas direções complementares. Primeiramente, reforçar a coesão do soberano, antes de mais nada por meio das assembleias (tanto as “ordinárias”, ou periódicas, quanto as extraordinárias), em que o soberano se manifesta, por assim dizer, em corpo e a soberania pode ser materialmente experimentada pelos cidadãos diretamente.27 27 Nas Considerações sobre o governo da Polônia, Rousseau diz: “O que conservou até agora a autoridade legislativa? Foi a presença contínua do legislador. Foi a frequência das Dietas, é a frequente renovação dos Núncios que manteve a República” (Rousseau, 1964b, p. 975). Mas podemos supor também que a ação duradoura do legislador (a ação que se manifesta por meio de instituições como a censura e a religião civil, influindo diretamente sobre os costumes ou a opinião) realizará uma boa parte desse trabalho de reforço da coesão do soberano.
Esse esforço voltado para o soberano é complementado por medidas de contenção da força excedente do governo, advinda de sua constante atividade. O princípio geral dessa estratégia está anunciado no capítulo VII do Livro III do Contrato social, em que Rousseau trata da forma de governo misto. A referência ao problema que consideramos agora é clara: “[...] [Q]uando a potência executiva não depende suficientemente da legislativa, [...] é preciso remediar essa falha de proporção dividindo o governo” (Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., pp. 413-414).
A mesma solução é oferecida à Polônia (cf. Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., pp. 975978). Note-se, no entanto, que esse segundo remédio, quando proposto, é acompanhado de ressalvas importantes:28 28 No “Juízo sobre a Polysynodie”, Rousseau chama a atenção para a fraqueza inerente de um arranjo político baseado em conselhos (cf. Rousseau, 1964b, p. 644). E nas Considerações sobre o governo da Polônia, logo após apresentar a proposta de dividir o Senado em conselhos ou departamentos, Rousseau nota que não se deve contar muito com essa solução, visto que tende a reproduzir, agora dentro do governo, a lógica de competição e conflito que se estabelece entre grupos (cf. id., p. 977). trata-se de uma solução não ótima, imposta por circunstâncias que estão abaixo do ideal. De todo modo, é interessante reconhecer aqui, na relação entre soberano e governo, a mesma lógica de competição e cooperação e seus respectivos efeitos.
Enfim, a restrição imposta às sociedades parciais poderia justificar-se em nome do esforço de manter o caráter cooperativo do processo legislativo e fazer frente aos efeitos corrosivos da competição entre grupos. Mas, seja como for, essa restrição carrega um temor de fato amplamente justificável, se vista como estratégia para fazer frente ao tipo de desacordo ou conflito que parece acompanhar inevitavelmente a variedade de interesses privados. Afinal, se o problema que a política tem de resolver nasce com a oposição dos interesses, uma das possibilidades (teoricamente) de encontrar para ele uma solução passa pela eliminação dos interesses privados; mas isso, se fosse de todo possível, não parece especialmente desejável. Se as sociedades modernas são, efetivamente, caracterizadas pelo fato do pluralismo (ou do desacordo) razoável, como sugerem liberais políticos como John Rawls e Charles Larmore, a estratégia de resolver esse desacordo pela eliminação do pluralismo envolve necessariamente o que Rawls chama de “uso opressivo do poder estatal”.
As simpatias espartanas de Rousseau e sua nostalgia da cidade antiga sugerem muitas vezes que seu republicanismo flerta perigosamente com alguma forma de autoritarismo. As restrições às sociedades parciais, em geral, são lidas justamente como sintoma dessas afinidades autoritárias que assombram o pensamento político do Genebrino. Talvez as reflexões propostas aqui ajudem a tirar conclusões um pouco mais nuançadas a respeito desse ponto.
Na leitura aqui proposta, a necessidade de encontrar restrições para a atuação de facções no processo legislativo decorre não de uma rejeição (normativa) do pluralismo ou da escolha de um modelo espartano de unidade social (certamente presente em Rousseau, como um ponto extremo da “escala”, embora não como única solução possível), mas da própria dinâmica de cooperação e competição que constitui a socialidade humana. Em especial, decorre de características próprias da competição entre grupos, que tem reflexos inevitáveis no nível da coesão da sociedade política (entendendo a sociedade política, como o faz Rousseau, como um grupo de grupos e enfatizando os aspectos cooperativos do processo legislativo).
Essa necessidade de regular a atuação das sociedades parciais implica, certamente, o recurso a uma autoridade suficientemente forte para esse fim - suficientemente forte para garantir a cooperação e reduzir a tentação do free rider. Ao elaborar seu modelo de uma sociedade guiada por uma vontade geral, Rousseau deixa claro um aspecto especialmente relevante dessa autoridade: ela tem de ser exercida pelo conjunto da comunidade política; seu exercício deve ser radicalmente democrático (sobre isso, ver Reis, 2019______. “Igualitarismo e liberdade como não-dominação”. Doispontos, Vol. 16, Nr. 1, pp. 2-13, 2019.). Para Rousseau, a liberdade só pode ser mantida por uma comunidade de iguais, representada como formando um todo, uma unidade, e exercendo sua autoridade como um agente ou sujeito plural. Qualquer outro arranjo vai inevitavelmente favorecer as diversas tendências à dominação que atravessam e acompanham sempre a vida social.
Mesmo aquela sociedade parcial que consiste no governo (e, portanto, é parte da constituição do Estado) está sujeita à dinâmica de competição que, no final das contas, é atropelada pelo jogo da dominação - não nos esqueçamos da “tendência a degenerar” que é inseparável, em maior ou menor grau, do governo, seja qual for sua forma. Cabe inevitavelmente ao soberano, no exercício da autoridade que lhe é inerente, o papel central do controle e da vigilância.29 29 O papel mais típico do soberano pareceria ser a legislação. Mas, na verdade, como já foi sugerido antes, nas assembleias regulares que o soberano precisa realizar, o ponto principal da pauta talvez seja aquele que, segundo Rousseau, sempre deveria abri-las e que consiste em um “voto de confiança” (ou desconfiança) no governo. O papel de fiscalização e de controle do governo é mais importante e fundamental, como forma de atuação do soberano no dia a dia da política, do que o de legislação, sobretudo se lembrarmos que um bom povo tem poucas (e duradouras) leis. É essa autoridade que funciona, em última instância, como elemento de freio e de equilíbrio, garantindo a cooperação. No mesmo sentido, encontra aí seu limite: trata-se de uma autoridade suficiente para garantir as condições de cooperação e torna-se ilegítima na medida em que pretende passar além disso.
Dois últimos pontos antes de encerrarmos. Primeiramente, a teoria rousseauniana da soberania (que contém, entre outros elementos, a separação clara entre os poderes executivo e legislativo, a atribuição da soberania exclusivamente ao povo, a identificação do exercício da soberania com o exercício do poder legislativo, incluindo aí a legislação e a fiscalização do governo) permite uma articulação peculiar entre autoridade e obediência. Nas Cartas da montanha, comentando a equivocidade das relações entre as instâncias administrativa e soberana na constituição de Genebra, Rousseau faz ver que “em todo Estado político é preciso que haja uma potência suprema, um centro a que tudo se reporte, um princípio de onde tudo derive, um soberano que possa tudo” (Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., pp. 823-824)30 30 Mais adiante, diz: “Ora, é da essência da potência soberana não poder ser limitada: ou ela pode tudo ou não é nada” (Rousseau, 1964b, p. 826). No Contrato social, Rousseau propõe uma visão mais nuançada da autoridade soberana: por definição ela é, certamente, absoluta, mas, não obstante, é intrinsecamente limitada. O pacto social dá ao corpo político um “poder absoluto” sobre todos os seus membros (id., p. 372) - mas, ao mesmo tempo, “o poder soberano, por mais absoluto, por mais sagrado, por mais inviolável que seja, não ultrapassa nem pode ultrapassar os limites das convenções gerais” (id., p. 375). . Ora, a um poder absoluto corresponde a necessidade de uma obediência (ou desobediência) igualmente absoluta, no sentido de que qualquer divergência com o ditame da autoridade fica sem arbitragem possível. Não são poucos os leitores de Rousseau que suspeitam de sua real adesão à liberdade como valor político e que até mesmo o denunciam como “inimigo da liberdade”. Não raro, a restrição às associações parciais entra na conta dessa essência liberticida que se esconderia no coração do pensamento político rousseauniano, sob os aparentes louvores dirigidos à liberdade.
Como conciliar sua teoria da autoridade com a expectativa de liberdade que constitui uma das motivações mais fortes para o pacto? Esse prodígio, para lembrar o Discurso sobre a economia política (cf. Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 248), é obra da lei: sob a autoridade da lei - e apenas sob essa autoridade -, a obediência a uma potência absoluta torna-se compatível com a liberdade. Mas é preciso complementar: Rousseau mostra que apenas preservando a integridade do exercício democrático do poder legislativo (em suas duas vertentes, a do processo legislativo stricto sensu e a do controle sobre a atuação do governo) é que se pode manter essa relação peculiar entre autoridade e obediência - ou seja: é só a autoridade de “todos nós” representados como um “todo” (uma unidade) que pode legitimamente reivindicar o caráter absoluto da autoridade soberana, e a obediência a esse sujeito plural não é outra coisa do que o reconhecimento do compromisso recíproco assumido por cada um, que assume a forma de um dever de obediência. A alternativa a isso, sugere Rousseau, será necessariamente alguma forma de despotismo. A restrição às sociedades parciais, que poderia justamente levantar a suspeita de um abuso por parte da autoridade soberana, deve ser avaliada sob esse prisma - e a perspectiva aqui sugerida para essa análise, envolvendo a dinâmica cooperação-competição entre grupos, permite uma consideração mais nuançada desse ponto, como já sugerido.
Por fim, um segundo ponto. Não se deve esquecer que a restrição às sociedades parciais aparece no contexto do que poderíamos chamar de “teoria ideal” rousseauniana - e essa teoria ideal é pensada pelo Genebrino, como já foi lembrado, não tanto como propondo um “modelo”, mas uma “escala”. No que poderíamos chamar de sua “teoria não ideal”, há um elemento importante (e a contrapelo das leituras totalitárias), às vezes negligenciado, que aponta na direção de uma “teoria da dissidência”,31 31 A ideia aparece em Allard (2003), no contexto de uma análise dos Diálogos. Esse texto, aliás, apesar das dificuldades de interpretação que põe para seus leitores, é uma fonte importante de reflexões sobre o papel das facções na condução da opinião pública e sobre os efeitos da faccionalização. cuja ideia central consiste em que o indivíduo é uma instância de resistência - a instância em que ainda residem e resistem, como um último recurso, as forças regeneradoras da natureza.32 32 Esse é um tema forte dos Diálogos, como seria também, assim parece, da abortada sequência que Rousseau projetava para o Emílio. A célebre dicotomia entre “homem” e “cidadão”, que aparece no Emílio, é relevante aqui também: em situações não ideais (ou seja, que não satisfazem o optimum da “escala”), formar o homem é uma tarefa fundamental e separada, que complementa a de formar o cidadão, se entendermos aquela primeira tarefa como a de criar as condições para a conservação ou preservação da capacidade de “ouvir a voz da natureza”, sempre que isso se fizer necessário (em especial, quando a “voz do povo” está confusa ou ameaçada pelo ruído e pela cacofonia da vida social e política). Em sua teoria ideal, Rousseau deixa-se frequentemente levar por seu entusiasmo espartano, enfatizando a coesão e a unidade sociais de formas às vezes incompatíveis com o pluralismo que caracteriza as (e é em geral valorizado pelas) sociedades modernas. No entanto, como mostra sua teoria não ideal, é essencial que se dê lugar e espaço para que as potências de resistência do indivíduo se desdobrem, sempre que necessário. Se a faccionalização for vista como uma ameaça a essas potências de resistência (um tipo de ameaça à integridade e à liberdade do indivíduo, como sugerem algumas passagens das já mencionadas cartas de Saint-Preux a respeito de sua experiência em Paris), restringir os fatores que a favorecem é, afinal, uma forma de proteger a liberdade individual.
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Uso “socialidade”, em lugar do termo mais comum “sociabilidade”, para designar mais enfaticamente a capacidade humana de viver em sociedade, suas características e suas condições de possibilidade. O termo “sociabilidade”, nos seus usos correntes, parece-me enfatizar mais a referência ao “gosto” especial pela interação social ou, então, ao “impulso” que leva os indivíduos a procurarem o convívio social, gosto e impulso esses que, por sua vez, dependem daquela capacidade (ou do conjunto de capacidades) que torna possível, em primeiro lugar, a vida social.
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A expressão é usada por Thompson (2017)THOMPSON, M. “Autonomy and Common Good: Interpreting Rousseau’s General Will”. International Journal of Philosophical Studies, Vol. 25, Nr. 2, pp. 266-285, 2017..
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“O legislador é, sob todos os aspectos, um homem extraordinário no Estado. Se deve sê-lo por seu gênio, não o é menos por sua função. Não é magistratura, não é soberania. Essa função, que constitui a república, não entra em sua constituição” (Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 382).
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“Como antes de erguer um grande edifício o arquiteto observa e sonda para ver se o solo pode sustentar o peso, o sábio instituidor não começa redigindo leis que sejam boas em si mesmas, mas examina previamente se o povo ao qual as destina é próprio para suportá-las” (Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 385).
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Ver, sobre isso, Reis (2017)REIS, C. A. “Conservadorismo rousseauniano”. Educativa, Vol. 20, Nr. 1, pp. 8-23, 2017., especialmente pp. 16-20.
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“[...] é contrário à natureza do corpo político que o soberano imponha a si mesmo uma lei que não possa infringir. [...] não há nem pode haver nenhum tipo de lei fundamental obrigatória para o corpo político, nem mesmo o pacto social” (Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 362). Ver, sobre isso, Schwartzberg (2003)SCHWARTZBERG, M. “Rousseau on fundamental law”. Political Studies, Vol. 51, pp. 387-403, 2003., Daly (2017)DALY, E. “Rousseau’s Constitutionalism: Austerity and Republican Freedom”. Oxford/ Portland: Hart, 2017. e Radica (2016)RADICA, G. “Constitution et lois fondamentales chez Rousseau”. Revista de Filosofia Aurora, Vol. 28, Nr. 43, pp. 19-38, 2016..
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Em contrapartida, Rousseau diz que o legislador se ocupa da “verdadeira constituição do Estado” (“constituição” assumindo, aqui, um sentido lato): ocupa-se dos “costumes” e da “opinião”, que Rousseau reconhece como um “quarto tipo” de lei, ao lado das leis políticas (ou “fundamentais”, no plural) e das leis civis e penais (cf. Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 394). O momento instituinte, a que se liga o legislador, poderia ser entendido como um “momento constituinte”, se tomarmos a ideia de constituição nesse sentido lato que aparece no contexto referido acima.
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Ver, por exemplo, a “Dedicatória” do Discurso sobre a origem da desigualdade (Rousseau 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 114) e, nas Cartas da montanha, id., pp. 846 e 872. Ver ainda id., pp. 439 e 1492, nota 1. Sobre o papel do governo no processo legislativo e seu controle da agenda, ver Putterman (2010)PUTTERMAN, E. “Rousseau, Law and the Sovereignty of People”. Cambridge: UP, 2010., especialmente cap. 2; e Scott (2005)SCOTT, J. T. “Rousseau’s anti-agenda setting agenda and contemporary democratic theory”. The American Political Science Review, Vol. 99, Nr. 1, pp. 137-144, 2005..
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“A primeira: se apraz ao Soberano conservar a presente forma de governo. A segunda: se apraz ao Povo deixar a administração nas mãos daqueles que se ocupam dela presentemente” (Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 436; grifos no original).
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Rousseau pouco discute no Contrato social questões como as formas de eleição dos governantes ou a necessidade ou conveniência de se fixar uma duração limitada para o mandato dos ocupantes do poder executivo (há uma referência à necessidade de limitar o mandato do ditador, cf. Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 458), mas notemos, de passagem, que esse controle periódico recorrente do governo pelo soberano, por meio das assembleias periódicas, garante a possibilidade da alternância dos membros do executivo. O mandato executivo, portanto, tem, a princípio, a duração do intervalo entre as assembleias periódicas, seja ele qual for, mas, dada a forma como Rousseau pensa a extensão da autoridade soberana, provavelmente para ele o soberano tem a prerrogativa de renovar indefinidamente o mandato dos governantes.
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Esses três elementos são mencionados por Rousseau em nota na sétima carta das Cartas escritas da montanha (Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 833).
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Bachofen sugere que o bem comum não pode ser descrito “em termos essencialistas, segundo um modelo de tipo platônico” (Bachofen, 2014BACHOFEN, B. “Intérêt individuel, intérêt privé, intérêt commun. Les complications de la notion d’intérêt particulier”. In: B. Bachofen et al. (eds.), 2014, pp. 393-411., p. 401). Ainda assim, parece-me inescapável, pelas formulações de Rousseau a respeito do sufrágio, que ao bem ou interesse comum a que se refere a vontade geral deve ser atribuído um tipo de objetividade - que, certamente, não precisa ser pensada nos termos “essencialistas” ou “platônicos” criticados por Bachofen. Também a ideia de que a “vontade geral é indestrutível”, como diz Rousseau no capítulo que abre o Livro IV do Contrato social, contribui para reforçar essa atribuição de objetividade ao bem comum (cf. Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 437 ss.). Complementarmente, deve-se lembrar que Rousseau caracteriza o interesse comum como aquilo que constitui uma espécie de interseção entre os vários interesses privados (é o que há de comum entre esses interesses: Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., pp. 371, 374). Esse conjunto interseção, que constitui o interesse comum ou o bem comum que é seu objeto, pode e vai variar de sociedade para sociedade e também, para cada grupo, ao longo do tempo. Isso não diminui sua “objetividade” peculiar, como padrão (independente) para a tomada de decisões.
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“Os longos debates, as dissensões, o tumulto anunciam a ascendência dos interesses particulares e o declínio do Estado” (Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 439),
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Em uma passagem bem conhecida, diretamente relacionada às questões aqui discutidas, Rousseau enuncia, entre as condições para que a deliberação seja boa, a de que não haja comunicação entre os cidadãos “quando o povo, suficientemente informado, delibera” (Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 371). Aqui talvez Rousseau caia, ele próprio, no equívoco estimulado pela ambiguidade semântica que denuncia na nota, já citada, das Cartas da montanha (cf. nota 11, acima). A proibição da comunicação entre os cidadãos talvez se aplique especificamente ao momento do voto (momento final em que o cidadão exprime sua opinião) e não ao da deliberação (entendida como “pesar o pró e o contra”). Proibir a comunicação entre os cidadãos, assim, não significa condenar o debate público, mas garantir a integridade do voto assegurando sua confidencialidade (trata-se da sugestão do instituto do voto secreto). Sobre o caráter “antideliberativo” da teoria exposta no Contrato social, ver a discussão já clássica de Manin (1985)MANIN, B. “Volonté générale ou délibération: esquisse d’une théorie de la délibération politique”. Le Débat, Vol. 33, pp. 72-94, 1985..
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Sobre isso, ver Reis (2010)______. “Vontade geral e decisão coletiva”. Trans/Form/Ação, Vol. 33, Nr. 2, pp. 1134, 2010.; ver ainda Consani (2018)CONSANI, C. F. “O conceito de vontade na filosofia política de Rousseau e Condorcet”. Trans/Form/Ação, Vol. 41, Nr. 1, pp. 99-140, 2018., Consani e Klein (2017)CONSANI, C. F., KLEIN, J. T. “Democracia, deliberação e discussão na filosofia política de Rousseau”. Revista Portuguesa de Filosofia, Vol. 73, Nr. 1, pp. 239-266, 2017..
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Runciman e Sen (1965)RUNCIMAN, W. G., SEN, A. “Games, Justice and the General Will”. Mind, Nova série, Vol. 74, Nr. 296, pp. 554-562, 1965. já apresentavam a vontade geral e o bem comum em Rousseau como a solução cooperativa para um jogo de soma não zero.
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Quatro tendências (não exclusivas) merecem menção: a que segue a pista da referência a Maquiavel que o próprio Rousseau faz em uma nota (Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 372; ver, sobre isso, Moscateli, 2015MOSCATELI, R. “Maquiavel versus Rousseau: as divisões sociais e seu papel em uma República bem-ordenada”. Trans/Form/Ação, Vol. 38, pp. 121-138, 2015.); a que identifica, nessa recusa das “sociedades parciais”, mais uma evidência das afinidades “totalitárias” da filosofia política de Rousseau (ver, por exemplo, Crocker, 1968CROCKER, L. “Rousseau’s Social Contract: An Interpretive Essay”. Cleveland: The Press of Case Western Reserve University, 1968., p. 69 ss.; contra esse tipo de leitura, ver Alves, 2019ALVES, V. “O risco das facções na república segundo Rousseau”. Kínesis, Vol. 11, Nr. 30, pp. 154-168, 2019.); a que ressalta a importância do “modelo espartano” de Licurgo para Rousseau (por exemplo, Shklar, 1969SHKLAR, J. “Men & Citizens: A Study of Rousseau’s Social Theory”. Cambridge: Cambridge UP, 1969.; Oprea (2019)OPREA, A. “Pluralism and the General Will: The Roman and Spartan Models in Rousseau’s Social Contract”. The Review of Politics, Vol. 81, pp. 573-596, 2019. modula essa leitura, defendendo a importância do “modelo romano” para Rousseau); e a que tenta interpretar essa recusa à luz de uma reflexão sobre as condições em que decisões coletivas são tomadas (ver, por exemplo, Grofman e Feld, 1988GROFMAN, B., FELD, S. “Rousseau’s general will: a Condorcetian perspective”. The American Political Science Review, Vol. 82, Nr. 2, pp. 567-576, 1988.; Estlund et al., 1989ESTLUND, D. et al. “Democratic Theory and the Public Interest: Rousseau and Condorcet Revisited”. The American Political Theory Review, Vol. 83, Nr. 4, pp. 1317-1340, 1989.; Trachtenberg, 1993TRACHTENBERG, Z. “Making Citizens: Rousseau’s Political Theory of Culture”. Londres/Nova York: Routledge, 1993.; Bovens e Beisbart, 2007BOVENS, L., BEISBART, C. “Factions in Rousseau’s Du Contrat Social and federal representation”. Analysis, Vol. 67, Nr.1, pp. 12-20, 2007.; Cohen, 2010COHEN, J. “Rousseau: A Free Community of Equals”. Oxford/Nova York: Oxford UP, 2010.) ou sobre as condições em que a vontade geral ainda pode ser reconhecida na “pluralidade” ou na maioria (ver Goldschmidt, 1983GOLDSCHMIDT, V. “Anthropologie et politique: Les principes du système de Rousseau”. 2ª ed. Paris: Vrin, 1983., p. 686 ss. e Reis, 2010______. “Vontade geral e decisão coletiva”. Trans/Form/Ação, Vol. 33, Nr. 2, pp. 1134, 2010.).
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Mantenho aqui a expressão em inglês, ainda usual neste contexto para designar o “problema do aproveitador” (até porque não há uma tradução consensualmente usada no Brasil da expressão “free rider” neste contexto), central em diversas abordagens da ação coletiva. Para uma visão geral do problema, vale consultar Hardin (2020)HARDIN, R. “The Free rider problem”. Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2020. https://plato.stanford.edu/entries/free-rider/ Consultado em 17 de Abril de 2021.
https://plato.stanford.edu/entries/free-... . -
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As razões para isso são variadas. Do ponto de vista da psicologia social, ver Dovidio et al. (2006)DOVIDIO, J. et al. (eds.). “The Social Psychology of Prosocial Behavior”. Nova York/ Londres: Taylor & Francis, 2006., cap. 8; Tajfel e Turner (1979)TAJFEL, H., TURNER, J. C. “An integrative theory of inter-group conflict”. In: W. G. Austin, S. Worchel (eds.), 1979. pp. 33-47.; Sherif et al. (1961)SHERIF, M. et al. “Intergroup conflict and cooperation: The Robbers Cave experiment”. Norman, OK: University Book Exchange, 1961.. Do ponto de vista da psicologia moral, que tem particular interesse para a compreensão das divisões políticas, ver Haidt (2012)HAIDT, J. “The Righteous Mind: Why Good People are Divided by Politics and Religion”. Nova York: Pantheon Books, 2012., parte III. E do ponto de vista da biologia evolutiva, ver Sterelny (2014)STERELNY, K. “Cooperation, Culture, and Conflict”. The British Journal for the Philosophy of Science, Vol. 67, Nr. 1, pp. 31-58, 2014.. Ver ainda Wildschut e Insko (2007)WILDSCHUT, T., INSKO, C. A. “Explanations of interindividual - intergroup discontinuity: A review of the evidence”. European Review of Social Psychology, Vol. 18, pp. 175-211, 2007., Puurtinen et al. (2015)PUURTINEN, M. et al. “The joint emergence of group competition and within-group cooperation”. Evolution and Human Behavior, Vol. 36, pp. 211-217, 2015..
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Cf. Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 372: “Se há sociedades parciais, é necessário multiplicar o seu número e prevenir sua desigualdade, como fizeram Sólon, Numa e Servius”.
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Cf. Puurtinen e Mappes (2009)PUURTINEN, M., MAPPES, T. “Between-Group Competition and Human Cooperation”. Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences, Vol. 276, Nr. 1655, pp. 355360, 2009.. Essa tese ganhou destaque em algumas teorias que se propõem a explicar a evolução da cooperação humana. Ver, p. ex., Turchin (2010)______. “Warfare and the Evolution of Social Complexity: A Multilevel-Selection Approach”. Structure and Dynamics, Vol. 4, Nr. 3, pp. 1-37, 2010., Bowles (2009)BOWLES, S. “Did Warfare Among Ancestral Hunter-Gatherers Affect the Evolution of Human Social Behaviors?” Science, Vol. 324, Nr. 5.932, pp. 1293-1298, 2009., Sterelny (2014)STERELNY, K. “Cooperation, Culture, and Conflict”. The British Journal for the Philosophy of Science, Vol. 67, Nr. 1, pp. 31-58, 2014..
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Aqui poderia ser interessante retomar algumas observações de Saint-Preux sobre a sociedade parisiense, no romance A Nova Heloísa. Diz Saint-Preux: “Não é necessário conhecer o caráter das pessoas, mas apenas seus interesses, para mais ou menos adivinhar o que dirão sobre cada coisa. Quando um homem fala, são, por assim dizer, suas vestes, e não ele, que têm uma opinião, e ele as mudará sem cerimônia tão frequentemente quanto muda de condição” (Rousseau, 1964aROUSSEAU, J.-J. “Œuvres complètes”. Vol. II: La Nouvelle Heloïse-Théâtre-Essais littéraires. Paris: Gallimard, 1964a., p. 233). Essa abdicação da própria perspectiva e até mesmo do próprio interesse em benefício do grupo, que Saint-Preux lamenta na sociedade parisiense, pode ser interpretada como um dos sintomas da faccionalização aos olhos de Rousseau. Uma última observação de passagem: um pouco mais adiante, em outras duas cartas (as cartas XVI e XVII da segunda parte do romance), Saint-Preux critica a falta de caracteres originais na grande sociedade parisiense. Há um paralelo sugerido ali entre a faccionalização e o enfraquecimento da individualidade, e esse é um ponto interessante, a que voltaremos brevemente no fim deste texto.
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Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 24. Rousseau refere-se aqui especificamente ao sistema educativo de Licurgo, mas a observação pode, talvez, ser estendida a toda a obra do legislador espartano.
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A ideia de que o Contrato social poderia ser considerado como uma “escala” está sugerida no Emílio (cf. Rousseau, 1969______. “Œuvres complètes”. Vol. IV: Émile - Éducation - Morale - Botanique. Paris: Gallimard, 1969., p. 837). Sobre isso, ver Nascimento (1988)NASCIMENTO, M. M. do. “O Contrato Social - Entre a escala e o programa”. Discurso, Vol. 17, pp. 119-130, 1988..
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O oximoro da perfeição monstruosa ecoa um aspecto recorrente do pensamento do Genebrino e faz lembrar algumas reflexões de Rousseau sobre os personagens da Nova Heloísa no “Prefácio dialogado”, além de passagens de seus Diálogos. Julie, Saint-Preux, Emílio, o próprio Jean-Jacques e, genericamente, o “homem da natureza” aparecem como monstros aos olhos do moderno burguês, ganhando, por isso mesmo, na esteira da condenação de que é alvo o bourgeois, um status normativo próprio.
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Sobre isso, ver Oprea (2019)OPREA, A. “Pluralism and the General Will: The Roman and Spartan Models in Rousseau’s Social Contract”. The Review of Politics, Vol. 81, pp. 573-596, 2019., Salinas Fortes (1976)SALINAS FORTES, L. R. “Rousseau: da teoria à prática”. São Paulo: Ática, 1976..
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Nas Considerações sobre o governo da Polônia, Rousseau diz: “O que conservou até agora a autoridade legislativa? Foi a presença contínua do legislador. Foi a frequência das Dietas, é a frequente renovação dos Núncios que manteve a República” (Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 975).
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No “Juízo sobre a Polysynodie”, Rousseau chama a atenção para a fraqueza inerente de um arranjo político baseado em conselhos (cf. Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 644). E nas Considerações sobre o governo da Polônia, logo após apresentar a proposta de dividir o Senado em conselhos ou departamentos, Rousseau nota que não se deve contar muito com essa solução, visto que tende a reproduzir, agora dentro do governo, a lógica de competição e conflito que se estabelece entre grupos (cf. id., p. 977).
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O papel mais típico do soberano pareceria ser a legislação. Mas, na verdade, como já foi sugerido antes, nas assembleias regulares que o soberano precisa realizar, o ponto principal da pauta talvez seja aquele que, segundo Rousseau, sempre deveria abri-las e que consiste em um “voto de confiança” (ou desconfiança) no governo. O papel de fiscalização e de controle do governo é mais importante e fundamental, como forma de atuação do soberano no dia a dia da política, do que o de legislação, sobretudo se lembrarmos que um bom povo tem poucas (e duradouras) leis.
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Mais adiante, diz: “Ora, é da essência da potência soberana não poder ser limitada: ou ela pode tudo ou não é nada” (Rousseau, 1964b______. “Œuvres complètes”. Vol. III: Du contrat social-Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1964b., p. 826). No Contrato social, Rousseau propõe uma visão mais nuançada da autoridade soberana: por definição ela é, certamente, absoluta, mas, não obstante, é intrinsecamente limitada. O pacto social dá ao corpo político um “poder absoluto” sobre todos os seus membros (id., p. 372) - mas, ao mesmo tempo, “o poder soberano, por mais absoluto, por mais sagrado, por mais inviolável que seja, não ultrapassa nem pode ultrapassar os limites das convenções gerais” (id., p. 375).
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A ideia aparece em Allard (2003)ALLARD, G. “La pensée politique des Dialogues: le juste, l’injuste et le juge”. In: I. Brouard-Arends (ed.), 2003, pp. 105-126., no contexto de uma análise dos Diálogos. Esse texto, aliás, apesar das dificuldades de interpretação que põe para seus leitores, é uma fonte importante de reflexões sobre o papel das facções na condução da opinião pública e sobre os efeitos da faccionalização.
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Esse é um tema forte dos Diálogos, como seria também, assim parece, da abortada sequência que Rousseau projetava para o Emílio. A célebre dicotomia entre “homem” e “cidadão”, que aparece no Emílio, é relevante aqui também: em situações não ideais (ou seja, que não satisfazem o optimum da “escala”), formar o homem é uma tarefa fundamental e separada, que complementa a de formar o cidadão, se entendermos aquela primeira tarefa como a de criar as condições para a conservação ou preservação da capacidade de “ouvir a voz da natureza”, sempre que isso se fizer necessário (em especial, quando a “voz do povo” está confusa ou ameaçada pelo ruído e pela cacofonia da vida social e política).
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Maio 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2022
Histórico
-
Recebido
26 Jan 2021 -
Aceito
26 Jul 2021