Resumos
Neste trabalho, apresentamos uma proposta de análise textual-discursiva do gênero relatório de estágio supervisionado, produzido por professores em formação inicial, em cursos de licenciaturas. A análise proposta foi produzida a partir da articulação entre pressupostos teóricos da Linguística Sistêmico Funcional e da Linguística Textual. Por meio da análise descritiva do gênero focalizado, investigamos a complexidade característica das disciplinas de estágio supervisionado e apresentamos alguns encaminhamentos para que o relatório de estágio supervisionado possa contribuir significativamente para a formação inicial do professor.
Formação de professores; linguística sistêmico funcional; Linguística Aplicada; sequências textuais
In this paper, we show a proposal of textual-discursive analysis of a supervised internship report that is produced by teacher trainees in the undergraduate teaching course. The analysis proposed was produced from the articulation between theoretical principles of Systemic Functional Linguistics and Textual Linguistics. Through descriptive analysis of genre focused, we investigate the complexity characteristic of the supervised internship and present some contributions for the use of supervised internship report in the initial training of teachers.
Teachers training; systemic functional linguistics; Applied Linguistics; textual sequences
ARTIGOS
Proposta de análise textual-discursiva do gênero relatório de estágio supervisionado
Proposition of textual-discursive analysis of the internship report genre
Wagner Rodrigues da Silva
Fundação Universidade Federal do Tocantins, Campus Universitário de Araguaína, E-mail: wagnerodriguesilva@hotmail.com
RESUMO
Neste trabalho, apresentamos uma proposta de análise textual-discursiva do gênero relatório de estágio supervisionado, produzido por professores em formação inicial, em cursos de licenciaturas. A análise proposta foi produzida a partir da articulação entre pressupostos teóricos da Linguística Sistêmico Funcional e da Linguística Textual. Por meio da análise descritiva do gênero focalizado, investigamos a complexidade característica das disciplinas de estágio supervisionado e apresentamos alguns encaminhamentos para que o relatório de estágio supervisionado possa contribuir significativamente para a formação inicial do professor.
Palavras-chave: Formação de professores; linguística sistêmico funcional; Linguística Aplicada; sequências textuais.
ABSTRACT
In this paper, we show a proposal of textual-discursive analysis of a supervised internship report that is produced by teacher trainees in the undergraduate teaching course. The analysis proposed was produced from the articulation between theoretical principles of Systemic Functional Linguistics and Textual Linguistics. Through descriptive analysis of genre focused, we investigate the complexity characteristic of the supervised internship and present some contributions for the use of supervised internship report in the initial training of teachers.
Key-words: Teachers training; systemic functional linguistics; Applied Linguistics; textual sequences.
1. INTRODUÇÃO
Um olhar retrospectivo para os inúmeros estudos sobre gêneros, numa perspectiva textual ou discursiva, desenvolvidos na Linguística Aplicada, no território brasileiro ou, até mesmo, além das fronteiras nacionais, revela-nos avanços significativos no âmbito do ensino de língua e da formação de professores. Numa abordagem da Linguística Sistêmico Funcional LSF, que nos interessa mais de perto neste trabalho, os gêneros, por exemplo, foram utilizados para reconfigurar o currículo e a pedagogia, nas escolas australianas de educação básica. Ao relatar essa experiência, Martin (2000) afirma que, nessas escolas, as disciplinas foram mapeadas por sistemas de gêneros e, dessa forma, foram criadas vias de aprendizagem por discursos diferenciados dos comuns às disciplinas1 1 . "As far as curriculum was concerned, we worked in secondary schools for example, to map disciplines as systems of genres. From these maps, we developed learner pathways as a guide for moving students through the uncommon sense discourse of the discipline" (Martin, 2000: 117). .
Atrelados a outras categorias teóricas, produzidas a partir do diálogo entre diferentes disciplinas científicas, os gêneros possibilitaram maiores esclarecimentos para os professores em formação inicial ou em serviço quanto aos caminhos didáticos possíveis para redimensionar as práticas escolares de linguagem. Acrescidas as noções teóricas de sequência didática (cf.: Dolz, Noverraz e Schneuwly, 2004), no contexto suíço, ou de projeto de letramento (cf.: Oliveira, 2010; Tinoco, 2010, 2009), no contexto brasileiro, por exemplo, o trabalho didático com gêneros permite a participação dos alunos em práticas de escrita mais significativas, quando comparadas aos tradicionais exercícios escolares, caracterizados pelo enfoque de níveis linguísticos inferiores ao texto ou pela prática de escrita restrita às denominadas composições escolares, quando se tenta configurá-las homogeneamente em descrição, dissertação ou narração (cf.: Silva, 2009a; 2009b).
As contribuições para o ensino de língua também estão relacionadas aos avanços desencadeados pela noção teórica de gênero para a formação dos professores, pois a produção de saberes docentes e a de objetos de ensino integram as atividades do profissional focalizado. Neste trabalho, nosso interesse recai sobre a formação inicial do professor, porém, na perspectiva dos usos dos gêneros como instrumentos de mediação na profissionalização do professor. Compartilhamos da mesma inquietação expressa por Marinho (2010: 364), ao propor, nas licenciaturas, a instituição de "práticas de escrita, que possam funcionar, simultaneamente, como estratégia de formação e de pesquisa para se compreender as condições de formação do professor", considerando que esse profissional "deva se inserir cada vez mais em práticas de escrita e também capacitar e mediar seus alunos nos processos de inserção nessas práticas".
No trabalho mencionado, Marinho (2010) apresenta uma investigação diferenciada quando comparada a outros trabalhos científicos realizados a partir da noção teórica de gênero (cf.: Araújo, 2002; Motta-Roth, 2002), pois a autora focaliza o gênero resenha produzido por alunos-mestre, ou seja, a escrita do professor em formação inicial ganha relevância. Outro gênero utilizado nas práticas de escrita que compõem as atividades didáticas na academia é o denominado relatório ou relato de estágio supervisionado, bastante comum nos cursos de licenciatura, ainda que pouco focalizado em investigações científicas (cf.: Fairchild, 2010; Fiad e Silva, 2009). Dando continuidade aos primeiros estudos que produzimos sobre relatório de estagio supervisionado (Silva, 2011a; Silva e Silva, 2011; Silva e Melo, 2008), assumimos esse gênero como objeto de investigação, neste trabalho científico2 2 . Este trabalho contribui para os projetos de pesquisa: "Implicações dos relatórios de estágio supervisionado para a formação inicial de professores" (CNPQ 501123/2009-1 UFT/PROPESQ AG4 # 003/2009); "Formação inicial de professores mediada pela escrita" (CNPq/CAPES 400458/2010-1). .
Apresentamos uma proposta de análise textual-discursiva do gênero relatório de estágio. Tal análise se configura pela identificação de algumas marcas linguísticas reveladoras da complexidade característica dos relatórios de estágio supervisionado, o que pode nos auxiliar na avaliação do trabalho realizado nessas disciplinas, além fortalecer a profissionalização do professor. Em outras palavras, interessa-nos apresentar uma proposta de estudo do gênero que ofereça alguns parâmetros para uma avaliação produtiva do processo de profissionalização do professor. Nessa perspectiva, conformo os termos utilizados por Martin (2000: 116), procuramos realizar pesquisas em Linguística Aplicada como "uma forma de ação social", comprometida ideologicamente com os colaboradores ou envolvidos diretamente ou indiretamente com a investigação científica realizada.
Além desta seção introdutória, das considerações finais e das referências bibliográficas, este artigo está organizado em três principais seções. Em Relatórios de estágio supervisionado como dados de pesquisa, caracterizamos os documentos investigados neste trabalho, desenvolvido no âmbito da Linguística Aplicada. Em Estágio supervisionado na configuração do gênero relatório, situamos o gênero focalizado no espaço complexo de investigação, característico das disciplinas de estágio supervisionado nas licenciaturas brasileiras. Em Caracterização do relatório de estágio supervisionado, apresentamos uma análise descritiva do gênero focalizado, destacando aspectos da macro e microestrutura textual, constitutivos dos relatórios investigados. Esta última seção é composta por duas subseções, nas quais também procuramos pontuar alguns desdobramentos da configuração textual descrita para a formação inicial do professor crítico.
2. RELATÓRIOS DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO COMO DADOS DE PESQUISA
Os textos analisados foram produzidos por professores em formação inicial na Licenciatura em Letras, com dupla habilitação em ensino de Língua Portuguesa e ensino Língua Inglesa3 3 . O ensino de literatura nas línguas mencionadas também integra o campo de atuação nessas habilitações. , ofertada no Campus Universitário de Araguaína, pertencente à Universidade Federal do Tocantins UFT. Os relatórios selecionados resultam do trabalho pedagógico realizado no período de formação do corpo docente efetivo da universidade focalizada, após período de federalização da antiga Fundação Universidade do Tocantins UNITINS4 4 . "A Fundação Universidade do Tocantins foi constituída como uma Fundação Pública de Direito Privado, mantida por entidades públicas e particulares, com apoio do Governo do Estado, tendo sede e foro em Palmas, Capital do Estado, e atuação em todo território nacional". ( http://www.unitins.br/portal/historico.aspx - acesso em 29/012011). . Trata-se, portanto, de um momento de bastante instabilidade em diferentes instâncias da universidade. O corpo docente ainda era composto por um número significativo de professores especialistas, cedidos pela Secretaria Estadual de Educação, principalmente nas disciplinas de estágio supervisionado, componente curricular obrigatório das licenciaturas.
O corpus desta investigação é composto diretamente por 40 relatórios produzidos como trabalho final das disciplinas de Investigação da Prática Pedagógica e Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa: Língua e Literatura e Investigação da Prática Pedagógica e Estágio Supervisionado em Língua Inglesa: Língua e Literatura, perfazendo 20 relatórios de Língua Inglesa e 20 relatórios de Língua Portuguesa. Algumas considerações aqui apresentadas sobre os dados investigados são informadas por uma quantidade bastante superior de textos, os quais compõem o banco de dados do Centro Interdisciplinar de Memória dos Estágios das Licenciaturas CIMES, que, além dos relatórios produzidos na Licenciatura em Letras, objeto de investigação direto deste trabalho, possui o acervo composto por relatórios das Licenciaturas em Geografia e Matemática.
Esta investigação está situada no âmbito da Linguística Aplicada (LA) por duas razões principais: (i) por investigarmos uma manifestação específica da linguagem, particularmente na modalidade escrita, em situação de formação inicial de professores de língua. Analisamos algumas contribuições dos usos do gênero relatório de estágio supervisionado como um espaço linguístico-discursivo de reflexão escrita, que se deseja desencadeador da formação profissional crítica; (ii) por assumirmos uma abordagem investigativa transdisciplinar em função da construção dos relatórios de estágio supervisionado como objeto de pesquisa, considerando a dinâmica da situação de circulação do referido gênero. Além do enfoque linguístico funcional propriamente dito, informado por estudos textuais, discursivos e pragmáticos dos gêneros, utilizamos alguns estudos sobre estágios supervisionados nas licenciaturas, produzidos no âmbito da ciência da educação, portanto, são considerados alguns aspectos pedagógicos que acrescentam informações relevantes ao tematizarmos a profissionalização do professor. Nos termos proferidos por Celani (2008: 20), a LA se caracteriza enquanto "área do conhecimento vista hoje como articuladora de múltiplos domínios do saber, em diálogo constante com vários campos que têm preocupação com a linguagem" (Celani, 2008: 20).
3. ESTÁGIO SUPERVISIONADO NA CONFIGURAÇÃO DO GÊNERO RELATÓRIO
No "Dicionário de gêneros textuais" (Costa, 2008: 159), encontramos os verbetes relato e relato de caso, aos quais nos remetemos quando procuramos alguma definição ou descrição para o gênero relatório. A seguir, reproduzimos parcialmente algumas definições e descrições apresentadas para os referidos verbetes, as quais nos remetem às diferentes configurações de relatórios de estágio encontradas ou que desejaríamos encontrar no âmbito dos projetos de pesquisa em que está inserido este trabalho. No referido dicionário, não há um verbete específico para relatório, ainda que, no verbete "relato de caso" seja feita referência a tal denominação entre parênteses, significando que o verbete relatório poderia ser consultado pelo usuário como gênero próximo ao apresentado em "relato de caso".
RELATO (v. CAUSO, CONTO, ESTÓRIA, HISTÓRIA, NARRAÇÃO, NARRATIVA, MEMÓRIAL, RELATÓRIO):narração (v.) não ficcional escrita ou oral sobre um acontecimento ou fato acontecido, feita geralmente usando-se o pretérito perfeito ou o presente histórico.
RELATO DE CASO (v. ARTIGO, ARTIGO CIENTÍFICO, DISSERTAÇÃO, EXPOSIÇÃO ORAL, MEMORIAL, MONOGRAFIA, RELATO, RELATÓRIO, TESE):documento (v.) em que se expõem os resultados, as conclusões às quais chegaram os membros de uma comissão (ou uma pessoa) encarregada de efetuar uma pesquisa, ou de estudar um problema particular ou um projeto qualquer. Os dados devem ser apresentados de forma muito organizada para que se possa lê-los em diferentes níveis. Pode se apresentar como um documento final ou parcial de resultados que, periódica e parceladamente, vão se somando até o final, dado seu caráter funcional e informativo. Como resultado de pesquisa (v.) que é, exige planejamento, coleta e seleção de material e dados que serão analisados e relatados. Nesse sentido, assim se estrutura: (i) Introdução (justificativas, diretrizes, delimitações e explicações necessárias); (ii) corpo ou texto principal (descrição (v.) detalhada do objetivo do relatório, análise e resultados) e (iii) conclusões e recomendações finais (resultados práticos, sugestões de atividades ou medidas a serem tomadas, a partir do que foi apresentado e analisado antes). A composição do texto final varia de acordo com o tipo de relatório: administrativo, policial, de viagem, de estágio, de visita, de projeto, de investigação, etc.. [...] (negrito e caixa alta do autor; itálico nosso) (Costa, 2008: 159)
As oito referências realizadas a outros gêneros no verbete "relato" e as dez realizadas em "relato de caso", todas destacadas entre parênteses, em negrito e caixa alta, bem como a existência desses dois verbetes como referências utilizadas para obter informações sobre o gênero relatório de estágio supervisionado, evidenciam o caráter flexível dos gêneros e o desafio da produção de um dicionário do tipo. Tal instabilidade dos gêneros textuais, conforme já destacada por Bakhtin (2000: 279), justifica-se pelas adaptações sofridas conforme o propósito comunicativo para que são acionados como resposta, em diferentes espaço e tempo. No verbete "relato de caso", afirma-se que a "composição do texto final varia de acordo com o tipo de relatório", sendo enumerados alguns tipos de relatório, dentre os quais destacamos o de estágio.
Conforme os dados analisados, a diversidade de composição do gênero ocorre no próprio relatório de estágio, o que é motivado por inúmeros fatores, dentre os quais destacamos a falta de consenso entre os profissionais responsáveis por coordenar e ministrar os estágios supervisionados a respeito da operacionalização das orientações oficiais sobre a disciplina. A ida do aluno-mestre ao campo de estágio para observar e ministrar aulas parece ser o único consenso existente na prática da referida disciplina (Bueno, 2009: 46). A diversidade de procedimentos assumidos inicia quando da escolha dos dispositivos para o aluno-mestre apresentar as observações, reflexões ou críticas realizadas sobre as atividades vivenciadas nos estágios: diários; discussões dirigidas; projetos; relatórios; relatos reflexivos; seminários; dentre outros. Nas palavras de Bueno (2009: 46), "cada professor de estágio faz a sua escolha de acordo com os seus objetivos e, assim, diferentes dispositivos acabam sendo empregados".
A diversidade desses procedimentos não foi aqui destacada como argumento favorável a alguma padronização do gênero focalizado como produto final das disciplinas de estágio supervisionado. Tal diversidade nos revela o descaso com questões da prática de profissionalização dos alunos-mestre, fruto da ausência de reflexões científicas mais sistematizadas sobre os estágios supervisionados, no campo dos estudos da Linguística Aplicada. Os estágios supervisionados se configuram como um campo de investigações com questões bastante particulares, portanto, tais estudos precisam ser realizados de forma situada, nos próprios estágios, os quais não podem ser vistos apenas como um espaço de aplicação ou importação de saberes, produzidos em outras circunstâncias, mesmo que originários da própria esfera escolar ou acadêmica.
No verbete "relato", é a descrição narração (v.) não ficcional escrita se aplica ao relatório de estágio supervisionado, pois, conforme mostraremos na próxima seção, a narração é o tipo textual predominante, sendo as reduzidas passagens da tipologia argumentativa um aspecto negativo no trabalho elaborado, ademais, espera-se que o aluno-mestre apresente análises críticas do estágio realizado. Como destacamos num outro momento (Silva, 2011a), "o relatório de estágio precisa ser utilizado como um espaço linguístico-discursivo de reflexão sobre a prática pedagógica vivenciada, podendo resultar no aprimoramento do trabalho didático realizado".
A produção escrita crítica é um aspecto bastante significativo do relatório, pois, havendo reflexão criteriosa sobre as atividades didáticas experienciadas nos estágios, orientadas por saberes docentes de diversas naturezas, certamente, resultará em contribuições para as futuras situações de trabalho, ou seja, para profissionalização do professor. Assim como outros instrumentos são utilizados para avaliação formativa das diversas atividades realizadas em situação de instrução ou de trabalho, como, por exemplo, o portfólio (cf.: Villas Boas, 2010), o relatório pode ser utilizado para tal propósito5 5 . De acordo com Villas Boas (2010: 47), "o portfólio é uma das possibilidades de criação da prática avaliativa comprometida com a formação do cidadão capaz de pensar e de tomar decisões". A autora destaca ainda que a construção do portfólio precisa conter evidências do progresso e reflexões sobre o andamento do trabalho realizado pelo produtor do documento. . Compreendemos a avaliação como uma atividade contínua, de forma que possa assegurar a aprendizagem ou o desenvolvimento dos envolvidos, sem interesse na classificação ou penalização dessas pessoas. Tratando-se especificamente da situação de estágio supervisionado, o relatório corresponde a um dos instrumentos de avaliação, talvez o mais significativo, pois potencializa maior liberdade de atuação dos alunos-mestre.
Nos dados investigados, há ocorrências de limites imprecisos entre os gêneros relatório, portfólio e, até mesmo, projetos de intervenção, ainda que tais documentos sejam apresentados como relatórios de estágio supervisionado, conforme discutiremos na seção seguinte. No "conjunto de gênero" produzido pelo aluno-mestre ao longo da licenciatura, em algumas situações observadas, a funcionalidade do relatório de estágio supervisionado ainda parece bastante imprecisa, distanciando-se das características de documento final ou parcial de resultados, com caráter funcional e informativo. Compreendemos "conjunto de gênero" como "a coleção de tipos de textos que uma pessoa num determinado papel tende a produzir" (Bazerman, 2005: 32).
Nos relatórios focalizados, deseja-se que os fatos relatados sejam verídicos; espera-se que o gênero funcione como um documento em que se expõem os resultados, as conclusões de pesquisa, ou do estudo de um problema particular ou um projeto qualquer, conforme descrição do verbete "relato de caso". A análise dos dados revela que, muitas vezes, o estágio supervisionado é concebido como "uma mera obrigação burocrática, desconsiderando seu potencial na formação dos alunos" (Gisi, Martins e Romanowski, 2009: 208), o que se desdobra na elaboração descomprometida dos relatórios, distanciando-se de ser resultado de pesquisa, que exige planejamento, coleta e seleção de material e dados que serão analisados e relatados, sendo os dados apresentados de forma muito organizada.
Dentre os elementos textuais que compõem a "estrutura potencial do gênero" EPG (Generic Structure Potential), conforme terminologia proposta por Hasan (1989), os elementos Introdução; corpo ou texto principal; e conclusões e recomendações finais, descritos no verbete "relato de caso", são próximos dos elementos textuais obrigatórios que identificamos como constitutivo da EPG do relatório de estágio supervisionado no corpus selecionado para este pesquisa, conforme mostraremos seção seguinte. Nas palavras de Gouveia (2008, 117), a EPG "é a descrição do leque total de elementos retóricos opcionais, iterativos e obrigatórios de um género, assim como da ordenação desses elementos, de modo a equacionarmos e enquadramos na descrição as possibilidades de estruturação de qualquer texto que seja exemplo desse género".
Produzidos nas disciplinas de estágio supervisionado, com atividades na universidade e na escola de educação básica, as configurações dos relatórios focalizados reproduzem a complexidade característica desses contextos, promissores espaços para investigação científica, dados os atores de natureza diversa em interação a serem ainda mais conhecidos (Silva, 2011b; Silva e Silva, 2011). Conforme Gisi, Martins e Romanowski (2009: 208), "entende-se o estágio como uma oportunidade de inserção numa realidade, no caso escolas de educação básica, permitindo a confrontação do saber acadêmico com o saber da escola, permitindo aos estudantes apreender como se dão as relações de trabalho". Muitas vezes, nas licenciaturas brasileiras, as disciplinas de estágio supervisionado ainda são as únicas disciplinas responsáveis por oportunizar o contato do aluno-mestre com a prática pedagógica, orientado por saberes técnicos produzidos nas instâncias universitárias6 6 . Com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/96), vigente no território brasileiro, "busca-se a integração entre a teoria e a prática na formação de professores, procurando reparar a separação que existia entre as disciplinas teóricas e as da educação" (Bueno, 2009: 40). Com o Parecer CNE/CP nº. 21/2001, além do número mínimo de 400 horas para o Estágio Supervisionado, foi instituído o número mínimo de 400 horas para prática de ensino, sendo essa última carga horária distribuída nas denominadas disciplinas teóricas. . A partir da investigação de documentos legais que regulamentam o estágio supervisionado nas licenciaturas brasileiras (LDB/96; Parecer CNE/CP nº. 21/2001), Bueno (2009: 40) caracteriza o estágio supervisionado como
lugar em que o aprendiz de professor conhecerá a situação de trabalho com a qual se defrontará no futuro e no qual mostrará as suas competências. Nota-se, também, que há grande ênfase na quantidade de tempo que deve ser despendida com o estágio, já que isso é instituído por lei. Entretanto, como deve ser efetivamente esse estágio e o que fazer para que o estagiário alcance o objetivo de 'um conhecimento do real em situação de trabalho' são questões que os documentos oficiais não têm respondido.
Na seção seguinte, exemplificaremos os resultados das análises dos dados deste trabalho. As passagens textuais reproduzidas são representativas dos resultados gerados. Para a análise apresentada, utilizamos alguns pressupostos teóricos da LSF, a qual nos possibilita investigar como o sistema linguístico e o contexto social são mutuamente construídos. Nas palavras de Eggins (1994: 23), concebendo a língua enquanto sistema semiótico, a LSF focaliza "como as pessoas utilizam a língua em diferentes contextos e como a língua é estruturada pelo uso". Analisamos as marcas linguísticas deixadas pelos alunos-mestres na materialidade textual do gênero relatório de estágio, considerando que tais marcas são resultados de interferências contextuais características da complexidade constitutiva das disciplinas de estágio supervisionado.
Descrevemos as marcas linguísticas características dos elementos textuais configuradores dos relatórios de estágio, ainda que, na LSF, o "centro nevrálgico da descrição" se situe não no texto, mas na oração (Gouveia, 2009: 20)7 7 . Concordamos com Gouveia (2009: 20), ao afirmar que "é com o texto que a LSF trabalha em termos de descrição e análise, procurando entender o que os textos nos revelam sobre o sistema. Embora correcta, tal constatação corre o risco de não ser totalmente fiel aos ensinamentos da teoria, considerando que o centro nevrálgico da descrição se situa não no texto mas na oração. De facto, enquanto instanciação do sistema, o texto é a nossa unidade de descrição, mas é a oração que é unidade principal de processamento da gramática, já que tudo se processa à volta da oração: acima de, abaixo de, para além de". . Realizamos uma abordagem "topo-base", partindo do "contexto cultural" (gênero textual), passando pelo "contexto situacional" (texto/registro) e, finalmente, alcançando o sistema linguístico, quando destacaremos alguns aspectos léxico-gramaticais que se sobressaem nos relatórios sob análise. Nesta perspectiva, ainda que não tenhamos a pretensão de assumir aqui a abordagem da LSF em sua complexidade, com as diversas especificidades que lhes são constitutivas, envolvendo as três variáveis de registro (campo, relação e modo), atreladas às três funções da linguagem (ideacional, interpessoal e textual), compreendemos que o texto é "materializado por meio da gramática", além de ser "perpassado por características da situação e da cultura nas quais é produzido" (Vian Jr, 2001: 151).
Para que a unidade textual não nos escape ao descrevermos algumas marcas linguísticas características do gênero, consideramos as sequências textuais dominantes nos excertos selecionados para análise, considerando que "é difícil encontrar textos 'puros' e que, num mesmo texto, deparamos normalmente com argumentação, descrição, explicação e narração" (Vellela e Koch, 2001: 545). Tal assertiva é compartilhada por Adam (2009: 129), ao afirmar que "um TEXTO é uma estrutura hierárquica complexa que compreende n seqüências elípticas ou completas do mesmo tipo ou de tipos diferentes" narrativa; descritiva; argumentativa; explicativa; conversacional-dialogal (destaque do autor). Conforme as análises apresentadas, os limites entre tais sequências são extremamente tênues, mesmo havendo dominância da narração e descrição. A proposta de análise apresentada é resultado da articulação entre pressupostos teóricos da Linguística Sistêmico Funcional (LSF) e da Linguística Textual (LT).
4. CARACTERIZAÇÃO DO RELATÓRIO DE ESTÁGIO SUPERVISIONADO8 8 . Para elaboração desta seção, contamos com a significativa colaboração da bolsista de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq/UFT) Elem Kássia Gomes. Foram utilizados os dados analisados no Relatório Final de Pesquisa (agosto/2009 julho/2010).
Na perspectiva da LSF, os gêneros são aqui concebidos como resultado da relação probabilística e não determinística entre sistema linguístico e contextos de realização discursiva. São diferentes formas linguísticas utilizadas para alcançar propósitos interativos padronizados, em outros termos, os textos de diferentes gêneros são textos produzidos em função de diferentes tarefas culturalmente estabelecidas (cf.: Eggins e Martin, 1997: 236). Nos termos de Motta-Roth e Heberle (2005: 28), "o gênero corresponde à linguagem usada em associação a contextos e funções recorrentes na experiência cultural humana".
Para analisar a macro-estrutura dos relatórios de estágio supervisionado, tomamos como referência a EPG proposta por Hasan (1989), mesmo não sendo nosso interesse apresentar uma estrutura textual rígida como referência do gênero focalizado. Bem sabemos que, de acordo com leitura realizada dessa proposta teórica, conforme críticas reunidas por Motta-Roth e Herberle (2005), corre-se o risco de se distanciar da caracterização do gênero como resultado de relações probabilísticas da semiotização de aspectos contextuais na materialidade textual, resultando na imposição de "rígidos padrões sequenciais para estágios do texto, os quais demonstrar-se-ão, de fato muito mais variáveis na linguagem natural" (p. 27). Nessa perspectiva, os elementos textuais obrigatórios (obrigatory elements), opcionais (optional elements) e iterativos (interative elements) servirão apenas como parâmetros para a descrição realizada, não para propósito de classificação.
Para descrição dos elementos textuais componentes da estrutura potencial dos relatórios investigados, focalizamos os relatórios apresentados para as disciplinas de Estágio I, nas duas habilitações da Licenciatura em Letras Ensino Língua Portuguesa e Ensino de Língua Inglesa. Além das aulas regulares na universidade, tais disciplinas são caracterizadas por observações de aulas em escolas de educação básica, diferentemente dos demais estágios, quando os alunos-mestre também ministram aulas nas referidas escolas.
A estrutura potencial dos relatórios entregues para os demais estágios é bastante próxima da descrita adiante, diferenciando-se, primordialmente, pela exposição de planos de aula, elaborados no período de regência e, por vezes, pela presença de projetos pedagógicos de intervenção, elaborados ou implementados no decorrer do estágio. Normalmente, tais documentos são anexados ao final dos relatórios, juntamente com exemplos de atividades didáticas implementadas em aulas observadas ou ministradas, e documentos legais necessários para realização do estágio, como fichas de frequência ou de avaliação dos estagiários.
4.1. Macroanálise dos relatórios de estágio supervisionado
No quadro expositivo a seguir, apresentamos a EPG dos relatórios de estágio supervisionado investigados. Não foram incluídos os elementos textuais de contextualização imediata, compreendendo Capa, Contra Capa, Dedicatória, Agradecimentos, Epígrafe e Sumário, os quais são caracterizados como elementos textuais opcionais, trazem as informações imediatas sobre os autores, locais de estágio, organização do relatório, período letivo e, inclusive, de duas variáveis, por vezes, significativas na composição da EPG: licenciatura e professor responsável pelo estágio. Dentro do projeto de pesquisa em que está inserido este trabalho, foram produzidos resultados mostrando que, em licenciaturas diferentes, há orientações e concepções diferenciadas do gênero relatório, instabilidade também motivada por orientações dadas pelo próprio professor de estágio supervisionado (cf.: Oliveira, 2011).
A comparação das estruturas potenciais dos relatórios de estágio supervisionado, descritas a partir da análise dos documentos produzidos nas duas habilitações, mostra uma macroestrutura textual praticamente idêntica, pois as diferenças correspondem às mesmas identificadas dentro da EPG numa única habilitação. Encontramos expressões nominais distintas, utilizadas para intitular partes textuais que focalizam conteúdos específicos, como Estrutura Física e Material, Estrutura, Organização e Funcionamento e Organização geral da escola ou, ainda, Anexos e Fichas. Normalmente, essas expressões nominais são motivadas por roteiros para elaboração dos relatórios, repassados pelos docentes responsáveis pelas disciplinas de estágio supervisionado.
A exposição dos elementos textuais, no Quadro 1, permite-nos questionar se o gênero relatório de estágio supervisionado possibilita a tematização de aspectos característicos da Licenciatura em Letras ou, mais especificamente, das habilitações em ensino de Língua Inglesa e em ensino de Língua Portuguesa. A EPG descrita parece passível de utilização em qualquer licenciatura, ainda que possa não responder às demandas específicas na profissionalização do professor em cada licenciatura, o que mostraremos mais detalhadamente adiante, ao destacarmos as marcas linguísticas características do gênero investigado. Em outros momentos da pesquisa que coordenamos, por exemplo, já observamos que os relatórios apresentados para os estágios na licenciatura em matemática são os que mais se distanciam da estrutura descrita acima. Essa ausência de especificidade nos relatórios de estágio supervisionado parece reproduzir orientações apresentadas em manuais de normatização de trabalhos acadêmicos, conforme podemos observar nas palavras de Sá (1994: 29), ao afirmar que "nestes tipos de relatórios devem constar a descrição do local visitado ou de onde foi realizado o estágio, além da descrição dos trabalhos executados e dos processos técnicos observados".
Os elementos Introdução; corpo ou texto principal; e conclusões e recomendações finais, apresentados por Costa (2008: 159), no "Dicionário de gêneros textuais", para caracterizar o verbete "relato de caso", parecem pouco informativos quando comparados aos elementos textuais identificados no Quadro 1. Por serem bastante genéricos e imprecisos, tais elementos podem ser atribuídos a diversos gêneros, assim como, afora a introdução e a conclusão/considerações finais, que correspondem diretamente aos citados por Costa (2008), podemos relacionar praticamente todas os demais elementos textuais, com exceção do anexos, bibliografia e fichas, ao corpo ou texto principal, mencionado pelo autor. Conforme mostrado no parágrafo anterior, as expressões nominais que identificam os elementos textuais aqui relacionados ao corpo ou texto principal trazem especificidades do contexto cultural característico das disciplinas de estágio supervisionado.
Com exceção da Introdução, Conclusão, Bibliografia e Anexos, que aparecem em lugares fixos nos relatórios, assim como em qualquer outro gênero do qual fazem parte, os demais elementos textuais não são organizados numa sequência fixa. Dois ou mais elementos textuais, que compõem o corpo ou texto principal, nos termos de Costa (2008), podem aparecer fundidos, resultando num único elemento. Nos relatórios de estágio supervisionado, são tematizados conteúdos específicos, porém, em uma organização textual bastante flexível. Apesar de toda essa instabilidade, característica dos relatórios analisados, não podemos negar, nos termos de Vian Jr (2001: 154), que a "EPG de um texto dá a este uma determinada 'identidade', sendo assim possível identificar um texto fora da situação em que foi produzido, e o usuário consegue definir de que tipo de texto se trata e, além de identificá-lo, também fazer outros tipos de inferências".
4.2. Microanálise dos relatórios de estágio supervisionado
Nos excertos reproduzidos nesta subseção, descrevemos algumas marcas linguísticas características dos elementos textuais componentes dos relatórios de estágio supervisionado, procurando depreender os desdobramentos desses usos para a formação do professor crítico. Na perspectiva sistêmico-funcional, utilizada como subsídio teórico para a microanálise dos dados, "o modo como o contexto se configura determina o modo como o conteúdo, as relações interpessoais e a estrutura da informação se manifestam no texto" (Motta-Roth e Heberle, 2005: 28), resultando, respectivamente nas funções ideacional, interpessoal e textual, no nível de análise do sistema linguístico.
No Exemplo 01, reproduzido a seguir, é relatada a experiência do processo de escrita do relatório de estágio supervisionado, permitindo-nos depreender a função atribuída ao gênero textual pelos alunos-mestre. Esse discurso sobre o próprio gênero produzido é característico dos elementos textuais responsáveis pela introdução do relatório, sendo algumas vezes retomado nas seções conclusivas, deixando o texto bastante repetitivo, dando a sensação ao leitor de que não houve progressão no conteúdo tematizado.
Ao relatório de estágio, é atribuída a função de representação da realidade vivenciada nos estágios supervisionados, o que pode ser depreendido pelas expressões nominais a pretensão de retratar a realidade e o retrato escrito, utilizadas para nomear, respectivamente, o desejo manifestado durante a escrita e o próprio relatório. Nessa perspectiva, as sequências descritivas e narrativas predominariam na composição do gênero. Tal constatação se confirma no próprio sistema linguístico no exemplo focalizado, em que as fronteiras entre as referidas sequências são praticamente inexistentes. As construções sintáticas são complexas, pois são significativos os usos de estruturas que fogem ao esquema SVO, ou seja, são construções gramaticais intercaladas e na ordem indireta.
A sequência descritiva é marcada pelos usos das formas verbais de processo relacional (seja, é e estar). As formas verbais de processo material, ocorre e vai, marcam a composição da sequência narrativa, até porque estão justapostas a duas formas circunstanciais componentes do sistema de transitividade (no momento em que se escreve um relatório; na medida em que se procura descrevê-la e sistematiza-la), as quais, por se realizarem na estrutura de orações, também são compostas por formas verbais semiotizadoras de processos materiais (escreve, procura, descrevê, sistematizá).
O uso das formas verbais no tempo presente contribui para a eliminação das fronteiras entre as sequências textuais. A articulação entre os usos das formas verbais nos modos indicativo e subjuntivo não exime o texto da sequência argumentativa, marcada significativamente pelas formas adverbiais porém e quase sempre, utilizadas, respectivamente, para contrapor argumentos e modalizar o enunciado. A textualização da sequência argumentativa parece tímida para que o relatório de estágio supervisionado realmente funcione como um espaço lingüístico-discursivo desencadeador da formação do profissional crítico. O uso da forma pronominal se contribui com o esforço manifestado para distanciar o enunciador do conteúdo apresentado, quando, na prática de profissionalização do professor, espera-se que os autores apareçam, manifestem suas reflexões sobre a experiência vivenciada.
NoExemplo 02, reproduzido a seguir, identificamos o domínio da sequência descritiva, quando o enunciador pouco se envolve com o conteúdo exposto, parecendo apenas responder a um roteiro de referência utilizado para produção do relatório de estágio, o que é sinalizado pelo uso de construções temáticas marcadas.
Os três primeiros períodos são construções sintáticas com temas marcados, pois há deslocamentos de formas circunstanciais para o início do período (Nas dependências de uso; Quanto às dependências de serviços; Nas dependências administrativas). Essas formas identificam os diferentes tópicos focalizados no relatório. No último período, há uma quebra do paralelismo sintático mantido nos períodos antecedentes, pois a forma circunstancial (em se tratando de iluminação, ventilação e acústica) é utilizada após a expressão nominal que ocupa a posição temática ou de sujeito da oração, conforme terminologia da tradição gramatical (As condições ambientais).
O processo relacional expresso por dispõe, possui, conta contribui para a textualização da sequência descritiva, pois tais formas verbais articulam o participante escola a outros, que, na realidade, foram desmembrados desse primeiro participante (de nove salas de aula, uma cantina, um almoxarifado, um banheiro para os alunos e um para os funcionários e uma cozinha; uma sala de diretoria, uma sala de coordenadoria, uma secretaria, uma sala dos professores e um pátio coberto). A voz do aluno-mestre aparece minimamente no texto, quando apresenta alguma avaliação sobre os participantes citados, o que é sinalizado pela forma verbal sendo, na forma nominal do gerúndio, além do duplo uso da forma adjetival adequada (sendo oito adequadas e uma não adequada, uma biblioteca adequada). O último enunciado traz marcas de uma típica construção descritiva, pois apresenta o Processo Relacional sinalizado pela forma verbal são, a qual está articulada a um Portador (As condições ambientais, em se tratando de iluminação, ventilação e acústica) e um Atributo (boas).
No Exemplo 02, são explicitados detalhes da estrutura física da escola, descrevendo o ambiente de maneira a ressaltar as boas condições das instalações, como se a adequação da estrutura física da instituição fosse suficiente para haver aprendizagem pelos alunos. Em todos os relatórios de Estágio I, no ensino de Língua Inglesa e no ensino de Língua Portuguesa, há uma forte tendência a se destacar as qualidades da estrutura física da escola, afirmando a viabilidade desta enquanto espaço para a aprendizagem dos alunos. O enfoque desses aspectos estruturais pode resultar, até mesmo, na exposição de listas com informações quantitativas de equipamentos e objetos, encontrados na instituição, conforme já mostrado por Silva e Melo (2008). Ilustramos esse tipo de lista com o excerto reproduzido da mesma seção focalizada, num outro relatório: O colégio dispõe de dois aparelhos de som, três vídeos cassete, vinte e sete ventiladores, um mimeógrafo, um liquidificador, nove jogos de cadeira e mesa do professor, vinte e três jogos de cadeira e mesa do aluno, duas máquinas de escrever [...] Mais uma vez, ressaltamos que essas informações podem ser apresentadas em relatórios de qualquer licenciatura, pois não há especificidades sobre o trabalho com conteúdos específicos do curso.
Nos relatórios, a sequência narrativa é recorrente nos momentos em que os alunos-mestre apresentam as seguintes informações sobre o estágio supervisionado: dia, horário, local, conteúdo e atividade didática realizada. Conforme analisado por Silva e Melo (2009), normalmente, tais informações são topicalizadas sequencialmente conforme os dias dedicados ao estágio. No Exemplo 03, reproduzido a seguir, há dominância da sequência narrativa em função do relato da história de fundação da escola em que o estágio supervisionado fora realizado9 9 . No Exemplo 02, foram utilizados nomes fictícios a fim de preservar a identidade da escola apresentada no relatório sob análise. .
Característico da sequência narrativa, o processo material é expresso pelas formas verbais Foi fundada, reuniram, decidiram, pediram, conseguiram, foi doado e contribuiu, todas apresentadas no tempo pretérito perfeito, no modo indicativo. Duas dessas formas são utilizadas na voz passiva, dando maior ênfase ao processo exposto, em detrimento dos Participantes Atores, o que parece ser motivado pela informação previamente utilizada. As orações são articuladas pelos usos da conjunção e, justapondo estruturas sintáticas semelhantes, e do pronome relativo que, acrescentando informações aos Participantes a que estão subordinados.
A localização da escola é descrita pela forma verbal está localizada, indicando processo relacional. Tal processo ocorre nos dois últimos períodos do excerto reproduzido (possui, sendo, é), quando as sequências descritivas e argumentativas se tornam mais evidente. O penúltimo período representa a exposição da lista com informações quantitativas, conforme destacamos previamente. O último período se configura como uma coda, pois é realizada uma avaliação em que se procura destacar a relevância das informações apresentadas previamente para compreensão da situação escolar atual.
Finalmente, no Exemplo 04, reproduzimos parte do texto apresentado na Conclusão de um relatório de estágio supervisionado. Conforme recorrente nos dados analisados, essa seção é marcada pela sequência argumentativa, momento em que os alunos-mestre aparecem de forma mais significativa no texto, sobressaindo, portanto, a função interpessoal da linguagem, na perspectiva da LSF. Por ser o último elemento textual para apresentação de alguma apreciação crítica sobre as atividades realizadas, os alunos-mestre parecem tirar maior proveito da seção, mostrando-se alinhados às reflexões desejadas sobre própria formação profissional, nos estágios supervisionados.
No Exemplo 04, a forma adverbial realmente e a forma verbal parecem, "modalizadores epistêmicos"10 10 . Conforme Koch (2004: 136), " modalizadores epistêmicos são os que assinalam o comprometimento/engajamento do locutor com relação ao seu enunciado, o grau de certeza com relação aos fatos enunciados" (itálico da autora). , assinalam o comprometimento do enunciador ao apresentar uma reflexão crítica sobre as aulas observadas na Educação Básica, durante os estágios supervisionados. Ainda que haja algumas inadequações nas escolhas lexicais na passagem transcrita, o aluno-mestre parece apresentar uma demanda por reflexão e análise da situação vivenciada no campo de estágio, caracterizada pelo pouco envolvimento dos alunos nas aulas ministradas, o que é marcado duplamente pelo uso da forma adverbial de negação não, que possui as formas verbais ser e estão, indicadoras de processo relacional, como "escopo"11 11 . Conforme Ilari (2002: 86), "pode-se caracterizar o escopo como o conjunto de conteúdos afetados por algum operador; no caso esse operador é o próprio advérbio, e os conteúdos em questão são supridos por outras expressões que com ele interagem no mesmo co-texto". .
Por fim, destacamos ainda, no exemplo focalizado, o uso do "articulador metaformulativo"12 12 . De acordo com Koch (2004: 139), o enunciador, "por meio de enunciados metaformulativos, procede a reflexão sobre a forma do dito, por exemplo, sobre a adequação dos termos empregados, a função de um segmento em relação ao anterior". ou melhor, utilizado para apresentar uma formulação sintática alternativa para explicar o comportamento dos alunos, observado pelo estagiário nas aulas assistidas. Em outras palavras, esse articulador se configura como uma marca linguística da sequência argumentativa, evidenciando a reflexão do enunciador sobre o conteúdo tematizado: a situação vivenciada e destacada do estágio supervisionado, na materialidade textual.
Os relatórios de estágio, produzidos nas disciplinas de Estágio Supervisionado em Língua Inglesa I e em Língua Portuguesa I, estão organizados de modo bastante semelhante nas duas disciplinas. Enfatiza-se a descrição do ambiente escolar de maneira muito excessiva, sem proporcionar ao aluno-estagiário uma maior reflexão sobre a prática pedagógica, sobre a profissão que escolheu seguir. Porém, com o avançar dos anos, evidenciamos uma mudança nesse sentido, pois os alunos passam a refletir mais sobre a prática, fazendo, inclusive, referências bibliográficas a textos teóricos.
Considerado o caráter predominantemente subjetivo dos relatórios, destacamos ainda que, conforme nossa observação, o termo relato reflexivo passa a ser utilizado, em muitos trabalhos de final de disciplina, no lugar do relatório, a partir do momento em que, na universidade focalizada, os professores efetivos começam a assumir as disciplinas de estágio supervisionado. Provavelmente, tal mudança se deva a uma maior valorização da reflexão sobre as aulas de estágio, orientadas por docentes com formação adequada às disciplinas assumidas. Nessa perspectiva, passam-se a priorizar descrições dos estágios, permeadas por críticas, avaliações sobre as aulas, sobre a prática pedagógica. Este aspecto é interessante, pois, ao focalizar a reflexão por parte do professor em formação inicial, a criticidade do aluno-mestre é estimulada, podendo contribuir para a melhoria do Ensino Básico, visto que a reflexão contribui para o aperfeiçoamento da prática pedagógica. Em síntese, os relatos reflexivos caracterizam-se, principalmente, pela exposição dos fatos ocorridos em sala de aula, com maior tendência à reflexão sobre as atividades desenvolvidas durante o estágio.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para finalizar este trabalho, pontuamos algumas questões focalizadas ao longo da exposição realizada. Com propósito de investigar a prática de escrita acadêmica, orientada pela noção do gênero relatório de estágio supervisionado, articulamos a abordagem investigativa proposta na LSF, ainda que numa perspectiva por nós identificada como moderada, com a categoria de sequência textual, amplamente trabalhada no campo da linguística textual. Informada pela abordagem funcionalista do estudo das formas linguísticos, tal articulação possibilitou a análise do relatório de estágio supervisionado, considerando a complexidade dos contextos de produção e circulação do gênero, evitando a simplificação da análise da materialidade textual reduzida a aspectos gramaticais descontextualizados.
As marcas linguísticas identificadas foram relacionadas aos aspectos linguísticos característicos das sequências textuais, uma vez que os usos das sequências argumentativa, descritiva e narrativa ganharam relevância nas análises dos dados de pesquisa. Há predominância das duas últimas sequências textuais mencionadas em detrimento da primeira, em praticamente todos os elementos linguísticos componentes da EPG identificada.
Essa configuração textual revelou a ausência do trabalho sistematizado sobre as práticas de escrita como atividades mediadoras da formação inicial do professor, o qual se deseja crítico da própria prática profissional. Por professor crítico, compreendemos aqui, sinteticamente, o profissional habituado a refletir sobre a dinâmica característica do espaço de trabalho, podendo, em função das reflexões ou avaliações realizadas, (re)planejar as atividades orientadoras ou organizadoras do trabalho pedagógico realizado.
Esses resultados revelam, portanto, a necessidade de uma maior orientação das práticas de escrita por parte do supervisor de estágio supervisionado, o que pode não depender, exclusivamente, desse docente, mas, minimamente, de uma reação cooperativa de todos os formadores atuantes nas licenciaturas. Bem sabemos que não agimos orientados por nosso próprio interesse ou desejo, mas somos afetados por ações de natureza diversa e, no espaço complexo da sala de aula, compreendendo as diferentes instâncias de formação, não faltam atores, sejam humanos ou não-humanos, conforme tematizamos em trabalhos anteriores (Silva, 2011b; 2006; Silva e Silva, 2011).
Recebido em abril de 2011
Aprovado em julho de 2012
- ADAM, J-M. 2009. Quadro teórico de uma tipologia seqüencial. In: Benedito G. Bezerra; Bernadete Biasi-Rodrigues & Mônica M. Cavalcante (orgs.). Gêneros e seqüências textuais Recife: Editora da Universidade de Pernambuco EDUPE. p. 115-132.
- ARAÚJO, A. D. 2002. Uma análise da polifonia discursiva em resenhas críticas acadêmicas. In: José Luiz Meurer & Désirée Motta-Roth (orgs.). Gêneros textuais Bauru: EDUSC. p. 141-158.
- BAKHTIN, M. 2000. A estética da criação verbal São Paulo: Martins Fontes.
- BAZERMAN, C. 2006. Gênero, agência e escrita In: Angela P. Dionisio & Judith C. Hoffnagel. (orgs.). São Paulo: Cortez.
- _____. 2005. Gêneros textuais, tipificação e interação In: Angela P. Dionísio & Judith C. Hoffnagel (orgs.). São Paulo: Cortez.
- BUENO, L. 2009. A construção de representações sobre o trabalho docente: o papel do estágio. São Paulo: FAPESP/EDUC.
- CELANI, M. A. A. 2008. A relevância da Lingüística Aplicada na Formulação de uma Política Educacional Brasileira. In: Mailce B. M. Fortkamp & Leda Maria B. Tomitch (orgs.). Aspectos da Lingüística Aplicada: estudos em homenagem ao professor Hilário Inácio Bohn 2Şed. Florianópolis: Insular. p. 17-32.
- COSTA, S. R. 2008. Dicionário de gêneros textuais Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
- DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. 2004. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: Bernard Schneuwly; Joaquim Dolz e colaboradores. Gêneros orais e escritos na escola Campinas: Mercado de Letras. p. 95-128.
- EGGINS, S. 1994. An introduction to systemic functional linguistics London: Pinter Publishers Ltd.
- _____; MARTIN, J. R. 1997. Genres and Registers of Discourse. In: Teun A. van Kijk (org). Discourse as Structure and Process London: SAGE Publications. p. 230-256.
- FAIRCHILD, T. 2010. O professor no espelho: refletindo sobre a leitura de um relatório de estágio na graduação em Letras. In: Revista brasileira de linguística aplicada Belo Horizonte: UFMG/ALAB. v. 10, n. 1, p. 271-288.
- FIAD, R. S.; SILVA, L. L. M. 2009. da. Escrita na formação docente: relatos de estágio. In: Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá: EDUEM. v. 31, n. 2, p. 123-131.
- GISI, M. L.; MARTINS, P. L. O.; ROMANOWSKI, J. P. 2009. O estágio nos cursos de licenciatura. In: Romilda T. Ens; Dilmeire S. A. R. Vosgerau & Marilda A. Behrens (orgs.). Trabalho do professor e saberes docentes Curitiba: Editora Champagnat. p. 201-215.
- GOUVEIA, C. A. M. 2009. Texto e gramática: uma introdução à linguística sistêmico-funcional. In: Matraga: estudos linguísticos e literários. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Letras/UERJ. v. 16, n. 16, p. 13-47.
- _____. 2008. Texto Narrativo. In: Maria H. M. Mateus, Dulce Pereira & Glória Fischer (orgs.). Diversidade linguística na escola portuguesa Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. p. 113-118.
- HASAN, R. 1989. Part B In: M. A. K. HALLIDAY & RUQAIYA HASAN (orgs.). Language, context, and text; aspects of language in social-semiotic perspective. Oxford: Oxford University Press. p. 51-118.
- ILARI, R. et al. 2002. Considerações sobre a ordem dos advérbios. In: CASTILHO, Ataliba T. de (Org.). Gramática do português falado vol. I: a ordem. 4. ed. Campinas: Editora da UNICAMP/FAPESP. p. 53-120.
- KOCH, I. G. V. 2004. Introdução à linguística textual São Paulo: Martins Fontes.
- MARTIN, J. R. 2000. Design and practice: enacting functional linguistics. In: Annual Review of Applied Linguistics Cambridge University Press. v. 20, p. 116-126.
- MARINHO, M. 2010. A escrita nas práticas de letramento acadêmico. In: Revista brasileira de linguística aplicada Belo Horizonte: ALAB/POSLIN. v. 10, n. 2, p. 363-386.
- MOTTA-ROTH, D. 2002. A construção social do gênero resenha acadêmica. In: José Luiz Meurer; Désirée Motta-Roth (orgs.). Gêneros textuais Bauru: EDUSC. p. 77-116.
- MOTTA-ROTH, D.; HEBERLE, V. 2005. O conceito de "estrutura potencial do gênero" de Ruqayia Hasan. In: J. L. Meurer; Adair Bonini & Désirée Motta-Roth (orgs.). Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola Editorial. p. 12-28.
- OLIVEIRA, E. DE J. 2011. Caracterização do gênero relatório de estágio supervisionado nas licenciaturas em geografia e história. Relatório Parcial de Pesquisa de Iniciação Científica PIBIC/CNPq/UFT (agosto/2010-fevereiro/2011).
- OLIVEIRA, M. do S. 2010. Gêneros textuais e letramento. In: Revista brasileira de linguística aplicada Belo Horizonte: ALAB/POSLIN. v. 10, n. 2, p. 325-345.
- SÁ, E. S. de (coord.). 1994. Manual de normalização de trabalhos técnicos, científicos e culturais Petropólis, RJ: Vozes.
- SILVA, W. R. 2011a. Práticas escolares de leitura em estágio supervisionado: por uma formação crítica do professor. In: Adair Vieira Gonçalves & Maria Rosa Petroni (orgs.). Formação de professores: o múltiplo e o complexo. Dourados: Editora da UFGD. (no prelo).
- _____. 2011b. Construção da interdisciplinaridade no espaço complexo de ensino e pesquisa. Cadernos de Pesquisa São Paulo: Fundação Carlos Chagas. (no prelo)
- _____. 2009a. Seleção textual no ensino interdisciplinar por projeto In: Revista Brasileira de Linguistica Aplicada. Belo Horizonte: UFMG. v. 9, n.1, p. 15.
- _____. 2009b. Algumas contribuições da linguística aplicada para o ensino de escrita em aulas de língua materna no Brasil. In: Investigações: linguística e teoria literária. Programa de Pós-Graduação em Letras/Recife: Bagaço. v. 22, n. 2, p. 135-160.
- _____. 2006. Construção de aprendizes de leitura e escrita através de exercícios didáticos Tese de doutorado. Campinas: Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP.
- _____.; MELO, L. C. de. 2008. Relatórios de estágio supervisionado como gênero discursivo mediador da formação do professor de língua materna. In: Trabalhos em Linguística Aplicada Campinas: IEL/UNICAMP, 47 (1): 131-149, Jan./Jun.
- _____.; SILVA, J. O. 2011. Estágio supervisionado como espaço de formação do professor Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste GELNE. Teresina: UFPI. (no prelo)
- TINOCO, G. 2010. A. Práticas sociais, leitura-escrita, ensino-aprendizagem: elementos constituintes de projetos de letramento. In: Silvana Serrani (org.). Letramento, discurso e trabalho docente: uma homenagem a Angela Kleiman. Vinhedo: Editora Horizonte. p. 197-210
- _____. 2009. Usos sociais da escrita + projetos de letramento = ressignificação do ensino. In: Adair Vieira Gonçalves & Milene Bazarim (orgs.). Interação, gênero e letramento: a (re)escrita em foco. São Carlos: Editora Claraluz. p. 151-174.
- VIAN Jr, O. 2001. Sobre o conceito de gêneros do discurso: diálogos entre Bakhtin e a Linguística Sistêmico-Funcional. In: Beth Brait (org.). Estudos enunciativos no Brasil: histórias e perspectivas Campinas: Pontes. p. 147-161.
- VILELA, M.; KOCH, I. V. 2001. Gramática da língua portuguesa Coimbra: Almedina.
- VILLAS BOAS, B. M. F. 2010. Portfólio, avaliação e trabalho pedagógico 7Ş. ed. Campinas: Papirus.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Fev 2013 -
Data do Fascículo
2012