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Pode um liberal apoiar a subvenção à arte?

Can a liberal support the subvention for the arts?

Resumos

Para alguns teóricos liberais contemporâneos, entre os quais John Rawls, um Estado liberal-democrático não pode orientar sua intervenção por concepções "perfeccionistas", isto é, por julgamentos sobre o valor intrínseco de pessoas, atividades ou concepções do bem. Examina-se se essa concepção de "neutralidade antiperfeccionista" é compatível com a intervenção estatal voltada para a promoção da excelência artística de uma sociedade.


For some contemporary liberal theorists, John Rawls among them, a liberal-democratic state outght to abstain from "perfectionist"'conceptions - that is, judgements about the intrinsic value of persons, activities, and conceptions of the good - as a basis for its actions. This idea of u perfectionist neutrality" is examined regarding state actions aiming at the promotion of artistic excelence.


DEMOCRACIA

Pode um liberal apoiar a subvenção à arte?* * "Puede un anti-perfeccionista subvencionar ei arte?" Tradução de Álvaro de Vita.

Can a liberal support the subvention for the arts?

Pablo da Silveira

Professor da Universidade Católica do Uruguai e pesquisador do Centro Latinoamericano de Economía Humana (CLAEH), Montevidéu

RESUMO

Para alguns teóricos liberais contemporâneos, entre os quais John Rawls, um Estado liberal-democrático não pode orientar sua intervenção por concepções "perfeccionistas", isto é, por julgamentos sobre o valor intrínseco de pessoas, atividades ou concepções do bem. Examina-se se essa concepção de "neutralidade antiperfeccionista" é compatível com a intervenção estatal voltada para a promoção da excelência artística de uma sociedade.

ABSTRACT

For some contemporary liberal theorists, John Rawls among them, a liberal-democratic state outght to abstain from "perfectionist"'conceptions – that is, judgements about the intrinsic value of persons, activities, and conceptions of the good – as a basis for its actions. This idea of u perfectionist neutrality" is examined regarding state actions aiming at the promotion of artistic excelence.

Em uma conferência proferida no Metropolitan Museum de New York em abril de 1984, Ronald Dworkin perguntou-se se um liberal pode subvencionar a arte (Dworkin 1985: 221-33). Suspeito que em tais circunstâncias seria difícil responder que não e o fato é que Dworkin não o fez. Mas seus argumentos sustentavam tal conclusão?

Por "Estado liberal" Dworkin entendia nesse contexto um Estado que se mantém "neutro em relação ao que se pode considerar como a questão do bem". E manter-se neutro com respeito a isso para ele queria dizer: manter-se insensível a todo juízo sobre "aquilo que dá valor à vida" (Dworkin 1978: 127). Em termos mais explícitos, Dworkin supunha que um Estado liberal é (entre outras coisas) um Estado neutro, e que um Estado neutro é aquele que permanece insensível a todo julgamento sobre o valor intrínseco das pessoas, das concepções do bem e de todo bem específico que possa ser objeto de nossas escolhas.1 1 No que se segue, empregarei as expressões "bens" ou "bens específicos" para referir-me indistintamente aos bens e práticas que podem se objeto de nossas escolhas. Como se sabe desde Aristóteles, a única diferença entre ambos é a de que os bens podem ser separados dos atos que é preciso executar para produzi-los, coisa que não é possível no caso das práticas.

Permita-me denominar "antiperfeccionismo" essa concepção de neutralidade. A pergunta que Dworkin se colocou no Metropolitan Museum não era a de se um Estado liberal, em um sentido vago, pode subvencionar a arte, mas sim a de se um Estado antiperfeccionista pode fazê-lo. Dworkin não foi, por certo, o primeiro a formular esse problema. De fato, trata-se de uma questão que se apresenta de modo recorrente entre os que defendem essa concepção de neutralidade: pode um Estado que se declara insensível a todo juízo de valor intervir nos mercados culturais para proteger certos bens e valores que correm o risco de tornarem-se inacessíveis? E ainda mais importante: pode fazê-lo mediante procedimentos antiperfeccionistas?

Neste artigo, vou me ocupar brevemente desse problema, mas antes de mais nada gostaria de eliminar uma poderosa fonte de mal-entendidos. Por isso começarei por explicitar o que o antiperfeccionismo não é.

O QUE O ANTIPERFECCIONISMO NÃO É

O antiperfeccionismo não requer que o Estado se abstenha de toda intervenção sobre os mercados culturais. A exigência é somente a de que o Estado se abstenha de um tipo específico de intervenção, a saber, aquela que se justifica mediante argumentos que apelam à noção de valor intrínseco. Os antiperfeccionistas que afirmam que o Estado deve abster-se de toda intervenção na vida cultural não o fazem porque sejam antiperfeccionistas, mas sim por além disso aderem a alguma outra doutrina filosófica (por exemplo, o libertarianismo) que defende essa restrição.

Esse esclarecimento é importante porque nos permite colocar em seu devido lugar algumas críticas que somente são dirigidas ao antiperfeccionismo. Essas críticas afirmam que o antiperfeccionismo destrói-se a si mesmo porque é incapaz de garantir as condições sociais e culturais que sustentam a política liberal (Raz 1986: 162; Taylor 1985: 206). Não digo que essas críticas necessariamente sejam desacertadas, mas sim afirmo que não são evidentes. O antiperfeccionismo não é em princípio incompatível com a proteção a essas condições sociais e culturais. A única coisa que ele exige é a exclusão de um tipo específico de justificação.

Mas, uma vez que excluímos os argumentos fundados em juízos de valor, podemos ainda assim encontrar outras razões que justifiquem a intervenção do Estado na vida cultural? Muitos antiperfeccionistas acreditam que sim e a resposta que dão parece-me prima facie plausível. Com efeito, para podermos exercer nossa liberdade de escolha temos necessidade de uma suficiente variedade de bens que possam ser escolhidos. Porém, a disponibilidade de um tal contexto de escolha levanta uma série de problemas que são completamente independentes do valor intrínseco que eventualmente se possa reconhecer em cada bem específico. Trata-se, nas palavras de John Rawls, dos "problemas de isolamento e de confiança", que podem levar a uma redução radical da lista de bens disponíveis em uma sociedade mesmo que esse resultado não seja desejado por nenhum de seus membros (Rawls 1971: 331).

Permita-me mencionar alguns exemplos bem conhecidos desse tipo de problema.2 2 Para uma bibliografia básica acerca desse tipo de dificuldade, ver Black 1992: 264-65. Primeiro, é relativamente fácil destruir certos bens culturais em pouco tempo, mas é muito mais difícil recuperá-los. Construir um museu que inclua coleções de pintura importantes é uma tarefa que pode exigir décadas e até mesmo séculos. Consolidar uma tradição de canto coral ou de pesquisa filosófica envolve o esforço de várias gerações. E o mesmo pode ser dito a propósito da ciência básica ou da preservação ambiental. Uma decisão tomada (ou que se deixou de tomar) em um dado momento pode ter conseqüências irreversíveis, ainda que esse não fosse o efeito visado pelos atores.

Segundo, os bens culturais estão sujeitos ao problema do "carona", a saber, à impossibilidade de excluir de seu consumo aqueles que não quiserem contribuir para o esforço de torná-los disponíveis. Pensemos, por exemplo, na restauração de edifícios públicos: esta é uma atividade que tem conseqüências positivas para a comunidade como um todo, ainda que somente uma parte de seus membros tenha aceitado contribuir para o esforço. Em tais condições muitos indivíduos terão razões para não pagar, o que terá como resultado, por ninguém almejado, a penúria (ou pelo menos uma produção subótima) desse tipo de bem.

Terceiro, inúmeros bens culturais têm custos tão elevados que só podem ser pagos ao longo de várias gerações. Isso apresenta um tipo especial de problema que os economistas denominam "preferência temporal": nenhum empresário terá razões para realizar esse investimento – já que os benefícios que se pode esperar ao longo de uma vida não serão suficientemente atrativos – ainda que haja muitos indivíduos interessados na disponibilidade desse tipo de bem. Tal é o caso dos grandes museus e bibliotecas.

Essas dificuldades nos fazem pensar que é conveniente colocar certos bens e práticas ao abrigo dos vaivéns do mercado e da vontade de mecenas privados.3 3 "Respeitar os mercados privados é uma importante forma de respeitar as concepções do bem divergentes, sendo isso, portanto, algo que apropriadamente se associa à liberdade individual. O respeito pelos mercados também é um instrumento da produtividade econômica, um importante bem individual e coletivo. Mas seria um equívoco sugerir, como alguns fazem, que os mercados são sempre mais confiáveis do que a política para exprimir a escolha individual; ou que as escolhas democráticas diferem das de consumo somente devido à confusão, na medida em que os eleitores não conseguem se dar conta de que afinal eles próprios deverão suportar os custos dos programas que desejam; ou que os padrões de votação meramente refletem a disposição de demandar determinados bens com a condição de que outras pessoas paguem a conta" (Sunstein 1993: 207-08). Os antiperfeccionistas podem perfeitamente aderir a essa conclusão, já que há uma semelhança estrutural entre essa atitude de prudência democrática e o paternalismo voluntariamente aceito: em vez de lamentar a perda de certos bens depois de ocorrida, podemos tomar medidas para evitá-la, do mesmo modo que aceitamos a obrigação de usar o cinto de segurança antecipando um eventual momento de debilidade de nossa atenção ou de nossa vontade.4 4 Sobre esse problema clássico, ver, entre outros, G. Dworkin 1979: 90; Kleinig 1984: 46; Sunstein 1986: 1141; Cohen 1986; Shapiro 1988: 564; Hardin 1993: 158.

Mas, se é verdade que os antiperfeccionistas podem em princípio aderir a essa conclusão, é também possível a eles colocá-la em prática mediante procedimentos antiperfeccionistas? Esta é uma pergunta importante por uma razão fácil de entender: mesmo sendo certo que muitos bens e práticas estão sujeitos aos problemas que acabo de mencionar, nem todos eles nos parecem igualmente merecedores de proteção. Muitas formas de arte kitsch desapareceram de nossas sociedades sem que isso provocasse maiores queixas. O mesmo pode ser dito de muitas tradições locais das quais ninguém parece sentir falta. Portanto, dizer que um bem ou uma prática correm o risco de desaparecer, se deixados ao livre jogo da oferta e da procura, não é um argumento suficiente para se afirmar que devem ser protegidos. é preciso, ademais, oferecer argumentos mostrando que, ainda que esse não seja o caso de muitos deles, pelo menos alguns dos bens em perigo merecem proteção. é este o problema crucial, e não o de justificar em termos gerais a intervenção do Estado nos mercados culturais, que os antiperfeccionistas enfrentam.

TRÊS RESPOSTAS ANTIPERFECCIONISTAS

A seguir tentarei mostrar que os antiperfeccionistas não contam com uma solução satisfatória para o problema que acabei de mencionar. Para isso discutirei três estratégias argumentativas que me parecem particularmente interessantes e bem fundamentadas. A primeira foi proposta por John Rawls e consiste em dizer que um Estado antiperfeccionista pode proteger aqueles bens cuja disponibilidade promova as condições de exercício das liberdades básicas ou os interesses dos mais desafortunados. A segunda foi elaborada por Will Kymlicka e sustenta que um Estado antiperfeccionista pode (e deve) proteger aqueles bens que são parte das circunstâncias que tornam o exercício da liberdade de escolha possível a todos os membros da sociedade. A terceira foi proposta por Dworkin em sua conferência no Metropolitan Museum e consiste em dizer que um Estado antiperfeccionista pode (e deve) proteger em geral a "diversidade estrutural" da cultura.

Meu propósito é mostrar que essas argumentações fracassam por razões que não são de circunstância mas sim relativas às restrições que foram aceitas como ponto de partida. O que produz o fracasso não é a imperícia dos filósofos que as formularam e sim a inadequação dos pressupostos antiperfeccionistas. Isso quer dizer que devemos dar por injustificável toda intervenção do Estado nos mercados culturais? O que temos que abandonar, ao invés disso, é o antiperfeccionismo. Ao final do artigo sustentarei que essa conclusão não nos obriga a abandonar nosso compromisso com a neutralidade do Estado.

RAWLS: AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA

Rawls está longe de facilitar as coisas para si mesmo quando considera o problema em tela. Sua resposta começa com uma afirmação de princípio que parece deixar pouco espaço para a intervenção do Estado nos mercados culturais. Em uma sociedade bem ordenada, "deve-se procurar alcançar as excelências humanas dentro dos limites do princípio da livre-associação. As pessoas se associam para fomentar seus interesses culturais e artísticos da mesma forma como constituem comunidades religiosas. Elas não se valem do aparato coercitivo do Estado para conquistar para si próprias uma liberdade maior, ou quinhões distributivos maiores, sob a alegação de que suas atividades têm mais valor intrínseco, Não há lugar para o perfeccionismo como um princípio político. Dessa forma, os recursos sociais necessários para manter as associações dedicadas ao fomento das artes, das ciências e da cultura devem em geral ser obtidos como uma justa recompensa por serviços prestados, ou sair do montante de contribuições voluntárias que os cidadãos queiram fazer, tudo isso dentro dos limites de um regime regulado pelos dois princípios de justiça" (Rawls 1971: 328-29).

Isso significa que Rawls exclui toda forma de intervenção pública nos mercados culturais? Não necessariamente. Ele reconhece que pode haver razões antiperfeccionistas que justifiquem esse tipo de iniciativa e admite que nesse caso o Estado não está obrigado a abster-se de intervir (Rawls 1971: 332). Mas, que razões são essas e que tipo de intervenção elas podem justificar? Rawls deu duas respostas a esta pergunta. A primeira tem pouco interesse para nossa discussão, de modo que me limitarei a descrevê-la brevemente. A segunda, em compensação, parece-me muito mais relevante.

A primeira solução de Rawls

A primeira resposta consiste em dizer que os cidadãos podem se valer da "competência coordenativa do Estado" (the exchange branch of government) para resolver "os problemas de isolamento e de confiança" (Rawls 1971: 331). Essa "competência coordenativa" é a agência que permite ao Estado desempenhar "as atividades não-relacionadas às exigências da justiça" (Rawls 1971: 283). Ela "opera segundo o princípio da eficiência e institui, de fato, um órgão específico de coordenação que providencia os bens e serviços públicos nos casos em que os mecanismos de mercado falham" (Rawls 1971: 283).

Quando a disponibilidade de um bem específico é ameaçada, digamos, pelo problema do "caronismo", os cidadãos podem concordar em protegê-lo obrigando-se mutuamente a pagar um imposto. Desse modo a incerteza com respeito à conduta dos demais será eliminada e cada um terá razões para pagar. Obviamente, a eficácia desse mecanismo supõe que os cidadãos decidam quais são os bens que são dignos desse tipo de proteção. Rawls admite que essa discussão pode exigir, para chegar a uma decisão, a constituição de certos juízos de valor, mas afirma que isso não é um problema porque uma característica central da competência coordenativa é a de que os custos de suas intervenções "são decididas de forma, se não totalmente, pelo menos aproximadamente unânime" (Rawls 1971: 282, 331).

Os liberais, certamente, não desconhecem esse argumento. Eles tradicionalmente o utilizaram para justificar a proteção daqueles bens ou instituições cuja utilidade é independente de quase que toda e qualquer escolha de uma concepção abrangente do bem. Porém, se é verdade que por essa via se pode justificar em termos antiperfeccionistas a intervenção estatal dirigida ao arruamento e à iluminação públicos, seria possível justificar do mesmo modo a intervenção em prol da ópera e dos museus de arte?

Acredito que não pela seguinte razão. A ópera e os museus de arte não são bens e instituições que tenham um valor instrumental da ótica de praticamente todas as concepções abrangentes do bem; eles estão, sim, entre os bens e instituições que somente contam como objeto de escolha na medida em que se perceba neles um valor intrínseco. O fato de que todos reconheçamos que eles estão sujeitos aos "problemas de isolamento e confiança" não quer dizer que todos igualmente aceitemos que merecem ser protegidos. Portanto, se é necessário que exista um quase-consenso sobre este último ponto para que a intervenção do Estado seja considerada legítima, então é muito provável que a ópera e os museus de arte desapareçam da lista de palavra "igualmente" depois de "todos" bens disponíveis na maior parte das sociedades liberais.

O critério "ninguém deve ser taxado sem seu consentimento" (Rawls 1971: 331) não constitui, assim, uma solução para o nosso problema. A intervenção do Estado nos mercados culturais não pode ser reduzida a um problema de coordenação de esforços pela simples razão de que não existe o quase-consenso exigido por esse critério. O que é preciso saber é se podemos contar com argumentos normativos que nos permitam justificar a intervenção do Estado em favor de pelo menos uma parte desses bens, mesmo que isso envolva "taxação sem consentimento".

A segunda solução de Rawls

A segunda solução proposta por Rawls consiste em dizer que o Estado pode aprovar impostos para subsidiar as universidades, a ópera ou os museus de arte, mas somente na medida em que se possa mostrar: (i) que tais atividades promovem "de forma adequada os interesses de longo prazo dos mais desafortunados"; ou (ii) que essas atividades promovem "direta ou indiretamente as condições sociais que protegem as liberdades fundamentais" (Rawls 1971: 332).

Esse critério implica uma distinção entre dois tipos de bens, práticas ou instituições que podem ser apoiados pelo Estado. De uma parte, temos aqueles bens, práticas ou instituições cuja proteção pode ser claramente justificada pelo princípio de diferença. Tal é o caso, por exemplo, da pesquisa científica. As subvenções a esse tipo de prática têm como resultado uma distribuição de recursos que favorece sistematicamente as pessoas ocupadas com atividades científicas, mas não é menos certo que essa distribuição desigual terá efeitos positivos sobre a saúde pública, o meio ambiente ou a segurança nacional. Um Estado antiperfeccionista terá então razões legítimas para apoiar esse tipo de prática, já que – pelo menos nos marcos de uma sociedade bem ordenada – se supõe que tais benefícios também alcançarão os mais desafortunados.

De outra parte temos aqueles bens, práticas ou instituições cujos benefícios não podem ser facilmente avaliados em termos do princípio de diferença. Rawls afirma que pelo menos uma subclasse desses bens pode receber subvenções, a saber, aqueles que podem favorecer as condições que tornam possível o exercício das liberdades fundamentais a todos os membros da sociedade. Este argumento também é bem conhecido dos liberais, que tradicionalmente o empregaram para legitimar o apoio do Estado a instituições como a polícia, os tribunais de justiça ou o exército (Van Parijs 1995: 55). A proteção das liberdades fundamentais é um fim legítimo de um Estado antiperfeccionista porque não exige nenhum compromisso com uma concepção abrangente do bem. Este é um objetivo que pode inclusive justificar a imposição de encargos fiscais, já que se trata de garantir a todos os membros da sociedade as condições mínimas que permitem o exercício da liberdade de escolha.

Esses dois critérios têm sobre o anterior a vantagem de serem autênticas respostas normativas para o problema que estamos discutindo. Entretanto, não creio que a ópera, nem os estudos de filosofia medieval, nem os museus de arte sejam capazes de satisfazê-los. Com efeito, sustentar que a longo prazo promoverão os interesses dos mais desafortunados parece ser simplesmente implausível (ou pelo menos inverificável), ainda que se dê à expressão "a longo prazo" um alcance que vá além da duração de uma vida individual.5 5 O que apresentaria um problema de justiça entre as gerações (Dworkin 1985:226). E tentar estabelecer um vínculo entre as condições de exercício das liberdades fundamentais e as subvenções à ópera parece uma estratégia problemática, sobretudo se não se esclarece o sentido da frase "condições de exercício das liberdades fundamentais". Nesse contexto, é muito pouco provável que se possa explicar por meios puramente antiperfeccionistas porque a ópera e a pintura merecem o apoio do Estado, ao passo que o hobby de colecionar carros de corrida deve ser visto como um gosto caro (Barry: 356).

Devemos concluir que as subvenções públicas à ópera, ao teatro e aos museus de arte são simplesmente injustificáveis aos olhos de Rawls? Tirar essa conclusão seria ir longe demais, já que ele próprio não parece disposto a aceitá-la. Pelo menos é o que se deduz do que disse recentemente a propósito da aplicação dessa solução.

A segunda solução revisitada

Rawls retornou recentemente ao problema que estamos examinando com o propósito de tornar a formulação de seus critérios normativos mais clara e precisa.6 6 A discussão a seguir se apóia nas idéias que Rawls defendeu em seus últimos cursos de Harvard, da forma como foram recolhidas em Rawls 1990 (um inédito que deu volta ao mundo). Em geral citar um inédito é uma prática ruim, mas nesse caso creio haver duas razões que me autorizam a fazê-lo. Em primeiro lugar, são idéias que Rawls defendeu publicamente em vários cursos e conferências. Em segundo lugar, comentar essa reformulação vai em seu próprio benefício, já que se trata de uma argumentação que melhora os resultados de suas tentativas anteriores. Ele continua pensando que as únicas práticas perfeccionistas que podem ser subvencionadas são aquelas que protegem os interesses dos mais desafortunados ou aquelas cujos resultados promovem as condições sociais que tornam possível o exercício das liberdades fundamentais, mas a nova formulação inclui três importantes modificações:

(i) Rawls afirma que os bens e atividades que satisfazem o primeiro critério (favorecer os interesses dos que se encontram na pior situação) podem receber "somas vultosas" da parte do Estado, ao passo que os que satisfazem o segundo (promover as condições sociais que favorecem o exercício das liberdades fundamentais) somente podem aspirar ter "algum apoio";

(ii) ele afirma explicitamente que os museus de arte, a ópera ou o teatro não se incluem entre os bens e as atividades que satisfazem o primeiro critério;

(iii) ele esclarece o sentido da expressão "promover as condições sociais que favorecem o exercício das liberdades fundamentais" dizendo que tal é o caso se a disponibilidade do bem em questão "é vital à cultura política pública, ao senso que a sociedade tem de si mesma e de sua história e à consciência de suas tradições políticas" (Rawls 1990:128).

Essa nova formulação fecha, portanto, uma porta a quem tenta justificar as subvenções à ópera ou aos museus de arte, ao afirmar claramente que nesses casos não é possível invocar os interesses dos mais desafortunados. Mas ao mesmo tempo alarga a outra porta, ao dar uma interpretação muito ampla à expressão "promover as condições sociais que favorecem o exercício das liberdades fundamentais". Já não é preciso mostrar que a disponibilidade desse tipo de bem garante diretamente o exercício das liberdades básicas. Basta mostrar que é uma condição à reprodução da cultura política que torna possível o overlapping consensus entre as diferentes concepções abrangentes do bem.

Encontramos finalmente um argumento antiperfeccionista capaz de justificar o apoio à ópera, à pesquisa sobre a filosofia da Idade Média e aos museus de arte? Infelizmente, acredito que não. A nova argumentação rawlsiana é talvez mais plausível prima facie, mas nem por isso é menos problemática do que a formulação original.

A reformulação do segundo critério rawlsiano funda-se, com efeito, em um uso ambíguo da expressão "cultura pública". Na maior parte do tempo Rawls a utiliza no sentido de cultura política pública, mas em outros casos a alusão é a algo mais amplo que inclui, por exemplo, "o senso que a sociedade tem de si própria e de sua história". Mas, se por "cultura pública" entende-se "cultura política pública", é necessário admitir que a ópera e os museus de arte mantêm vínculos muito mais incertos com sua reprodução. Se em razão de certas restrições de princípio um governo deve reduzir radicalmente seu apoio à atividade artística, nada autoriza a pensar que isso implicará necessariamente (e nem mesmo provavelmente) um debilitamento da consciência cívica dos cidadãos.7 7 O papel da imprensa de se eregir em um sustentáculo da cultura política, em compensação, é muito mais evidente a esse respeito, o que poderia justificar o reconhecimento de certos direitos específicos. Se isso é correto, então Rawls estaria em condições – contra a opinião de Raz – de justificar o status privilegiado da imprensa mediante argumentos puramente anti-perfeccionistas. Ver Raz 1986: 253. E se, em vez disso, a expressão "cultura pública" deve ser entendida em um sentido mais amplo, será preciso esclarecer o modo pelo qual essa cultura poderá contribuir para a solidez de um overlapping consensus estritamente político, o que coloca pelo menos dois tipos de problemas.

Em primeiro lugar está a dificuldade para chegar a um acordo acerca do modo pelo qual se estabelecem os laços entre cultura política e cultura em sentido amplo. Os membros de uma sociedade liberal chegarão rapidamente a um acordo, por exemplo, sobre a importância de compartilhar de uma linguagem e de um estilo de argumentação para que se possa construir um overlapping consensus. Mas é preciso também compartilhar de um sentimento de pertencer a uma mesma comunidade histórica ou cultural? Os membros de uma sociedade pluralista provavelmente não se colocarão de acordo sobre este ponto, nem terão necessidade de fazê-lo para construir um overlapping consensus. São as diferentes tradições interpretativas presentes na sociedade que devem submeter-se a um tal consenso, e não o inverso.8 8 Evidentemente, há sociedades liberais em que o compomente nacional e a história comum têm um grande peso. Também é verdade que a coexistência social pode favorecer certa convergência entre as interpretações acerca das tradições comuns. Mas estes são fatos empíricos que podem muito bem não ocorrer, ou ocorrer em sociedades que de liberal não têm nada.

Em segundo lugar, ainda que os membros de uma sociedade coincidam em perceber-se como membros de uma mesma nação ou como herdeiros de uma mesma cultura, isso não é suficiente para que se ponham de acordo sobre o rol específico de bens e práticas cuja disponibilidade permitirá reproduzir esse vínculo. Talvez por essa via se possa justificar a proteção a uma língua comum, porém dificilmente podemos justificar desse modo – salvo em certas sociedades muito específicas, como a romana ou a florentina – a proteção à pintura do Renascimento. Como, com efeito, chegar a esse resultado em um espaço público rawlsiano, que não admite nenhum juízo sobre o valor intrínseco dos bens e práticas a proteger e no qual somente nossa identidade pública ou institucional está envolvida (Rawls 1993:30ss.)?

Há, pois, boas razões para sermos céticos perante essa reformulação do segundo critério rawlsiano. Nossas diferenças de opinião a respeito do bem individual, do sentido da história comum e dos bens que são dignos de proteção são demasiado profundas para que possam ser resolvidas mediante argumentos puramente políticos. Nessas condições é provável que, ao serem consultados sobre os bens e práticas a proteger, os membros de uma sociedade bem ordenada limitem-se a manifestar suas preferências como consumidores. Isso torna muito mais provável que o Estado financie a construção de estádios de futebol do que fomente o desenvolvimento do canto coral. Tal resultado deverá ser interpretado como um custo inevitável ao bom funcionamento das instituições.

Há alguma forma de escapar dessa conclusão sem romper com o antiperfeccionismo? Rawls não parece estar em condições de dar uma resposta afirmativa a essa pergunta. Sua tentativa de desenvolver uma justificação estritamente política das práticas perfeccionistas o levou a ficar aprisionado entre sua adesão ao antiperfeccionismo e sua sensibilidade fortemente favorável ao desenvolvimento das ciências e das artes. Entretanto, isso não nos autoriza a concluir que não é possível conceber uma justificação antiperfeccionista desse tipo de prática. Simplesmente nos obriga a dirigir o olhar para outros filósofos que tentaram estratégias distintas.

KYMLICKA E AS CIRCUNSTÂNCIAS DE ESCOLHA

Recorrer à base cultural que torna o overlapping consensus possível não é suficiente para chegar a um acordo sobre os bens que merecem ser protegidos. Não é suficiente, pelo menos, nos marcos de uma discussão pública em que: (i) não é possível apelar a juízos sobre o valor intrínseco dos bens que devem ser protegidos; e (ii) não é possível utilizar argumentos que se refiram a nossa vida privada. Como encontrar uma saída para esse bloqueio?

Will Kymlicka tenta fazê-lo pela via de deixar em suspenso (ii), a saber, pela via de reintroduzir no debate público alguns argumentos que dizem respeito a nossas experiências como agentes privados. Isso não implica nenhuma ruptura com o antiperfeccionismo, já que Kymlicka segue afirmando a pertinência de (i). Falar de nossa experiência moral privada não nos obriga a fazer juízos sobre o valor intrínseco dos bens e práticas que preferimos. Simplesmente nos obriga a falar das circunstâncias que tornam nossas escolhas possíveis.

A escolha contextualizada

As diferenças entre os indivíduos muitas vezes são o resultado das escolhas de cada um. Posso ser mais pobre que meu vizinho, mesmo que no ponto de partida contássemos com dotações de recursos semelhantes, porque decidi utilizar os meus para jogar tênis ao passo que ele os utilizou para lançar-se na produção de maçãs. Nessas condições, se exijo o apoio do Estado para conservar meu modo de vida, estarei exigindo a subvenção de um gosto caro (Kymlicka 1989: 38). Mas há também as diferenças entre os indivíduos que não resultam de suas escolhas: "ninguém escolhe em que classe ou raça e com que talentos nascer, e por isso ninguém merece ficar em desvantagem devido a esses fatos" (Kymlicka 1989: 186). Compensar esse tipo de diferença pode implicar custos muito altos, mas ninguém pode ser considerado responsável por ter tais desvantagens.9 9 Sobre este problema ver também Barry 1991. Somos responsáveis por nossas escolhas mas não por nossas circunstâncias.

Um exemplo evidente de circunstâncias desvantajosas são as deficiências físicas ou mentais. é o fato mesmo de não se escolher essas deficiências que justifica as compensações. Mas, sustenta Kymlicka, as circunstâncias não se reduzem a esse tipo de limitação natural. Consideremos o caso de uma minoria cultural cujo estilo de vida exige que um extenso território seja excluído de todo e qualquer projeto de exploração ou de desenvolvimento (Kymlicka 1989:187). Como devemos considerar essa pretensão? A preservação desse território constitui parte de circunstâncias muito particulares ou deve, diversamente, ser considerada como um gosto caro?

Kymlicka afirma que a adesão ao antiperfeccionismo não impede que se justifique a legitimidade dessa demanda. é possível argumentar, com efeito, que o fato de se ter nascido no seio de uma minoria cultural não é resultado de uma escolha. Pode-se argumentar a seguir que o modo de vida dos que pertencem a essa minoria cultural é vulnerável às decisões da maioria, ao passo que a afirmação contrária não é verdadeira. Pode-se finalmente argumentar que, em conseqüência, os membros da minoria cultural se vêem obrigados a "despender seus recursos para garantir a filiação cultural que dá sentido às suas vidas, algo que vem de graça para os membros da maioria cultural". Tudo isso permite concluir que "as medidas especiais exigidas pelos povos indígenas, longe de subsidiarem ou de privilegiarem suas escolhas, prestam-se para corrigir uma vantagem que os não-indígenas têm antes que qualquer um deles faça suas escolhas" (Kymlicka 1989: 189).

Essa argumentação é perfeitamente antiperfeccionista. Não é dito, por exemplo, que a vida comunitária dos índios seja preferível à vida individualista dos membros da maioria moral. Tampouco é dito que os membros da minoria cultural são intrinsecamente melhores do que os da maioria (nem vice-versa). O que se sustenta é que, do ponto de vista da teoria da justiça que Kymlicka defende (uma teoria da justiça como igualdade de recursos), a situação inicial dos indígenas é injusta independentemente das escolhas que prefiram fazer.

A defesa dos direitos das minorias culturais desenvolvida por Kymlicka é entusiasmante, mas não é este meu tema aqui. O que me interessa é a própria noção de circunstâncias de escolha. Estas circunstâncias não são em si mesmas objeto de uma escolha, mas sim são as condições que fazem com que o ato de escolha tenha sentido para nós. Isso não é, evidentemente, uma necessidade exclusiva dos membros das minorias culturais: ela o é também dos membros das maiorias. Mais radicalmente, é o próprio exercício da liberdade de escolha que exige um contexto em que as diferentes opções tenham sentido aos olhos de quem deve escolher. A escolha, por exemplo, entre diferentes soluções arquitetônicas somente tem sentido se temos acesso a um patrimônio urbano capaz de (i) nos oferecer alternativas suficientemente variadas, e (ii) de nos oferecer critérios de avaliação e tradições de interpretação contra os quais contrastar qualquer proposição inovadora. Desse modo, se podemos mostrar que o funcionamento normal do mercado conduz a um empobrecimento do contexto cultural que torna possível o exercício da liberdade de escolha, então teremos encontrado um argumento antiperfeccionista para legitimar a intervenção do Estado. A conservação (e inclusive o enriquecimento) desse contexto cultural é um objetivo com respeito ao qual podemos nos colocar de acordo, ainda que discordemos a propósito de qualquer escolha específica (Kymlicka 1990: 217).

Essa argumentação parece mais adequada que a de Rawls porque proporciona uma resposta precisa à questão dos vínculos entre a cultura e a política. é uma resposta que está fundamentada em uma experiência que podemos ter em nossa vida qua cidadãos mas que sobretudo faz parte de nossa vida qua agentes morais privados: para fazer escolhas com sentido, necessitamos de opções com sentido, e, para dispor de opções com sentido, necessitamos de um contexto cultural suficientemente rico e variado para que cada indivíduo ou comunidade possa viver inteligentemente sua vida moral. Essa resposta tropeça, entretanto, em duas dificuldades.

Em primeiro lugar, antes de justificar a proteção a um bem específico, um Estado antiperfeccionista deve decidir o que vai considerar como uma circunstância de escolha. A sobrevivência de pequenas explorações agrícolas deve ser considerada parte das circunstâncias dos que nasceram em famílias de agricultores? A sobrevivência da pesca artesanal deve ser considerada como parte das circunstâncias dos que nasceram em uma família de pescadores? A resposta a esse tipo de pergunta é relativamente clara quando se trata de minorias culturais muito distantes dos modelos dominantes, mas torna-se cada vez menos evidente conforme consideramos situações mais correntes.

Em segundo lugar (supondo-se que o primeiro problema possa ser resolvido), ainda assim temos que decidir que bens e práticas vamos proteger para proteger as circunstâncias de escolha. Suponhamos que nos coloquemos de acordo sobre considerar a riqueza do patrimônio urbano como parte de nossas circunstâncias. Como decidir em uma discussão pública que edifícios, serão considerados parte importante desse patrimônio? Uma resposta inteligível a esta questão é necessária para por em andamento uma política de proteção ao patrimônio urbano. Mas qualquer resposta que dermos a ela implica uma discriminação entre bens diferentes. Como realizar tal discriminação sem que nos envolvamos em juízos de valor?

Kymlicka crê que pode escapar dessas dificuldades. Evidentemente temos necessidade de alguns juízos de valor, mas não há porque supor que funcionários do Estado devam fazê-los. Para proteger as circunstâncias de escolha, as autoridades públicas devem limitar-se a incentivar as práticas perfeccionistas no âmbito da sociedade. A oposição não se coloca tanto entre perfeccionismo e antiperfeccionismo, mas sim muito mais "entre perfeccionismo social e perfeccionismo estatal", a saber, entre uma busca do bem realizada no âmbito da sociedade e uma busca do bem que tem o Estado entre seus protagonistas principais (Kymlicka 1990: 219). Kymlicka, é claro, prefere a primeira opção. Mas, como pode o Estado fomentar o perfeccionismo social sem que as próprias autoridades públicas façam juízos de valor? Para responder a essa pergunta, Kymlicka recorre às idéias que Dworkin defendeu no Metropolitan Museum naquela tarde de primavera em 1984. A solidez da posição do primeiro depende por isso da solidez das idéias do próprio Dworkin.

DWORKIN E A ESTRUTURA CULTURAL

Como proteger as circunstâncias de escolha sem formular juízos de valor? Como identificar os bens e práticas que é preciso subvencionar para proteger essas circunstâncias? Dworkin pensa que é possível responder a primeira pergunta sem responder a segunda. O que deve ser protegido não é um rol mais ou menos preciso de bens e práticas, e sim a riqueza da estrutura cultural.

A estrutura cultural de uma sociedade, diz Dworkin, é constituída pelo conjunto das "possibilidades ou oportunidades de valor" que estão ao alcance das pessoas (Dworkin 1985: 229). Dworkin não ofereceu uma definição explícita desta expressão, mas o que disse é suficiente para precisar seu sentido com uma razoável certeza.

As "possibilidades ou oportunidades de valor" presentes em uma sociedade não dependem da quantidade de objetos de escolha que estão disponíveis e sim da variedade de critérios de escolha que podem ser aplicados. Se tenho em minha bolsa dez pedras parecidas, mas umas são brancas e outras pretas, então o único critério de escolha que posso empregar é o da cor. Do ponto de vista dos critérios de escolha, é indiferente que eu tenha dez ou cem pedras. Se além das dez pedras tenho ainda alguns pedaços de madeira (uns brancos e outros pretos), posso utilizar dois critérios distintos de escolha.

Quando a cultura de uma sociedade nos oferece uma multiplicidade de objetos de escolha que podem ser escolhidos em função de numerosos critérios, então essa cultura nos propicia uma variedade de "possibilidades ou oportunidades de valor". Nessa variedade consiste a riqueza da estrutura cultural (Dworkin 1985: 230). Consideremos mais uma vez o caso do patrimônio urbano: a riqueza deste patrimônio não depende fundamentalmente do número de edifícios que foram construídos. Ela depende muito mais de alguns fatores muito complexos tais como os materiais e recursos tecnológicos empregados, as relações entre estética e funcionalidade ou a relação com o meio ambiente. A riqueza da estrutura cultural da sociedade parece-se assim com o que costumamos denominar "a riqueza de uma língua". Uma língua é em geral mais rica que outra se oferece oportunidades de expressão mais variadas e complexas, o que não depende exclusivamente da sua riqueza lexicográfica mas também da sua capacidade de jogar com os sons, da possibilidade de distinguir entre diferentes níveis de discurso, da plasticidade de sua gramática, etc.

Dworkin afirma que as pessoas estão em uma situação melhor quando ceteris paribus sua cultura oferece mais possibilidades ou oportunidades de valor. Isso é assim porque essa riqueza favorece a busca do bem que cada um leva adiante (Dworkin 1985: 232). Esse argumento é suficiente, diz Dworkin, para justificar as intervenções do Estado dirigidas para a proteção (ou ampliação) da riqueza da estrutura cultural, pelo menos na medida em que isso se faça sem que juízos de valor sobre o que merece ser protegido sejam formulados.10 10 Para maior simplicidade sigo aqui a argumentação de Dworkin, ainda que ele não seja o único a defender esse ponto de vista. Ver, por exemplo, Sadurski 1990:128-30 e Steward 1983.

Admitamos que essa argumentação geral é correta. Como justificar a partir dela as subvenções às pesquisas sobre a filosofia da Idade Média, às bibliotecas públicas ou à ópera? A resposta de Dworkin consiste em dizer que um Estado antiperfeccionista não está obrigado a desenvolver tais justificações específicas. Somente deve aceitar um fato da sociologia da cultura, a saber, o de que a riqueza da estrutura cultural depende também da riqueza daquilo que se pode denominar "alta cultura", isto é, esse tipo de manifestação cultural muito sofisticada da qual a ópera ou a grande tradição literária são exemplos clássicos.

Voltemos ao caso da língua. A riqueza expressiva de uma língua depende, entre outras coisas, da riqueza de suas tradições artísticas. De uma parte, a linguagem corrente se beneficia de um conjunto de referências comuns que funcionam como acumulações de sentido.11 11 "O vocabulário corrente de nossa comunidade é saturado de referências específicas a Édipo, Hamlet, Carmen" (Dworkin 1985: 225). De outra parte, a arte permite valorizar e desenvolver certos recursos da linguagem ao dar relevo a seu valor estético.12 12 "Imagine que ninguém jamais tivesse dado valor à invenção narrativa, isto é, à estória. Nossa linguagem, então, não teria adquirido os recursos de que dispõe para distinguir entre ficção e mentira" (Dworkin 1985: 231). Tudo isso implica que, por caminhos mais ou menos obscuros, o que ocorre no âmbito da alta cultura tem efeitos benéficos sobre a vida cultural como um todo.13 13 "Pode-se resumir tudo disso em uma expressão familiar: transbordamento (spillover)" (Dworkin 1985: 225). Dworkin admite que a afirmação contrária também é correta (a cultura popular pode enriquecer a alta cultura), mas este não é um ponto importante para a presente disucussão. Uma sociedade com uma vida artística mais intensa será então uma sociedade com uma estrutura cultural mais rica, e isso beneficia (ainda que por vias difíceis de determinar) todos os membros da sociedade.

Não tenho necessidade de examinar aqui a teoria estética que sustenta essas afirmações. O que me interessa é a forma geral da argumentação, e esta consiste em dizer que: (i) uma estrutura cultural mais rica é preferível a uma estrutura cultural mais pobre, e isso independentemente das idéias do bem às quais cada indivíduo adere; (ii) a proteção da estrutura cultural pode por isso ser considerada como uma responsabilidade social; e (iii) isso autoriza o Estado antiperfeccionista a apoiar as atividades perfeccionistas que agregam riqueza à estrutura cultural, entre as quais estão as que identificamos com a alta cultura.

Dworkin afirma que essa argumentação basta para justificar certas formas de subvenção às atividades culturais, mesmo que não justifique outras práticas extremamente correntes. Permita-me dizer por que.

Se o Estado somente tem legitimidade para fomentar a riqueza da estrutura cultural, sua intervenção deve buscar garantir a diversidade e a novidade de forma geral, em lugar de apoiar certas manifestações de excelência mais ou menos específicas. Isso se alcança, segundo Dworkin, por meio do (i) incentivo às doações privadas às instituições culturais, independentemente de que destinação específica seja dada aos recursos, da (ii) reorientação dos fluxos de apoio privado de forma a estimular a diversidade e o caráter inovador da cultura e (iii) da contribuição ao financiamento daquelas atividades que não podem contar somente com o apoio privado para subsistir.14 14 "O apoio do Estado tem por objetivo proteger a estrutura e não fomentar algum conteúdo específico para essa estrutura em um dado momento. Assim, a estrela-guia do subsídio estatal deve ser este objetivo: ele deve estar voltado para a diversidade e para a qualidade inovadora da cultura como um todo e não para (o que as autoridades públicas vêem como) a excelência em manifestações específicas dessa cultura. O resto é estratégia e tática: máximas e normas de expediência que existem para serem violadas. Em geral, a ajuda deve ser concedida na forma de subsídios indiscriminados, tais como as isenções fiscais a instituições culturais, ao invés da concessão de subsídios específicos a determinadas instituições, a não ser quando fique patente que a ajuda privada funciona contra e não a favor da diversidade e da inovação. Quando discriminações têm que ser feitas, elas devem favorecer formas de arte que são muito dispendiosas para serem sustentadas por transações de mercado, puramente privadas" (Dworkin 1985: 233). Essas restrições relativas às modalidades de apoio consideradas legítimas são o reflexo de uma restrição com respeito ao argumentos que o Estado pode invocar para justificar sua intervenção: ele não pode proteger as atividades culturais alegando que são mais dignas de apoio que outras, mas pode fazê-lo na medida em que contribuam para maximizar a riqueza cultural da sociedade.

Essa resposta nos leva muito além do ponto que havíamos atingido anteriormente. De uma parte aceita-se de maneira explícita, como uma questão de princípio, que a proteção às práticas perfeccionistas não é somente um assunto dos indivíduos e associações privadas e sim um empreendimento social para o qual o Estado deve contribuir. A despeito de os meios empregados serem essencialmente indiretos, a intervenção pública não fica condenada, como para Rawls, a ocupar as margens de um campo ocupado fundamentalmente pela iniciativa privada. De outra parte, essa argumentação é capaz de identificar certos procedimentos de proteção que não implicam nenhum juízo sobre o valor intrínseco dos bens e práticas a serem apoiados. Esses procedimentos deixam em segundo plano a questão sempre problemática de determinar que circunstâncias de escolha ou que bens específicos devem ser protegidos. Finalmente encontramos uma justificação antiperfeccionista para as intervenções públicas nos mercados culturais? Sobre isso, infelizmente, não posso ser tão otimista quanto Dworkin.

Problemas práticos, insuficiência teórica

Permita-me formular em duas palavras minha objeção à solução proposta por Dworkin: ela não pode ser aplicada a menos que o Estado desenvolva uma espécie de "perfeccionismo oculto". Isso se torna evidente quando atentamos para uma série de problemas de aplicação que exprimem uma insuficiência teórica mais profunda.

Vejamos primeiro os problemas de aplicação. As contribuições voluntárias às atividades culturais podem contribuir enormemente para a proteção da estrutura cultural, especialmente naquelas sociedades em que essas práticas constituem parte das tradições cívicas. O estímulo público às contribuições privadas, portanto, é uma estratégia digna de consideração. Mas não há nenhuma sociedade em que as doações privadas aproximem-se do bastante. O funcionamento de um sistema universitário de escala nacional, a melhoria do ambiente urbano ou a compra sistemática de pinturas do Renascimento dificilmente são financiáveis graças ao apoio exclusivo de agentes privados. De outra parte, as flutuações desse tipo de apoio não podem garantir sempre a continuidade daquelas práticas que exigem uma grande estabilidade ao longo do tempo. Tal é o caso, por exemplo, de certas formas de pesquisa científica.

Portanto, ainda que o Estado possa deliberadamente estimular as doações privadas, de todo modo se verá obrigado a tomar decisões por si mesmo: que bens ou práticas estaria disposto a apoiar de maneira direta? Que bens e práticas deixará que desapareçam no caso de insuficiência do apoio privado? Dworkin propõe dois critérios gerais para resolver este problema: o Estado (a) deve concentrar-se nas atividades cujo custo está claramente fora do alcance da iniciativa privada e (b) deve atentar para a variedade e para a capacidade de inovação e não para o valor intrínseco dos bens a serem protegidos. Mas essa resposta me parece insuficiente.

Com efeito, os critérios de Dworkin não levam em conta que os cidadãos exigem não só que o Estado adquira o que é dispendioso, e de forma diversificada, mas também que adquira bem, a saber, que adquira aqueles bens cuja disponibilidade de fato aumenta a riqueza da estrutura cultural. Até certo ponto este problema pode ser resolvido apelando-se ao juízo técnico: os ocupantes de funções públicas podem consultar diferentes especialistas para identificar as coleções de pintura, os conjuntos arquitetônicos e as características da paisagem que merecem ser protegidos. Mas há muitas questões que não podem ser solucionadas dessa forma, a saber, aquelas que são usualmente denominadas "questões de política cultural". O que o Estado deve privilegiar para aumentar a riqueza da estrutura cultural: a consolidação da identidade ou o acesso ao cosmopolitismo? A tradição ou a novidade? O que é testado e sólido ou o que é marginal e débil? Estas perguntas não admitem respostas puramente técnicas. Elas só admitem respostas fundadas em apreciações muito complexas e controversas acerca das tradições culturais de cada sociedade. Isso explica por que perguntas como essas terão respostas muito diversas conforme sejam formuladas em Berlim, New York, São Paulo ou Tóquio.

Dizer que o Estado deve limitar-se a fomentar a diversidade não basta para escapar do problema. Como o próprio Dworkin afirmou, o que merece ser promovido não é qualquer tipo de diversidade e sim uma diversidade estrutural. E "diversidade estrutural" significa: um maior espectro de possibilidades ou oportunidades de valor. No entanto, pelo menos em um contexto de escassez de recursos, esse fim não é atingido simplesmente assegurando-se uma escolha maior entre bens e práticas, mas sim uma maior escolha entre bens e práticas portadores de valor cultural. E a diferença entre estas duas noções (de escolha) pode nos conduzir a situações difíceis de resolver. Imaginemos, por exemplo, um indivíduo que deixe ao morrer uma considerável quantidade de dinheiro com o objetivo de montar um museu que glorifique a história de sua própria empreitada. Este museu tem a capacidade de efetivamente aumentar a riqueza da estrutura cultural? Vamos aplicar isenções fiscais a essa doação ou vamos, em vez disso, considerá-la como um último investimento publicitário?

Tais dificuldades de aplicação colocam em evidência um importante problema teórico. As idéias de Dworkin seriam perfeitamente satisfatórias se vivêssemos em uma sociedade em que houvesse um consenso acerca do tipo de atividade que amplia a riqueza da estrutura cultural, ou então se vivêssemos em um mundo em que houvesse uma superabundancia de recursos para as atividades que demandam apoio. Porém, como nenhuma dessas conclusões corresponde aos fatos, temos necessidade de uma definição capaz de precisar o sentido da expressão: "bem ou prática que amplia a riqueza da estrutura cultural". Sem uma definição desse tipo o Estado terá inclusive dificuldades para incentivar os subsídios privados à atividade artística, já que – como mostra o exemplo do magnata que quer criar um museu à glória de sua própria empreitada – em muitos casos não terá como decidir até que ponto se está ou não diante de uma dessas iniciativas.

Tal definição não pode, repetindo, ser proporcionada por especialistas. Eles podem nos dizer se uma obra ou uma prática são um bom exemplar de uma tradição de excelência, mas não podem nos dizer se a proteção desta tradição agrega algo de importante à estrutura cultural de nossa sociedade. Esta última questão pode sempre ser objeto de um desacordo razoável entre os cidadãos. Alguns poderão apoiar as disciplinas mais diretamente ligadas à história e à identidade da sociedade. Outros preferirão estimular as manifestações artísticas marginais que proporcionam novas idéias e meios de expressão. Todavia outros sugerirão que é preciso apoiar aqueles bens e práticas que respondem a critérios de excelência mais universais. é evidente que tais discussões são inesgotáveis, mas o próprio fato de existirem confirma que a riqueza da estrutura cultural não é simplesmente uma questão de quantidade de opções. Pelo menos em um contexto de escassez de recursos, não se trata simplesmente de ampliar o espectro de bens culturais disponíveis na sociedade, mas sim de pronunciar-se sobre o tipo de diversidade que é preciso produzir. E responder essa pergunta implica necessariamente levar em conta o valor intrínseco do que se quer proteger.15 15 A mesma dificuldade se encontra, por exemplo, na argumentação de Wojciech Sadurski: "o apoio estatal à ópera e não ao futebol justifica-se não com base na preferência oficial pelo valor estético da ópera – ao contrário do futebol –, mas com base em (1) tomar a escolha entre a ópera e o futebol significativa (preservando-se a vitalidade da ópera) e em (2) torná-la significativa para todos em condições aproximadamente iguais (mantendo baixos os preços dos ingressos para a ópera)" (Sadurski 1990: 130). O argumento tem força, mas todo o problema consiste em saber porque favorecer a escolha entre a ópera e o futebol e não, por exemplo, entre a ópera e as corridas de automóvel.

A argumentação de Dworkin não parece, então, nos conduzir a um Estado antiperfeccionista e sim a um Estado que aceita que aceita pelo menos alguns juízos de valor: os que se referem às qualidades intrínsecas, não das pessoas ou de suas concepções do bem, e sim de bens e práticas específicas. Isso significa que um Estado não pode subvencionar a arte a menos que renuncie à neutralidade? Não necessariamente. Mas para evitar uma conclusão desse tipo, é preciso modificar a definição de neutralidade que é aceita pelos antiperfeccionistas.

CONCLUSÃO

No início deste artigo defini o antiperfeccionismo como a doutrina segundo a qual um Estado neutro deve manter-se insensível a todo juízo sobre o valor intrínseco das pessoas, das concepções do bem e dos bens e práticas específicos que podem ser objeto de nossas escolhas. Na seção anterior discuti três argumentações antiperfeccionistas que tentam justificar a intervenção do Estado sobre os mercados culturais e nos três casos cheguei a conclusão de que são insuficientes. é evidente que a discussão de três exemplos específicos não é em si mesma suficiente para tirar conclusões gerais sobre o antiperfeccionismo, mas o que quero enfatizar é que estas três tentativas fracassam pela mesma razão: a incapacidade de estabelecer um vínculo satisfatório entre os argumentos gerais que justificam a intervenção do Estado nos mercados culturais e as práticas concretas que procuram garantir a disponibilidade de um espectro suficientemente amplo de bens, práticas e instituições.

Acredito que só é possível estabelecer esse vínculo aceitando-se que o Estado seja sensível a certos juízos sobre o valor intrínseco dos bens e práticas que podem ser objeto de nossas escolhas. E ademais, acredito que essa conclusão não nos obriga a romper com o princípio de neutralidade. Em outras palavras, acredito que um Estado possa manter-se insensível aos juízos sobre o valor intrínseco das pessoas e das concepções do bem sem por isso tornar-se também insensível aos juízos sobre bens e práticas específicos. Permita-me denominar "perfeccionista modesta" essa concepção distinta da neutralidade. Este artigo não é o lugar para oferecer argumentos em favor de tal concepção, mas sim para sugerir sua pertinência: se queremos que o Estado liberal possa subvencionar a arte, e ao mesmo tempo manter a coerência no nível dos princípios, acredito que é justamente nessa direção que devemos avançar.

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  • *
    "Puede un anti-perfeccionista subvencionar ei arte?" Tradução de Álvaro de Vita.
  • 1
    No que se segue, empregarei as expressões "bens" ou "bens específicos" para referir-me indistintamente aos bens e práticas que podem se objeto de nossas escolhas. Como se sabe desde Aristóteles, a única diferença entre ambos é a de que os bens podem ser separados dos atos que é preciso executar para produzi-los, coisa que não é possível no caso das práticas.
  • 2
    Para uma bibliografia básica acerca desse tipo de dificuldade, ver Black 1992: 264-65.
  • 3
    "Respeitar os mercados privados é uma importante forma de respeitar as concepções do bem divergentes, sendo isso, portanto, algo que apropriadamente se associa à liberdade individual. O respeito pelos mercados também é um instrumento da produtividade econômica, um importante bem individual e coletivo. Mas seria um equívoco sugerir, como alguns fazem, que os mercados são sempre mais confiáveis do que a política para exprimir a escolha individual; ou que as escolhas democráticas diferem das de consumo somente devido à confusão, na medida em que os eleitores não conseguem se dar conta de que afinal eles próprios deverão suportar os custos dos programas que desejam; ou que os padrões de votação meramente refletem a disposição de demandar determinados bens com a condição de que outras pessoas paguem a conta" (Sunstein 1993: 207-08).
  • 4
    Sobre esse problema clássico, ver, entre outros, G. Dworkin 1979: 90; Kleinig 1984: 46; Sunstein 1986: 1141; Cohen 1986; Shapiro 1988: 564; Hardin 1993: 158.
  • 5
    O que apresentaria um problema de justiça entre as gerações (Dworkin 1985:226).
  • 6
    A discussão a seguir se apóia nas idéias que Rawls defendeu em seus últimos cursos de Harvard, da forma como foram recolhidas em Rawls 1990 (um inédito que deu volta ao mundo). Em geral citar um inédito é uma prática ruim, mas nesse caso creio haver duas razões que me autorizam a fazê-lo. Em primeiro lugar, são idéias que Rawls defendeu publicamente em vários cursos e conferências. Em segundo lugar, comentar essa reformulação vai em seu próprio benefício, já que se trata de uma argumentação que melhora os resultados de suas tentativas anteriores.
  • 7
    O papel da imprensa de se eregir em um sustentáculo da cultura política, em compensação, é muito mais evidente a esse respeito, o que poderia justificar o reconhecimento de certos direitos específicos. Se isso é correto, então Rawls estaria em condições – contra a opinião de Raz – de justificar o
    status privilegiado da imprensa mediante argumentos puramente anti-perfeccionistas. Ver Raz 1986: 253.
  • 8
    Evidentemente, há sociedades liberais em que o compomente nacional e a história comum têm um grande peso. Também é verdade que a coexistência social pode favorecer certa convergência entre as interpretações acerca das tradições comuns. Mas estes são fatos empíricos que podem muito bem não ocorrer, ou ocorrer em sociedades que de liberal não têm nada.
  • 9
    Sobre este problema ver também Barry 1991.
  • 10
    Para maior simplicidade sigo aqui a argumentação de Dworkin, ainda que ele não seja o único a defender esse ponto de vista. Ver, por exemplo, Sadurski 1990:128-30 e Steward 1983.
  • 11
    "O vocabulário corrente de nossa comunidade é saturado de referências específicas a Édipo, Hamlet, Carmen" (Dworkin 1985: 225).
  • 12
    "Imagine que ninguém jamais tivesse dado valor à invenção narrativa, isto é, à estória. Nossa linguagem, então, não teria adquirido os recursos de que dispõe para distinguir entre ficção e mentira" (Dworkin 1985: 231).
  • 13
    "Pode-se resumir tudo disso em uma expressão familiar: transbordamento
    (spillover)" (Dworkin 1985: 225). Dworkin admite que a afirmação contrária também é correta (a cultura popular pode enriquecer a alta cultura), mas este não é um ponto importante para a presente disucussão.
  • 14
    "O apoio do Estado tem por objetivo proteger a estrutura e não fomentar algum conteúdo específico para essa estrutura em um dado momento. Assim, a estrela-guia do subsídio estatal deve ser este objetivo: ele deve estar voltado para a diversidade e para a qualidade inovadora da cultura como um todo e não para (o que as autoridades públicas vêem como) a excelência em manifestações específicas dessa cultura. O resto é estratégia e tática: máximas e normas de expediência que existem para serem violadas. Em geral, a ajuda deve ser concedida na forma de subsídios indiscriminados, tais como as isenções fiscais a instituições culturais, ao invés da concessão de subsídios específicos a determinadas instituições, a não ser quando fique patente que a ajuda privada funciona contra e não a favor da diversidade e da inovação. Quando discriminações têm que ser feitas, elas devem favorecer formas de arte que são muito dispendiosas para serem sustentadas por transações de mercado, puramente privadas" (Dworkin 1985: 233).
  • 15
    A mesma dificuldade se encontra, por exemplo, na argumentação de Wojciech Sadurski: "o apoio estatal à ópera e não ao futebol justifica-se não com base na preferência oficial pelo valor estético da ópera – ao contrário do futebol –, mas com base em (1) tomar a escolha entre a ópera e o futebol significativa (preservando-se a vitalidade da ópera) e em (2) torná-la significativa para todos em condições aproximadamente iguais (mantendo baixos os preços dos ingressos para a ópera)" (Sadurski 1990: 130). O argumento tem força, mas todo o problema consiste em saber porque favorecer a escolha entre a ópera e o futebol e não, por exemplo, entre a ópera e as corridas de automóvel.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      1995
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