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Um projeto civilizador: revisitando Faoro

A civilizing project: Faoro revisited

Resumos

A obra de Raymundo Faoro é examinada da perspectiva da sua atualidade e no confronto com os seus críticos. Diversamente de Sérgio Buarque de Holanda, o projeto de Faoro é "civilizador": recusa as soluções que implicam a retomada das origens e enfrenta a alternativa entre civilização e barbárie na busca do "Outro".


Raymundo Faoro's interpretation of the formation of a ruling "bureaucratic status group" in Portugal and afterwards in Brazil is examined. Unlike his great contemporary Sérgio Buarque de Holanda, Faoro's conception is "civilizing", it is argued: it is more concerned with the search of the "Other" than with proposals that imply the approval of the origins.


DEMOCRACIA

Um projeto civilizador: revisitando Faoro

A civilizing project: Faoro revisited

Kátia M. Mendonça Barreto

Docente na Universidade Federal do Pará e prepara tese de doutorado em Ciência Política na USP

RESUMO

A obra de Raymundo Faoro é examinada da perspectiva da sua atualidade e no confronto com os seus críticos. Diversamente de Sérgio Buarque de Holanda, o projeto de Faoro é "civilizador": recusa as soluções que implicam a retomada das origens e enfrenta a alternativa entre civilização e barbárie na busca do "Outro".

ABSTRACT

Raymundo Faoro's interpretation of the formation of a ruling "bureaucratic status group" in Portugal and afterwards in Brazil is examined. Unlike his great contemporary Sérgio Buarque de Holanda, Faoro's conception is "civilizing", it is argued: it is more concerned with the search of the "Other" than with proposals that imply the approval of the origins.

A importância de um reencontro com as idéias de Raymundo Faoro nos dias de hoje reside principalmente na sua atualidade. A análise da estrutura política que Faoro empreende permanece válida para a compreensão dos problemas que hoje ocorrem no nível superestrutural e remetem à questão da aplicabilidade de parâmetros de longa duração à ciência política, ou mais especialmente às relações entre história e política. Para que este reencontro possa dar-se é necessário, por um lado, recuperar, via um diálogo com Weber, seu principal inspirador, as categorias por utilizadas por Faoro e, por outro lado, as críticas mais destacadas feitas à sua obra. Procurarei em seguida fazer uma leitura interna dos conceitos que Faoro utiliza e da sua aplicação à análise político-histórica do Brasil, tendo em vista alguns temas importantes presentes em suas análises, incluindo as suas observações referentes à questão do simbólico na política.

Em primeiro lugar lembremos que, juntamente com Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro introduz no Brasil uma análise político-sociológica de caráter marcadamente weberiano. Os fundamentos da obra de Faoro são lançadas em Os donos do poder, publicado em 1958. O livro, um clássico nas ciências sociais brasileiras, busca as origens do nosso sistema político em Portugal, com sua estrutura de dominação de caráter patrimonial, na qual abaixo do rei não se forma uma nobreza autônoma mas apenas delegados de sua ordem, súditos e subordinados dele dependentes quanto aos cargos, incluindo o serviço militar pago pelos cofres da Coroa. Logo, não corresponde o sistema político português ao tipo ideal weberiano de dominação patrimonial feudal, sendo antes uma dominação patrimonial estamental, porém não feudal em suas origens. Nela não há separação entre o privado e o público. O município é utilizado como arma contra a nobreza e fonte de recursos para o patrimônio do rei. A cidade toma o lugar do campo. Caracteriza ainda o Estado patrimonial português o capitalismo comercial orientado politicamente, isto é, de forma racional pelo Estado e não aventureiramente.

As bases metodológicas e teóricas da análise de Faoro remetem a Weber. Este originalmente constrói quatro subtipos de dominação tradicional. Os dois primeiros referem-se à dominação sem quadro administrativo: a gerontocracia e o patriarcalismo. Os dois segundos, com quadro administrativo, são o patrimonialismo puro, que é extensão do patriarcalismo, e o patrimonialismo estamental, do qual toma como exemplo o feudalismo. Enquanto o patriarcalismo se exerce sobre um território limitado sem a presença do quadro administrativo, o patrimonialismo abrange vastos territórios com a presença do quadro administrativo. Este, no tipo puro, é dependente do senhor que conduz a centralização administrativa. Já no patrimonialismo estamental, tendo o feudalismo como referência, o quadro administrativo baseia-se em honra social própria e conserva independência em relação ao senhor.

Ambos os tipos de patrimonialismo – nos quais as ações são orientadas pela crença na legitimidade de tradições sagradas e imemoriais – metodologicamente são estruturados como constructos típico-ideais. Dificilmente são encontráveis na realidade em caráter puro, sendo porém recursos heurísticos úteis para a compreensão da realidade social. é nestes termos que Faoro utilizou o conceito de dominação patrimonial-estamental-burocrática, como tipo ideal, e não como modelo. Seu caráter difere do tipo construído por Weber porque se opõe à presença do feudalismo, o qual, "realidade histórica e sistema social, não se constrói, desta sorte, mediante modelos arbitrários, esquematicamente simplificados. Ele há de se retratar num tipo ideal, capaz de fielmente reconstruir um momento histórico em traços simultâneos que, reunidos, formam o conceito da realidade(...). A velha tese de Alexandre Herculano, sustentada com paixão, está hoje consagrada, sem embargo das isoladas resistências: Portugal não conheceu o feudalismo. Não se vislumbra, por mais esforços que se façam para desfigurar a história, uma camada, entre rei e o vassalo, de senhores, dotados de autonomia política" (Faoro, 1979:18-19).

Sendo assim, Faoro constrói seu tipo com a presença de certas características, como a fusão do público com o privado na administração do Estado (desde Portugal e transplantado para o Brasil) e a administração do território não como propriedade do senhor mas do estamento, que de aristocrático se burocratiza, modernizando-se com o Estado. O patrimonialismo, assim, adquire "uma particularidade talvez ibérica, talvez ibero-americana. Fora da ordem feudal, os estamentos cresceram e se tornaram visíveis, sem a quebra – o que espantaria Max Weber – da ordem patrimonial" (Faoro, 1993: 26).

Decisivo aqui é que a estrutura patrimonial-estamental-burocrática se configura em um padrão de relações políticas que adquirem contorno de longa duração, perpetuando-se na história do Brasil até os dias atuais, onde "o patrimonialismo não se mede apenas pela extensão. Tem a profundidade coincidente com a história brasileira, nesta incluída sua origem ibérica. Ele vai desde a monarquia patrimonial, que encontra, na dinastia de Avis (séc.XIV) sua vocação marítima, até os planos financeiros das décadas de 80 e 90 deste século" (Faoro, 1993: 17).

Faoro retoma e aplica à sua análise a noção de estrutura de dominação. Esta, segundo Weber, "recebe seu caráter sociológico antes de tudo do modo característico geral em que se efetua a relação entre o senhor ou senhores e o aparato do mando e entre ambos e os dominados, assim como dos princípios específicos da organização, ou seja, da distribuição dos poderes de mando. Mas, ademais, o recebe de múltiplos fatores que permitem determinar os diversos princípios sociológicos que regem a classificação das formas de dominação" (Weber, 1984: 705). Ora, aquelas inércias temporais acima mencionadas irão configurar em Faoro relações de homologia com a noção de estrutura. Consubstanciam-se em verdadeiras algemas históricas, não só em termos de relações sociais como também em termos de mentalidades.

A análise de Faoro atribui à estrutura de dominação presente no caso ibérico três características fundamentais: o patrimonialismo não feudal, como visto acima; a racionalidade legal-burocrática, própria do Estado moderno; e, vinculada a esta, a presença de relações estamentais (na realidade não suficientemente explicadas por Faoro, e que deu origem a interpretações diversas, como veremos adiante). Para Weber relações estamentais se configurariam em relações pautadas em uma honra social específica, negativa ou positiva, que determinaria o destino dos homens nelas envolvidos. é ao falar do feudalismo que Weber se refere ao estamento como sendo um conjunto de possuidores por direito próprio dos meios materiais para a guerra (vide Weber, 1992). Entretanto, isso não implica que ele não reconheça o processo de estamentalização de categorias desprovidas de honra social própria, como é o caso da burocracia.

A aplicação do termo por Weber refere-se aos estamentos feudais que, diferentemente das camadas despossuídas de funcionários patrimoniais, ou dos burocratas do Estado moderno, que fundam sua honra nos serviços e não em sua existência (Weber, 1984: 846) tinham honra social por direito próprio (Weber, 1984: 1059, 1063). Entretanto, considerando-se o tipo ideal como construção heurística, não cabe supor que a burocracia não possa se estamentalizar. Ao contrário, pode-o, dependendo da posição de poder detida por ela na estrutura de dominação, ou, como destaca Weber. "A burocracia, assim como os funcionários puramente patrimoniais, baseiam-se na 'nivelação1 social no sentido de que, em seu tipo puro, somente exigem capacidades pessoais – a primeira, de caráter objetivo e especializado; os segundos, de caráter puramente pessoal – e fazem caso omisso de toda diferenciação estamental. Justamente representam o instrumento especifico para a dissolução destas diferenças – sem prejuízo da circunstância anteriormente aludida de que inclusive as camadas de funcionários burocráticos e patrimoniais se convertem novamente em portadores de uma determinada 'honra' social, com as conseqüencias a isso inerentes. Neste caso foi isso conseqüência de seu poderio" (Weber, 1984: 820, grifos meus).

Ora, enquanto no feudalismo o poder dos honoráveis era resultado de sua situação estamental, da honra social própria que detinham, há possibilidade de a burocracia fazer o caminho inverso, ou seja, se estamentalizar em decorrência do poder de que seja detentora. Logo, não cabe a crítica de Schwartzman de que o termo estamento, utilizado por Faoro, é inadequado em razão de ausência de honra social própria por parte da burocracia do Estado no Brasil (Schwartzman, 1982). Pois, a se tomarem as considerações de Weber, este fala mesmo da existência de um "estamento de funcionários", cujo desenvolvimento "fechado" pode ser obstado pela democracia (Weber, 1984: 739).

Entre as críticas relativas à utilização da noção de estamento na análise política do Brasil temos ainda a de José Murilo de Carvalho. Para ele, Faoro padece do defeito de ver o estamento sob ponto de vista estático, não especificando sua composição. Após analisar o Estado imperial, José Murilo conclui pela não-existência de um estamento mas sim de uma burocracia imperial, dividida horizontal e verticalmente mas com ingredientes patrimoniais. O topo da administração não chegava a 1% do pessoal e era formado por parcela importante da elite política. "é nessa cúpula que Faoro estava provavelmente pensando ao falar em estamento burocrático controlador do Estado. Não se trata, no entanto, de um estamento, mas de uma elite política formada em processo bastante elaborado de treinamento, à qual se chegava por vários caminhos, os principais sendo alguns setores da burocracia como a magistratura" (Carvalho, 1979: 14).

Não havia assim no período imperial, segundo José Murilo de Carvalho, a estrutura rígida de um estamento. Além disso os funcionários eram distribuídos entre os diferentes níveis de poder, o que diminuía o poder do governo central nas províncias e localidades. "A burocracia imperial não era estamental. Não estava em um Estado feudal, nem mercantilista. Mas também não era a máquina moderna de administrar" (...). Vimos que não há base empírica para falar em estamento burocrático. O corpo do funcionalismo se dividia vertical e horizontalmente, não possuía estilo próprio de vida, não tinha privilégios legais, não desenvolveu mecanismo de proteção de sua homogeneidade e autonomia. Não se estamentalizou a burocracia como um todo, não se estamentalizou a Igreja, não se estamentalizaram os militares: havia sim, setores mais ou menos burocratizados, mais ou menos coesos, como os magistrados, os militares, o clero, que disputavam entre si, e em alianças com setores externos, maior peso nas decisões políticas e maior parcela de benefícios do poder (...). Assim como não existia o estamento burocrático, também não existia o Estado separado e dominando a nação, como queriam os liberais da época (quando na oposição) e como repete Faoro" (Carvalho, 1979: 24-25).

Não é o Estado centralizado que era forte, mas o poder privado. Era este que, segundo José Murilo de Carvalho, impedia o desenvolvimento da cidadania. Para ele a ambigüidade de burocracia é que ela constituía a principal alternativa para os excluídos pelos latifúndios escravistas – mas que, paradoxalmente, não podiam com o sistema eliminar, porque era ele que os sustentava nos cargos públicos. O principal problema desta crítica é a sua concepção de burocracia e estamento como conceitos tópicos. Sob essa ótica a burocracia está distribuída em diferentes níveis do poder, não podendo ser estamental. Ora, o que Faoro descreve são relações antes que lugares de poder. Sua caracterização não está na quantidade de burocratas ou nas divisões internas à burocracia, mas sim em relações calcadas em um sentimento de pertencimento, mais ou menos consciente, por parte de um grupo. Em Weber uma situação estamental remete a uma estimativa específica positiva ou negativa de honraria partilhada por uma pluralidade de indivíduos, que pode constituir-se em comunidade mas também pode ser de natureza amorfa. Os estamentos políticos podem originar-se a partir de uma "apropriação de poderes de mando políticos". E é neste sentido que Faoro constrói seu tipo ideal. A dominação estamental-patrimonial-burocrática de que fala é construída como um recurso interpretativo da história política brasileira, não se configurando em modelo, ao contrário da que supõem os seus críticos.

O que parece estar subjacente ao raciocínio de Faoro na constituição da relação estamental é que não interessa tanto quem a constitui, até porque os atores vão sendo substituídos durante a história. Mas como se constitui. As práticas é que são relevantes. Práticas reveladoras de que, embora estejam distribuídos de modo amorfo, os membros do estamento (que hoje, se desejássemos definir seus atores, seria constituído por burocratas civis e militares, tecnocratas, parcelas do empresariado e políticos) se reconhecem entre si como detendo o poder capaz de influenciar ou manipular os mecanismos de decisão no Estado que favorecem a fusão dos interesses típicos da racionalidade material com os da racionalidade formal e que fazem o encontro do privado como público.

O estamento aristocrático se burocratiza, porém o seu poder e suas práticas não foram substantivamente alterados nestes séculos. Ele é burocrático menos por se compor de burocratas e mais por ter sua esfera de ação e influência situada em um Estado formalmente racional. Logo, o termo burocracia na expressão "estamento burocrático" não é um termo neutro, mas antes de caráter "político", dando conta daqueles que detêm o mecanismo de decisão nas relações que conformam o Estado. O estamento confundir-se-á com elite porque esta pressupõe a ação organizatória de um grupo e não uma teia de relações em que se configura o estamento, que ao contrário irá sustentar a elite e fornecer seus líderes e chefes.

Antes de tudo, o que Faoro revela com a noção de estamento é um tipo ideal de relações de poder no qual o caráter da honra do estamento, atribuída ou por mérito próprio, não é o mais importante, mas sim as relações pautadas na "influência" sobre as decisões, fontes e recursos do poder. Neste sentido é irrelevante se o mérito de seus membros é próprio ou atribuído, mas importa se é aceito como um componente, às vezes oculto, válido na relação. Assim o estamento surge com "a camada de penumbra que decide os destinos políticos, designa deputados e distribui empregos públicos. São as 'influências', os homens que mandam, que se entendem com os executores e dirigentes das decisões do Estado (Faoro, 1988: 16) (...) os estamentos assumem o papel de órgãos do Estado, as classes permanecem limitadas a funções restritas à sociedade (...). A camada semi-oculta faz deputados, dá a nota à sociedade e dispõe do poder político. Ligada, muitas vezes, a uma situação de classe, dela independe, se conceitualmente isolado, no seu prestígio e estilo de vida. é a sociedade dos titulares, mas sobretudo do mecanismo além dos titulares, onde eles nascem e crescem. (Faoro, 1988: 19) (...), cuja presença se sente, mas não se vê" (Faoro, 1988: 26 - grifos meus).

É interessante notar o quanto a concepção de Faoro acerca da estrutura de dominação presente no Brasil já estava em germe contida na noção de parasitismo social, desenvolvida por um pensador reiteradamente esquecido mas não menos importante como Manuel Bonfim, no início do século XX. O parasitismo social legado por Portugal, com muito mais vigor do que o foi por Castela para a América hispânica, faz do Estado algo "obsoleto e vexatório", cuja supremacia sobre a sociedade conduz a reformas fictícias, que segundo Bonfim "ficam na letra dos Decretos" mantida a mesma estrutura política da colônia (vide Bonfim, 1993). Disso resulta uma degeneração política "sempre tanto mais pronunciada quanto mais formal e definitivo o parasitismo que a produz" (Bonfim, 1929: 445; vide também Bonfim, 1930 e 1993).

Para Faoro, como para Bonfim, não será a descentralização – primazia de uma ordem privada e de uma cultura antiestatal oriunda de Portugal, como queria Nestor Duarte – mas justamente o inverso o que provocará a separação da nação em relação ao Estado. Na análise de Faoro os sujeitos políticos são por um lado o estamento e por outro lado, à sua sombra, o povo, que, súplice, inerte e ausente, aplaude ou fica bestializado. A centralização e primazia do Estado conduz à posição de espera por parte do povo, comportamento rompido em sua passividade nos momentos de entusiasmo carismático e emergência de salvadores políticos. Se para Nestor Duarte o feudalismo leva ao espírito antipolítico, privatista, privilegiando o poder da sociedade e portanto sua resistência diante do Estado, para Faoro, ao contrário, o estamento e o Estado é que são fortes. Não obstante tais divergências os dois autores irão, na verdade, por diferentes caminhos colocar à mostra o profundo divórcio existente entre a sociedade e o Estado no Brasil.

Nesse quadro as reformas, feitas sob o jugo do estamento, não alteraram a estrutura do poder, foram no máximo legais e não legítimas. Falando do regime pós-64 ele dirá: "Nem o povo está presente, nem a nação ocupa seu espaço, senão que, acima deles, se congrega uma classe política, armada e estamentalmente cimentada" (Faoro, 1981: 70 – grifos meus). Neste quadro em que a "legalidade tem o travo autocrático" a luta de classes é elidida por Faoro como elemento de análise: tanto o empresário quanto o operário estão submetidos ao jugo do Estado.

II

Elemento simbólico perpetuador da estrutura de dominação no pensamento de Faoro, o tema da conciliação será recorrente. "A conciliação política, desarmando os antagonismos, regularia e controlaria a mudança social, mantida a pirâmide – mantida a 'ordem', como se dizia – o Império escravocrata adia sua mais urgente reforma social, a do cativeiro, logo adiante, para modernizar-se" (Faoro, 1992: 10).

Independência, República e demais movimentos políticos são articulados de cima para baixo, produtos de uma transação, noção da qual se aproximará José Honório Rodrigues: concessões mínimas feitas aos dominados visando manter a ordem dominante (vide Rodrigues, 1982). Anos mais tarde, Michel Debrun tomaria a imagem de conciliação presente na política como um arquétipo político na história do Brasil, arquétipo de ação e de pensamento, elemento de formas que ressurgem periodicamente, tendo certa permanência na historia brasileira em razão da "permanência de uma certa estrutura de autoridade – ao mesmo tempo econômica, social e cultural – que vem de muito longe e que constantemente é recriada, exatamente pelos arquétipos hegemônicos. Estes são, ao mesmo tempo, permitidos por aquela estrutura e instrumentos de sua reprodução" (Debrun, 1983: 122). No entanto Debrun, em uma visão mais claramente "societária", irá discordar de Faoro quanto à sua percepção de uma sociedade civil potencialmente sadia esmagada por um Estado e por uma estrutura de poder rigidamente impostos. Antes, a autonomia do Estado em relação à sociedade civil "não foi tão grande". Foi a própria estrutura social que se expressou numa estrutura de autoridade bastante rígida; e esta, por sua vez, numa estrutura de poder caracterizada inicialmente pelo predomínio liberal e, depois, pelo rodízio hegemônico entre conciliação e ideologia de Estado (Debrun, 1983: 147). A conciliação seria assim, segundo Debrun, uma estratégia de cooptação dos dominados e não um compromisso entre iguais, sendo, contudo, uma expressão da sociedade. Para Faoro, ao contrário, ela é o instrumento de manutenção de uma férrea estrutura estatal.

III

A estrutura de dominação seria para Faoro verdadeiro interdito ao desenvolvimento de um pensamento político liberal. No absolutismo português, com a renovação pombalina, "a ideologia, orientada pelo poder público, subordina o pensamento político, impedindo que se liberte para freqüentar o espaço liberal" (Faoro, 1987: 28). Essa anemia orgânica do liberalismo, herdada de Portugal e que permanece durante o Império, torna-se fruto também da ordem estatal, subordinando o indivíduo mais do que a convivência com a escravidão (Faoro, 1987: 53). Nesse quadro as classes jamais conseguiriam expandir-se, "há subordinada ao estamento, não uma classe, mas uma situação de classe incapaz de se expandir" (Faoro, 1993: 26). Impedindo a dinâmica própria de uma sociedade de classes, o estamento tolhe, ao se projetar de cima para baixo, relações autônomas entre empresariado e Estado. Está sempre em uma posição tutelar em relação aos primeiros. O liberalismo daí oriundo seria, na origem, deturpado e, "em toda a parte uma ideologia da sociedade civil, seria aqui uma ideologia do Estado para a sociedade civil" (Faoro, 1992: 21).

A origem desse liberalismo degradado, única forma capaz de vingar sob a estrutura estamental, é o capitalismo politicamente orientado, subjugado pela racionalidade material antes que pela formal. O Estado, a ele cabe o papel de Príncipe, condottiero, empreendedor. Ninguém, antes de Faoro, tinha dado tanta ênfase à real dimensão do Estado na política brasileira. "Tire-se do capitalismo brasileiro o Estado e pouco sobrará: não sobrará sequer a empresa multinacional, tão protegida como a diretamente estatal e a indiretamente favorecida" (Faoro, 1993: 26). Tanto o escravismo, no período pré-republicano, quanto o capitalismo são suportes econômicos da relação patrimonialista do Estado. O que Faoro revela é a total dependência da economia em relação à política. O liberalismo neste caso não se associará à democracia, antes porém a formas autoritárias. Os arremedos de democracia quando surgem são como instrumentos para a dominação do estamento e este, mesmo nos momentos em que reflui, como durante a República Velha, teima em manter-se "vivo sob as cinzas".

Faoro marcadamente associa liberalismo a democracia, um como pré-requisito para o outro: só a democracia conseguirá realizar os ideais liberais e só o Estado liberal conseguirá implantar a democracia. Subjaz a isso a crítica à impossibilidade de o liberalismo político e de o liberalismo econômico vingarem em um quadro onde predomina a racionalidade material. Em seus escritos mais recentes Faoro – aparentemente defendendo um liberalismo de passagem para um liberal-socialismo – critica, por um lado, o fato de o liberalismo aqui presente não ter tido a capacidade de revelar uma classe industrial nacional, retirando-a da "névoa estamental na qual se enredou" (Faoro, 1987: 55) e, por outro lado, por não conseguir se impor como um pensamento político autônomo capaz de "levar a um estágio pós-liberal" (Faoro, 1987: 38).

IV

Liberalismo, democracia, padrões de comportamento racionais formais antes que materiais e economia não-orientada politicamente mostram-se em Faoro elementos condicionadores da modernidade. Fórmula interpretativa presente em vários pensadores brasileiros, a dualidade tradição-modernidade em Faoro adquire os contornos não do país velho convivendo com o novo em termos espaciais, como para Jacques Lambert, nem da combinação de diferente peças culturais na "contemporaneidade do não-coetâneo" de Paulo Rangel, mas sim de uma dialética entre o novo e o velho, onde a modernidade se submete à tradição. A inércia do passado é sem dúvida mais forte, recobrindo as tentativas do novo por se fazer permanente. Dialética de oposição antes que de antagonismo, nela a tradição vence a batalha.

Criticando Faoro com relação a essa questão, Antonio Paim (Paim, 1978) destaca que a análise presente em Os donos do poder despreza a "componente de modernização do patrimonialismo nacional" e submete o desenvolvimento do país à lei inexorável da dominação estamental-patrimonial-burocrática. Após essa obra entretanto Faoro, sem abandonar as idéias básicas contidas em Os donos do poder, estabelece relação mais explícita entre modernização e modernidade. A primeira é produto da estrutura patrimonial, mas não a segunda. Explica assim o caráter da modernização, e portanto da mudança, no Brasil, em passagem que, apesar de longa, pela sua importância cabe reproduzir.

"Diga-se, por enquanto, que a modernidade compromete, no seu processo, toda a sociedade, ampliando o raio de expansão de todas as classes, revitalizando e removendo seus papéis sociais, enquanto que a modernização, pelo seu toque voluntário, se não voluntarista, chega à sociedade por meio de um grupo condutor, que, privilegiando-se, privilegia os setores dominantes. Na modernização não se segue o trilho da 'lei natural', mas se procura moldar, sobre o país, pela ideologia ou pela coação, uma certa política de mudança. (...) Na modernidade, a elite, o estamento, a classe – dizemos para simplificar, as classes dirigentes – coordenam e organizam um movimento. Não o dirigem, conduzem ou promovem, como na modernização. A modernização, quer se chame de ocidentalização, europeização, industrialização, revolução passiva, via prussiana, revolução pelo alto, revolução de dentro – ela é uma só, com um vulto histórico, com muitas máscaras, tantas quantas as das diferentes situações históricas. Talvez se possa dizer, ainda, que a modernização, ao contrário da modernidade, cinde a ideologia da sociedade, inspirando-se mais na primeira do que na segunda". (Faoro, 1992:8-9 - grifos do autor).

Feita a partir de cima, sem envolvimento da sociedade como um todo, a modernização não irá alterar a estrutura social, nem os valores nela presentes. Neste quadro o estamento se altera em termos de atores, mas as relações estamentais, e é disso que Faoro trata, não são alteradas qualitativamente. A modernização, portanto "não altera a pirâmide social, nem os valores dominantes". A presença de um estamento tecnocrático – que, para Paim, se opõe ao estamento patrimonial por conceber uma modenização do país, afastada do patrimonialismo tradicional – no esquema teórico interpretativo de Faoro ocuparia o lugar dos novos atores em um arcabouço indestrutível.

O limite da modernidade chegada ao país e recoberta pela modernização, segundo Faoro, é que "mal e apenas permitia a autonomia das classes altas, ao contrário da modernização, que as aprisionava e as dirigia, mas tanto em uma como em outra, excluiriam do pacto social o povo" (Faoro, 1992: 15). A modernização, aqui, recobriria a modernidade, colocando o povo sob sua tutela, domesticado pelo clientelismo.

Faoro, por essa via, chega a conclusões semelhantes às de autores como Balandier e Baudrillard em sua análise da modernidade nos países do Terceiro Mundo. Para o segundo, esses países em vez de uma dialética da ruptura estabeleceriam uma "dinâmica do amálgama", absorvendo da modernidade os aspectos técnicos, de produção e de consumo, "e não o longo processo de racionalização econômica e política que teve lugar no Ocidente" (Baudrillard, s/d: 424). Balandier também rechaça o dualismo modernidade/tradição, detectando a convivência de ambas nessas sociedades. No mesmo sentido Faoro, calcado em Hegel, trabalha mostrando que a modernização implica progresso em vez de desenvolvimento, esta característica da modernidade. A modernização irá assim "até a modernidade possível", e entre as duas haveria uma oposição antes que uma contradição: "a oposição pode, uma vez que não chega à contradição, e daí, à superação, conciliar-se e acomodar-se num quadro sem afirmação e sem superação" (Faoro, 1992: 18). Subjacente a isso a idéia de que a via para a modernidade não é pelo alto, mas passa pela expansão da cidadania.

Na relação entre modernidade e modernização teríamos, determinada pela estrutura de dominação, a circularidade do tempo, um tempo precário segundo Faoro, no decorrer do qual as modernizações submergem com cada elite que chega ao poder (Faoro, 1992: 15). Não existiria, assim, processo histórico, mas antes haveria "uma sucessão temporal, com retornos de formas e tempos, que não passa de um condicionamento de outro tempo. Essa circunstância, se observada, retira a estranheza de, num salto, às vezes secular, encontrar-se o espectador com a reprise de uma espetáculos já visto e que deveria estar arquivado nos anais dos cronistas" (Faoro, 1993: 18). Assim as modernizações,* frutos dos caprichos das elites, subordinados ao estamento depois que concluídas, "parecem nunca ter existido. Elas se circunscrevem ao tempo circular, com uma memória condicionada ao tempo precário, que duram enquanto outra onda se sobrepõe à atual, desfazendo-se ambas. A história que daí resulta será uma crônica de déspotas, de governos, de elites, de castas, de estamentos, nunca a história que realiza, aperfeiçoa e desenvolve. A história, assim fossilizada, é um cemitério de projetos, de ilusões e de espectros" (Faoro, 1992: 19).

Tal prisão a estruturas invariantes parece fazer Faoro resvalar em alguns momentos para um certo determinismo laplaciano, no qual o futuro estaria contido no presente, onde a não-mudança subordina-se à estrutura de dominação, diante da qual tudo o mais permanece passivo. Nessa matriz é a estrutura que tem existência real, os demais atores são seus fantasmagóricos suportes.

V

Vários são os autores que, dentro do pensamento político brasileiro, denunciam o divórcio entre país real e país oficial e o isolamento do Estado em relação à nação. Porém, o distintivo em Faoro é que ao revelar o descompasso entre estrutura politico-administrativa, ideologias e realidade, o país real não surge como a fonte da vida e energia. Ao invés, mostra-se como um "mundo informe", uma base "passiva e calada" que levará a mudanças superficiais e nunca profundas. (Faoro, 1979: 654). Essa será uma das singularidades do processo histórico brasileiro, no qual o caráter conferido por Faoro ao outro ator além do estamento e das classes, o povo, será o de massa inerme, à espera de salvação. A imagem dual por ele apresentada é, de um lado "o Estado fonte de todos os milagres e pai de todas as desgraças" (Faoro, 1979:86) e "na base, o povo – camada que se convencionou chamar de povo, parcela alheia aos favores do mando–pede um rei. Nilo ou Getúlio Vargas, no reencontro às fontes jacobinas do tempo de Floriano" (Faoro, 1979:93).

Da tradição brota, assim, na análise de Faoro, a imagem do Pai do povo, porque "no soberano concentram-se todas as esperanças de pobres e ricos, porque o Estado reflete o pólo condutor da sociedade. O súdito quer a proteção, não participar da vontade coletiva, proteção aos desvalidos e aos produtores de riqueza, na ambigüidade essencial do tipo de domínio". (Faoro, 1979: 740).

Nesta breve incursão de Faoro no campo do simbolismo político, na prisão imposta por uma dominação onde o conteúdo estamental é decisivo emerge o condutor das massas. Não é o herói carismático, mas o senhor tradicional associado à imagem de Pai. A imagem do Estado patrimonial apresentada é a do Pai protetor, o Estado-Providência, "fonte de todos os milagres e pai de todas as desgraças", e será essa a imagem de Pedro II a Vargas. O mito se estrutura tendo como base o estamento: "o mito molda-se sobre o estamento". E este, como acontecerá com Vargas, na medida em que o mito tentar liderá-lo contra ele se levantará. Ainda aqui a estrutura é decisiva: ao mesmo tempo que forja, escraviza o simbólico.

Há relacionados a essa questão dois desdobramentos subjacentes ao pensamento de Faoro. Sob o ponto de vista da estrutura política, no Brasil o caráter da relação entre carisma e tradição está em que o primeiro não surge como um rompimento inovador com a segunda, antes foi, em muitos momentos, suporte para ela, na medida em que os líderes são absorvidos pelo estamento. Nessa ocasiões o intérprete carismático protege a tradição mediante a inspiração e os poderes extraordinários, como destacou neste contexto Bendix: "a racionalização burocrática ou legal assim como a liderança caraismática podem converter-se em forças revolucionárias, mas a burocracia, alei e o carisma podem ser baluartes da tradição" (Bendix, 1975:193).

Ainda com respeito ao fenômeno carismático, parece compatível com a análise de Faoro a articulação entre liberalismo (ou melhor, a sua ausência) e o populismo engastado nas lideranças carismáticas. Afinal não tivemos aqui, como ele destaca, a presença do liberalismo como cultura política consolidade, mas antes como ideologia. Sem os contrapesos da representação e salvaguardas dos direitos individuais o fenômeno tem maiores probabilidades de eclodir (vide a esse respeito Morse, 1988:88). A apatia e o imobilismo das massas, nesse quadro, são rompidas pelo fenômeno carismático. Esta interpretação de Faoro permite-nos sugerir a hipótese de que no Brasil movimentos religiosos ou políticos transformadores do mundo mediante uma ética amplamente mobilizadora não existiram: o carisma – em nível nacional e não localizado como os movimentos messiânicos diversos – foi construído de cima, vindo catalisar emoções e esperanças.

Do ponto de vista de construção de um imaginário político é de uma cultura eminentemente católica contraposta à protestante que Faoro nos fala. Na primeira, a convicção de que a graça é institucionalizada e passível de ser concedida pelas autoridades, antes que obtida por uma ética interna ao indivíduo; a certeza de que a salvação é um bem a ser partilhado por todos, desde que obedeçam a certos rituais em vez de se submenterem a uma reforma interna (vide a esse respeito a brilhante análise de Morse, 1988) dará conformação ao mito do Estado protetor. Ora, isso é absolutamente decisivo para caracterizar o caráter que assume a construção das imagens de salvação política no Brasil. Entretanto, apesar de fornecer parcialmente elementos para se desvendar os caminhos de constituição desse imaginário do poder no Brasil, os limites de Faoro estão no fato de que restringe a imagem do Salvedor à do Pai. Na realidade, a questão não apresenta tal unilateralidade. Se Vargas, por exemplo, encarnou tal legendário, houve na história mais recente do país mudanças na forma que o mito assume. De Juscelino Kubitscheck a Fernando Collor, diferentes são as imagens do poder que se imbricam na constituição do imaginário político. Afinal o mito político irá comportar diferentes imagens, tanto na esfera da representações coletivas quanto naquelas utilizadas como instrumentos de legitimação do poder. Tivemos Pai, sem dúvida, mas também tivemos Aventureiros, Profetas e Guardiões Armados, todos cumprindo o papel destinado ao Salvador. Civis ou militares, fardados ou à paisana, sempre o salvacionismo é que se apresenta sob os diferentes discursos e imagens. Se por um lado os aspectos simbólicos podem ser vinculados às estruturas políticas, conforme demonstra Faoro, por outro lado não é possível limitá-los a uma única imagem, pois as relações entre a política e o simbólicos não são de modo algum uniformes nem lineares.

Entretanto, a sua perspectiva de que "o mito é enquadrado estamentalmente", como foi o caso de Vargas, é importante para a interpretação da emergência dos mitos políticos no Brasil: construídos a partir de cima, parecem servir antes de tudo à estrutura dominante, o que não quer dizer que não tenham uma base, uma comunidade de imaginação propícia para recebê-los. Parecem forjar-se no calor das necessidades dos dominantes e em sistemas políticos onde o líder se vincula diretamente às massas acima dos partidos, se necessário. Imagens que respondem a uma realidade estrutural que decisivamente Faoro teve o mérito de aprofundar, a um padrão de relações onde "as duas partes, a sociedade e o estamento, desconhecidas e opostas, convivendo no mesmo país, navegam para portos antípodas: uma espera o taumaturgo, que quando a demagogia o encarna em algum político, arranca de seus partidários mesmo o que não têm; a outra, permanece e dura, no trapézio de seu equilíbrio estável" (Faoro, 1979: 740-741). Não obstante isso, o sentido inverso merece ser questionado, e a dúvida que aqui se coloca é de se o simbolismo pode, como o é em Faoro, ser reduzido a mero produto de estruturas, e a elas cruelmente submetido como expressão de um eterno sofrimento prometéico.

VI

Faoro mantém sua atualidade mas, de um modo genérico, a perspectiva que orientou suas idéias parece não ter escapado ao destino de autores como Oliveira Vianna, Tavares Bastos, Alberto Torres e outros, qual seja o de pensar o Brasil com os olhos no Ocidente desenvolvido. Também nele encontra-se o eterno problema da alteridade que marca o pensamento latino-americano. Em nosso caso, então, muito mais grave, na medida em que o Brasil vira-se de costas para a América Latina. Aliás, já em 1929 Manoel Bonfim apontava para o duplo caráter da expressão América Latina, tanto designação geográfica "do grupo de nações formadas por ibéricos, num regime colonial de subordinação e dependência imediata, e que logo se degradou em parasitismo, despótico, anti-progressista", quanto epíteto utilizado por aqueles que "pretendem que somos, por isso mesmo, povos inferiores, condenados à agitação facciosa de um barbarismo estéril e desinteressante para o resto do mundo" (Bonfim, 1929:13).

Sua percepção da nossa alteridade o leva, de maneira diferente de Sérgio Buarque de Holanda, a uma crítica das singularidades do Brasil, que impediriam o seu desenvolvimento, antes que vê-las como capazes de contribuir para tal, como o fez Buarque. Comparando ambos, já que se tratam de duas grandes expressões na introdução de Weber no Brasil, vemos que Sérgio Buarque de Holanda procura na sociedade, com suas características culturais de caráter mestiço e sem desprezar o seu passado, a saída para o Brasil. Ora, o que temos são duas perspectivas distintas que podem ser equiparadas ao que Leopoldo Zea, para definir o pensamento político produzido na América Latina, denominou de projetos "assuntivo" e "civilizador". No primeiro caso as mudanças desejadas ou sugeridas passam pelo reencontro das origens, assumindo-as. é o que encontraremos em Sérgio Buarque. Faoro, ao contrário, na acidez de suas críticas, poderia ser associado ao "projeto civilizador". Neste a mudança tem por objeto de desejo o outro. Sob esta perspectiva, diante da Outra América e da Europa nossa opção é entre civilização ou barbárie. O projeto civilizador, ao mesmo tempo em que possui um traço fortemente iluminista em sua glorificação da Razão, também implica desnaturalização, renúncia às heranças e identidade culturais da América Latina (vide Zea, 1990). Negação, eu diria completando Zea, de nossa situação de órfãos de História ou, como na poesia de Walcott, que, caribenho, também não terá raízes:

"A estrada abandonada passa por enormes caldeirões enferrujados, tachas de ferver o açúcar, e pilares enegrecidos. São essas as únicas ruínas deixadas aqui pela história, se história é o que são." (Walcott, 1994:45)

Obedecendo ao projeto civilizador, de Weber Faoro recolhe o método e a percepção da longa duração na história, de certa imobilidade das estrutras de dominação. Porém, fica a dúvida se não pôde – em razão da real imutabilidade do quadro histórico descrito – ou não quis, captar, como Weber o fez, a importância de certos acontecimento não-tencionados e mesmo acidentais. Os sentidos efetivamente conferidos pelos atores das relações estamentais às suas ações são descritos como tendo gerado a realidade hoje presente. De qualquer modo, o brilho do pensamento de Faoro deixa entrever na imobilidade da história uma imagem nossa, de brasileiros e de ibero-americanos, a do homem que, embalado pela vaidade e pela culpa, se vê eternamente petrificado frente à Górgona Medusa. O que, sem dúvida, não nos é confortável..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2010
  • Data do Fascículo
    1995
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