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Realidades possíveis na sociedade global

Possible realities in the global society

Resumos

Em contraste com a multiplicação de estudos de caso empíricos e considerando a distinção entre o dado e o possível, o autor defende a busca de explicações para o atrativo que determinados paradigmas de políticas de desenvolvimento exercem em períodos históricos específicos. Isto é feito mediante uma combinação de enfoques teóricos econômicos, sociológicos e políticos, sem medo da "grande teoria". Aplica-se de maneira sistemática a idéia de coerência no exame dos ajustes entre conceitos políticos, estratégias de desenvolvimento e orientações econômicas relativamente à ordem monetária mundial e ao sistema hegemônico. A globalização é pensada no seu alcance e no seu limite, dados ambos pelos recursos finitos do planeta Terra.


Against the mere multiplication of empirical case studies and considering the distintion between the actual and the possible the author defends the use of a mix of economic, sociological and political theoretical approaches in order to explain the attraction exercised by some development policy paradigms, without fear of "grand theory". The idea of coerence between political concepts, development strategies and economic orientations is systematically applied in the study of their adjustments regarding the international monetary order and the hegemonic system. Globalization is conceived in its scope and in its limit, both given by the finite resources of the planet Earth


AS TRANSIÇÕES E A MODERNIDADE

Realidades possíveis na sociedade global* * "Von möglichen Wirkglichkeiten in der globalen Gesellschaft oder: die Attraktivität von Entwiklungsmodellen". Trata-se da versão abreviada de um capítulo der Elmar Altvater & Birgit Mahnkopf, Die Grenzen der Globalisierung, Müster, Westfalisches Dampfboot, 1996, atualmente em segunda edição. Foram omitidas as referências bibliográficas do original e duas figuras com as respectivas explicações. Tradução de Gabriel Cohn.

Possible realities in the global society

Elmar Altvater

Pesquisador e docente na Universidade Livre de Berlim

RESUMO

Em contraste com a multiplicação de estudos de caso empíricos e considerando a distinção entre o dado e o possível, o autor defende a busca de explicações para o atrativo que determinados paradigmas de políticas de desenvolvimento exercem em períodos históricos específicos. Isto é feito mediante uma combinação de enfoques teóricos econômicos, sociológicos e políticos, sem medo da "grande teoria". Aplica-se de maneira sistemática a idéia de coerência no exame dos ajustes entre conceitos políticos, estratégias de desenvolvimento e orientações econômicas relativamente à ordem monetária mundial e ao sistema hegemônico. A globalização é pensada no seu alcance e no seu limite, dados ambos pelos recursos finitos do planeta Terra.

ABSTRACT

Against the mere multiplication of empirical case studies and considering the distintion between the actual and the possible the author defends the use of a mix of economic, sociological and political theoretical approaches in order to explain the attraction exercised by some development policy paradigms, without fear of "grand theory". The idea of coerence between political concepts, development strategies and economic orientations is systematically applied in the study of their adjustments regarding the international monetary order and the hegemonic system. Globalization is conceived in its scope and in its limit, both given by the finite resources of the planet Earth.

Se a globalização de fato desaguasse na globalidade não haveria por que gastar esforço com modelos possíveis de desenvolvimento. Só haveria um: o modelo do mercado livre, baseado na propriedade privada, nos interesses individuais e nas regras sociais da equalização mediante o engenhoso (e penetrante, segundo Harold Innis) efeito do sistema de preços. Quando muito ocorreriam diferenças de desenvolvimento em partes diferentes do mesmo espaço, "culturas capitalistas", modalidades da "forma única" do modo capitalista de produção. Mas essas diferenças poderiam ser compensadas e conduzidas ao ponto máximo correspondente, num processo de modernização corretiva. O modelo capitalista de mercado é propagado urbi et orbi: "de te fabula narratur". A modernização e a industrialização corretiva seriam mera questão de tempo, não do modelo ou do espaço com sua configuração específica.

Salta aos olhos, entretanto, que o mercado mundial impõe condições que não podem ser satisfeitas em todos os lugares. Pode então ocorrer que os produtos do trabalho, e com isso o próprio trabalho, sejam desvalorizados. A tentativa de escapar disso mediante a concorrência global evoca a advertência de Ralph Dahrendorf sobre a "quadratura do círculo". Falhando a tentativa, ocorre o perigo do esvaziamento de conquistas sociais e políticas. Além disso, já se demonstrou que a suposição da globalização do modelo de desenvolvimento dominante repousa sobre o pressuposto irrealista de que se possam conciliar a dinâmica globalizante ilimitada do mercado com os limites ecológicos do planeta Terra. Além disso, essa suposição baseia-se na noção ingênua de que a dinâmica do desenvolvimento capitalista poderia estender-se pelo globo sem crises cíclicas e estruturais. No decurso de crises rompe-se sempre de novo o modelo unitário, dividindo-se em fragmentos e frações (como veremos adiante, na segunda parte do texto). Apesar dessas tendências à fragmentação e ao fracionamento o modelo exibe características unitárias e visivelmente convincentes, que compõem o seu atrativo. É disto que trataremos na primeira parte.

Vale a pena o esforço teórico para compreender as condições sociais, econômicas, políticas e culturais nas quais se pode produzir a "riqueza das nações" no final do século 20. Elas são responsáveis pela circunstância de que, apesar ou por causa mesmo da globalização, modelos de desenvolvimento apresentam graus variáveis de êxito e portanto de atrativo. Já aqui é controverso o que se deve entender por riqueza: maiores quantidades de matérias e energias, mais dinheiro, mais bem-estar? É também de perguntar-se se não seria mais razoável basear-se, na tradição de Friedrich List, nas "forças produtivas", ou na "formação de capital humano" ou nas redes sociais que são tão importantes para a "capacidade competitiva sistêmica". Mas será promissora essa abordagem tendo em vista as interdependências globais, quando o desenvolvimento de determinados países ou regiões depende do desenvolvimento (e talvez também do não-desenvolvimento) de outras regiões e países? É possível que o desenvolvimento econômico e social siga uma trilha única em condições de provimento de fatores altamente diferenciada? A tentativa de fazer isso não acarretará quedas dificilmente evitáveis no desenvolvimento?

Essas questões vêm a lume porque, em primeiro lugar, apesar da globalização e da dinâmica do mercado mundial os processos de desenvolvimento sociais e econômicos se dão de modo separado no espaço e assincônico no tempo. Isto por certo não significa que os processos de desenvolvimento não sejam interdependentes, que não exerçam influências entre si nem possam até bloquear-se reciprocamente. Em segundo lugar, é evidente que desenvolvimentos em diferentes regiões do mundo são diferentes quanto ao êxito, medido por indicadores de riqueza tradicionais. Essas diferenças influenciaram as classificações das instituições internacionais: dos países menos desenvolvidos, passando pelos países em desenvolvimento e as "dynamic Asian economies" até os países da OECD, que na interpretação corrente exibem o "perfil" (na expressão de Dieter Senghaas) e apresentam as normas almejadas pelas sociedades com "perfil-ainda-não-OECD". Pressupõe-se aqui implicitamente que o desenvolvimento como industrialização e pós-industrialização é a meta por todo o globo e também que isso é possível, que há uma via de desenvolvimento, na qual nações e regiões chegaram a graus diferentes de avanço. Mas também se tira a conclusão de que as diferenças de desenvolvimento são tão grandes que fica vedado falar de uma unidade do sistema mundial ou cogitar de um Terceiro Mundo unitário. Sendo assim, cabe também abrir mão da pretensão a uma "grande teoria" explicativa, como sustenta o mesmo autor: estudos de caso ajustam-se mais à condição fragmentada do globo do que as tentativas de construir teoricamente uma unidade já sem existência real.

Ainda que só para poder formular as perguntas corretas necessita-se de um entendimento teórico prévio, que só pode ser obtido da generalização de muitas observações. Nesse contexto os estudos de caso são importantes, mas não pelo caso que estudam e sim pelas conclusões generalizadoras e de avanço naquilo que Peter Evans denomina "ecletic messy center"; a teoria é criada (ou emerge) numa "mescla eclética". Portanto, quem pretende explicar o mundo como neoclássico, keynesiano, marxista ou institucionalista ficará mal enquanto não forem combinados ingredientes de enfoques diferentes. Uma análise das relações monetárias internacionais sem recorrer a Marx e Keynes dificilmente traria muita coisa hoje. Um exame de processos de mercado sem categorias neoclássicas e institucionalistas provavelmente seria um malogro. A função e a dinâmica do mercado não podem ser expostas sem incluir-se o dinheiro na análise. Posto que hoje, à diferença do período do padrão-ouro, o dinheiro retira seu valor da regulação institucional da sua oferta, a análise econômica não pode prescindir do exame da regulação política. No mínimo quando a análise econômica trata do mercado de trabalho e da organização do processo produtivo entram em cena relações industriais, relações sociais portanto. Cumpre portanto combinar de modo fecundo no "ecletic messy center" teorias econômicas, sociológicas e políticas, para obter explicações plausíveis para o curso específico em cada caso de processos de desenvolvimento no planeta Terra e elaborar as condições para o atrativo de modelos de desenvolvimento. A primeira condição para isso é uma certa coerência prévia de relações econômicas, sociais e políticas. Nisso devem ser consideradas certas interdependências a que estão sujeitos os processos de desenvolvimento no espaço global.

1. PARADIGMAS DO DESENVOLVIMENTO

Como já indicam as referências a crises, o desenvolvimento é tudo menos um processo linear. Também as rupturas numa trajetória, incluindo as que provocam uma "mudança de rumo". As economias em transformação da Europa central e do leste estão passando agora por essa experiência em grande escala. Os padrões técnicos, a organização social do trabalho, as qualificações, as formas sociais e políticas da regulação, as normas da vida cotidiana foram todas elas desvalorizadas com a transição para a economia de mercado - vale dizer, com a integração no mercado mundial. Nos primeiros anos da transição, com as "terapias de choque" e as estratégias de "big bang", isto foi saudado na expectativa de que com essa desvalorização se poderia reduzir os padrões "antigos", gerados ainda no socialismo real, a "tabula rasa", sobre a qual se implantaria muito rapidamente a nova economia de mercado. Enquanto a desvalorização das condições sociais trazidas do velho sistema anterior se traduz apenas em bancarrotas de empresas, queda de movimento comercial, retrocessos na produção, desemprego, é possível talvez esperar uma melhora mediante a adoção do padrão, após um amargo período de adaptação. Mas quando isso envolve a destruição de identidades e a desvalorização de qualificações, não há como superar os problemas da transformação em lapso de tempo previsível. A estrutura de qualificações e tudo o a ela se liga institucionalmente (educação, família, sistema de formação, pesquisa, hábitos etc) é como uma roda volante de reação lenta, que com sua inércia confere continuidade e estabilidade ao processo de desenvolvimento também por sobre as rupturas de crise. É extremamente difícil repô-la em movimento quando no "big bang" ela foi detida à força. Demonstra-se aqui na prática que o desenvolvimento requer estruturas coerentes de áreas parciais da sociedade e relações entre os subsistemas que possibilitem conexões com efeitos sinérgicos. A transição do plano ao mercado demanda portanto, para além das mudanças econômicas, também adaptações em outros domínios da sociedade. Estas são tanto mais difíceis quanto os tempos da transformação diferem no mais alto grau entre uma área da sociedade e outra. Isso gera atritos que dificultam a formação de um modelo de desenvolvimento coerente e, em oposição ao empenho por acelerar os processos adaptativos, chegam a retardá-los.

De modo menos dramático do que o curso dos processos de transformação de uma economia planificada em uma economia de mercado na Europa central e do leste, embora também acompanhadas sempre por crises profundas, foram e são as transições de um modelo de desenvolvimento em outro no mundo capitalista. De fato não existem somente diferentes "culturas capitalistas" mas também diferentes paradigmas de desenvolvimento. Pode-se falar de um paradigma de política de desenvolvimento quando os conceitos políticos, a estratégia de desenvolvimento e a orientação econômica ajustam-se de modo coerente à ordem monetária mundial e ao sistema hegemônico. O Quadro 1 abaixo esquematiza paradigmas do desenvolvimento com referência aos conceitos teóricos e políticos ou idéias diretrizes, à organização da ordem mundial monetária e hegemônica, e às estratégias de política econômica e desenvolvimento.


0 esquema só pode ser lido linha por linha. As colunas indicam etapas de desenvolvimento histórico. Estas exprimem uma seqüência histórica que não caberia interpretar como desenvolvimento superior, como "progresso". Mesmo sob o ponto de vista da eficiência não há como dizer qual paradigma seria mais eficiente do que um outro. Os "ingredientes" de paradigmas do desenvolvimento nada têm a ver, portanto, com um menu, que se possa compor conforme o gosto. Por isso é tão absurdo, por exemplo, criticar os conceitos dos anos 50 ou 60 a partir dos conceitos dos anos 901 1 Nas condições sistêmicas de entorno do intervencionismo estatal a estratégia de industrialização por substituição de importações constituía um modelo racional e eficiente. Mas é igualmente evidente que uma estratégia desse tipo está fadada ao fracasso na transição para o "pós-fordismo" na geoeconomia caracterizada pela dominação dos mercados financeiros e pela regionalização. .

As experiências negativas com políticas protecionistas e autárquicas após o colapso do comércio mundial e das relações monetárias internacionais nos anos 30 constituíram no segundo após-guerra o pano de fundo para a renovação da doutrina do livre comércio, que até hoje domina os debates sobre a configuração da ordem econômica mundial: sustenta-se que a obediência ao princípio do livre comércio, conforme ficou definida com a generalização da cláusula da "nação mais favorecida" na primeira rodada do acordo do GATT, é mais benéfico ao crescimento da "riqueza das nações" do que a retirada das economias nacionais para trás dos muros protecionistas dos estados nacionais. Este mesmo princípio valia para o sistema monetário internacional gerado em 1944 em Bretton Woods, para impedir que uma corrida predatória de desvalorização monetária como nos anos 30 sequer pudesse ser aventada como opção política. É verdade que, como já ocorrera no século 19, era mais fácil para os países mais desenvolvidos e portanto mais fortes economicamente a adesão ao princípio do livre comércio do que os países menos desenvolvidos e portanto economicamente mais fracos. Na concorrência fica mais fácil para os que estão à frente a defesa da sua vantagem do que para os retardatários a busca bem sucedida de uma industrialização recuperadora. Explica-se assim porque os países em desenvolvimento na ONU tenham criado ao lado do GATT a United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD) como organização internacional do comércio e que tenham reivindicado nos anos 70 uma "nova ordem econômica internacional", na qual o mercado mundial deveria ser regulado com o auxilio de políticas, visando orientar os mecanismos econômicos no rumo de um desenvolvimento mais equilibrado no sistema global (mediante acordos sobre matérias-primas, ajuda reforçada ao desenvolvimento e transferência tecnológica).

1.1. Atrativo

Vários paradigmas competiram e competem entre si no mundo, mas no final só um pode ser dominante, e neste caso em todos os níveis, na realidade econômica e social assim como na política e na cultura e na ideologia, teoria e estratégia predominante. Também o regime temporal e as dimensões regionais não podem coexistir sem mais quando uma via específica de desenvolvimento é tomada, mas devem estar "afinadas", ter compatibilidade e correspondência. Marx exprimiu essa condição com o conceito de "determinação formal" de todas as categorias da reprodução social. Uma vez estabelecidos como adequados e portanto superiores se comparados com outros, os paradigmas de desenvolvimento desenvolvem uma intensa "força propagandística" na sociedade mundial. Um modelo é atraente para outras que, eventualmente apesar de consideráveis esforços, não lograram realizá-lo.

Nenhuma sociedade, nem os indivíduos, podem escapar a essa atração - até o momento em que as potencialidades de uma outra "realidade possível" são novamente descobertas, "despertadas"2 2 Essa formulação liga-se a observação de Robert Musil: "Se existe senso de realidade deve também existir senso de possibilidade". A esse respeito ele escreve, em O homem sem qualidades: "Uma experiência possível, ou uma verdade possível, não são iguais a experiência real e verdade real menos o valor da realidade; ao contrário, ao menos do ponto de vista de seus seguidores, têm em si algo divino, um fogo, um vôo, um desejo de construção e um utopismo consciente, que não teme a realidade mas a trata como missão e invenção ... É a realidade que desperta as possibilidades, e nada mais errado do que negar isso." Naturalmente isso também deve ser entendido como contraposição à fala sobre o "fim da história". (NT: Nesta citação foi adotada a tradução brasileira por Lya Luft e Carlos Abbenseth de Robert Musil O homem sem qualidades, Rio de Janeiro, Nova Fonteira, 1989, p. 14-15, substituindo-se a expressão "traz" por "desperta"). , plenas de vida e são convertidas na realidade real. Esses são os tempos das rupturas sociais, da superação da "path dependence", da conversão para outra via de desenvolvimento, tempos de reformas profundas, de "transformações" ou mesmo de revoluções. Mas, após uma fase de passagem reformista, transformista ou revolucionária o desenvolvimento segue, num caminho diferente do anterior3 3 Sobre isso novamente Musil: "Mesmo assim, no total ou na média serão sempre as mesmas possibilidades repetidas, até chegar uma pessoa para a qual uma coisa real não signifique mais do que o imaginado. Será ela quem dará destino e destinação às novas possibilidades, que há de despertar". (NT: Mesma fonte, substituindo-se "provocar" por "despertar" no final). .

O critério de atração de um "modelo de desenvolvimento" é dado, por um lado, pelas possibilidades de satisfação de necessidades humanas. Claro que os modelos de sociedades materialmente "mais ricas" são mais atraentes do que os modelos sob cujo regime os homem tornam-se menos ricos, permanecem pobres ou mesmo empobrecem. Que se possa falar de "modelos" nesse contexto é uma conseqüência da globalização. Foi preciso que as pessoas em toda a parte, nas regiões mais afastadas do globo, passassem a tomar conhecimento do estilo de vida dos ricos para que o modelo Hollywood, ou então essa mistura de Dallas, Denver e Main Street se tornasse atraente no mundo todo. A globalização até parece abrir a possibilidade da escolha de modelos de desenvolvimento. É significativo que na ciência social comparativa se fale de "regime shopping", isto é, da "compra" de componentes de modelos que parecem bem sucedidos para combiná-los num modelo híbrido. A idéia do fazer sem limites orienta não só a pesquisa científica (por exemplo na tecnologia genética) mas também a consultoria política nas ciências sociais. Esquece-se, neste ponto, que o desenvolvimento não segue quaisquer vias, é "path dependent". Não é um experimento ahistórico num laboratório, no qual se faça a montagem dos módulos adequados de "capacidade competitiva sistêmica", mas está vinculado a uma via de desenvolvimento (trajetória) específica. As vias são bem sucedidas em graus diferentes. Isso tem graves conseqüências para a concorrência global. Pois quando sociedades (estados nacionais competitivos) concorrem umas contra as outras em trajetórias diferentes pode ocorrer que a despeito dos maiores esforços uma sociedade fique para trás e se torne pouco atraente. O atrativo nunca é absoluto mas sempre comparativo. Por isso o atrativo claramente não é democratizavel. A sociedade do automóvel perderia imediatamente sua atração se todos os 6 bilhões de habitantes da Terra pudessem estar tão motorizados quanto atualmente os europeus ou norte-americanos. Aqueles participantes na competição global que já se encontram à frente em termos de desenvolvimento manterão sua vantagem no mínimo porque o atrativo só pode ser mantido sob a condição da exclusividade. Quando todos têm o nível de formação dos academicamente qualificados dos países industriais hoje a formação perde seu valor posicionai. Fica posta a questão de se nessas condições a formação de capital humano ainda poderia fomentar o desenvolvimento. Naturalmente este não é um argumento contra o aperfeiçoamento da formação e da educação, mas contra as expectativas simplistas de êxitos de desenvolvimento numa trajetória atraente.

Entretanto, o critério do atrativo não é unívoco no mundo real. Pois o modelo de economia de mercado, sociedade pluralista e democracia dominante nos anos 90 (após a "vitória na guerra fria", na "nova ordem mundial" e no "fim da história") em primeiro lugar não é bem sucedido em todos os pontos do mundo - de certo modo ele concorre consigo próprio - e, em segundo lugar, é duvidosa a sua durabilidade quando se considera a relação social com a natureza. A euforia após a "vitória na guerra fria" só temporariamente obscureceu que também o modelo "ocidental" encontra-se em muitas regiões do mundo numa crise manifesta, que dispensa para ser percebida a pesquisa com os métodos da ciência. Não se trata só do atrativo, portanto, mas também da coerência, sem a qual não há durabilidade para o atrativo.

1.2. Espaço e tempo da coerência

Só faz sentido falar de coerência quando em primeiro lugar se delimitam os limites do espaço funcional e físico e a expansão dos períodos de tempo. A coerência só pode ser consistentemente definida em coordenadas de espaço e tempo. Pois é possível obtê-la em tempo muito curto mediante fortíssimo dispêndio de energia como no raio laser - para, em tempo histórico curto, quando as energias foram gastas e não podem ser renovadas, dissolver-se em relações desordenadas, caóticas. A curta (no horizonte da história da humanidade) "bonança" (Georgescu-Roegen) fordista, do modelo social "ocidental" tão extraordinariamente atraente até os anos 80 pode muito bem conduzir a uma situação em que tenham sido consumidas aquelas energias e substâncias, e convertidas em resíduos indesejáveis e perigosos que não só hoje mas também num futuro distante representem obstáculos pesados se não instransponíveis à obtenção da coerência. Essa possibilidade aparece não só nos relatórios do Clube de Roma e do Instituto de Wuppertal (1996) e de muitas outras comissões de peritos como também não poucos romances e filmes de ficção científica, nos quais o mundo do futuro há muito não é mais representada como tecno-civilização de afortunados cidadãos da Terra mas sim como um caótico tecno- depósito de lixo.

O que se disse do tempo pode também ser sustentado de modo semelhante com referência a espaços. Entendemos por espaços físicos territórios geográficos com uma característica específica (relevo, clima , ecosistema, tipo de habitantes etc.) e com limites fixados politicamente e portanto suscetíveis -por meios pacíficos ou bélicos - de deslocamento. Não existe espaço ilimitado; mesmo na completa ausência de fronteiras políticas o globo finito ainda seria um limite. Espaços funcionais são definidos pelas "lógicas de ação ou de função" predominantes no seu interior. Nesses termos o espaço funcional econômico é definido por um cálculo econômico de rentabilidade mediado por dinheiro, que também dirige a incorporação de trabalho; o sistema político, por um cálculo de poder, pelo qual se assegura a dominação no interior do território e sobre ele; o espaço social á a arena da articulação de interesses, da regulação de conflitos e da busca pela comunicação de um consenso sempre precário. O "espaço ambiente" é dominado por restrições ecológicas, que podem ser formuladas como enunciados termodinâmicos: o aumento de entropia (Ae) num sistema não fechado corresponde à produção de entropia (Pe) menos a saída (Se) de entropia e a entrada de energia (E) no, ou do, ambiente natural. Em termos esquemáticos: Ae = Pe - Se + E.

De modo geral podemos esquematizar as restrições externas e as condições de coerência para o o subsistema econômico, o subsistema político e a natureza, como ambiente, nos seguintes termos. O subsistema econômico (que envolve produção, consumo, distribuição, intercâmbio) está submetido à restrição do preço do dinheiro, e tem como condições da coerência a estabilidade monetária, o nível das tecnologias produtivas e as condições institucionais da regulação. O subsistema político está sujeito à restrição básica da legitimação institucional e da formação de consenso, e tem como condições da coerência os procedimentos relativos ao output do processo político e o equilíbrio entre demandas e recursos. Quanto à natureza, sua restrição é dada pelas leis da termodinâmica e sua condição de coerência é dada pela persistência dos fluxos de energia e matérias. Cada subsistema opera conforme um código específico. No caso do subsistema econômico, trata-se dinheiro e preços e de trabalho/não trabalho. No caso do subsistema político, o código é governar/não governar. Já a natureza opera com o código de entradas e saídas de energia.

Muito depende, portanto, de como e onde são traçados os limites do sistema em relação ao seu ambiente. Essa tarefa pode ser assumida pelo observador. No entanto, o traçado de limites das unidades sociais é muito mais importante no quadro da sociedade mundial. A fixação de fronteiras é uma tarefa eminentemente política. Pressupõe-se portanto um sistema de instituições políticas quando se fala de limites da manifestação do poder. Mas nisso um papel importante está reservado para a expansão do espaço físico, territorial, além do espaço funcional. Pois os espaços funcionais não são "fechados" mas sim abertos, eles se interpenetram e se influenciam mutuamente. O trabalho (ou seja, o tempo e a organização do trabalho, a remuneração, a participação etc.) é controlado pelo cálculo da rentabilidade e por "restrições orçamentarias duras". Os juros gerados no mercados financeiros mundiais requerem uma taxa mínima de lucro que depende da distribuição entre lucros e salários e (positivamente) da produtividade do trabalho e (negativamente) da intensidade do capital.

O trabalho porém é sempre transformação da natureza. Substâncias são separadas e/ou combinadas, com o correspondente dispêndio de energia. Quanto mais alta a produtividade em conseqüência do uso de combustíveis fósseis tanto mais e mais rápido o "meio ambiente" modifica-se e, com isso, é degradado - este é o problema ecológico. Mas essas modificações afetam o trabalho de separação e combinação. Portanto o trabalho jamais pode ser pensado independentemente das condições naturais - uma objeção que foi levantada por Immler em 1984 contra a "teoria do trabalho" clássica. O conjunto dos espaços funcionais que se entrecruzam pode ser designado como "relação social com a natureza", que está aberta para configurações sócio-culturais e está sujeita à regulação política.

Relações coerentes entre os espaços funcionais freqüentemente podem ser melhor obtidas em espaços físicos territorialmente pequenos do que em grandes unidades geográficas. Pois quanto menor o espaço físico, tanto maior ceteris paribus o "mundo exterior" para o qual elementos "perturbadores", que afetam a ordem e a coerência de espaços funcionais podem ser "exportados" impunemente. A exclusão de pessoas indesejáveis em nome de um chauvinismo do bem estar, portanto a recusa à integração social porque um consenso social (uma ordem social) seria prejudicado é uma tentativa da geração de consenso no espaço social mediante a "externalização" das pessoas perturbadoras da ordem. A externalização de resíduos, águas e ar servidos do espaço físico, ou seja, a utilização de um espaço ambiente que se estende muito além da natureza do território em questão é exportação de entropia, é uma tentativa de evitar-se aquilo que Zellenthin denominou "castigo da natureza"4 4 Gerda Zellenthin refere-se a uma formulação de A. Brecht de 1961, na qual se pergunta sobre os "limites" que a natureza impõe "à ação e à produção humanas" para propor a questão sobre "quais as possibilidades a natureza deixa abertas para o homem, quais são as conseqüências naturais de ações humanas, incluindo-se o castigo da natureza...". Para evitar-se a penalização pela natureza espera-se a obediência a "imperativos energéticos". . Entre outras razões o Japão só é apresentado como "caso modelo" ecológico porque as "indústrias sujas" (por exemplo, a produção de alumínio) puderam ser deslocadas para outras regiões do globo. Na Europa isso não é melhor - como se pode ver pelo encaminhamento ilegal de resíduos tóxicos da Alemanha para a Polônia, a Ucrânia, a Romênia etc. - e tampouco nos EUA, onde a suja indústria maquiladora é estabelecida além da fronteira com o México. A consideração pelo "espaço ambiente" (na terminologia adotada, entre outros, pelo Instituto Wuppertal) quando se trata de definir a unidade territorial da coerência, poderia obrigar a alcançar-se a coerência com os dispositivos que o meio ambiente põe à disposição, e ao mesmo tempo mantê-la conforme à sustentabilidade ecológica.

Enquanto o espaço ambiente e também o espaço social e político têm uma dimensão territorial, e na realidade nem pode ser pensadas sem ela, o espaço econômico rompe as fronteiras físicas. A isto se liga a globalização. O substrato físico-espacial do espaço funcional econômico é integralmente o planeta Terra, e isto - após o fim do experimento do socialismo real - sem exceção territorial. Isto é grave por pelo menos duas razões. Em primeiro lugar, a "restrição orçamentária dura" do dinheiro (e do capital) governa o trabalho e por esse meio as transformações de substâncias e energias no processo de trabalho e de produção. Quanto mais expansiva a economia tanto mais abrangentes, faraônicos os projetos pelos quais a natureza é transformada pelo trabalho. A produção e o consumo em massa requerem transporte em massa e os sistemas de economia, de tempo e de transposição de espaços adequados a isso. Estes, por sua vez, engendram empreendimentos de provimento energético de dimensões continentais. Desse modo a economia rompe as lógicas limitadas a espaços físicos-territoriais dos espaços funcionais sociais ecológicos e eventualmente também políticos. Ela dissolve assim na tendência da globalização aquelas fronteiras que até hoje permitiram despachar para o mundo exterior de cada sistema os elementos "perturbadores". No espaço ambiental isso já se tornou evidente. As substâncias dos processos energéticos com base fóssil enviados à atmosfera retroagem sobre o espaço territorial. Ainda não há, portanto, nada conclusivo sobre como a lógica da economia "desinbedded" é globalizadoramente eficaz e portanto não reconhece fronteiras.

A influência e interpenetração recíproca dos espaços funcionais econômicos, sociais, políticos e ecológicos nem sempre é levada na conta que sua importância teórica e político-prática requer. A construção do "espaço-ambiente" no estudo de 1996 do Instituto Wuppertal dispensa inteiramente a análise das lógicas funcionais e das restrições da economia, da política, da sociedade. A política é vista um tanto ingenuamente como um quadro institucional de interesses democraticamente organizados, cujas interações ocorrem se modo quase livre de dominação. A economia desconhece tanto as restrições dos juros quanto as do processo de valorização capitalista. O mercado, a concorrência, a capacidade competitiva e durabilidade são realizáveis sem contradições pela intervenção inteligente, podem portanto ser harmonizadas. A quadratura do círculo, que aflige Dahrendorf, nem é problema para o estudo de Wuppertal; é tudo mais simples. A sociedade é um lugar no qual se encontram indivíduos sem interesses específicos e portanto antagônicos de classe, no qual pode ser introduzido e levado a bom termo um discurso ecológico sobre a "boa vida", entendida senão no sentido arstotélico pelo menos no da economia "estacionaria" sem crescimento de John Stuart Mill, na qual a contemplação substitui o trabalho material-instrumental5 5 Neste ponto a pretensão política de obter o consenso visivelmente corrompeu a análise científica e gerou uma posição eco-oportunista. .

1.3. Restrições externas à coerência interna

Só se pode falar de coerência quando há clareza sobre as restrições a que estão sujeitos os sistemas. Os espaços funcionais (ou subsistemas sociais) têm em cada caso os seus códigos próprios com que os atores se comunicam, restrições aos quais submetem suas ações, e regras de coerência cuja obediência almejam, sem que se possa assegurar que isso seja de fato alcançado. Ao contrário do que sugere Luhmann, os códigos da comunicação de modo algum precisam ser binários, e sobretudo não está decidido que um sistema que deve obedecer a restrições e desenvolver regras de coerência só esteja ligado a um único código. No caso do sistema econômico já nas etapas da circulação que o capital deve cumprir tornam-se obrigatórios diversos códigos: comprar e vender, pagar e não pagar no mercado, como também Luhmann o apresenta. Mas o excedente monetário exige uma forma material (do contrário o juro não seria senão o inchaço do valor de face do dinheiro). Na produção, que o capital também percorre como capital produtivo, trata-se por isso da organização material e social de um processo de valorização que é um processo conflitivo de exploração. Aqui se trata de regular oposições sociais que rompem e complicam a dimensão binária do parar ou não pagar. Estão em jogo a configuração institucional das relações salariais e de trabalho, e também o complexo de fatores responsáveis pela capacidade competitiva, assim como relações não mercantis que são economicamente relevantes mas não são suscetíveis de comunicação no código monetário da economia. A singela redução da comunicação econômica à polaridade do pagar ou não pagar deve-se à recusa de ver na relação de capital algo mais do que um simples encadeamento de pagamentos.

A obrigação de orientar-se pela taxa de juro formada no mercado (mundial) - na LIBOR em Londres ou na "prime rate" em Nova York) implica igualmente a tendência à equalização das taxas de juros numa média (mundialmente) social. Mas isto é apenas um modo de expressão monetária de um processo multi-estratificado de equiparação de níveis de produtividade, de formas de trabalho e salários, do Estado de bem-estar etc. aos modelos "atraentes" - e do malogro daquelas sociedades em que não se chega a alcançar a equiparação à média. A equiparação das taxas de lucro é inteiramente ligado a uma tendência à queda dos lucros. É verdade que já Marx mostrou que as taxas de lucro não podem cair continuamente mas que nas crises ocorrem precisamente aqueles processos de reestruturação econômica e social que inauguram uma nova fase da acumulação com taxa de lucros crescente6 6 Isto encontra respaldo também nos dados sobre "profit rates and rates of return" que a OECD regularmente apresenta na sua observação econômica. Segundo esses dados as taxas de lucro cresceram durante a década "neoliberal" dos 80, mas tendem de novo para baixo -com determinadas diferenças nacionais - nos anos 90. Mas a isso associam-se hoje, à diferença dos ciclos de conjuntura e crise das décadas passadas, duas tendências das quais ainda trataremos abaixo. Em primeiro lugar o aumento da taxa de acumulação que acompanha a subida da taxa de lucro não significa aumento relevante do emprego. O crescimento e o emprego estão desacoplados. Em segundo lugar, a globalização encontra sua expressão sobretudo em que capitalistas industriais agem como proprietários de fortunas em dinheiro e portanto comparam a taxa de lucro local possível com rendimentos possíveis nos mercados de capital mundiais. .

A coerência social local manifesta-se portanto em restrições econômicas globais. Em conseqüência disso o desenvolvimento está duplamente determinado: pelas restrições, sobretudo econômicas, da sociedade global, e pelas condições para a formação de um sistema coerente local, na região ou em nível nacional. A obediência às restrições é expressão da ilimitada globalização econômica, e a formação de coerência só pode ser bem sucedida quando fronteiras são traçadas no espaço por instituições políticas, e quando redes sociais penetram nelas. Essa é também a razão pela qual propostas de políticas de desenvolvimento devem ao mesmo tempo obedecer a regras gerais e também ser muito específicas. Por isso a muito discutida globalização jamais pode ser completa. A coerência dinâmica só pode ser alcançada numa determinada curva histórica de atração e não em outras. Isso compõe a atraente dominância da forma, ou modo de regulação, fordista em comparação com outras formas de organização social, nas quais a coerência social e econômica não teve nem tem como ser alcançada. Sem atrativos são as diversas formas de um "fordisme incomplète" (Lipietz) que - como o socialismo real como um exemplo de um "meio fordismo" - foram todas elas um fracasso7 7 Ernest Mandei referiu-se em muitas obras , sem servir-se do conceito de "fordismo" à condição de incoerência do planejamento econômico soviético. A primazia para o desenvolvimento do "Setor I", ou seja, do setor produtor de meios de produção, que além do mais foi explicado como uma "lei", não pode ser mantida, pois o crescimento permanente da produção e da produtividade não é possível sem uma abundante oferta de bens de consumo para os trabalhadores. Portanto deveria ser desenvolvido o "Setor II", de bens de consumo, que no entanto não ocorreu, devido à "lei" da primazia para o desenvolvimento do Setor I. Diferente do fordismo ocidental com sua correspondência entre produção em massa, consumo em massa e uso em massa de energia e substancias, o fordismo "oriental" foi incoerente: desconhecia a necessidade do consumo de massa. É verdade que se essa necessidade fosse seguida seriam introduzidas adaptações sociais e reformas políticas altamente indesejáveis para as elites políticas. .

O caráter incompleto do processo de desenvolvimento é também enfrentado conceitualmente em termos de "dualismo": dualismo econômico e tecnológico entre setores modernos e tradicionais, heterogeneidade estrutural (Cardoso & Faleto) que podem constituir bloqueios ao desenvolvimento (como, recentemente, por Nohlen & Nuscheler). Nessa perspectiva a questão do atrativo nem tem como vir à luz. O conceito de "sociedade dual", na medida em que não faça alusão à "segunda sociedade" dos jesuítas na república secular, remete à persistência de condições sociais incoerentes. Pois a dualidade só ocorre na presença de um complexo dominante de condições restritivas ao qual todas se submetem, mas com possibilidades muito diferenciadas de satisfazer o padrão estabelecido. Isto pode dever-se a fatores internos e/ou externos à sociedade. Mas, como revela a história das teorias e políticas do desenvolvimento no último meio século, estes fatores têm um efeito extraordinariamente duradouro e de natureza estática (inerte). Só uma parte da sociedade é capaz de enfrentar as restrições orçamentarias duras externas do dinheiro e dos seus preços (juros e câmbio), e isto precisamente não se aplica a outras partes da sociedade (por exemplo, as "tradicionais", e hoje talvez também o setor informal). O preço do dualismo consiste em abrir mão de pelo menos alguns dos atrativos que o setor moderno, integrado no mercado mundial e por isso formal tem a oferecer. O dualismo social remete à simultaneidade da inclusão e exclusão e, portanto, da integração na economia globalizante ou a estar fora da sua dinâmica e portanto das suas gratificações, que ela indubitavelmente tem a oferecer (pois senão a economia mundial de mercado capitalista não seria tão atraente e historicamente dominante).

Enquanto relações coerentes ainda podem ser criadas em princípio mediante esforços políticos pelos estados nacionais, as potências dos estados nacionais são insuficientes em regra para regular as restrições. Estas só podem ser influenciadas no plano da economia mundial, vale dizer, pelas instituições que nele operam (especialmente o FMI e o Banco Mundial) e pelas nações industriais decisivas (G 7). As margens de manobra de políticas de desenvolvimento no "terceiro mundo" são portanto condicionadas por aquelas potências da economia mundial que em princípio estão em condições de influir sobre as restrições. Por que, entretanto, deveriam fazê-lo, se dispor de poder econômico e político é uma expressão do seu atrativo e se essa vantagem comparativa se perderia pelo relaxamento das restrições?

2. INTERDEPENDÊNCIAS

Visivelmente nem todas as sociedades sobre o globo estão em condições de construir estruturas coerentes de capacidade competitiva em escala mundial e, portanto, de enfrentar de modo sistêmico-inteligente as restrições da sociedade mundial. Trata-se então de falar de unificação global e simultânea fragmentação ou fracionamento no espaço global. É verdade que ao observar-se a "unificação e fragmentação" procura-se em regra dar conta da contradição entre a ordem no "mundo-OECD" e a "desordem" nos países periféricos (por exemplo, por Senghaas). E isto em termos inteiramente normativos, porque o "perfil OECD" serve de paradigma de desenvolvimento e modernização, que nem todas as sociedades regionais e nacionais estão habilitadas a transpor. Alguns autores criticam com razão essa idéia, que em primeiro lugar superestimaria a suposta unidade quando ela está sujeita à intensa e agressiva "concorrência triádica" e, em segundo lugar, que não perceberia que a fragmentação e a unificação são faces de uma única tendência global, caracterizada por Narr & Schubert como "produção de desigualdade" global. Demonstra-se em seguida que a fragmentação, o fracionamento e a fractalização designam tendências inteiramente diferentes, que caracterizam a sociedade mundial e estruturam interdependências no seu interior.

2.1. Fragmentação, desacoplamento e marginalização

Somente após a apresentação da necessidade social da coerência dos espaços funcionais sociais e das difíceis condições da sua criação no caminho da regulação social é possível falar da outra face, de incoerência ou da simultaneidade de ordem e desordem, ou então de unificação e simultânea fragmentação e fracionamento no espaço global. Essa fala é uma das metáforas mais apreciadas e difundidas na discussão sobre a globalização. É verdade que os conceitos de fragmentação, fracionamento e fractalização, de resto raramente distinguidos com rigor, estão voltados para a apreensão de aspectos diferentes da condição de descompassos temporais e substantivos em escala global. Estas são características da acumulação capitalista desde o seu início, como salienta Gunder Frank: "Ao longo dos séculos passados o mundo experimentou um processo de acumulação de capital unitário e abrangente, ainda que desigual".

Os teóricos do sistema mundial já assinalaram como um paradoxo a circunstância histórica de que no mesmo período iluminista há cerca de 500 anos possam ter emergido o Estado nacional com suas fronteiras restritivas, o sistema mundial moderno de atuação cada vez mais aberta no curso das "descobertas" e das conquistas e ao mesmo tempo a racionalidade européia da dominação do mundo possa ter encetado o seu curso simples e aniquilador sobre a multiplicidade de culturas. A "contemporaneidade do não contemporâneo" foi uma fórmula a que se recorreu na teoria do imperialismo para dar conta de diferenças e oposições de desenvolvimento. A nacionalidade, a globalidade e a racionalidade aparecem simultaneamente, têm a mesma raiz, desenvolvem-se paralelamente, são as faces opostas do modelo comum de desenvolvimento capitalista.

No sentido funcional os espaços territoriais cercados em termos de estados nacionais são elementos da circulação do capital globalizada. Nisso exprime-se a unidade do sistema mundial. Esta manifesta-se em cada crise monetária. Pois nunca a moeda de um Estado nacional está sozinha em uma crise, mas também outras moedas, devido às interdependências globais (em conseqüência da convertibilidade). Portanto a crise de uma moeda, mesmo quando é tratada como crise da lira, da libra ou do peso, envolve o sistema monetário no seu conjunto8 8 Isto foi demonstrado pelo "efeito tequila" , quando a crise do peso mexicano em 1994-95 arrastou consigo também outras moedas latino-americanas. Na Europa desde a fundação do sistema monetário europeu em 1979 crises monetárias freqüentemente se originaram em uma moeda mas se estenderam em seguida. Disso cuidou o mecanismo do sistema. . São sempre várias moedas que se vêem sob pressões desvalorizadoras - às quais corresponde reciproca mente a valorização de outras moedas. As crises monetárias podem portanto ter origem em uma moeda nacional (fragmentação) mas seu efeito se estende ao conjunto do sistema monetário (unificação). Este é um indício seguro de que em regra também as partes fragmentadas das sociedades mundiais capitalistas afinal não passam de frações do capital mundial.

É verdade que isso não é tão evidente quando se examinam tendências econômicas reais além das monetárias. Especialmente desde a eclosão da crise da dívida (no começo dos anos 80) países e mesmo regiões inteiras do globo (como a África ao sul do Sahara) viram-se "desacopladas à força"9 9 O conceito de "desacoplamento forçado" permite lembrar que a dissociação parcial e temporária foi uma opção estratégica dos anos 70 fortemente influenciada pela abordagem do sistema mundial e da teoria da dependência (como se pode ver em autores como Dieter Senghaas e Samir Amin). do mercado mundial. A parcela da África no comércio mundial reduziu-se à metade, de 4,4% para 2,2% entre 1970 e 1992, segundo dados da OECD. Os fluxos de capital privado estão bloqueados há anos. Essa circunstância, aliada ao êxito nesses mesmo anos das "economias asiáticas dinâmicas", deu alento à fala sobre o "fim do Terceiro Mundo". Com a idéia de uma unidade contraditória do sistema mundial capitalista, de uma conexão interna entre metrópoles e periferia, de sociedade ricas e pobres, abre-se mão da ("grande") pretensão teórica a explicar tendências de desenvolvimento no contexto global. Efetivamente o mundo é aqui visto como um conglomerado fragmentado de "casos" regionais e nacionais, que apenas podem examinados teoricamente em estudos de caso10 10 Quando a unidade do mundo não mais pode ser fundamentada teoricamente (nem deve, pois a pretensão foi explicitamente abandonada) só resta a obrigação moral, a ser fundamentada em termos éticos (e com isto retorna a "grande teoria") à ajuda humanitária. . O substrato real dessas conclusões a partir de estudos empírico-históricos é a marginalização de regiões mundiais. Elas no seu conjunto tornaram-se irrelevantes para o modo de funcionamento do sistema mundial. Elas convertem-se em objeto de autojustificação cínica, que pela sua própria formulação é levada a dispensar a teoria: nesses termos a "miséria" do Terceiro Mundo deve-se exclusivamente a condições internas específicas a nações e sociedades. Pressupõe-se, não como resultado mas como substituto da teoria, que restrições "externas" e portanto derivadas da unidade do sistema mundial possam desempenhar um papel importante na impossibilidade de formação de estruturas coerentes.

A fragmentação significa portanto o isolamento e a irrelevância para o modo de reprodução do sistema mundial. Mas uma chance pode estar contida nisso: a de construir-se um modelo de desenvolvimento adaptado às condições nacionais, regionais, locais em cada caso, livrar-se do magnetismo do atrativo dos países desenvolvidos com "perfil OECD" e, assim, retirar apesar de tudo algum proveito do abandonado projeto da dissociação temporária e parcial. Unidades fragmentadas eventualmente tenham a possibilidade (já que mal têm outra opção) de experimentar novas formas de sociedade.

2.2. Fracionalização, ou a luta pela mais-valia global

Economias nacionais ou regionais (ou outras unidades do sistema capitalista global) em regra não são fragmentos soltos e talvez marginalizados mas sim frações do capital mundial. Participam portanto da produção tanto como da distribuição do valor produzido em escala global. John Holloway tem uma formulação incisiva para isso: "Os estados nacionais competem por atrair uma parcela da mais-valia produzida em escala mundial para os seus territórios. O antagonismo entre eles não é expressão da exploração dos estados 'periféricos' pelos 'centrais', mas exprime a (extremamente desigual) concorrência entre eles pela atração (ou a conservação) de uma parte da mais-valia global nos seus territórios". Será então que os estados nacionais agem como agentes em cada caso de uma fração do capital mundial? Este seria o caso se o capital ainda tivesse aqueles atributos relativos ao Estado nacional que Smith, Ricardo e também Marx lhe atribuíam. Para Ricardo era difícil conceber transações internacionais em vista do "apego à terra" dos capitalistas. Considerando-se o seu enfoque econômico nacional" contrário ao "cosmopolitismo" da escola clássica, faz todo o sentido a posição de Friedrich List sobre a fronteira nacional para transações econômicas. Marx define o "capital social total" como aquele espaço de acumulação no interior do qual se dão tendências equalizadoras da taxa de lucro. Esse espaço, no qual em primeiro lugar se forma no interior de um ramo da atividade econômica um valor de mercado e um preço de mercado iguais de produtos gerados sob condições diferentes para cada caso, e no qual em segundo lugar ocorre uma equalização das taxas de lucro das diversas esferas, no século 19 coincidia em larga escala com a sociedade do Estado nacional. É verdade que o capital nacional em cada caso expandia-se em termos colonialistas ou imperialistas (e nisso sempre apoiado pelo Estado nacional) para além das fronteiras. Mas aquém das fronteiras ele agia como uma parcela do capital nacional, para prover-se de matérias-primas nas colônias ou em outras regiões no mais das vezes dependentes, para nelas explorar forças de trabalho ou então abrir mercados para a realização de mercadorias.

Quando nos mercados mundiais não se formam apenas preços de mercado unitários para mercadorias produzidas em lugares diferentes sob condições (custos das unidades salariais) também diferentes mas movimentos de capitais dentro ou entre os ramos contribuem para uma tendência à equalização das taxas de juro (na medida em que estas se orientam pela taxa unitária de juros) cabe perfeitamente falar de uma globalização do "capital social total". É verdade que isto significa que a produção e a distribuição do valor produzido entre as classes e as frações de caráter nacional-estatal obedecem a tendências globais que, como não poderia deixar de ser no sistema mundial capitalista, se dão governadas pelo dinheiro.

Quando se trata da concorrência, deve-se distinguir entre concorrência no interior de um ramo (concorrência de preços) e entre os ramos (concorrência pelas melhores condições de valorização), pois os seus efeitos sobre a "unificação" em um capital total nacional, regional ou global são diferentes. Na concorrência no ramo as empresas são ofertantes ou/ e demandantes, e concorrem com preços e qualidades. Aqui trava-se a competição posicionai para além das fronteiras nacionais. Afinal só pode haver - quando os limites naturais à concorrência tenham diminuído devido a custos menores dos transportes - um preço de mercado mundial ("single price", "reductio ad unum") que, como referência, força a adaptação dos custos de produção nos diferentes locais em diferentes países. A concorrência posicionai é portanto multidimensional. Nela estão envolvidos empresas isoladas, mas também estados nacionais, que procuram atingir o atrativo da "posição Alemanha" (ou França, ou Japão, EUA, etc). Nessa concorrência entre frações de um sistema unitário11 11 Esta é uma formulação muito sumária. No mínimo deveria ser ser considerada de modo diferenciado a importância da política hegemônica. Pois as potências hegemônicas caracterizam-se por não verem seus interesses apenas como "frações" do sistema mundial mas por contribuírem para o funcionamento do sistema mundial como um todo, oferecendo bens públicos como a segurança (militar), a continuidade da provisão de energia, o dinheiro mundial. efetivamente se produz em cada ramo uma media "social-mundial" dos custos. A tendência da média aponta para baixo, especialmente quando os custos de transporte entre os locais não geram um limite de concorrência.

Essa tendência encontra apoio na concorrência entre os ramos. Também ela se dá no espaço global. Aqui se trata, contudo, dos rendimentos que a aplicação de capital em diversos ramos e países diferentes pode trazer. O dado novo na globalização pode de fato ser visto no fato de que a comparação de rendimentos não mais ocorre no interior de uma sociedade nacional mas que o globo inteiro entra em linha de conta. As possibilidades de aplicações alternativas de capital aumentam explosivamente e por isso exigem do proprietário do capital a m mobilidade necessária para tirar proveito delas. Nisso são úteis os operadores especializados no setor financeiro. Eles também desenvolvem as inovações financeiras que permitem tornar fluido até mesmo o capital imobilizado por longo prazo em instalações industriais. A "liquidação das relações de produção" é uma expressão eloqüente da unificação global. Todas as diferenças locais, regionais e nacionais são aplainadas conforme a tendência - considerando-se os riscos e o desenvolvimento dos juros.

É possível distinguir em termos sumários três grupos de atores, para os quais a questão das relações interdependentes põe-se de modo diferente em cada caso. Em primeiro lugar seria de mencionar-se o grupo dos "global players", das empresas e bancos que operam internacionalmente e de fato comparam a rentabilidade e formulam suas condições de produção, sus práticas gerenciais, suas diretrizes empresariais conforme um padrão em grande medida unitário. Nelas também têm voz os "analistas simbólicos" (na expressão de Robert Reich) dotados de alta mobilidade e qualificação, que adotaram plenamente o cosmopolitismo. Esses atores determinam também o padrão internacional de condições de vida e trabalho. Eles criam para além dos espaços abarcados pelos estados nacionais algo como uma realidade global. É a ela que no mais das vezes se alude quando se fala de "virtualidade". De fato os global players geram para si um mundo artificial real: as redes hoteleiras internacionais, cujos serviços são invariavelmente iguais, os centros financeiros e de outros serviços, que são em grande medida permutáveis e (no sentido físico) independentes de localização12 12 A posição geográfica do lugar é realmente irrelevante. Para a instalação de uma zona bancária, por exemplo, as leis tributárias, os controles e vantagens afins são muito mais importantes do que a localização em termos de latitude e longitude no globo terrestre. , as facilidades de transporte, que lhes oferecem a mobilidade necessária para ser eficiente como global player e não estar mais preso pela menor fibra "à terra".

Em segundo lugar há as empresas com presença internacional mas, diferentemente da primeira categoria, incapazes de escapar da concorrência dos espaços monetários. Sua capacidade competitiva depende não só de "fatores de localização" econômicos materiais, sociais e culturais como também das oscilações das moedas na concorrência monetária. Uma apreciação cambial tem por vezes o efeito de desvalorizar a redução ou o controle de custos. Em conseqüência, a capacidade competitiva de indústria nacionais é mais influenciada e determinada por oscilações cambiais do que pelo preço das unidades salariais. O fracionamento no interior da geoeconomia unitária tem aqui um fundamento monetário. Quando a unicidade do sistema global também se exprime em que os valores econômicos (e por isso também os recursos convertidos em valor) só ganham corpo em termos de dinheiro mundial (dólar, marco alemão, yen) então a estabilização de cada moeda nacional em face do dinheiro mundial é uma regra inescapável. Isto é um imperativo econômico objetivo, sobre a qual muito têm a dizer aqueles países que foram obrigados a uma depreciação cambial. A dependência da "riqueza das nações" dos mercados monetários globalizados (sujeitos de resto a toda sorte de manipulação) que nisso se exprime pode revelar-se um obstáculo de primeira ordem ao desenvolvimento. Finalmente há, em terceiro lugar, aquelas empresas que somente têm importância regional ou nacional, porque produzem e oferecem "bens de Thünen" ou serviços sem serventia no âmbito internacional. Elas representam na unidade da economia mundial fragmentos com poucos vínculos entre si, não operam como frações de um todo. Não participam, ou então o fazem com muitos intermediários, nos conflitos em torno de parcelas do excedente produzido globalmente. Caso subissem os custos de transporte e outros custos de transação na economia mundial (por exemplo em conseqüência de um sensível aumento dos preços da energia ) o círculo das "empresas de Thünen" dessa terceira categoria poderia ampliar-se.

O imperativo objetivo da unificação é também seguido pelas instituições globais, principalmente fundos de investimento e o Banco Mundial, quando elas adaptam os estados nacionais e suas economias de modo que se mantenham (ou voltem a ser ) pontos de atração para capital volátil no espaço global ("adaptação estrutural"). Isto é uma política explícita contra a fragmentação e pelo fracionamento no interior da economia e da sociedade mundiais. Em outros termos: as economias nacionais (e regionais) não são tratadas como únicas, cada qual por si e independentes entre si mas como parte particular do todo (da totalidade do sistema mundial capitalista). É por isso que, apesar do enfoque "case by case" e "country by country", as regras da adaptação estrutural são tão unitárias que receberam o nome de "Consenso de Washington".

É verdade que há um conjunto de exemplos para efeitos negativos de medidas de adaptação estrutural como conseqüência da obediência à lógica do "country by country" sem considerar as interdependências. Quando se amplia ao mesmo tempo em vários países a agricultura de exportação para a produção de cash crops visando a geração de divisas, então essa estratégia pode contribuir para a queda dos preços das matérias-primas e que, contra as expectativas, não só diminuam os retornos da exportação como também a super-exploração do solo acabe provocando problemas ecológicos e, em seguida, dificuldades na área dos produtos alimentícios.

O fracionamento e a fragmentação não são portanto sinônimos permutáveis, mas tampouco são alternativas claras. Em pontos críticos um espaço econômico pode passar de um estado ao outro. Mediante sua afiliação ao NAFTA, programas de adaptação estrutural do FMI e sua incorporação ao OECD, o México manteve-se como uma "fração" no sistema global e foi estabilizado, com custos financeiros e sociais (inicialmente) altos. Algumas sociedades africanas, por seu turno, viram-se reduzidas a fragmentos externos a uma economia unitária ainda que fracionada, isoladas e portanto quase desinteressantes para a reprodução do sistema total.

A força da moeda tem papel decisivo para a posição na concorrência global e com isso para as possibilidades de "atrair parcelas da mais-valia global para o território nacional", para usar a formulação de Holloway. Quanto mais forte a moeda tanto mais fácil torna-se, dado o princípio da convertibilidade de todas moedas, chegar a porções da mais-valia global. Cada apreciação da moeda em face da cesta das moedas concorrentes resulta em mais valores na forma de mercadorias, serviços e capital de outras "frações", leia-se: espaços nacionais monetários e de reprodução. Mas é claro que uma estratégia como essa não pode ser seguida arbitrariamente. Ela só é possível em constelações específicas da economia real. Mesmo contudo que, dado o caráter de jogo soma-zero da concorrência monetária, ela não possa ser levada avante com êxito por todas as frações do capital mundial, suas regras determinam a política dos governos e o comportamento das empresas.

2.3. Fractalização, ou o principio da auto-semelhança

Os problemas da simultaneidade da unificação e fracionamento complicam-se quando o que se expande para além das fronteiras nacionais não é só capital na forma de dinheiro e mercadoria (comércio internacional, investimentos diretos ou em carteira, créditos internacionais) mas forças de trabalho abandonam determinado país e migram sobre fronteiras nacionais. Caso se tratrasse apenas de "trabalhadores hóspedes", de simples "fatores de produção" sem maiores reivindicações, o problema se resolveria conforme as leis mercantis da oferta e procura, portanto conforme as regras da formação de preços como se dá com outras mercadorias em outros mercados. O mercado mundial de trabalho não precisaria diferenciar-se de mercados nacionais ou regionais. Com efeito, os mercados das unidades menores se integrariam sem deixar traços (vale dizer, sem diferenças de preços relevantes) nas unidades maiores, e não gerariam em outro nível modos de funcionamento modificados. Só mudaria a moeda em que se exprimiria o salário; mas, dada a convertibilidade, isto não seria obstáculo, se desconsiderados os inevitáveis custos de transação. Mas as trabalhadoras nas sociedades modernas são cidadãs e portanto portadoras de direitos civis e demandas em relação ao Estado. Elas tem direitos, que as definem como "integrantes" de uma nação. Elas carregam consigo toda uma mochila de peculiaridades culturais, individualidade histórica, propriedade física, "hábitos do coração" mas também do estômago e da cabeça, de garantias institucionalmente garantidas e de direitos democráticos. Elas dispõem de documentos e passaporte. A que Estado deve dirigir-se os direitos civis, se estes são exclusivos dos membros e portanto são direitos excludentes e são no mínimo parcialmente abandonados com a migração transnacional? Onde ficam as características históricas, culturais, étnicas, nacionais e sociais num novo ambiente? Como se relaciona a migração com as tendências à fragmentação e ao fracionamento expostas até aqui?

Na esteira da expansão transnacional do capital também o mercado de trabalho foi internacionalizado, é verdade que só parcialmente. Pois a mobilidade transnacional e transcultural do trabalho, se comparada com a liberdade espaço-temporal do capital, é em primeiro lugar pequena, e em segundo lugar nem sempre voluntária, se considerarmos os fatores "de empurra" - da pobreza econômica até conflitos militares, passando por catástrofes ecológicas e por perseguição étnica, racial ou religiosa. O fato é que se criou no século 20 um "nomadismo" (na expressão de Hannah Arendt) transnacional moderno. O Estado nacional permanece formal e materialmente a "arena da redistribuição legitimada" (Scharpf) mas, na realidade do Estado de bem-estar (especialmente na Europa) os clientes e os contribuintes não mais pertencem necessariamente à mesma nacionalidade. As frações na concorrência distributiva global não são portanto univocamente distinguíveis em termos de limites estatais ou de moeda. Nessas condições o Estado de bem-estar abrange cidadãos econômicos que não providos e vinculados por direitos civis iguais por uma nacionalidade comum, mas que por outro lado também não se deixam reduzir a fatores de produção sem atributos nacionais. Portanto o Estado nacional também se desgasta porque não é mais para todos os cidadãos econômicos a inquestionável arena de exercício dos direitos civis.

A globalização da economia exige assim a reprodução de estruturas sociais do plano regional e nacional para o plano supranacional e internacional. Este foi certamente o motivo da proposta levada pelo presidente Mitterand à Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social de Kopenhagen em 1994: a introdução de um imposto sobre transações internacionais de capital ("imposto Tobin")13 13 O objetivo original do imposto Tobin é encarecer as transações internacionais de capital e com isso desestimular a especulação nos mercados financeiros globais. Sobre isso ver o Human Development Report de 1994. Com base em sugestões do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas Mitterand o concebeu como fonte de recursos para dispêndios sociais internacionais. para abastecer um fundo social internacional que pudesse financiar gastos sociais necessários, sobretudo nas regiões mais necesssitadas do mundo. O Estado de bem-estar nacional não mais consegue cumprir suas tarefas, e entra numa zona difusa de instabilidade social e política, talvez de convulsões, dos quais no entanto novas formas "surgem" no curso de conflitos mais ou menos intensos. Essa reação é designada por emergência, na qual entretanto não ocorre simplesmente a transição de um estado antes estável para uma outra situação de estabilidade numa unidade superior (no nível europeu ou mesmo global). O Estado de bem-estar se converteria nesse processo numa configuração multidimensional ou de dimensões fracionais: estaria, na linha da tradição, vinculado ao Estado nacional, mas ao mesmo tempo seria elemento estruturante do sistema global. É verdade que, em face da luta pela mais-valia global, que afinal é travada com meios monetários (juros e taxas cambiais) o Estado social globalizado quando muito é uma cópia da conquista reformista de outrora.

Disso pode-se tirar uma conclusão teórica. Não só a fragmentação e o fracionamento são tendências na sociedade mundial contraditoriamente unitária, mas há também a fractalização. Os fractals são resultado de processos de iteração através de inúmeras ramificações até um mundo de "infinitos enredamentos em filigrana" (na expressão de Briggs & Peat). Os mesmos movimentos repetem-se conforme o princípio da auto-semelhança em diversos planos e níveis. Ao fazê-lo realizam um processo de evolução, no qual a figura dada no início do processo iterativo vai sendo assumida gradativamente. A equação correspondente pode ser construída por matemáticos e a iteração pode ser simulada no computador, para visualizar as formas fractais, das quais a mais famosa é o "conjunto de Mandelbrot".

Para nosso objetivo não se recomenda esse procedimento. No entanto, movimentos de capital nos mercados financeiros globais, e mais ainda movimentos migratórios humanos pode ser descritos como curvas através de diferentes dimensões do sistema global, passando sobre fronteiras regionais, culturais, nacionais. No seu curso são gerados em diferentes planos elementos necessários e comparáveis - e não idênticos, portanto.

Com a referência à transnacionalização de determinadas instituições e serviços do Estado de bem-estar indica-se uma tendência que também ocorre no domínio financeiro. O banco central é o banco dos bancos. Também os bancos centrais necessitam para seus negócios um banco dos bancos centrais, pois a base de valor do dinheiro nacional não mais pode ser dada pelo ouro escasso mas por manutenção institucional de escassez. A escassez de dinheiro é uma categoria social, que requer regulação. Essas regulações são "semelhantes" entre si em diferentes planos do espaço nacional e supranacional. Mediante essa semelhança abre-se a possibilidade de "acoplamentos soltos" e de evitar-se o conflito hierárquico, que no sistema internacional desencadearia atritos inter-estatais, na medida em que seriam atingidos direitos soberanos. A concorrência das "frações" no sistema mundial se manifestaria imediatamente. É só pela fractalização do espaço global que se pode cogitar da sua regulação.

No discurso político e da ciência política fala-se nesse ponto de "subsidiaridade": em qual nível se deve trabalhar num problema do modo mais eficiente e adequado? A pergunta só pode ser formulada quanto efetivamente surgiram sistemas institucionais funcional-equivalentes sobre planos diversos, certamente hierárquicos. Essa equivalência funcional de instituições deve-se em grande medida à "auto-semelhança". A fractalização não é alternativa às tendências descritas de fragmentação e fracionamento. Ela é uma forma de encaminhamento da geração de unidade no processo de globalização, do qual outras faces (contraditórias) são a fragmentação e o fracionamento. Duas conclusões, de natureza mais propriamente heurística, pode ser obtidas disso. Em primeiro lugar a teoria dos fractais remete a importância da observação para os fenômenos estudados. Os resultados de uma pesquisa dependem também de quais perspectivas, padrões de medida e escalas são escolhidas para medir um estado de coisas. A objetividade é portanto limitada nesse e em outros domínios das ciências sociais. Tudo depende do enfoque teoricamente fundamentado. Também essa reflexão remete à importância do esforço teórico contra os que proclamam a morte da "grande teoria".

Em segundo lugar as estruturas fractais são ao mesmo tempo "muito complexas e extraordinariamente simples"(Briggs & Peat), ou, nas palavras de Mandelbrot citadas pelos mesmos autores, "uma surpreendente combinação de extrema simplicidade com vertiginosa complexidade". Essa combinação poderia também caracterizar as estruturas do sistema mundial, cujos elementos são muito simples mas cuja combinação é extraordinariamente complicada. Ainda está por demonstrar como as estruturas da sociedade mundial se modificaram conforme o princípio da auto-semelhança, através da migração humana, da transnacionalização da produção e da formação de mercados supranacionais, integrados e com as correspondentes instituições reguladoras. Somente se a globalização se desse pelo mero efeito de processos de mercado e não pela regulação social e política as tendências à fractalização poderiam ser negligenciadas no espaço global, por irrelevância.

A unidade do sistema mundial deriva da concorrência, na qual entretanto estão presentes aquelas tendências ao fracionamento. A geração da unidade só pode ser compreendida se ao mesmo tempo se consideram os efeitos da fractalização, da reprodução de instituições e de desempenhos funcionais da perspectiva do princípio da auto-semelhança. A unidade do sistema mundial capitalista não é portanto descrita pela oposição entre unidade e fracionamento, mas só é captada quando se considera a estruturação da unidade no decurso da fractalização. Por sua vez as tendências à fragmentação provocam uma dissolução da unidade do sistema mundial: desacoplamento de países e regiões, marginalização e exclusão.

  • * "Von möglichen Wirkglichkeiten in der globalen Gesellschaft oder: die Attraktivität von Entwiklungsmodellen". Trata-se da versão abreviada de um capítulo der Elmar Altvater & Birgit Mahnkopf, Die Grenzen der Globalisierung, Müster, Westfalisches Dampfboot, 1996, atualmente em segunda edição.
  • 2 Essa formulação liga-se a observação de Robert Musil: "Se existe senso de realidade deve também existir senso de possibilidade". A esse respeito ele escreve, em O homem sem qualidades: "Uma experiência possível, ou uma verdade possível, não são iguais a experiência real e verdade real menos o valor da realidade; ao contrário, ao menos do ponto de vista de seus seguidores, têm em si algo divino, um fogo, um vôo, um desejo de construção e um utopismo consciente, que não teme a realidade mas a trata como missão e invenção ... É a realidade que desperta as possibilidades, e nada mais errado do que negar isso." Naturalmente isso também deve ser entendido como contraposição à fala sobre o "fim da história". (NT: Nesta citação foi adotada a tradução brasileira por Lya Luft e Carlos Abbenseth de Robert Musil O homem sem qualidades, Rio de Janeiro, Nova Fonteira, 1989, p. 14-15,
  • 13 O objetivo original do imposto Tobin é encarecer as transações internacionais de capital e com isso desestimular a especulação nos mercados financeiros globais. Sobre isso ver o Human Development Report de 1994.
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    "Von möglichen Wirkglichkeiten in der globalen Gesellschaft oder: die Attraktivität von Entwiklungsmodellen". Trata-se da versão abreviada de um capítulo der Elmar Altvater & Birgit Mahnkopf,
    Die Grenzen der Globalisierung, Müster, Westfalisches Dampfboot, 1996, atualmente em segunda edição. Foram omitidas as referências bibliográficas do original e duas figuras com as respectivas explicações. Tradução de Gabriel Cohn.
  • 1
    Nas condições sistêmicas de entorno do intervencionismo estatal a estratégia de industrialização por substituição de importações constituía um modelo racional e eficiente. Mas é igualmente evidente que uma estratégia desse tipo está fadada ao fracasso na transição para o "pós-fordismo" na geoeconomia caracterizada pela dominação dos mercados financeiros e pela regionalização.
  • 2
    Essa formulação liga-se a observação de Robert Musil: "Se existe senso de realidade deve também existir senso de possibilidade". A esse respeito ele escreve, em
    O homem sem qualidades: "Uma experiência possível, ou uma verdade possível, não são iguais a experiência real e verdade real menos o valor da realidade; ao contrário, ao menos do ponto de vista de seus seguidores, têm em si algo divino, um fogo, um vôo, um desejo de construção e um utopismo consciente, que não teme a realidade mas a trata como missão e invenção ... É a realidade que desperta as possibilidades, e nada mais errado do que negar isso." Naturalmente isso também deve ser entendido como contraposição à fala sobre o "fim da história". (NT: Nesta citação foi adotada a tradução brasileira por Lya Luft e Carlos Abbenseth de Robert Musil
    O homem sem qualidades, Rio de Janeiro, Nova Fonteira, 1989, p. 14-15, substituindo-se a expressão "traz" por "desperta").
  • 3
    Sobre isso novamente Musil: "Mesmo assim, no total ou na média serão sempre as mesmas possibilidades repetidas, até chegar uma pessoa para a qual uma coisa real não signifique mais do que o imaginado. Será ela quem dará destino e destinação às novas possibilidades, que há de despertar". (NT: Mesma fonte, substituindo-se "provocar" por "despertar" no final).
  • 4
    Gerda Zellenthin refere-se a uma formulação de A. Brecht de 1961, na qual se pergunta sobre os "limites" que a natureza impõe "à ação e à produção humanas" para propor a questão sobre "quais as possibilidades a natureza deixa abertas para o homem, quais são as conseqüências naturais de ações humanas, incluindo-se o castigo da natureza...". Para evitar-se a penalização pela natureza espera-se a obediência a "imperativos energéticos".
  • 5
    Neste ponto a pretensão política de obter o consenso visivelmente corrompeu a análise científica e gerou uma posição eco-oportunista.
  • 6
    Isto encontra respaldo também nos dados sobre "profit rates and rates of return" que a OECD regularmente apresenta na sua observação econômica. Segundo esses dados as taxas de lucro cresceram durante a década "neoliberal" dos 80, mas tendem de novo para baixo -com determinadas diferenças nacionais - nos anos 90. Mas a isso associam-se hoje, à diferença dos ciclos de conjuntura e crise das décadas passadas, duas tendências das quais ainda trataremos abaixo. Em primeiro lugar o aumento da taxa de acumulação que acompanha a subida da taxa de lucro não significa aumento relevante do emprego. O crescimento e o emprego estão desacoplados. Em segundo lugar, a globalização encontra sua expressão sobretudo em que capitalistas industriais agem como proprietários de fortunas em dinheiro e portanto comparam a taxa de lucro local possível com rendimentos possíveis nos mercados de capital mundiais.
  • 7
    Ernest Mandei referiu-se em muitas obras , sem servir-se do conceito de "fordismo" à condição de incoerência do planejamento econômico soviético. A primazia para o desenvolvimento do "Setor I", ou seja, do setor produtor de meios de produção, que além do mais foi explicado como uma "lei", não pode ser mantida, pois o crescimento permanente da produção e da produtividade não é possível sem uma abundante oferta de bens de consumo para os trabalhadores. Portanto deveria ser desenvolvido o "Setor II", de bens de consumo, que no entanto não ocorreu, devido à "lei" da primazia para o desenvolvimento do Setor I. Diferente do fordismo ocidental com sua correspondência entre produção em massa, consumo em massa e uso em massa de energia e substancias, o fordismo "oriental" foi incoerente: desconhecia a necessidade do consumo de massa. É verdade que se essa necessidade fosse seguida seriam introduzidas adaptações sociais e reformas políticas altamente indesejáveis para as elites políticas.
  • 8
    Isto foi demonstrado pelo "efeito tequila" , quando a crise do peso mexicano em 1994-95 arrastou consigo também outras moedas latino-americanas. Na Europa desde a fundação do sistema monetário europeu em 1979 crises monetárias freqüentemente se originaram em uma moeda mas se estenderam em seguida. Disso cuidou o mecanismo do sistema.
  • 9
    O conceito de "desacoplamento forçado" permite lembrar que a dissociação parcial e temporária foi uma opção estratégica dos anos 70 fortemente influenciada pela abordagem do sistema mundial e da teoria da dependência (como se pode ver em autores como Dieter Senghaas e Samir Amin).
  • 10
    Quando a unidade do mundo não mais pode ser fundamentada teoricamente (nem deve, pois a pretensão foi explicitamente abandonada) só resta a obrigação moral, a ser fundamentada em termos éticos (e com isto retorna a "grande teoria") à ajuda humanitária.
  • 11
    Esta é uma formulação muito sumária. No mínimo deveria ser ser considerada de modo diferenciado a importância da política hegemônica. Pois as potências hegemônicas caracterizam-se por não verem seus interesses apenas como "frações" do sistema mundial mas por contribuírem para o funcionamento do sistema mundial como um todo, oferecendo bens públicos como a segurança (militar), a continuidade da provisão de energia, o dinheiro mundial.
  • 12
    A posição geográfica do lugar é realmente irrelevante. Para a instalação de uma zona bancária, por exemplo, as leis tributárias, os controles e vantagens afins são muito mais importantes do que a localização em termos de latitude e longitude no globo terrestre.
  • 13
    O objetivo original do imposto Tobin é encarecer as transações internacionais de capital e com isso desestimular a especulação nos mercados financeiros globais. Sobre isso ver o
    Human Development Report de 1994. Com base em sugestões do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas Mitterand o concebeu como fonte de recursos para dispêndios sociais internacionais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 1997
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