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Para além de centro e periferia? Repensando a sociedade do trabalho contemporânea

MACIEL, Fabrício. A nova sociedade mundial do trabalho: para além de centro e periferia?. 2. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Autografia, 2021

A relevância do lançamento desta segunda edição, revista e ampliada, de A nova sociedade mundial do trabalho está em sua contribuição para a interpretação da sociedade do trabalho em uma sociedade global. O título faz jus ao conjunto da obra, já que Fabrício Maciel trata a sociedade do trabalho para além do centro e da periferia e para além dos limites das sociedades nacionais. A bibliografia chama atenção por ser composta de sociólogos influentes da contemporaneidade.

Experiente principalmente no tema do trabalho e do reconhecimento, o autor apresenta essa obra, que é fruto de sua pesquisa de doutorado, incluindo parte da pesquisa empírica realizada durante sua estadia sanduíche. Trata-se de um livro de grande esforço e complexidade teórica, contudo, Maciel consegue apresentar isso de forma muito clara e precisa, com uma linguagem que o aproxima do leitor.

O Prefácio desta segunda edição foi escrito por Cinara Rosenfield, onde ela faz um excelente resumo da obra que apresenta, destacando as novidades de sua abordagem e o desafio instigante de conjugar teoria com empiria e as diferenças entre o centro e a periferia nas mudanças recentes da sociedade do trabalho.

A Introdução do livro, nesta nova edição, destaca as diferenças no contexto social, político e econômico no Brasil que separam esta edição da primeira, de 2014. Essa tarefa é realizada não apenas na Introdução, mas ao longo do livro, buscando dar atualidade aos debates teóricos. Se, no contexto conjuntural que o livro foi escrito, o Brasil vinha avançando no combate à desigualdade histórica e estrutural, agora a ascensão da extrema-direita marca um trágico retrocesso no caminho para a cidadania e para a dignidade. Além disso, o autor retoma o uso do conceito de “trabalho indigno” (Maciel, 2006______. Todo trabalho é digno? Um ensaio sobre moralidade e reconhecimento na modernidade periférica. In: SOUZA, Jessé (Org.). A invisibilidade da desigualdade brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.; 2018) cunhado por ele para tratar os aspectos morais do trabalho precário. Demonstra, assim, certa continuidade teórica nos temas da moralidade, do trabalho, do reconhecimento e da desigualdade que compõem sua carreira acadêmica. Posto isto, Maciel deixa claro que a intenção do livro é contribuir para um esforço de interpretação do Brasil no cenário do capitalismo global atual.

No primeiro capítulo, o autor instaura uma discussão teórica e epistemológica com a intenção de formular uma teoria da sociedade mundial do trabalho. Para tanto, dialoga especialmente com a obra de Ulrich Beck, destacando e reconstruindo sua reflexão sobre o nacionalismo metodológico. Os temas-chave abordados por Maciel estão localizados no panorama teórico do sociólogo alemão, em particular no conceito de “sociedade de risco”, concordando que há uma produção mundial dos riscos que ameaça hoje também a Europa. Neste contexto, Maciel já inicia a crítica à tese da “brasilização do ocidente” de Ulrich Beck, que tratará em capítulo posterior. Até então, tenta chamar atenção para os aspectos positivos dessa tese, que é trazer a periferia do capitalismo para o debate.

O ponto central deste capítulo está na ênfase posta sobre a necessidade de compreender a sociedade do trabalho em sua dimensão global, abandonando as categorias analíticas que se restringem às sociedades nacionais. A crítica ao nacionalismo metodológico tem o mérito de permitir refletir sobre a produção e reprodução da desigualdade global. Esta questão é fundamental para a construção do argumento de Maciel sobre a “dupla precarização” na periferia do capitalismo, operada pela atual precarização do trabalho em escala mundial, que atinge os países centrais e radicaliza a precarização histórica e estrutural na periferia.

No segundo capítulo, Maciel parte da obra de três importantes e influentes teóricos contemporâneos: Claus Offe, Ulrich Beck e André Gorz. Sua proposta é oferecer uma interpretação da nova sociedade do trabalho sem aceitar as alternativas dos autores que declararam o fim ou o pós-sociedade do trabalho. Tarefa original do ponto de vista crítico, já que a revisão da obra de autores como Offe e Gorz, segundo o próprio Maciel, é fundamental para a compreensão das mudanças que ocorreram no mundo do trabalho.

Em Claus Offe, Maciel destaca que os dados empíricos apresentados pelo autor para demonstrar a heterogeneidade de situações de trabalho na Europa são, na verdade, a chegada de produtos negativos do capitalismo que sempre estiveram presentes na periferia. Nesse sentido, para Maciel, o autor desconsidera um dado universal do capitalismo, que é a existência do trabalho informal como regra na periferia do sistema. No ponto de vista de Maciel, Offe tem uma grande dificuldade ao analisar o advento do setor de serviços e a divisão entre trabalho “produtivo” e de “serviços”, estabelecendo uma hierarquia moral do primeiro sobre o segundo. O trabalho produtivo, para Offe, abarca uma racionalidade formal, o trabalho informal uma “racionalidade substantiva” e representa uma deterioração do sistema. Dessa forma, Maciel acredita que Offe, apesar da tentativa crítica, reproduz sutilmente a ideia de que a racionalidade presente no centro do capitalismo é superior à das economias periféricas. Maciel questiona ainda o abandono da centralidade do trabalho em Offe, o que só é possível porque para o autor, trabalho é sinônimo de trabalho assalariado e digno.

Ao revisar a obra de André Gorz, Maciel discute, primeiramente, o advento do “pós-fordismo” analisado pelo autor. Destaca desta contribuição de Gorz o fato de o pós-fordismo retirar a proteção jurídica do trabalho e de a negociação coletiva tornar-se cada vez mais individualizada. O efeito gerado por essa transição - segundo Gorz - é que “somos todos precários” e “precários em potencial”; aqui Maciel chama atenção que o precário em potencial sempre existiu no capitalismo, estando esse autor com isso preso a uma conjuntura europeia.

A desconstrução da centralidade do trabalho operada por Gorz para dar lugar à “sociedade do conhecimento” é geralmente o foco do debate de sua obra. Entretanto, o mérito desta análise é de não descartar a importância da contribuição de Gorz para a compreensão do trabalho na contemporaneidade. Dessa forma, ao mesmo tempo em que discute os conceitos de “pós-fordismo” e “sociedade do conhecimento” de Gorz, Maciel faz um esforço analítico de compará-los com conceitos de outros autores, como o de “sociedade salarial” em Robert Castel, de “modernidade reflexiva” em Ulrich Beck, e de “novo capitalismo” em Richard Sennett.

Ainda no segundo capítulo, o autor resume os principais pontos da contribuição de dois livros de Ulrich Beck para pensar a sociedade mundial do trabalho. Beck também constatou as mudanças no mundo do trabalho trazidas pelas tecnologias de informação, a modernização e a fragmentação do fordismo, que, como consequência, trouxeram flexibilidade, insegurança e aumento crescente da precariedade, provocando um “regime de risco”. Em síntese, os três autores debatidos neste capítulo cometem esse mesmo erro de pensar em trabalho como sinônimo de trabalho na sociedade do bem-estar social e deixam, portanto, de ter uma visão abrangente da sociedade do trabalho.

Adiante, no terceiro capítulo, Maciel adentra a fundo a obra de André Gorz, refletindo sobre a “sociedade do conhecimento”. Essa ideia proposta por Gorz aparece em um contexto de vários supostos “fins” e vários “pós”: “pós-fordismo” “fim das sociedades do trabalho”, “pós-moderno”, dentre outros. Nesse sentido, Maciel vê um “alarde apocalíptico” que já se tornou o discurso dominante de nossa época sobre ela mesma (p. 110). Em vista disso, o autor busca responder à seguinte pergunta: “do trabalho ao conhecimento?” Ou seja, é possível dizer que saímos de uma sociedade do trabalho para uma sociedade do conhecimento? A discussão gerada é muito frutífera, pois, Fabrício aceita parte da análise de Gorz, que ele diz ser ao mesmo tempo ambígua e produtiva, por ajudar a compreender o dado empírico que é o advento do setor de serviços e do conhecimento tecnológico especializado. Em contraste com outras críticas a Gorz, como no caso de Ricardo Antunes (2000ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2000.), Maciel se alia, neste ponto, à discussão de Gorz, ou seja, a que existe uma nova modalidade de mercadoria: a imaterial.

Por outro lado, critica Gorz por não refazer uma teoria da sociedade do trabalho e por anunciar o fim da sociedade do trabalho, algo que poderia ter até mesmo realizado com a análise proposta. Como hipótese alternativa, propõe reconstruir o que é a sociedade do trabalho contemporânea sem desconsiderar que o “mundo da produção” nunca deixou de existir (p. 120). Destaca ainda que é necessário tematizar a desigualdade na distribuição entre classes do conhecimento socialmente valorizado, e também, a desigualdade entre países, já que a produção de conhecimento especializado está em grande parte localizada nos países ricos, o que contribui para a reprodução mundial da desigualdade. É especialmente neste ponto que sua tese demonstra sua originalidade e habilidade para compreensão da realidade social.

No quarto capítulo, o autor faz uma crítica aprofundada sobre a tese da “brasilização do Ocidente” do grande teórico alemão Ulrich Beck. Para Maciel, autores europeus costumam dar muita ênfase ao momento histórico do Welfare State, como se fossem universais. No caso de Ulrich Beck - segundo Fabrício -, sua perspectiva “simboliza todo o particularismo eurocêntrico e culturalista que paira sobre o pensamento europeu pós-Welfare” (p. 144). Nesse sentido, a tese da “brasilização do Ocidente” explicita o medo de a Europa vir a ter uma precariedade generalizada como na periferia.

Novamente, Maciel ressalta a importância de se pensar uma sociedade mundial do trabalho que inclua a periferia, mas que também não parta dela para que não se resuma também ao nacionalismo metodológico. A ideia que o autor propõe, então, é tematizar o paradigma de uma “dupla precarização” do trabalho na periferia: uma estrutural e histórica, outra conjuntural, que atinge também os países centrais.

Robert Castel é o autor com o qual Maciel mantém maior afinidade, apesar de não deixar de tecer críticas também a ele. Isso porque, diferentemente dos autores supracitados, Castel não abandona a centralidade do trabalho e tampouco pretende substituí-lo pelo paradigma do conhecimento. No quinto capítulo, Maciel tematiza e explica os principais conceitos de Robert Castel, aderindo principalmente ao conceito de “questão social” e de “desfiliação social”. Apesar deste autor também partir de uma narrativa “pós-Welfare State” ele se diferencia, segundo Maciel, por colocar a “questão social” como ponto de partida, sendo assim, argumenta que a obra de Castel é fundamental para contribuir com uma nova teoria global do trabalho.

Com isso, um dos méritos de Maciel é esculpir a obra de Castel, de acordo com suas percepções de uma sociedade mundial e da realidade histórica do trabalho em países periféricos. Para ele, a principal questão social global de nossa época inclui a sociedade do trabalho e o enfrentamento de suas realizações negativas, estruturais e conjunturais. Aliás, é neste capítulo que ele apresenta a justificativa do conceito de “sociedade mundial”. De acordo com Maciel, é a partir da sociedade mundial que, “fugindo do nacionalismo metodológico, devemos tentar identificar sua grande questão social central, que, impede a reprodução e legitimação de uma sociedade do trabalho mundial mais igualitária” (p. 204).

No sexto capítulo, o autor trata dos “emergentes”; uma suposta nova classe média na sociedade mundial do trabalho, tratada por diversos autores, especialmente no momento em que foi lançada a primeira edição deste livro. Neste ponto, o autor critica algumas teses já estabelecidas sobre a existência de uma nova classe média.

Desse modo, Maciel trata do advento da flexibilidade nas diferentes classes sociais, uma virtude desta obra, já que não é algo comum em grande parte da literatura sobre o tema como, por exemplo, nas significativas contribuições de Boltanski e Chiappello (2009BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.), bem como de Dardot e Laval (2006). Em seguida, retoma o assunto sobre a centralidade do trabalho e da classe. Em suma, defende que o principal autor para tratar de uma teoria de classes pensando nos imperativos de uma nova sociedade mundial do trabalho é Pierre Bourdieu com o conceito de habitus, e com a teoria dos capitais1 1 Maciel cita a pesquisa sobre a “ralé brasileira” (Souza, 2009, apud Maciel, 2021), da qual participou, onde puderam aplicar os conceitos de Bourdieu para pensar essa classe social. .

Ao chegar ao capítulo empírico, Maciel destaca duas perspectivas teóricas fundamentais para a compreensão do material que traz à tona: a inventividade da economia popular de Werner Sombart (Sombart, 1927, 1928, apud Maciel, 2021) e novamente a zona de vulnerabilidade de Robert Castel (Castel, 1998, apud Maciel, 2021). O material se refere à pesquisa empírica realizada na Feira de Caruaru, no agreste pernambucano, com os artesãos da região, resultado da pesquisa sobre os batalhadores brasileiros (Souza, 2010, apud Maciel, 2021).

Neste eixo empírico, Maciel utiliza uma narrativa muito fluída para descrever a realidade de feiras e feirantes brasileiros. Dessa forma, conseguiu trazer a reflexão sociológica esperada através de sua narrativa e da articulação com a teoria. Neste ponto, destacou na experiência cotidiana da vida dos artesãos e feirantes de Caruaru sua inventividade explícita, através da arte, que contrasta com sua inventividade implícita: a necessidade de improviso, a inteligência e a busca por dignidade em condições materiais precárias. A elaboração dessa reflexão possibilitou sobrepor essa perspectiva microssociológica com a perspectiva macrossociológica que desenvolve ao longo do livro.

No capítulo seguinte, também empírico, Maciel recupera parte do material de pesquisa empírica realizado em sua estadia de doutorado sanduíche na Alemanha. Dessa vez, o autor está interessado na classe média tradicional e utiliza principalmente a teoria dos capitais de Bourdieu para a sua análise; busca destacar, através do material das entrevistas, como essa classe se reproduz e atualiza suas estratégias de inserção no mercado, tendo em vista as mudanças que ocorrem na sociedade mundial do trabalho. Com isso, consegue contrapor a forma de como essa classe se reproduz no tempo com o discurso meritocrático do capitalismo, demonstrando que o capital familiar, cultural e social são fundamentais para a renovação da velha classe média.

Ao chegar ao final do livro, Maciel propõe compreender um novo conflito de classes que se apresenta na sociedade mundial do trabalho atual. Aqui, fortemente influenciado pela ideia de classe social em Bourdieu e Jessé Souza, Maciel traz uma verdadeira contribuição para renovar o debate sobre “luta de classes” na contemporaneidade, destacando a ascensão dos batalhadores, o enfraquecimento da classe média tradicional, a ralé (que são os “sobrantes” da sociedade do trabalho) e uma elite global intocada em sua dominação transnacional.

Por fim, na conclusão, Maciel ainda discute alguns outros tópicos fundamentais para a compreensão da contemporaneidade: as supostas crises do capitalismo e o papel da grande mídia internacional. Encerra a discussão que apresentou ao longo do livro de forma categórica: “vivemos em uma sociedade mundial do trabalho dividida em classes sociais e não em Estados-nacionais” (p. 301), formando, assim, uma “nova desigualdade e dominação de classe internacional, radicalmente estruturada e legitimada” (p. 305).

No posfácio dessa nova edição, merece destaque o adendo que Maciel faz sobre as diferenças conjunturais que separam a primeira da segunda edição. Neste ponto, sinaliza que existem mudanças conjunturais que sempre estão inseridas em um contexto estrutural maior2 2 Maciel apresenta um debate aprofundado sobre questões conjunturais e estruturais do Brasil em seu outro livro, O Brasil-nação como ideologia (2020). . Em suma, a intensificação da indignidade do trabalho é a grande marca do novo capitalismo global, cuja conjuntura aprofunda a condição de indignidade estrutural brasileira.

Referências

  • ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2000.
  • BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
  • DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
  • MACIEL, Fabrício. O Brasil-nação como ideologia: a construção retórica e sociopolítica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Autografia, 2020.
  • ______. O trabalho que (in)dignifica o homem. In: SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive, p. 263-300. 3. ed. São Paulo: Contracorrente, 2018.
  • ______. Todo trabalho é digno? Um ensaio sobre moralidade e reconhecimento na modernidade periférica. In: SOUZA, Jessé (Org.). A invisibilidade da desigualdade brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
  • 1
    Maciel cita a pesquisa sobre a “ralé brasileira” (Souza, 2009, apud Maciel, 2021), da qual participou, onde puderam aplicar os conceitos de Bourdieu para pensar essa classe social.
  • 2
    Maciel apresenta um debate aprofundado sobre questões conjunturais e estruturais do Brasil em seu outro livro, O Brasil-nação como ideologia (2020).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    18 Ago 2022
  • Aceito
    04 Out 2022
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