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Psicologia e cooperetivismo solidário: possíveis (des)encontros

Psychology and solidary cooperativism: possible (dis)arrangements

Resumos

O artigo trata de um relato de experiência e foi construído a partir de uma pesquisa de iniciação científica desenvolvida junto a Cooesperança (Santa Maria -RS). O trabalho envolveu a realização de grupos de reflexão com feirantes e entrevistas individuais, com o objetivo de compreender como a Psicologia Comunitária pode se inserir e intervir em um ambiente cooperativo de geração de trabalho e renda. Ainda, oportunizou um espaço para eles falarem sobre seus anseios e dificuldades. A partir da fala dos feirantes percebemos que a Psicologia pode ter um importante papel em trabalhar na formação dos mesmos, integrada ao trabalho de outros técnicos, antes deles ingressarem definitivamente na cooperativa, ou seja, quando os futuros feirantes se reúnem em grupos de cinco famílias para se cooperativar. Nessa etapa, misturam-se interesses individuais e coletivos que precisam ser ressignificados diante da proposta da economia solidária.

Cooperativismo; Psicologia Comunitária; Economia Solidária


This article is about the report of an experience and it was written based on a scientific initiation research, developed in an institute called Cooesperança (Santa Maria / RS). The work involved the organization of reflexive groups with merchants and individual interviews which aimed to comprehend how the community psychology can interfere and how it can be inserted in a cooperative environment which produces work and income. Also, a space for a talk about the individuals' hopes and difficulties was provided. From the merchants' speech, we realize that Psychology can have a very important role, when it comes to working in the formation of the merchants themselves, integrated to the work of other technicians, before they enroll definitely in the cooperative, that is, when the merchants gather in groups of five families to turn into a cooperative. At this point, individual and general interests are taken into consideration, and they need to be reorganized and rethought, considering the proposal of the solidarity economy.

Cooperativism; Community Psychology; Solidarity Economy


Psicologia e cooperetivismo solidário: possíveis (des)encontros

Psychology and solidary cooperativism: possible (dis)arrangements

Eveline Favero; Karen Eidelwein

UNIFRA-Santa Maria

RESUMO

O artigo trata de um relato de experiência e foi construído a partir de uma pesquisa de iniciação científica desenvolvida junto a Cooesperança (Santa Maria –RS). O trabalho envolveu a realização de grupos de reflexão com feirantes e entrevistas individuais, com o objetivo de compreender como a Psicologia Comunitária pode se inserir e intervir em um ambiente cooperativo de geração de trabalho e renda. Ainda, oportunizou um espaço para eles falarem sobre seus anseios e dificuldades. A partir da fala dos feirantes percebemos que a Psicologia pode ter um importante papel em trabalhar na formação dos mesmos, integrada ao trabalho de outros técnicos, antes deles ingressarem definitivamente na cooperativa, ou seja, quando os futuros feirantes se reúnem em grupos de cinco famílias para se cooperativar. Nessa etapa, misturam-se interesses individuais e coletivos que precisam ser ressignificados diante da proposta da economia solidária.

Palavras-chave: Cooperativismo – Psicologia Comunitária – Economia Solidária

ABSTRACT

This article is about the report of an experience and it was written based on a scientific initiation research, developed in an institute called Cooesperança (Santa Maria / RS). The work involved the organization of reflexive groups with merchants and individual interviews which aimed to comprehend how the community psychology can interfere and how it can be inserted in a cooperative environment which produces work and income. Also, a space for a talk about the individuals' hopes and difficulties was provided. From the merchants' speech, we realize that Psychology can have a very important role, when it comes to working in the formation of the merchants themselves, integrated to the work of other technicians, before they enroll definitely in the cooperative, that is, when the merchants gather in groups of five families to turn into a cooperative. At this point, individual and general interests are taken into consideration, and they need to be reorganized and rethought, considering the proposal of the solidarity economy.

Key-words: Cooperativism - Community Psychology - Solidarity Economy

CONTEXTUALIZANDO A EXPERIÊNCIA

A experiência em psicologia comunitária na Cooesperança fez parte de um projeto de pesquisa vinculado ao Programa de Bolsas de Iniciação Científica (PROBIC - UNIFRA-RS), que foi desenvolvido durante o ano de 2003. A Cooesperança1 1 Cooperativa Mista dos Pequenos Produtores Rurais e Urbanos, vinculados ao Projeto Esperança. é uma central, que juntamente com o Projeto Esperança2 2 O projeto Esperança é um dos setores do Banco da Esperança da Diocese de Santa Maria –RS, que realiza um trabalho junto a Cooesperança. , congrega e articula os grupos organizados (grupos de feirantes compostos de no mínimo cinco famílias) e viabiliza a comercialização direta dos produtos provenientes dos empreendimentos solidários, através de um novo modelo de cooperativismo na proposta alternativa, solidária, transformadora e autogestionária. A comercialização é feita através de feiras tanto no terminal de comercialização direta, como em outros pontos da cidade de Santa Maria-RS e região (Dill, in BENTO e CASTELAR, 2001).

O nosso objetivo inicial era criar um espaço de reflexão para os jovens de famílias cooperativadas e a partir desse espaço construir estratégias de intervenção em psicologia comunitária para esse tipo de clientela. A construção do projeto de pesquisa foi feita com base em entrevistas concedidas pelos feirantes3 3 A palavra "feirantes" se refere a todos os membros dos grupos que expõem seus produtos no terminal de comercialização direta da COOESPERANÇA e em outros pontos fixos na região de Santa Maria. e a idéia de realizar grupo com os jovens foi posteriormente discutida de banca em banca. Os pais manifestavam o desejo de um trabalho com seus filhos, visto que encontravam dificuldades destes colaborarem e valorizarem o trabalho de feirante.

No primeiro encontro compareceu apenas um jovem. Conversando com ele e com outras duas mulheres feirantes que se juntaram ao grupo, percebemos que talvez o desejo dos pais não fosse o desejo dos filhos. Logo, dificilmente o grupo iria acontecer. Falamos com a coordenação da Cooesperança sobre a dificuldade de montar o grupo e esta trouxe, então, como necessidade trabalhar a relação com o cliente.

Diante de demandas tão diferentes realizamos grupos de reflexão4 4 A terminologia "grupo de reflexão" foi proposta pelo psicanalista argentino Dellarossa devido a sua etimologia composta de re + flexão, ou seja: sugere que cada um e todos do grupo façam uma renovada e continuada flexão sobre si próprios, assumindo as responsabilidades que lhes são próprias. Ainda, pelo fato de que também este tipo de grupo comporta-se como uma "galeria de espelhos" onde cada um pode refletir-se de forma especular, nos demais e vice-versa (ZIMERMAN, 2000, p. 92). com os feirantes, aos sábados pela manhã, ao ar livre, em frente aos pavilhões de comercialização direta, uma vez que não existia sala para reuniões no local. O grupo era aberto a quem dele quisesse e pudesse participar em função de ocorrer no horário de funcionamento da feira semanal. O convite foi feito através de cartazes e também entregue, por escrito, em mãos, aos feirantes. A proposta dos grupos de reflexão tinha como finalidade oportunizar um espaço para eles falarem sobre seus anseios e as dificuldades enfrentadas na cooperativa, além de ser uma maneira de compreender como a Psicologia Comunitária pode se inserir em um campo alternativo de geração de trabalho e renda. A metodologia de pesquisa utilizada foi a da Pesquisa-ação, na qual, além do estudo, realiza-se intervenção (THIOLLENT, 1992).

Escolhemos trabalhar com grupos por ser uma alternativa viável neste contexto estudado e por ser uma das formas de organização da Cooesperança. Além disso, o grupo nos dá uma idéia mais completa do tipo de relações estabelecidas entre os feirantes e como é a forma de participação nas atividades da cooperativa. Segundo Campos (1996), através do grupo a Psicologia pode utilizar métodos e processos de conscientização que possibilitam as pessoas assumirem seu papel de sujeitos de sua própria história, conscientes dos determinantes sócio-políticos e ativos na busca de soluções para seus problemas.

Por ser a primeira experiência em Psicologia Comunitária nesse contexto despertou muitas ansiedades e preocupações em como proceder em cada encontro. Aos poucos foi se percebendo que o movimento do grupo produziu caminhos não planejados e possíveis de serem trilhados, sendo importante estar aberto ao desejo do grupo, que se coloca no lugar de conhecedor de seus anseios e necessidades. A perspectiva teórica e metodológica do movimento institucionalista, que segundo Baremblitt (1994), tem como objetivo principal a geração de processos de auto-análise e auto-gestão de coletivos, auxiliou na organização do saber que foi dado pelo grupo e facilitou a análise e solução dos problemas levantados. A experiência de pesquisa junto à cooperativa proporcionou momentos e movimentos em que a auto-análise e a auto-gestão não ficassem restritas aos grupos de reflexão, mas também, produzissem efeitos na prática de vida diária dos cooperativados. Sobre isso, o grupo trazia relatos de acontecimentos, reflexões e atitudes experienciados durante a semana e fazia relação com as discussões feitas nos encontros anteriores.

Realizaram-se cinco encontros de reflexão, nos quais foram levantados aspectos positivos da cooperativa e aspectos a serem melhorados. Também foram discutidas possíveis soluções para as dificuldades vivenciadas pela cooperativa. Participaram aproximadamente vinte feirantes no total dos cinco encontros. A partir do quinto encontro, o grupo decidiu encerrar as reuniões por achar que a discussão sobre seus anseios e dificuldades estava esgotada naquele momento.

Além da realização dos grupos de reflexão, utilizamos como estratégia de trabalho e pesquisa entrevistas semi-dirigidas, que foram gravadas5 5 As entrevistas tiveram duração média de quarenta minutos cada uma. e posteriormente transcritas na íntegra, com o objetivo de compreender qual o significado do trabalho cooperativado para as pessoas que dele participam e qual a importância (se é que haveria) da Psicologia nesse modo de organização do trabalho, além de identificar a efetiva integração dos feirantes com a proposta da cooperativa. As entrevistas foram analisadas através do método de Análise de Conteúdo(BARDIN, 1977).

A partir da análise das entrevistas, construímos cinco categorias temáticas que serviram de base para nossas reflexões e discussões, a saber: significado do trabalho, significado do trabalho cooperativado, economia capitalista, economia solidária e importância da psicologia. Destaca-se que as cinco categorias só foram separadas por motivos didáticos, sendo que no contexto estudado aparecem interligadas.

A categoria significado do trabalho refere-se aos sentidos que os entrevistados atribuíram ao trabalho de um modo geral, considerando-se qualquer tipo de atividade laborativa. Na categoria significado do trabalho cooperativado encontramos os sentidos atribuídos pelos entrevistados ao modo de organização do trabalho no qual encontram-se inseridos, no caso, cooperativo solidário. A categoria economia solidária diz respeito à visão que os entrevistados possuem a respeito desse tipo de organização econômica do trabalho, incluindo as formas de relações interpessoais que a constituem. Na categoria economia capitalista, encontramos a visão dos entrevistados em relação à organização do trabalho e às relações sociais regidas pelo ótica do capital. Por fim, a categoria importância da Psicologia refere-se à visão dos feirantes sobre o trabalho do psicólogo.

"FAZER PSICOLOGIA É IGUAL A FAZER AGROECOLOGIA" (sic)

Sobre o significado do trabalho, um entrevistado trouxe "sentir-se mais valorizado, o aumento da auto-estima e o estar sendo útil" (sic) como conseqüências importantes da atividade laborativa. O "fazer com amor" (sic) e a "preocupação com o futuro da humanidade" (sic), também trazidos por outros dois entrevistados, denotam que o trabalho não significa apenas a manutenção e (re)produção das condições materiais de existência mas também a possibilidade de identidade social e valorização pessoal, aspectos estes, reconhecidos dentro da economia solidária. Vemos aqui o trabalho não apenas como produção de vida material, mas como possibilidade de inserção social, de reconhecimento e de reconhecer-se como sujeito de sua própria existência no mundo.

Já o trabalho cooperativado tem sua importância em função da atividade que é desenvolvida em grupo, onde deve haver diálogo, reuniões, troca de idéias e experiências, além de amizade e bom relacionamento entre as pessoas. É preciso, segundo um entrevistado, "ter consciência da importância de trabalhar assim" (sic). Para outros, a cooperativa tornou-se a realização de um sonho, a concretização de um desejo e um lugar de informação.

Em relação à economia solidária foi enfatizado por um entrevistado que o mais importante não é visar o lucro, mas a "otimização da produção, valorizar o ser humano e valorizar o trabalho" (sic). Segundo ele, na prática isso se dá através da parceria, troca, ajuda mútua de um com o outro, diálogo com o consumidor, além de vínculos de amizade. Esse tipo de relacionamento não seria meramente comercial, mas se constroem relações de troca onde todos devem se sentir co-participantes da proposta da economia solidária, seja ele consumidor, produtor ou fabricante de produtos utilizados na fabricação de outros produtos. As formas de se relacionar surgem espontaneamente, são criadas e recriadas aos poucos (SINGER & SOUZA, 2000). Trabalhar com economia solidária para esse feirante é uma "questão de formação, um ponto quase cultural" (sic). Essa situação nos faz pensar que talvez seja necessário, para esse tipo de trabalho, um processo de formação crítico e reflexivo, baseado em relações dialógicas6 6 FREIRE, Paulo. A educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. e uma identificação do cooperativado com os princípios da economia solidária. Lembrando Sawaia (in CAMPOS, 1996, p. 49): "os valores comunitários devem ser interiorizados como projeto individual para se transformar em ação. Devem ser pensados e sentidos como necessidade". Singer e Souza também afirmam que a economia solidária não pode acontecer a partir de uma solidariedade forçada, ela deve se transformar em valor e norma interior de vida.

Ao contrário da economia solidária, a economia capitalista tem a maximização dos lucros e o trabalho individual como metas, o que aumenta as diferenças entre quem tem capital e quem não tem, tornando-se difícil a sobrevivência deste último no mundo econômico, jogando-o num lugar de exclusão social. Um feirante relata que por muito tempo trabalhou assim, porém, diz ele: "eu me sentia acuado, o que está acontecendo, isso não é correto. Estava insatisfeito" (sic). Buscou informação e encontrou o seu lugar nos moldes da economia solidária, um lugar de "inclusão", ou seja, um lugar onde o produtor tem poder de decisão na forma de produzir e comercializar o seu produto e se sente sujeito responsável pelo seu próprio trabalho, além de possuir o compromisso social de zelar pela saúde das pessoas e pela conservação do planeta.

Em relação à importância da Psicologia ou do trabalho do profissional desta área, um dos entrevistados nos relata que o psicólogo seria "uma pessoa que tem a possibilidade de fazer um aconselhamento, traduzir de uma maneira que seja fácil de perceber ou entender as tuas emoções, os teus sentimentos" (sic). Essa característica do psicólogo de um tradutor remete-nos ao trabalho de ressignificação da própria palavra dita pelo sujeito, de ouvir o não dito, ou seja, de dizer em essência aquilo que é desejado comunicar. Essa habilidade faz do psicólogo comunitário uma peça importante na facilitação da comunicação entre os membros de um grupo, uma vez que pode traduzir não apenas mensagens individuais, mas também coletivas.

Alguns feirantes disseram não saber qual a importância do trabalho do psicólogo, o que pode demonstrar a distância da psicologia enquanto profissão da população em geral. Uma das entrevistadas falou também que o "psicólogo é uma pessoa estranha, e por isso tem como auxiliar" (sic), isto é, uma pessoa isenta, que não vai tomar partido da situação. Nesse caso, vê-se a importância de um olhar de fora, não contaminado pela problemática do grupo, um olhar que vê "que a problemática não é tão grande" (sic) e que o grupo têm meios possíveis de solucionar. Para Vasconcelos (1989), o trabalho comunitário possibilita colocar a saúde mental numa perspectiva preventiva e inerente à vida social. Visa também, atuar sobre as contradições internalizadas nas pessoas e nos grupos sociais, contribuindo para a explicitação desses mecanismos, possibilitando assim situações nas quais os grupos possam assumir e criar novas formas de comportamento social mais democráticas, participativas e solidárias.

Para um agricultor feirante "fazer psicologia é igual a fazer agroecologia" (sic). Essa frase foi dita por ele durante uma conversa informal em um dos pavilhões da cooperativa. Segundo ele, a prática da agricultura ecológica exige um conhecimento prévio transmitido ao agricultor de forma que ele tenha condições de compreender como se dá o preparo e o cultivo do solo nessa modalidade de produção. Diz respeito a todo um trabalho de recuperação do solo, que leva em média três anos para começar a dar resultados positivos. O agricultor utiliza ao máximo seus próprios recursos naturais para fazer esse trabalho e conta com a resposta da natureza que segundo ele é "prodigiosa e reage a um trabalho desses" (sic). Ainda, a agroecologia visa a "otimização da produção" (sic), ou seja, produzir alimentos saudáveis, puros, sem produtos químicos que danificam o homem e a natureza.

O fazer psicologia remete-nos a um trabalho de promoção de saúde, em que os sujeitos do processo sejam levados a encontrar recursos internos que os capacitem a criar alternativas para solucionar seus problemas. Esse pensar nos lembra a capacidade de resiliência, definida por Rutter (apud ANTONI & KOLLER, 2001, p. 22) como "a capacidade de buscar alternativas eficazes que auxiliarão a enfrentar de forma satisfatória os eventos de vida negativos". Sugere também um trabalho de autoconhecimento que exige tempo e disposição interna do sujeito. O psicólogo precisa de um bom embasamento teórico para planejar, executar e avaliar sua prática profissional, pois ela produz efeitos no sujeito e nos grupos envolvidos. Assim como o agricultor precisa esperar a reação do solo, ou a resposta do seu trabalho, o psicólogo também precisa desenvolver a capacidade de confiança e espera, pois nem todas as pessoas e grupos produzem a mesma resposta, dentro do mesmo tempo.

POSSÍVEIS (DES)ENCONTROS

A partir da experiência na Cooesperança pensamos ser importante o psicólogo trabalhar na formação dos feirantes, antes deles se associarem na cooperativa, na direção da melhoria das relações, da construção da autonomia e da participação consciente como membros de uma cooperativa que tem como pilares a cooperação e a solidariedade. Nesse caso, informar sobre a proposta da economia solidária, confrontar os interesses individuais e coletivos e escutar as expectativas dos futuros feirantes podem ser estratégias interessantes de serem desenvolvidas dentro de um processo de formação para as pessoas que desejam se cooperativar.

A partir da Análise de Conteúdo das entrevistas, identificamos o desconhecimento de alguns feirantes em relação a aspectos essenciais da organização da cooperativa, tais como: o estatuto. Não havia lembrança deste, sendo que um dos entrevistados verbalizou "nem me lembro mais do estatuto" (sic). Nos encontros em grupo, percebemos que nem todos possuem uma participação ativa na análise das dificuldades e na busca de soluções, talvez por não terem clareza do tipo de organização cooperativada em que estão inseridos. Junto a isso, foram trazidos problemas de relacionamentos, tanto dentro dos pequenos grupos como entre os grupos que fazem parte da cooperativa. Diante dessas questões, pensamos que a Psicologia pode ficar disponível aos coooperativados, realizando um trabalho de intervenção centrado nas interações entre os vários integrantes da Cooesperança, contribuindo dessa forma, na promoção de saúde mental.

O trabalho do psicólogo com os feirantes durante a formação dos grupos e antes deles ingressarem como sócios da cooperativa é importante pelo fato de poder trabalhar não somente questões individuais, mas também culturais e sociais que foram construídas historicamente através de modelos de relacionamento fundamentados em um modo de produção capitalista. A intervenção psicológica pode se constituir em uma estratégia importante de escuta, que possibilite o esclarecimento de dúvidas, a formação de cultura de participação e relacionamento econômico dentro da proposta da economia solidária, prevenindo problemas futuros de não adequação de alguns feirantes à organização da cooperativa.

Como essa cooperativa trata-se de um lugar onde circulam inúmeros técnicos como agrônomos, químicos, engenheiros civis, veterinários, dentre outros, o psicólogo não pode ignorar a importância desses profissionais e deve procurar realizar um trabalho articulado com eles. Segundo Vasconcelos (1989, p. 43), "os psicólogos comunitários não são donos de campos de trabalho onde só eles atuam". Essa consciência permite estabelecer uma relação diferenciada nos lugares por onde o psicólogo passa, de respeito à autonomia dos grupos e de incentivo à participação de todos.

É papel do psicólogo adequar e avaliar sua prática constantemente, segundo as peculiaridades do local onde atua. É possível que entre as teorias psicológicas e o campo de atuação aconteçam encontros e desencontros, pois ao mesmo tempo em que nem todo saber se aplica, é indispensável um conhecimento teórico amplo que possibilite ao menos saber o que é apropriado ou não desenvolver em determinada realidade. A atuação também promove a construção de um novo saber que não se encontra pré-estabelecido e que se constitui a partir do próprio fazer.

Finalizando, é importante destacar que nem todas as pessoas aderem à proposta da Cooesperança, nos gerando alguns questionamentos: o que faz com que algumas pessoas abracem a causa d cooperativismo solidário mais facilmente do que outras? Isso decorre de valores e características individuais? De questões culturais? De experiências de vida? Para Guimarães (2002, p. 31), "uma economia capitalista de liberalismo econômico incentiva as iniciativas de cunho pessoal, com a finalidade central de incentivar o lucro. Não há na sociedade a idéia do cooperativismo, até porque o cooperativismo que está sendo desenvolvido tem aspecto conservador e cunho empresarial", assim como é nova a idéia do cooperativismo solidário. Seria a dificuldade de adaptação, então, fruto de uma organização econômico-social? Essas questões ficam em aberto o que sugere um outro tipo de estudo relacionado aos modos de organização coletiva, isto é, as formas que essas organizações encontram para resolver seus problemas e transformar sua realidade.

NOTAS

Recebido: 18/03/2004

1ª revisão: 2/06/2004

2ª revisão: 15/09/2004

Aceite final: 17/09/2004

Eveline Fávero é Acadêmica do Curso de Psicologia da UNIFRA/Santa Maria-RS e Bolsista do Programa de Bolsas de Iniciação Científica (PROBIC). O endereço eletrônico da autora é: evelinefavero@yahoo.com.br

Karen Eidelwein é Mestre em Psicologia Social e Institucional/UFRGS. Docente do Curso de Psicologia da UNIFRA/Santa Maria-RS. Orientadora do Projeto de Iniciação Científica.

O endereço eletrônico da autora é : karen@unifra.br

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  • BAREMBLITT, Gregório. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes. São Paulo: Editora Rosa dos Ventos, 1994.
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  • CAMPOS, Regina H. de Freitas (org). Psicologia Social Comunitária: da solidariedade à autonomia. Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes, 1996.
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  • SAWAIA, Bades Burihan. Comunidade: a apropriação científica de um conceito tão antigo quanto a humanidade. In: CAMPOS, Regina H. de Freitas (org). Psicologia Social Comunitária: da solidariedade à autonomia. Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes, 1996, p. 35-53.
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  • ZIMERMAN, D. Fundamentos Básicos das Grupoterapias. Porto Alegre: ARTMED, 2000.
  • 1
    Cooperativa Mista dos Pequenos Produtores Rurais e Urbanos, vinculados ao Projeto Esperança.
  • 2
    O projeto Esperança é um dos setores do Banco da Esperança da Diocese de Santa Maria –RS, que realiza um trabalho junto a Cooesperança.
  • 3
    A palavra "feirantes" se refere a todos os membros dos grupos que expõem seus produtos no terminal de comercialização direta da COOESPERANÇA e em outros pontos fixos na região de Santa Maria.
  • 4
    A terminologia "grupo de reflexão" foi proposta pelo psicanalista argentino Dellarossa devido a sua etimologia composta de re + flexão, ou seja: sugere que cada um e todos do grupo façam uma renovada e continuada flexão sobre si próprios, assumindo as responsabilidades que lhes são próprias. Ainda, pelo fato de que também este tipo de grupo comporta-se como uma "galeria de espelhos" onde cada um pode refletir-se de forma especular, nos demais e vice-versa (ZIMERMAN, 2000, p. 92).
  • 5
    As entrevistas tiveram duração média de quarenta minutos cada uma.
  • 6
    FREIRE, Paulo. A educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
  • 7
    Trabalho apresentado no XII Encontro Nacional da ABRAPSO, em 16 de outubro de 2003, Porto Alegre –RS e também no º SEPE (Simpósio de Pesquisa e Extensão) da UNIFRA – RS, no mesmo ano. O artigo é decorrente do projeto de iniciação científica intitulado "O grupo como espaço de reflexão para o jovem trabalhador rural".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Maio 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2004

    Histórico

    • Aceito
      17 Set 2004
    • Revisado
      15 Set 2004
    • Recebido
      18 Mar 2004
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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