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UMA DISCUSSÃO SOBRE A PRÁTICA DA RETRADUÇÃO COM BASE NO CASO DAS REPUBLICAÇÕES DE OBRAS DE CLARICE LISPECTOR NO EXTERIOR

A DISCUSSION ABOUT THE PRACTICE OF RETRANSLATION BASED ON THE CASE OF CLARICE LISPECTOR'S WORKS REPUBLICATIONS ABROAD

RESUMO

Nos últimos cinco anos aproximadamente, tem-se observado um maior movimento em torno da autora Clarice Lispector no exterior, especialmente no mundo anglófono. Clarice já era conhecida em países como Inglaterra e Estados Unidos, mas nesse período mais recente foi possível observar o lançamento de uma biografia da autora em inglês, retraduções de várias de suas obras e muita agitação na mídia em torno dessas publicações. A partir desses acontecimentos, este artigo propõe uma reflexão sobre a prática da retradução e seus determinantes, analisando quais são os motivos que levam pessoas a fazer novas traduções para que substituam as já existentes. Em particular, serão cotejados três textos: o original de A hora da estrela ([1977] 1988), sua tradução The hour of the star realizada por Giovanni Pontiero (1992) e sua retradução, feita por Benjamin Moser (2011).

Palavras-chave:
Retradução; Clarice Lispector; Giovanni Pontiero; Benjamin Moser

ABSTRACT

In the last five years or so, there has been a new movement around Brazilian author Clarice Lispector, especially in the English speaking world. Lispector was already known in countries like England and the United States, but during this last period her English biography was published, as well as several retranslations of her works. All this attracted a considerable attention in the media. Based on these events, this paper proposes a reflection on the practice of retranslation and its determinants, analyzing the motives that lead people to make new translations to replace existing ones. A contrastive study will be also proposed of three works in particular: A hora da estrela ([1977] 1998), its translation The Hour of the Star, by Giovanni Pontiero (1992) and its retranslation by Benjamin Moser (2011).

Keywords:
Retranslation; Clarice Lispector; Giovanni Pontiero; Benjamin Moser

INTRODUÇÃO

Giovanni Pontiero, acadêmico escocês de ascendência italiana, foi professor de Latin American Studies em Manchester, UK. Imediatamente após ter finalizado seus estudos em 1960, veio para o Brasil, onde permaneceu por dois anos e ocupou o cargo de Professor de English Studies na Universidade Federal da Paraíba. É reconhecido como tradutor de José Saramago e Clarice Lispector. Seu obituário no jornal Independent o qualifica como "o mais competente tradutor da literatura em português do século XX, e um de seus mais ardentes defensores" (GRIFFIN, 1996GRIFFIN, N. (1996). Obituary: Giovanni Pontiero. Independent10 mar. Disponível em: Disponível em: http://www.independent.co.uk/news/people/obituary-giovanni-pontiero-1341546.html . Acesso em: 16 set. 2016.
http://www.independent.co.uk/news/people...
, s. p.).1 1 No original: "Giovanni Pontiero was the ablest translator of 20th-century literature in Portuguese and one of its most ardent advocates." Essa atitude de "defensor ardente da literatura de língua portuguesa" pode ser ratificada por diversas palestras ministradas por Pontiero, e também por artigos que ele escreveu (PONTIERO 1962PONTIERO (1962). Manuel Bandeira and the Browning Sonnets. In: ORERO, P .; SAGER, J. C. (Ed.). The Translator's Dialogue - Giovanni Pontiero Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company , 1997.; 1964PONTIERO. (1964). Manuel Bandeira and Shakespeare's "Macbeth". In: In: ORERO, P .; SAGER, J. C. (Ed.). The Translator's Dialogue - Giovanni Pontiero Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company , 1997.; 1991PONTIERO. (1991). José Saramago and "O Ano da Morte de Ricardo Reis" ("The Year of the Death of Ricardo Reis"): The Making of a Masterpiece and its Translation. In: ORERO, P .; SAGER, J. C. (Ed.). The Translator's Dialogue - Giovanni Pontiero Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company , 1997.; 1994PONTIERO. (1994a). The Risks and Rewards of Literary Translation. In: ORERO, P .; SAGER, J. C. (Ed.). The Translator's Dialogue - Giovanni Pontiero Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company , 1997.a; 1994PONTIERO. (1994b). Luso-Brazilian Voices: Anyone Care to listen? In: ORERO, P .; SAGER, J. C. (Ed.). The Translator's Dialogue - Giovanni Pontiero Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company , 1997.b; 1994PONTIERO. (1994c). The Task of the Literary Translator. In: ORERO, P .; SAGER, J. C. (Ed.). The Translator's Dialogue - Giovanni Pontiero Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company , 1997.c; 1996PONTIERO. (1996). Critical Perceptions of José Saramago's Fiction in the English Speaking World. In: ORERO, P .; SAGER, J. C. (Ed.). The Translator's Dialogue - Giovanni Pontiero Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company , 1997.).

Em uma publicação que homenageia Giovanni Pontiero após a sua morte (ORERO; SAGER, 1997ORERO, P.; SAGER, J. C. (Ed.). The Translator's Dialogue - Giovanni Pontiero Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company , 1997.), autores como Lya Luft, Ana Miranda e José Saramago comentam sobre suas qualidades profissionais e pessoais. Saramago se refere à experiência de trabalhar com Pontiero como uma "extraordinária aventura humana e literária",2 2 "... an extraordinary human and literary venture." e afirma que o único motivo do tradutor para procurá-lo e se oferecer para traduzir suas obras era a literatura (SARAMAGO, 1997SARAMAGO, J. (1997). To Write is to Translate. In: ORERO, P .; SAGER, J. C. (Ed.). The Translator's Dialogue - Giovanni Pontiero Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company , 1997., p. 86).3 3 "Seu único motivo era o da literatura, e quero enfatizar que ele não tinha interesse material na questão, assim como, sem dúvida, ele não estava preocupado (feliz dele...) sobre qualquer interesse material meu: o que tínhamos em comum era simplesmente um livro que eu tinha escrito e de que ele gostava". (His only motive was that of literature, and I want to stress that he had no material interest in the issue, as equally, without doubt, he was not concerned (bless him...) about any material interests of mine: what we had in common was simply a book which I had written and which he liked." (tradução minha). Estudiosos também escreveram sobre a adequação das traduções de obras de Clarice Lispector feitas por Pontiero. Robyn Marsack, editor da tradução de A descoberta do mundo [Discovering the World] comenta a meticulosa pesquisa que o tradutor fazia para sanar todas as dúvidas, e que às vezes as frases de Clarice o intrigavam. Esse editor, que não conhece a língua portuguesa, percebeu, convivendo com Pontiero e sabendo de suas muitas revisões do texto, que se alguma passagem permanecia obscura ela deveria permanecer obscura: "no caso de Lispector, com sua inclinação para o tentativo, o sugestivo, meu desejo editorial de clareza poderia ser inapropriado" (MARSACK, 1997MARSACK, R. Discovering the World. In: ORERO, P.; SAGER, J. C. (Ed.). The Translator's Dialogue - Giovanni PontieroAmsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 1997., p. 99, tradução minha).4 4 "... in Lispector's case, with her penchant for the tentative, the suggestive, my editorial desire for clarity might be inappropriate". Sobre essa mesma tradução, Hilary Owen observa:

Giovanni negocia com muita eficácia a tradicional dificuldade que o conceito intrinsecamente lusófono, "saudade", apresenta ao tradutor do português. Ele evita interromper o fluxo com uma nota de rodapé e captura duas das muitas conotações do termo com "nostalgia" (p. 514) e "I remember with affection" (p. 514). Sempre consciente de que no estilo da prosa de Clarice "menos é mais", Giovanni sensatamente permite que as contradições e ilogicidades dela falem por si próprias, resistindo à comum tentação de parafrasear ou explicar demais estruturas sintáticas simples que apresentam um paradoxo, tais como "o ator inglês é o homem mais sério da Inglaterra" (p. 612). Contrabalançando isso, ele expande ou explicita no grau em que a expansão e a explicitação se tornam necessárias para comunicar um conceito provisório, não importa quão latente o pleno potencial de seus significados possa ser (OWEN, 1997OWEN, H. In: ORERO, P.; SAGER, J. C. (Ed.). (1997) The Translator's Dialogue - Giovanni Pontiero Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company ., p. 137-8, tradução minha).5 5 "Giovanni negotiates very effectively the traditional difficulty which the intrinsically lusophone concept, "saudade", presents for translators from the Portuguese. He avoids interrupting the flow with a footnote and captures two of the many connotations of the term with "nostalgia" (p. 514) and "I remember with affection (p. 514). Ever conscious that in Clarice's prose style "less is more", Giovanni wisely allows Clarice's contradictions and illogicalities to speak for themselves, resisting the common temptation to paraphrase or overexplain simple syntactical structures which present a paradox, such as "o ator inglês é o homem mais sério da Inglaterra" (p. 612). Conterbalancing this, he expands or explicates to the degree that expansion or explicitation become necessary for communicating a provisional concept, however latent the full potential of its meanings may be."

Além disso, Pontiero trabalhava ativamente na divulgação das obras estrangeiras na Grã-Bretanha. O editor britânico Christopher MacLehose narrou numa entrevista o empenho de Pontiero nessa divulgação, com esforços que iam desde acompanhar autores que visitavam a Grã-Bretanha e não sabiam falar inglês, servindo-lhes de intérprete, até ir pessoalmente visitar um editor para convencê-lo de que um autor ainda não conhecido no mundo de língua inglesa merecia ser traduzido ESTEVES, 2016, p. 22-23.

Embora os exemplos pudessem ser multiplicados, provavelmente as referências apresentadas já bastam para que se delineie o argumento de que Giovanni Pontiero foi um tradutor respeitado por autores, editores e críticos e que ele ativamente promovia a literatura de língua portuguesa em seu país. É tendo essas características em mente que proponho aqui uma discussão sobre a prática da retradução e suas motivações. Nos últimos cinco ou seis anos, várias obras de Clarice foram republicadas em novas traduções. A questão é: precisariam mesmo essas obras ser retraduzidas, por estarem defasadas, ou envelhecidas ou inadequadas para os leitores atuais? No que segue, o trabalho se concentra em Clarice Lispector e nessa onda de retradução de suas obras, coordenada por Benjamin Moser. Em seguida será feita uma análise de como a prática da retradução tem sido tratada por teóricos e quais são as visões deles a esse respeito. Também será feito um breve cotejo da tradução de A hora da estrela feita por Pontiero com o original em português e com a retradução de Benjamin Moser, de mesmo nome.

SOBRE AS RETRADUÇÕES DA OBRA DE CLARICE LISPECTOR

Em seu artigo sobre esse assunto, a professora universitária e tradutora Elizabeth Lowe se refere às retraduções da obra de Clarice, o que sugere começarmos a discussão por esse trabalho.

Ao indagar "por que retraduzir", Lowe argumenta que um editor pode estar convencido da inadequação da tradução num dado momento. Essa tradução não precisa necessariamente conter erros, mas pode estar com a linguagem ultrapassada ou suprimir uma "voz" autoral que existe no original.

Clarice Lispector é uma das grandes vozes da literatura brasileira, mas sua prosa experimental e profundamente introspectiva, embora reverenciada por escritores de língua inglesa de meados do século XX como Elizabeth Bishop, era pouco conhecida pelos leitores dos EUA e do Reino Unido. De acordo com seu biógrafo Benjamin Moser, as traduções de sua obra publicadas em inglês "não são uma boa representação da qualidade de seu trabalho". [...]. Quando Moser ficou sabendo que a [editora] New Directions estava se preparando para relançar The Hour of the Star [A hora da estrela], ele contatou os editores da série e os convenceu a considerarem a possibilidade de realizar novas traduções não apenas desse romance, mas também de outros três (LOWE, 2014LOWE, E. (2014). Revisiting Re-translation: Re-creation and Historical Re-vision. In: Berman, S.; Porter, C. (Ed.) A Companion to Translation Studies, 1e. John Wiley & Sons, Ltd. Disponível em: Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/9781118613504.ch31/summary . Acesso em 25 set. 2016.
http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.10...
, p.415, tradução minha.)6 6 "Clarice Lispector (1920-77) is one of the great voices of Brazilian literature, but her deeply introspective, experimental prose, while revered by mid-twentieth century English-language writers like Elizabeth Bishop, was little known to readers in the US and the UK. According to her biographer Benjamin Moser, the published English translations of her work "do not give a good representation of the quality of her work" [...] When Moser heard that New Directions was preparing to reissue a translation of Lispector's last novel, The Hour of the Star, he contacted the editors of the series and persuaded them to consider new translations of not only that novel, but also three others."

Como se pode ler pelo relato de Lowe, Benjamin Moser convenceu os editores da New Directions a providenciarem retraduções de Clarice, sendo que A hora da estrela foi retraduzida por ele mesmo. Antes, porém, de se propor como tradutor de Clarice, Moser lançou a primeira biografia da autora em língua inglesa. Nessa biografia, ele apresenta Clarice como uma escritora de ascendência judia que viveu uma tragédia familiar: sua mãe teria sido estuprada durante os pogroms que assolavam a região onde a família vivia. Como resultado disso, a mãe de Clarice teria contraído sífilis e morrido desse mal algum tempo depois. Clarice, por sua vez, teria dito que se sentia culpada, pois segundo uma crença de sua região natal, conceber uma criança poderia curar uma mulher enferma. Clarice, no entanto, não conseguira curar a mãe.

Não há espaço aqui para discutir os fundamentos dessa hipótese, mas é importante observar que todo o lançamento da biografia em inglês, que foi bastante noticiado e resenhado, parte dessa hipótese, e promete finalmente revelar os porquês da personalidade reclusa de Clarice. Veja-se, por exemplo, o fechamento da resenha "Untamed Creature", publicada em 19 de agosto de 2009, no mesmo mês da biografia de Moser:

Moser, apesar da recusa de Clarice a fazer referências explícitas a uma ascendência judaica, a coloca firmemente na tradição dos místicos judeus que foram impulsionados pelo cataclismo histórico e o trauma pessoal a criar sua própria teologia a partir da ausência de Deus. Sua biografia, intensamente pesquisada e refinadamente argumentada, com certeza conquistará para Lispector os leitores em língua inglesa que ela merece (EBERSTADT, 2009EBERSTADT, F. (2009) Untamed Creature. The New York Times - Sunday Book Review19 ago. Disponível em: Disponível em: http://www.nytimes.com/2009/08/23/books/review/Eberstadt-t.html?pagewanted=all&_r=0 . Acesso em: 16 mar. 2016.
http://www.nytimes.com/2009/08/23/books/...
, s. p.).7 7 "Moser, despite Lispector's avoidance of overt references to Jewishness, places her firmly in the tradition of Jewish mystics who were driven by historical cataclysm and personal trauma to create their own theology from God's absence. His energetically researched, finely argued biography will surely win Lispector the English-language readership she deserves."

O fato de Moser ser o editor/coordenador das retraduções de Clarice junto à New Directions levanta uma dúvida: Teria ele criado uma fantasia sobre a infância de Clarice, uma fantasia que com certeza atrairia o público de língua inglesa, pois contava com ingredientes como violência, preconceito, perseguição e judaísmo? Teria ele feito isso para em seguida propor à editora o projeto de retraduções de Clarice, que dirigiu? Moser afirma que as traduções se faziam necessárias, tendo se declarado "chocado" com a tradução anterior de A hora da estrela (ESPOSITO, 2015ESPOSITO, S. (2015). Passionate Acolytes: An Interview with Benjamin Moser. The Paris Review17 ago. Disponível em: Disponível em: http://www.theparisreview.org/blog/2015/08/17/passionate-acolytes-an-interview-with-benjamin-moser/ . Acesso em: 24 set. 2016.
http://www.theparisreview.org/blog/2015/...
, s.p.), por ser "muito ruim" (ESTEVES, 2016ESTEVES, L. (2016). A presença da literatura brasileira no exterior e a importância do agenciamento: uma análise guiada por conceitos da sociologia de Pierre Bourdieu. O eixo e a roda v. 25 n. 1, pp. 9-36. Disponível em Disponível em http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/o_eixo_ea_roda/article/view/10189/9667 . Acesso em: 30 set. 2016.
http://www.periodicos.letras.ufmg.br/ind...
, p.31). Será?

É inegável que existe um projeto bem-articulado que com certeza garantirá maior visibilidade a Clarice no exterior. Em 2009 é lançada a biografia, Why this world; em 2011, vem a público a retradução de A hora da estrela feita por Moser; em 2012, quatro outras obras de Clarice vêm a público, três delas sendo retraduções: Near To the Wild Heart, tradução de Perto do coração selvagem de Alison Entrekin; Água Viva, tradução de Stefan Tobler, que mantém o título em português; The Passion According to G. H., tradução de Idra Novey de A paixão segundo G. H.; e The Breath of Life, tradução feita por Johnny Lorenz de Um sopro de vida, obra que não havia sido publicada antes em inglês. Os quatro volumes justapostos formam a imagem de Clarice. Em 2015 foi lançada a coletânea The complete stories, que reúne 85 contos, traduzidos por Katrina Dodson com a supervisão de Moser.

Figura 1
As quatro obras publicadas no ano de 2012, formando o rosto da autora

Acompanhando todo o processo, podemos observar uma divulgação muito bem articulada da obra de Clarice e do próprio editor Benjamin Moser, que é um profissional moderno e está talhado para realizar a promoção da obra e da persona da autora no exterior. Sobre as retraduções, Moser afirmou em entrevista que, além de cada autor ter sua própria voz, os tradutores também têm vozes singulares, e desse fato resultava que Clarice tinha várias vozes em inglês, e ele desejava unificá-las:

Quando comecei com esse projeto, meu desejo era realizar várias coisas. Em primeiro lugar, eu não queria fazer tudo sozinho, porque eu sentia que depois de cinco anos de trabalho na biografia eu precisava seguir adiante. Em segundo lugar, eu queria aumentar o número de tradutores do português. Os bem-conhecidos são poucos e contratados com anos de antecedência - todo mundo quer os mesmos quatro ou cinco. Em terceiro lugar, eu queria criar uma voz unificada para Clarice em inglês. O português dela é extremamente marcado e os tradutores, como todos os escritores, também têm suas próprias vozes bem-marcadas. Isso sem falar dos sotaques - nós tivemos pessoas da Inglaterra e da Austrália, bem como americanos. Então às vezes eu me sentia como o maestro da orquestra. As pessoas tocam os próprios instrumentos, mas o público deve ouvir uma única voz. O trabalho exigido para isso não pode ser exagerado. Expliquei minha abordagem para os tradutores que entrevistei para o projeto. E todos concordaram que era importante, especialmente, tentar preservar a estranheza de Clarice em inglês, não se intrometer na sintaxe dela, não tentar aplainá-la, mas deixar que esses livros ressoassem e retumbassem com a mesma cacofonia e glória de seu inimitável português (ESPOSITO, 2015ESPOSITO, S. (2015). Passionate Acolytes: An Interview with Benjamin Moser. The Paris Review17 ago. Disponível em: Disponível em: http://www.theparisreview.org/blog/2015/08/17/passionate-acolytes-an-interview-with-benjamin-moser/ . Acesso em: 24 set. 2016.
http://www.theparisreview.org/blog/2015/...
, s. d., tradução minha).8 8 "So when I started out with this project, I wanted to accomplish several things. First, I didn't want to do it all myself, because I felt that after five years of work on the biography I needed to move on. Second, I wanted to increase the number of translators from the Portuguese. The well-known ones are few and often booked years in advance-everyone wants the same four or five people. I wanted to find younger people. Third, I wanted to create a unified voice for Clarice in English. Her Portuguese is extremely distinct, and translators, like all writers, have very distinct voices of their own. Not to mention accents-we had people from England and Australia as well as Americans. So I felt sometimes like the director of the orchestra. People play their own instruments, but the audience should hear a single voice. The work this required can't be overstated. I explained my approach to the translators I interviewed for the project. And they all agreed that it was important, especially, to try to preserve Clarice's strangeness in English, not to muck with her syntax, not to try to iron her out, but to let these books clash and bang as cacophonously and as gloriously as in her inimitable Portuguese."

Parece bastante convincente, mas será que tudo isso é necessário e, acima de tudo, possível? Para tentar responder a isso, é preciso discutir o conceito de retradução dentro da área dos Estudos da Tradução, para que se entenda melhor, a partir de discussões anteriores, como se dá esse processo e quais são suas mais frequentes motivações. Em seguida, faremos um cotejo entre A hora da estrela, sua tradução feita por Giovanni Pontiero e sua retradução feita por Benjamin Moser.

SOBRE A PRÁTICA DA RETRADUÇÃO

Ao contrário do que acontece com as grandes obras da literatura mundial, que são consideradas eternas, as traduções envelhecem e, portanto, essas obras precisam ser retraduzidas. Embora essa afirmação tenha uma lógica questionável, ela reflete um senso comum sobre obras originais e traduções. Não se explicita exatamente por quê, mas as obras originais parecem sobreviver ao passar dos anos enquanto as traduções logo envelhecem e ficam inadequadas. Como se uma obra original não estivesse intimamente ligada à época e ao contexto que a produziram, o que poderia igualmente relegá-la ao envelhecimento e à inadequação.

O que não se percebe é que as obras originais são relidas (e ressignificadas) a cada vez que alguém se põe a lê-las, de modo que elas vão se transformando ao longo do tempo. Equivocada ou não, essa crença na obsolescência da tradução é a principal justificativa para a realização de novas traduções de determinadas obras. Por outro lado, é comum encontrarmos o argumento - baseado em afirmação de Walter Benjamin - de que as traduções garantem a sobrevivência do original (cf., por exemplo, LOWE 2014LOWE, E. (2014). Revisiting Re-translation: Re-creation and Historical Re-vision. In: Berman, S.; Porter, C. (Ed.) A Companion to Translation Studies, 1e. John Wiley & Sons, Ltd. Disponível em: Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/9781118613504.ch31/summary . Acesso em 25 set. 2016.
http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.10...
, p. 414).

Retomando a afirmação de Lowe mencionada acima, o primeiro motivo que justifica a retradução de uma obra é a crença, por parte do editor, de que as obras disponíveis não estão bem-feitas e que existe mercado para uma versão melhor do texto (LOWE, 2014LOWE, E. (2014). Revisiting Re-translation: Re-creation and Historical Re-vision. In: Berman, S.; Porter, C. (Ed.) A Companion to Translation Studies, 1e. John Wiley & Sons, Ltd. Disponível em: Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/9781118613504.ch31/summary . Acesso em 25 set. 2016.
http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.10...
, p. 415). Essa inadequação das traduções existentes pode se referir a erros, omissões ou à inserção de material não pertencente à obra original; também pode ser relacionar a questões estilísticas e a um desagrado quanto à "voz" do texto, que não se aproximaria da do original. Lowe se refere à crença de que a vida média de uma tradução é de 30 anos e que as traduções envelhecem mais cedo que os originais. Assim, as retraduções funcionariam como uma "revisão histórica" de uma obra, uma modernização que reflete mudanças na linguagem e no contexto (LOWE, 2014LOWE, E. (2014). Revisiting Re-translation: Re-creation and Historical Re-vision. In: Berman, S.; Porter, C. (Ed.) A Companion to Translation Studies, 1e. John Wiley & Sons, Ltd. Disponível em: Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/9781118613504.ch31/summary . Acesso em 25 set. 2016.
http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.10...
, p. 416).

Outros autores que se debruçaram sobre o tema da prática da retradução apresentam justificativas semelhantes às propostas por Lowe, sendo que alguns comentam o que veio a ser chamado de "hipótese da retradução". Discutindo o assunto, o professor universitário Mauri Furlan traz o conceito de "tradução-texto", proposto por Henri Meschonnic. A tradução-texto seria um texto alçado à imortalidade, tanto quanto o original:

Para subsistir ao lado do original, para atingir sua imortalidade, uma tradução precisa ser produzida a partir da significância e, em sendo histórica, atingir valores supra-históricos, supra-ideológicos, como o fez o original, tornar-se texto. "A tradução não-texto envelhece: sendo passivamente a produção de uma ideologia, ela passa com esta ideologia" (FURLAN, 2013FURLAN, M. (2013). Retraduzir é preciso. Scientia Traductiones n. 13, pp. 284-294. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/article/view/30276/25172 . Acesso feito em: 16 set. 2016.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/sci...
, p. 290).

Indo ao encontro dessa ideia de que uma tradução pode atingir a imortalidade, John Milton e Marie Hélène Torres trazem a argumentação de Antoine Berman, segundo a qual haveria dois tempos e dois espaços da tradução: o das primeiras traduções, que fariam uma apresentação da obra para a cultura-alvo, e o das retraduções, que tentariam, em geral, aproximar-se mais do texto e da língua originais (MILTON & TORRES, p. 10). Yves Gambier também menciona Berman9 9 Os textos de Berman citados por Milton & Torres e Gambier são: BERMAN 1985 e BERMAN 1992. e suas ideias sobre a retradução:

Assim, com base em Berman (1985BERMAN, A. (1985). La traduction et la lettre ou l'auberge du lointain. In: Les tours de Babel. Mauvezin: Trans-Europ. e 1990), é possível supor que uma primeira tradução tende sempre a ser mais assimiladora, a reduzir a alteridade em nome de imperativos culturais e editoriais: são feitos cortes, o original é rearranjado em nome de certa legibilidade, ela mesma um critério de venda. A retradução, nessas condições, consistiria em um retorno ao texto-fonte (GAMBIER, 1994GAMBIER, Y. (1994). La retraduction, retour et détour. Meta: journal des traducteurs / Meta: Translators' Journal , vol. 39, n° 3, pp. 413-417. Disponível em: Disponível em: http://www.erudit.org/revue/meta/1994/v39/n3/002799ar.html?vue=resume . Acesso em: 16 set. 2016.
http://www.erudit.org/revue/meta/1994/v3...
, p. 414, tradução minha).10 10 "Ainsi, à la suite de Berman (1985 et 1990), on peut prétendre qu'une première traduction a toujours tendance a être plutôt assimilatrice, à réduire l'altérité au nom d'impératifs culturels, éditoriaux: on fait des coupures, on réarrange l'original au nom d'une certaine lisibilité, elle-même critère de vente. La retraduction dans ces conditions consisterait en un retour au texte-source."

Milton & Torres qualificam o argumento de Berman de "simplificação", afirmando que as traduções posteriores, embora de fato suplementem uma primeira tradução, não necessariamente a "melhoram" ou a aproximam mais do original; o que há na realidade é um movimento de avanços e recuos: as primeiras traduções não são sempre facilitadoras (MILTON & TORRES, 2003MILTON, J.; TORRES, M. H. C. (2003). Apresentação. INCadernos de Tradução, v.1, n. 11 (Edição especial: "Tradução, retradução, adaptação"). Santa Catarina: Pós-graduação em Estudos da Tradução - PGET, Universidade Federal de Santa Catarina, pp. 9-17. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/issue/view/434/showToc . Acesso em: 17 set. 2016.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/tra...
, p. 10).

Yves Gambier detecta na hipótese de Berman uma ilusão, que suporia que o conteúdo está depositado na obra de partida, e que tal conteúdo é considerado imutável. Essa seria uma visão logocêntrica do texto, que apostaria em uma imanência do sentido:

A retradução é um retorno desviado, indireto: não se pode tentar outra tradução a não ser depois de um período de assimilação que permite julgar inaceitável o primeiro trabalho de transferência. Proust, por exemplo, pôde ser retraduzido em inglês porque houve uma nova edição (completa) dos textos e porque a escrita proustiana conquistou espaço entre as formas literárias aceitas. A retradução não é descoberta no sentido trivial da palavra; ela o é, entretanto, em seu esforço de aproximação literal: ela descobre uma escrita recoberta pelas normas e convenções da língua de chegada. Se há retorno, é por meio do desvio da primeira tradução, ela mesma frequentemente uma obra de desvio. A retradução libera as formas escravizadas, restitui a significância, fazendo trabalhar a língua de tradução: retraduzir Apollinaire em finlandês é perceber enfim que o poeta não é finlandês, não está inscrito na tradição local (GAMBIER, 1994GAMBIER, Y. (1994). La retraduction, retour et détour. Meta: journal des traducteurs / Meta: Translators' Journal , vol. 39, n° 3, pp. 413-417. Disponível em: Disponível em: http://www.erudit.org/revue/meta/1994/v39/n3/002799ar.html?vue=resume . Acesso em: 16 set. 2016.
http://www.erudit.org/revue/meta/1994/v3...
, p. 414-415, tradução minha).11 11 "La retraduction est un retour dévoyé, indirect: on ne peut tenter une traduction autre qu'après une periode d'assimilation qui permet de juger comme inacceptable le premier travail de transfert. Proust, par exemple, a pu être retraduit en anglais parce qu'il y a eu nouvelle édition (completée) des textes et parce que l'écriture proustienne a pris place dans les formes littéraires admises. La retraduction n'est pas découverte au sens trivial du mot; elle l'est néanmoins dans son effort de rapprochement littéral: elle découvre une écriture recouverte par les normes et conventions de la langue d'arrivée. S'il y a retour, c'est par le détour de la première traduction, elle-même souvent ouvrage de détournement. La retraduction délie les formes asservies, restitue la signifiance, ouvre aux spécificités originelles, tout en faisant travailler la langue traduisante: retraduire Apollinaire en finnois, c'est percevoir enfin que le poète n'est pas Finlandais, n'est pas inscrit dans la tradition locale."

Embora Gambier critique a visão de Berman como logocêntrica, já que Berman supostamente acreditaria em conteúdos depositados no texto de partida, eles parecem convergir na ideia de que a capacidade de uma cultura-alvo para aceitar formas literárias estrangeiras é gradual e progressiva. A sutil diferença estaria em Berman apostar (alinhado aí com Meschonnic) na possibilidade de uma tradução definitiva, liberada das ideologias e do contexto da língua-alvo.

Milton e Torres desafiam mais a visão de Berman, afirmando que essa tendência não se observa em todos os casos de retradução. Os autores propõem que o que acontece é uma alternância de avanços e recuos.

Isabelle Desmidt chama a visão de Berman de "hipótese da retradução" em seu estudo de versões (52 alemãs e 18 holandesas) de um clássico infantil sueco, (A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson através da Suécia - em sueco Nils Holgerssons underbara resa genom Sverige) de Selma Lagerlöf (1858-1940). Seu principal intuito é verificar se essa hipótese se aplica e, em caso afirmativo, em que medida se aplica, para as versões estudadas. Sua conclusão é negativa, mas é importante apontar que ela estuda um corpus mais amplo, levando em consideração também publicações em braile, em vídeo e LPs. Segundo Desmidt, é claro que a hipótese não tem um valor geral, sendo que ela pode ser válida em alguma medida, se não for formulada em termos absolutos (DESMIDT, 2009DESMIDT, I. (2009). (Re)translation Revisited. Meta: journal des traducteurs / Meta: Translators' Journalv. 54, n. 4, pp. 669-683. Disponível em: Disponível em: http://id.erudit.org/iderudit/038898ar . Acesso em: 17 set. 2016.
http://id.erudit.org/iderudit/038898ar...
, p. 699).

O que se conclui das discussões apresentadas é que, embora não seja possível afirmar em 100% dos casos que as retraduções são formalmente mais próximas dos textos de partida que as traduções anteriores, pode-se observar uma tendência a que as retraduções sejam realmente mais próximas dos originais, provavelmente porque a cultura receptora já passou por um período de convivência com a obra estrangeira e está mais preparada para aceitar as singularidades da escrita daquele autor específico. Resta-nos agora investigar se realmente a retradução de A hora da estrela imita melhor os traços da escrita de Clarice, suas singularidades. Benjamin Moser classificou o estilo de Clarice como "estranho e inesperado",12 12 ..."strange and unexpected". e afirmou que a tradução de A hora da estrela feita por Pontiero tenta corrigir essa característica da linguagem da autora:

Os tradutores tentaram aplainá-la, corrigir sua pontuação estranha e seu fraseado insólito. É um impulso compreensível, mas que presta à autora um desserviço: se você retira a estranheza de Clarice, você retira Clarice. Algumas das traduções, como The Hour of the Star, que eu acabei de publicar em minha própria versão, levaram isso ao extremo, preenchendo cada cesura dela com fraseados demasiadamente explícitos que tornam sua prosa arrastada em vez de poética (MOSER, 2011MOSER, B. (2011). Brazil's Clarice Lispector Gets a Second Chance in English. Publishing Perspectives, 2 dez. Disponível em: Disponível em: http://publishingperspectives.com/2011/12/brazil-claire-lispector-second-chance-in-english/#.V-bdvTWviO0 . Acesso em: 24 set. 2016.
http://publishingperspectives.com/2011/1...
, s. p., tradução minha).13 13 "Translators tried to smooth her out, to correct her odd punctuation and her weird phrasings. It's an understandable impulse, but it does her a disservice: if you take out the weirdness of Clarice, you take out Clarice. Some of the translations, like The Hour of the Star, which I have just published in my own version, took this to an extreme, filling her every caesura with overly explicit phrasings that made her prose plodding instead of poetic."

Cabe-nos, então, realizar um breve cotejo entre a obra original e as duas traduções, para verificar se a "hipótese da retradução" se aplica a esse livro em particular

COTEJO DOS TRÊS TEXTOS

A hora da estrela é o último romance de Clarice publicado, no qual um narrador masculino, Rodrigo S. M., narra ou tenta narrar a história de Macabéa, uma garota pobre e despossuída que lhe atormenta a consciência e o obriga a escrever. Os trechos escolhidos tentam contemplar as duas instâncias principais de enunciação: Rodrigo falando de si próprio e Rodrigo falando de Macabéa, embora essa separação não seja sempre tão fácil de fazer

O primeiro excerto aparece logo na abertura do romance, em que Rodrigo S. M. explica sua necessidade de escrever:

Excerto A

O primeiro fato a observar é que o número de palavras dos dois excertos em inglês é maior que o do excerto em português. Essa tendência vai se manter também nos outros trechos analisados. Embora tirar conclusões de um simples cálculo numérico possa ser perigoso, não deixa de saltar aos olhos que as traduções sejam mais longas que o texto-fonte, o que talvez já indique uma tendência à explicitação. Geralmente, a comparação entre um texto em inglês e sua tradução em português revela que o texto em português é mais longo, em virtude da maior ocorrência de monossílabos e palavras mais curtas em inglês do que em português.

Os trechos grifados foram escolhidos tendo em vista alguma singularidade da escrita de Clarice. O primeiro deles é " deu uma fisgada funda em plena boca nossa", que além de colocar a ação no coletivo, inverte a ordem usual das palavras em "boca nossa". Pontiero traduziu essa sequência por "has given me a sharp twinge right in the mouth", e Moser escolheu "has given me a sharp stab in the middle of our mouth". Nota-se mais estranheza no texto de Moser do que no de Pontiero, embora nenhum dos dois reproduza a escrita diferenciada de Lispector. Moser coloca dois possessivos e desequilibra um pouco a sintaxe ("given me... in the middle of our mouth"). Devido à própria diferença sintática entre português em inglês, talvez não haja mesmo como conseguir o estranhamento que "boca nossa" traz para essa frase. "Mouth our" seria muito mais antigramatical e não se justificaria.Talvez "in the middle of this mouth of ours" fosse uma saída eficaz.

Na segunda sequência grifada, Clarice escreve "é a minha própria dor, eu que carrego o mundo e há falta de felicidade". Essa é uma sintaxe truncada, já que a primeira frase cria a expectativa de manutenção do sujeito "minha própria dor" e não a introdução de um "eu". Além disso, a frase que vem em seguida também é de certa forma inesperada, já que o que vem após o "e" não é uma continuação da frase anterior (como aconteceria, por exemplo, em "eu que carrego o mundo e sofro", mas uma frase desconectada da anterior, "e no mundo há falta de felicidade". Giovanni Pontiero aparou todas essas arestas, primeiro proporcionando uma sequência mais suave em "It's the sound of my own pain", em oposição ao "é a minha própria dor". Em português, o grito é a própria dor. Em Pontiero, o grito é uma expressão da dor, seu som. Além disso, Pontiero repete a preposição of e acrescenta "someone", em "of someone who carries the world", o que suaviza a passagem que em Clarice é mais abrupta ("eu que carrego o mundo"). A maior suavização dessa passagem, no entanto, está na introdução de uma conjunção subordinativa que dá nexo sintático à frase: "this world where there is so little happiness."

A terceira passagem grifada traz a interrupção da frase de Clarice após a preposição de. Não haveria impedimentos de ordem linguística para reproduzir essa interrupção abrupta, o que de fato Benjamin Moser faz em "It is the vision of the imminence of." Já Pontiero substitui o ponto final pelas reticências, o que traz a impressão de uma suspensão de algo que logo será retomado, e não uma interrupção brusca.

Excerto B

Essa passagem traz opções semânticas, da parte dos dois tradutores, que alteram o sentido do texto de Clarice. A primeira delas é a escolha do verbo worry para substituir o disturb de Clarice. O termo "incomoda" é muito significativo para a construção da narrativa, porque o narrador Rodrigo S. M. escreve por uma espécie de imposição que a personagem lhe faz. Escrever para ele não é agradável. Ele mais se revolta contra a existência de alguém como Macabéa do que se apieda da personagem. Apesar de em uma passagem declarar seu amor em "Sim, estou apaixonado por Macabéa, a minha querida Maca..." (LISPECTOR, 1999, p. 68), Rodrigo S. M. preferiria que ela - e gente como ela - nunca tivesse existido, já que o mero fato de ela existir gera nele uma culpa da qual ele não consegue se livrar. Quando Pontiero escolhe worry, ele até certo ponto desvia o sentido dessa revolta/culpa/indignação de Rodrigo S. M., que em sua tradução parece adotar um tom mais paternalista para com Macabéa.

Por outro lado, a inversão sintática de Moser acaba alterando também a relação causa-consequência da passagem. Enquanto Clarice escreve "Ela tanto mais me incomoda quanto menos reclama"; e Pontiero traduz a passagem como "The less she demands, the more she worries me"; Moser, mesmo tentando manter a sequência de palavras, acaba alterando o sentido com "the more uncomfortable she makes me, the less she demands". Na tradução de Moser, a oração principal "the more uncomfortable she makes me" determina a subordinada, "the less she demands". Assim, o que determina o fato de Macabéa exigir menos é ela incomodar mais a Rodrigo S. M. No original e na tradução de Pontiero, o raciocínio é oposto: quanto menos Macabéa exige, mais ela incomoda/preocupa.

Excerto C

Nesse excerto, a primeira sequência sublinhada traz duas expressões que pertencem a um repertório mais popular/coloquial. Em português, "mas aí é que está" introduz um problema ou dilema. Pontiero, com seu "but that is the problem" expressa o significado da frase em português, mas altera de certa forma o registro, que em sua tradução é menos coloquial. Já Moser, com "there's the rub", aproxima mais sua tradução do original em termos de estilo, empregando uma frase relativamente pronta da língua. Além disso, os aficionados reconhecerão a frase do famoso monólogo de Hamlet, "Ser ou não ser". Em "esta história não tem nenhuma técnica, nem de estilo", Clarice faz uma elipse. O sentido da frase seria "esta história não tem nenhuma técnica, nem [em termos] estilo. Pontiero explicita a elipse do original, escrevendo "not even in matters of style"; Moser, embora mantenha a frase mais enxuta, elimina a elipse e coloca os dois termos no mesmo patamar, o que significa que em sua redação a história não tem nem técnica nem estilo, o que se opõe à ideia de "nenhuma técnica, nem mesmo de estilo" que se depreende do texto em português e da tradução de Pontiero.

Ainda nessa sequência, a expressão "ao deus dará" dá uma ideia de acaso, de nenhuma determinação. No Dicionário Houaiss, essa locução equivale a "ao acaso, à sorte, à ventura", de forma que a tradução de Pontiero, "at random", busca expressar o mesmo sentido de falta de causalidade, embora a expressão inglesa seja mais neutra, menos marcada em termos de coloquialidade. Já Moser, ao escolher "from hand to mouth", expressão que inclusive existe também em português, embora não seja registrada pelo Dicionário Houaiss, traz mais um sentido de "falta de recursos", ou "penúria", que se alinha com a caracterização da pobreza da personagem, afastando-se da noção de aleatoriedade.

Já em "esta história de que não tenho culpa e que sai como sair", volta a noção de aleatoriedade, a que se adiciona a alegação do narrador de não ser responsável nem culpado pela narrativa que produz. A tradução de Pontiero, "which comes out as it will, independent of me" enfatiza a independência da narrativa em relação ao narrador, mas não menciona o conceito de culpa. Já Moser, com "of which I'm not guilty and which turns out however it turns out", se aproxima mais do que foi dito no texto em português.

Excerto D

Em relação à primeira sequência grifada, pode-se concluir que a estranheza que o texto de Clarice provoca quando não usa o artigo ("conclusão de que vida incomoda bastante"), não pode ser reproduzida em inglês, que em suas regras define que num contexto assim não se usa o artigo definido. Outra palavra que provavelmente causará algum efeito de novidade é o adjetivo "rala" para qualificar alma. "Rala" é um adjetivo que em geral usamos para líquidos e essa não é uma descrição esperada para "alma". Pontiero escolhe "delicate", o que abranda o sentido e dá à alma de Macabéa uma caracterização mais positiva. Moser usa "flimsy", que não seria em geral usado com líquidos, dando uma ideia de "frágil", "franzino". Será que traduzir esse sintagma por "thin soul" não aproximaria mais o texto do original de Clarice?

Na sequência, Clarice nos apresenta um neologismo ao estilo de Guimarães Rosa, que muda as palavras de classe gramatical aplicando-lhes sufixos que lhe são alheios; o efeito é muito expressivo. Provavelmente a recriação desse efeito em inglês seja impossível, justamente porque essa língua não tem tantos sufixos como o português. Mesmo que algum tradutor tentasse um "she little imagined", poderia causar algum efeito de estranhamento, mas na verdade a frase tenderia mais a ser interpretada como algo da ordem de "ela imaginava pouco", não trazendo a ideia de que a imaginação de Macabéa era limitada.

Excerto E

Nesse trecho, Clarice usa o recurso da repetição de algumas palavras, todas aparecendo três vezes em seguida uma da outra. Na primeira sequência, "tão-tão-tão" parece dar mais intensidade à beleza do homem. Nos outros casos, com "esmeralda-esmeralda-esmeralda", "com-com-com" e "para-para-para", as palavras se repetem por causa da "gagueira mental" de Macabéa, tão embasbacada ela está. Pontiero, para enfatizar a beleza do rapaz, usa a expressão "amazingly good-looking", uma expressão que chama a atenção para a intensidade da beleza do rapaz, mas de um modo mais convencional. Moser fica com "so, so, so good looking". A escolha do sinal usado nas outras repetições faz diferença. Clarice usa hifens que unem as palavras sem nenhum espaço entre elas. Pontiero usa travessões, o que diminui o impacto da repetição. Moser faz como Clarice, com hifens. Quando Clarice usa o travessão, para separar o primeiro "como" do segundo, Moser faz o mesmo. Nessa passagem, o travessão parece indicar mais uma hesitação do que a "gagueira mental" de Macabéa. Pontiero, como não diferencia os sinais e usa em todas as ocorrências o travessão, pode criar um efeito diluído da gagueira de Macabéa.

No caso de "com-com-com", Pontiero e Moser fazem uma opção interessante: alteram a palavra repetida, de "to" para "marry", talvez porque tenham julgado a palavra "to" curta demais e que "marry" teria mais impacto. No caso de "para-para-para", Pontiero segue o mesmo procedimento e escolhe repetir a palavras "seen - seen - seen", talvez por ser mais longa. Moser escolhe "to-to-to", o que traz a possibilidade de escolher "marry-marry-marry" na sequência anterior só para não ter duas sequências de "to-to-to".

Ao final, Clarice usa uma expressão incomum para falar do rapaz: "bonito além do possível equilíbrio de uma pessoa". Pontiero opta por uma expressão bastante enfática, porém não tão incomum, "much too good-looking by far". Já Moser traduz de uma forma bastante próxima do texto em português, conseguindo um efeito menos convencional.

Excerto F

A expressão "eles não sabiam como se passeia" é original e lapidar, descrevendo com muita intensidade como os dois personagens, que não têm oportunidade de lazer e levam uma vida muito pobre e sem opções, não têm capacidade de desempenhar uma das atividades mais prosaicas da vida. Pontiero usou mais palavras, "Neither of them knew much about walking about together", e seu fraseado, mais uma vez, é mais próximo do convencional, embora a ideia não o seja. Moser, outra vez, procura manter a estrutura do texto em português de Clarice, escolhendo "They didn't know how to take a walk".

Mais adiante, a expressão "pois não é que estava chovendo?" mostra o narrador entre surpreso e consternado diante das coincidências: toda vez que Macabéa e Olímpico se encontram, chove. Pontiero usa um expressivo "well now", que segundo o Urban Dictionary é uma expressão para indicar que a situação é esquisita, ou quando o interlocutor não sabe exatamente o que dizer. Moser usa "wouldn't you know it was raining"?" A expressão "wouldn't you know it" tem, segundo o The Free Dictionary, um sentido de surpresa. Segundo o Wikitionary, pode significar decepção ou irritação. As duas reações poderiam ser possíveis por parte do narrador.

A frase de desabafo de Olímpico desvia do padrão em português, como se Macabéa, ela própria, chovesse, "Você também só sabe é mesmo chover". Pontiero neutraliza o desvio, dizendo que Macabéa só traz chuva, o que está dentro das normas das duas línguas. Moser mantém o desvio com "All you ever do is rain".

Excerto G

Mais uma vez se observa aqui que Pontiero "facilita" as coisas para o leitor, acrescentando explicitações e optando por uma sintaxe mais convencional. Na segunda sequência grifada, a fala do narrador passa sem transição nenhuma para a fala de Macabéa: "O rinoceronte lhe pareceu um erro de Deus, que me perdoe por favor, sim?". Pontiero opta por "The rhinoceros was surely one of God's mistakes, she thought, begging His pardon for such blasphemy. Na frase seguinte, Clarice interrompe a frase após um "de", como também fez no excerto A. Pontiero não escreve uma frase truncada. No excerto A, ele usa reticências, que suavizam a passagem. No excerto G, ele não faz nenhuma interrupção e acrescenta uma explicitação, "it was simply a way of expressing herself". Nessas sequências todas a tradução de Moser fica mais próxima da sintaxe do texto em português, com "... an error of God, please forgive me, okay?". Na sequência seguinte, ele interrompe a frase com um of, exatamente como fez no excerto A.

Vale notar que os dois tradutores escolheram um termo mais polido para "que se mijou toda". Pontiero escreve "wet her knickers"; Moser escreve "wet her pants". Para se aproximar mais da Clarice, eles poderiam ter usado algo como "pissed in her pants", um registro que beira o chulo em inglês.

CONCLUSÃO

O cotejo dos excertos indica que, de maneira geral, Benjamin Moser se aproxima mais do texto de Clarice, ao passo que Giovanni Pontiero muitas vezes suaviza, ou aplaina, o texto em português e insere nele explicitações que o deixam mais de acordo com as convenções da língua inglesa.

Isso foi observado em termos de sintaxe nos excertos A, E e G especialmente. Outra tendência que se observa mais em Pontiero do que em Moser é a explicitação, que ocorre nos excertos D, E, F e G. Em outros casos, há certo desvio de sentido, como em "worries" para "incomoda" em português, e "delicate soul" para "alma rala" no excerto D. Por outro lado, a tradução de Pontiero no excerto de C para a frase "esta história não tem nenhuma técnica, nem de estilo" está mais semelhante ao texto em português. Em termos do registro de linguagem, Pontiero parece em geral escolher palavras mais eufêmicas e próximas da norma culta, como ocorre no excerto C, embora os dois tradutores escolham uma expressão mais leve para "que se mijou toda".

É preciso, também, enfatizar que alguns desafios impostos pelo texto em português são praticamente incontornáveis na tradução para o inglês, devido à própria especifidade de cada língua. É o que ocorre com "em plena boca nossa" no excerto A e "Imaginavazinha", no excerto D. Há limites para o que uma tradução pode realizar em determinado tempo/espaço. Esses limites podem ser redesenhados e alterados, já que as línguas são dinâmicas em si mesmas e em seu contato mútuo.

A análise desses excertos não é exaustiva nem pode levar a uma conclusão definitiva. Mas é possível apostar em uma hipótese. Pontiero realmente suavizou e aplainou o texto de Clarice provavelmente porque tenha suposto que ele provocaria muita resistência na cultura de língua inglesa numa primeira fase - ou, nos termos de Berman, num primeiro "tempo" e num primeiro "espaço" da tradução. Já é tão difícil fazer circular a literatura brasileira no mundo anglófono, que dizer a respeito de obras que têm uma sintaxe pouco convencional? Assim, podemos observar que a tal "hipótese da retradução" realmente se verifica nesse caso. O texto de Moser é de fato mais próximo do de Clarice em termos de linguagem, sintaxe e registro. Por outro lado, por mais que Pontiero tenha aplainado o texto, sua tradução não deixa de causar um importante impacto no que se refere à caracterização de Macabéa e Olímpico, à expressão da angústia e da revolta de Rodrigo S. M. e à agudeza da observação da realidade pobre e destituída de Macabéa.

UMA VISADA ÉTICA

Em uma entrevista concedida em 2015 após a publicação de The Complete Stories, Moser respondeu a uma pergunta que talvez muitos dos leitores brasileiros de Clarice gostariam de ter feito, a respeito da estratégia por trás do modo como os livros (a biografia de Clarice em inglês, a tradução de A hora da estrela, os quatro livros lançados em 2012 e finalmente a coleção completa dos contos de 2015) foram publicados e comercializados. Sua resposta é reveladora do tipo de profissional que ele é, que joga seguindo as regras do mercado editorial de nossos tempos:

Devo confessar que a palavra "marketing" me dá uns arrepios. Eu prefiro falar de tradução no sentido literal do latim, que significa "levar para o outro lado". Encontrar um público leitor é um trabalho árduo. Mais acontece na vida das pessoas do que a escritora brasileira morta que você insiste em divulgar. E acho que é importante que as pessoas que trabalham com literatura internacional evitem aquele tom monótono de "coma seus brócolis" que vejo em muitas dessas discussões. Porque na verdade não há nada em ser brasileiro, ou sueco ou coreano que torne um livro superior a qualquer outro livro que existe no velho e maçante inglês. Acho que é importante se perguntar, antes do início, por que as pessoas deveriam despender seu tempo nesse livro, e não nas centenas de milhares de livros maravilhosos em inglês que elas ainda não leram. Eu pude me dedicar todos esses anos a Clarice porque eu realmente acreditei que ela era um dos poucos artistas universais que são, como os monumentos da UNESCO, patrimônio da humanidade. [...] A transferência só começa quando o livro pode ser lido em inglês. Encontrar os editores, os resenhistas, as livrarias, os leitores... Vamos dizer que eu enviei muitos e-mails em benefício de Clarice. E você precisa gostar de enviá-los. E com certeza você não pode desprezar ou fazer pouco das pessoas que trabalham em publicidade e marketing - é possível aprender muito com as pessoas cujo trabalho é fazer os telefonemas, enviar os e-mails, que são os profissionais que levam de um lado para outro. Digo isso porque sempre fiquei perplexo com a atitude condescendente que muitos escritores e tradutores, particularmente do ambiente acadêmico, expressam para com essas pessoas e seu trabalho14 14 "I should say the word marketing always sounds a little creepy to me. I would rather speak of translation in the literal Latin sense, which means "bringing across." Finding a readership is an arduous thing. People have more going on in their lives than the dead Brazilian lady you keep going on and on about. And I think it's important for people who work with international literature to avoid the eat-your-broccoli tone I see in a lot of these discussions. Because in fact there is nothing about being Brazilian or Swedish or Korean that makes a book superior to a book already sitting around in boring old English. I think it's important to ask yourself, before you start, why people should spend their time on this book and not on the hundreds of thousands of wonderful books in English that they haven't yet read. I was able to devote all these years to Clarice because I really believed that she was one of the handful of great universal artists who were, like the UNESCO monuments, the patrimony of all humanity. [...]Bringing across only begins once the book can be read in English. Finding the publishers, the reviewers, the booksellers, the readers ... Let's just say that I've sent a lot of e-mails on Clarice Lispector's behalf. And you have to enjoy sending them. And you certainly can't despise or look down on people who work in publicity and marketing and sales-you can learn a lot from the people whose job it is to make the phone calls and send the e-mails, professional bringers-across. I say this because I've often been appalled by the condescending attitude a lot of writers and translators, particularly from the academic world, display toward these people and their work." (ESPOSITO, 2015ESPOSITO, S. (2015). Passionate Acolytes: An Interview with Benjamin Moser. The Paris Review17 ago. Disponível em: Disponível em: http://www.theparisreview.org/blog/2015/08/17/passionate-acolytes-an-interview-with-benjamin-moser/ . Acesso em: 24 set. 2016.
http://www.theparisreview.org/blog/2015/...
, s. p.).

De que Moser assumiu uma atitude "comercial" em relação a Clarice e sua obra, que ela a transformou em um produto mais visível e tangível nos meios internacionais, não restam dúvidas. E a atenção que Clarice vem despertando resulta justamente disto: o trabalho de um competente profissional do campo editorial, que sabe se articular com as mídias e emprega muita energia na divulgação de seus projetos.

Pontiero trabalhava de forma diversa e tinha um perfil profissional diferente. Mas ele também dedicava seu tempo e energia na divulgação das literaturas das quais traduzia (Cf. ESTEVES, 2016ESTEVES, L. (2016). A presença da literatura brasileira no exterior e a importância do agenciamento: uma análise guiada por conceitos da sociologia de Pierre Bourdieu. O eixo e a roda v. 25 n. 1, pp. 9-36. Disponível em Disponível em http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/o_eixo_ea_roda/article/view/10189/9667 . Acesso em: 30 set. 2016.
http://www.periodicos.letras.ufmg.br/ind...
, p. 22-23), visitando editores, indo a feiras literárias para conhecer novas obras, acompanhando autores e interpretando para eles. Só que as atividades de Pontiero eram menos formalizadas, mais "artesanais".

É inegável que Moser conseguiu nova visibilidade para Clarice e se esforçou muito para isso. Pontiero também se esforçava, enfrentando inclusive uma dificuldade que Moser parece não ter enfrentado: a atitude evasiva de Clarice quando se tratava de autorizar que suas obras fossem traduzidas (PONTIERO, 1994PONTIERO. (1994a). The Risks and Rewards of Literary Translation. In: ORERO, P .; SAGER, J. C. (Ed.). The Translator's Dialogue - Giovanni Pontiero Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company , 1997.a, p. 20).15 15 A escritora norte-americana Elizabeth Bishop também trabalhou informalmente como "agente literária" de Clarice, tendo traduzido alguns de seus contos e tentado chamar a atenção de publicações e editores de seu país. Clarice não parece ter ajudado muito (PECHMAN, 2015, s. p.) Esses dados revelam que cada época e grupo de pessoas estão mais ou menos preparados para receber um autor estrangeiro, o que em termos genéricos comprova a "hipótese da retradução" discutida acima. Mas além disso, também o método e as condições de trabalho variam de época para época e de grupo para grupo. Na época de Pontiero, os meios de comunicação eram diferentes e mais localizados, e ele teve de trabalhar dentro dessas contingências. Cada qual, Pontiero e Moser, contribuiu para a divulgação de Clarice no mundo anglófono, trabalhando da maneira que lhe convinha e/ou era acessível. Moser provavelmente tem razão quando se refere ao desdém dos círculos acadêmicos pela profissionalização da produção, divulgação e vendas de livros. Clarice com certeza não teria tido a visibilidade que tem agora se Moser não tivesse usado métodos contemporâneos de divulgação, adequados a sua e nossa época

Referências bibliográficas

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  • BERMAN, A. (1990). La retraduction comme espace de la traduction. In: Palimpsestes 4, Publications la Sorbonne Nouvelle, pp. 1-8.
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  • EBERSTADT, F. (2009) Untamed Creature. The New York Times - Sunday Book Review19 ago. Disponível em: Disponível em: http://www.nytimes.com/2009/08/23/books/review/Eberstadt-t.html?pagewanted=all&_r=0 Acesso em: 16 mar. 2016.
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  • 1
    No original: "Giovanni Pontiero was the ablest translator of 20th-century literature in Portuguese and one of its most ardent advocates."
  • 2
    "... an extraordinary human and literary venture."
  • 3
    "Seu único motivo era o da literatura, e quero enfatizar que ele não tinha interesse material na questão, assim como, sem dúvida, ele não estava preocupado (feliz dele...) sobre qualquer interesse material meu: o que tínhamos em comum era simplesmente um livro que eu tinha escrito e de que ele gostava". (His only motive was that of literature, and I want to stress that he had no material interest in the issue, as equally, without doubt, he was not concerned (bless him...) about any material interests of mine: what we had in common was simply a book which I had written and which he liked." (tradução minha).
  • 4
    "... in Lispector's case, with her penchant for the tentative, the suggestive, my editorial desire for clarity might be inappropriate".
  • 5
    "Giovanni negotiates very effectively the traditional difficulty which the intrinsically lusophone concept, "saudade", presents for translators from the Portuguese. He avoids interrupting the flow with a footnote and captures two of the many connotations of the term with "nostalgia" (p. 514) and "I remember with affection (p. 514). Ever conscious that in Clarice's prose style "less is more", Giovanni wisely allows Clarice's contradictions and illogicalities to speak for themselves, resisting the common temptation to paraphrase or overexplain simple syntactical structures which present a paradox, such as "o ator inglês é o homem mais sério da Inglaterra" (p. 612). Conterbalancing this, he expands or explicates to the degree that expansion or explicitation become necessary for communicating a provisional concept, however latent the full potential of its meanings may be."
  • 6
    "Clarice Lispector (1920-77) is one of the great voices of Brazilian literature, but her deeply introspective, experimental prose, while revered by mid-twentieth century English-language writers like Elizabeth Bishop, was little known to readers in the US and the UK. According to her biographer Benjamin Moser, the published English translations of her work "do not give a good representation of the quality of her work" [...] When Moser heard that New Directions was preparing to reissue a translation of Lispector's last novel, The Hour of the Star, he contacted the editors of the series and persuaded them to consider new translations of not only that novel, but also three others."
  • 7
    "Moser, despite Lispector's avoidance of overt references to Jewishness, places her firmly in the tradition of Jewish mystics who were driven by historical cataclysm and personal trauma to create their own theology from God's absence. His energetically researched, finely argued biography will surely win Lispector the English-language readership she deserves."
  • 8
    "So when I started out with this project, I wanted to accomplish several things. First, I didn't want to do it all myself, because I felt that after five years of work on the biography I needed to move on. Second, I wanted to increase the number of translators from the Portuguese. The well-known ones are few and often booked years in advance-everyone wants the same four or five people. I wanted to find younger people. Third, I wanted to create a unified voice for Clarice in English. Her Portuguese is extremely distinct, and translators, like all writers, have very distinct voices of their own. Not to mention accents-we had people from England and Australia as well as Americans. So I felt sometimes like the director of the orchestra. People play their own instruments, but the audience should hear a single voice. The work this required can't be overstated. I explained my approach to the translators I interviewed for the project. And they all agreed that it was important, especially, to try to preserve Clarice's strangeness in English, not to muck with her syntax, not to try to iron her out, but to let these books clash and bang as cacophonously and as gloriously as in her inimitable Portuguese."
  • 9
    Os textos de Berman citados por Milton & Torres e Gambier são: BERMAN 1985BERMAN, A. (1985). La traduction et la lettre ou l'auberge du lointain. In: Les tours de Babel. Mauvezin: Trans-Europ. e BERMAN 1992BERMAN, A. (1990). La retraduction comme espace de la traduction. In: Palimpsestes 4, Publications la Sorbonne Nouvelle, pp. 1-8..
  • 10
    "Ainsi, à la suite de Berman (1985BERMAN, A. (1985). La traduction et la lettre ou l'auberge du lointain. In: Les tours de Babel. Mauvezin: Trans-Europ. et 1990), on peut prétendre qu'une première traduction a toujours tendance a être plutôt assimilatrice, à réduire l'altérité au nom d'impératifs culturels, éditoriaux: on fait des coupures, on réarrange l'original au nom d'une certaine lisibilité, elle-même critère de vente. La retraduction dans ces conditions consisterait en un retour au texte-source."
  • 11
    "La retraduction est un retour dévoyé, indirect: on ne peut tenter une traduction autre qu'après une periode d'assimilation qui permet de juger comme inacceptable le premier travail de transfert. Proust, par exemple, a pu être retraduit en anglais parce qu'il y a eu nouvelle édition (completée) des textes et parce que l'écriture proustienne a pris place dans les formes littéraires admises. La retraduction n'est pas découverte au sens trivial du mot; elle l'est néanmoins dans son effort de rapprochement littéral: elle découvre une écriture recouverte par les normes et conventions de la langue d'arrivée. S'il y a retour, c'est par le détour de la première traduction, elle-même souvent ouvrage de détournement. La retraduction délie les formes asservies, restitue la signifiance, ouvre aux spécificités originelles, tout en faisant travailler la langue traduisante: retraduire Apollinaire en finnois, c'est percevoir enfin que le poète n'est pas Finlandais, n'est pas inscrit dans la tradition locale."
  • 12
    ..."strange and unexpected".
  • 13
    "Translators tried to smooth her out, to correct her odd punctuation and her weird phrasings. It's an understandable impulse, but it does her a disservice: if you take out the weirdness of Clarice, you take out Clarice. Some of the translations, like The Hour of the Star, which I have just published in my own version, took this to an extreme, filling her every caesura with overly explicit phrasings that made her prose plodding instead of poetic."
  • 14
    "I should say the word marketing always sounds a little creepy to me. I would rather speak of translation in the literal Latin sense, which means "bringing across." Finding a readership is an arduous thing. People have more going on in their lives than the dead Brazilian lady you keep going on and on about. And I think it's important for people who work with international literature to avoid the eat-your-broccoli tone I see in a lot of these discussions. Because in fact there is nothing about being Brazilian or Swedish or Korean that makes a book superior to a book already sitting around in boring old English. I think it's important to ask yourself, before you start, why people should spend their time on this book and not on the hundreds of thousands of wonderful books in English that they haven't yet read. I was able to devote all these years to Clarice because I really believed that she was one of the handful of great universal artists who were, like the UNESCO monuments, the patrimony of all humanity. [...]Bringing across only begins once the book can be read in English. Finding the publishers, the reviewers, the booksellers, the readers ... Let's just say that I've sent a lot of e-mails on Clarice Lispector's behalf. And you have to enjoy sending them. And you certainly can't despise or look down on people who work in publicity and marketing and sales-you can learn a lot from the people whose job it is to make the phone calls and send the e-mails, professional bringers-across. I say this because I've often been appalled by the condescending attitude a lot of writers and translators, particularly from the academic world, display toward these people and their work."
  • 15
    A escritora norte-americana Elizabeth Bishop também trabalhou informalmente como "agente literária" de Clarice, tendo traduzido alguns de seus contos e tentado chamar a atenção de publicações e editores de seu país. Clarice não parece ter ajudado muito (PECHMAN, 2015PECHMAN, A. (2015). It's Complicated: Clarice Lispector and Elizabeth Bishop's fraught relationship. Poetry Foundation29 set. Disponível em: Disponível em: https://www.poetryfoundation.org/features/articles/detail/70270https://www.poetryfoundation.org/features/articles/detail/70270 . Acesso em: 28 set. 2016.
    https://www.poetryfoundation.org/feature...
    , s. p.)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2016

Histórico

  • Recebido
    01 Out 2016
  • Aceito
    21 Out 2016
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