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Vida familiar e trabalho de crianças e de jovens pobres

Family life and work: poor children and adolescents

Resumos

O artigo discute o trabalho de crianças e de jovens brasileiros pobres, enfatizando as relações entre modelos de família, socialização e trabalho. Passa-se por uma revisão histórica abrevida, que chega até o ECA, discutindo os avanços reais e as incongruências de todo processo que guarda, subjacente possibilidades de desvio dos reais objetivos das lutas para assegurar o não trabalho infanto-juvenil, sobretudo quando ele representa perigo par o desenvolvimento físico, psíquico e social do iindivíduo.

trabalho infantil; pobreza; família; socialização


This article discuss children and adolescents work mainly in poor classes in Brazilian society. The relationships between family, socialization and work are emphasized. The discussion is based first of all in a brief historical review of the subject: The work in childhood and youth, till the last law proposed in brazilian society- ECA; second in pointing the real gains and the conflictual ideas behind the fights against the work of children and adolescents, specially when it is considered the physical, psychological and social development of them.

childhood work; poverty; family; socialization


Vida familiar e trabalho de crianças e de jovens pobres

Family life and work: poor children and adolescents

Jerusa Vieira Gomes

USP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Jerusa Vieira Gomes Faculdade de Educação Universidade de São Paulo Avenida Brigadeiro Luis Antônio, 2842, apto 54. Jardim Paulista, São Paulo, Cep 01402 - 000.

RESUMO

O artigo discute o trabalho de crianças e de jovens brasileiros pobres, enfatizando as relações entre modelos de família, socialização e trabalho. Passa-se por uma revisão histórica abrevida, que chega até o ECA, discutindo os avanços reais e as incongruências de todo processo que guarda, subjacente possibilidades de desvio dos reais objetivos das lutas para assegurar o não trabalho infanto-juvenil, sobretudo quando ele representa perigo par o desenvolvimento físico, psíquico e social do iindivíduo.

Palavras chaves: trabalho infantil, pobreza, família, socialização

ABSTRACT

This article discuss children and adolescents work mainly in poor classes in Brazilian society. The relationships between family, socialization and work are emphasized. The discussion is based first of all in a brief historical review of the subject: The work in childhood and youth, till the last law proposed in brazilian society- ECA; second in pointing the real gains and the conflictual ideas behind the fights against the work of children and adolescents, specially when it is considered the physical, psychological and social development of them.

Key words: childhood work, poverty, family, socialization

O trabalho de crianças e de jovens pobres colocado em discussão nos últimos anos pelos organismos internacionais mais diretamente envolvidos com a defesa dos direitos da criança (OIT, DCI, ISPICAN e IWGCL)1 1 .Estas siglas referem-se respectivamente às organizações: Organização Internacional do Trabalho (OIT), Defesa Internacional da Criança (DCI), Sociedade Internacional de prevenção ao Abuso, Negligência e Maus Tratos da Infância (ISPICAN) e Grupo Internacional sobre o Trabalho Infantil (IWGCL) , e que o reconheceram como um problema social quase universal ainda hoje, é historicamente conhecido. Os movimentos socialistas do século passado deram-lhe visibilidade, através da denúncia sistemática e constante da exploração dele pelo capitalismo de então: sob a bandeira do combate à exploração do trabalho humano em geral, chamavam a atenção especial para as condições perversas do trabalho de mulheres e de crianças2 2 .Nesses tempo de globalização, canais de TV a cabo têm, repetidas vezes, apresentado o filme, Ddens (Bélgica 1994) sobre os primeiros passos do primeiro socialista belga. E que retrata a mais absoluta miséria, a fome crônica que caracterizavam a vida da grande maioria da população, submetida à impiedosa e sistemática exploração do trabalho de adultos, de jovens e de crianças pela única fonte de sobrevivência familiar existente na cidadezinha: a tecelagem. Desde o início, a história desses movimentos e os escritos que lhes davam fundamento evidenciavam a associação entre modelo econômico, pobreza familiar e condições de trabalho, especialmente de crianças, de jovens e de mulheres.

Um breve enquadramento histórico3 3 Para revisão histórica ampla sobre o período que abrange, dos anos 70 a 1995, veja-se: DCI/Brasil e CUT. Trabalho infantil no Brasil: Um estudo das estratégias e políticas para sua eliminação. Texto mimeo, São Paulo, 1996. do tema em debate se faz essencial, se se quiser avançar quer em termos de análise teórica quer em termos de conquistas sociais concretas. Especialmente no Brasil, as gerações mais novas, até mesmo de universitários, carecem, quase sempre, de informações históricas acerca deste e de muitos outros problemas sociais, o que lhes dificulta levar em conta, em suas reflexões, a magnitude das resistências econômicas, políticas, culturais e até mesmo subjetivas que podem explicar a sobrevivência de aspectos tão arcaicos na sociedade brasileira atual. Ou seja, resistências que, ao menos parcialmente, explicam a arraigada coexistência do velho e do novo, tantas vezes vitimizada como um dos aspectos positivos e singulares da cultura brasileira. Este é o motivo pelo qual, nesta oportunidade, começa-se por lembrar aos mais jovens que, ao menos nos países ocidentais, a consciência social vem sendo despertada há mais de um século, no que concerne a essa e a outras faces da vida e do trabalho humanos. E que, no curso desse tempo, cada país construiu, progressivamente, uma legislação específica capaz de regular as relações de trabalho. Todas elas contém artigos que restringem e/ou proíbem a atividade de trabalho infanto-juvenil.

Os reflexos do que ocorrera em países europeus em décadas anteriores só vão se fazer sentir no Brasil, concretamente, neste século: em 1911 o Estado de São Paulo proíbe o trabalho de menores de 10 anos; no âmbito federal, de 1917 a 1920 são discutidos projetos de legislação trabalhista que visam, além de assegurar o direito de greve e denunciar as leis repressivas e a violação das liberdades públicas, a proibição do trabalho de menores de 14 anos, limitar a jornada de trabalho a 06 horas e fixar o salário legal, que não deveria ser inferior a 2/3 do salário mínimo do adulto. Mas, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara achou por bem apresentar, em outubro de 1917, um projeto de Código de Trabalho, substituindo os anteriores, e estabelecendo: jornada diária de 08 horas de trabalho, prorrogável em algumas situações; trabalho de menores dos 10 aos 15 anos de idade, com jornada diária de 06 horas, proibido o trabalho -noturno- equiparação do menor ao adulto após os 15 anos. Além disso, fixou em 08 horas a jornada diária da mulher, proibindo-lhe a atividade noturna.

A partir dos anos 30 verifica-se, no país, um esforço de consolidar uma Legislação Trabalhista mais consoante com os tempos modernos, e que culminará com a aprovação e a sanção da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho, em 1940). Desde então, novas conquistas só serão regulamentadas ao final do Regime Militar, com a incorporação delas à Constituição de 1988 o que, sem dúvida, cria as condições para a aprovação e a sanção do Estatuto da Criança e do Adolescente ECA (Lei 806@, de 13/07/90). Assim, em relação ao trabalho infantil cada um deles estabelece:

-Constituição Federal (Art. 7, XXXIII): "proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de dezoito anos e de qualquer trabalho a menores de quatorze anos, salvo na condição de aprendiz". E estabelece, ainda, o período de aprendizagem entre 12 e 14 anos.

-ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente (Art. 60): "É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz."

Nesses termos, a legislação considera criança até 12 anos incompletos e adolescente dos 12 aos 18 anos. O Estatuto, com o objetivo de assegurar o respeito aos direitos de crianças e de adolescentes dá ênfase especial à escolaridade obrigatória (dos 6 aos 14), no fim da qual o jovem é considerado apto para ingressar no mercado de trabalho. Porém, nem mesmo essa legislação vigente, aparentemente tão rigorosa, está sendo capaz de coibir a prática do trabalho de menores nas cidades e no meio rural. É notória a existência de setores comprometidos com o social em governos Estaduais, Municipais e no Governo Federal. Não obstante, as forças conservadoras predominantes têm demonstrado um peso considerável no estabelecimento das Políticas Públicas, de tal sorte que, sem as pressões externas aos governos, seria quase impossível a prevalência de algumas das posições mais avançadas social e politicamente. Ou seja, foram as pressões de organismos internacionais, das Pastorais, de organizações sindicais e de associações de classe que criaram as condições para que governantes brasileiros assumissem também eles a bandeira da erradicação do trabalho infantil, simbolizada pelo slogan-, lugar de criança é na escola. Infelizmente, crianças e jovens continuam submetidos precocemente ao trabalho, até mesmo ao trabalho perverso e escravo.4 4 .Enquanto reviso estas páginas, desenrola-se na PUC-SP um Seminário sobre o Trabalho Infantil, durante o qual foi lançada a publicação Trabalho infantil, desafio à sociedade: Avaliação do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil no Período de 1996-97, em edição conjunta do IEE/PUC-SP, SEAS/MPAS, com apoio do UNICEF. Nessa publicação são apresentados programas bem-sucedidos de erradicação do trabalho infantil desenvolvidos nos Estados de Mato Grosso do Sul, Pernambuco e Bahia que dão testemunho da importância dessas pressões sobre os organismos governamentais. Não obstante, há notícias de trabalho escravo e infantil na Serra do Mar, em município pertencente à região metropolitana de São Paulo.

De onde deriva, então, a persistência ampla e generalizada do trabalho infantil, até agora? Quem obriga ao trabalho essas crianças e jovens? Quem os explora em sua força de trabalho? O trabalho de crianças e de jovens é, necessariamente, exploração? Trabalho e vida escolar são, sempre, mutuamente exclusivos? Estas são indagações que se impõem ao dar continuidade à análise.

Em Marx (1991) o trabalho da criança e o da mulher são consequências imediatas da mecanização industrial: as máquinas possibilitavam a apropriação dessa força de trabalho excedente, à medida que prescindiam de operadores (empregados) dotados de. força muscular. E, ao mesmo tempo, esse processo, depreciava a força de trabalho individual, já que o valor da força de trabalho do chefe de família podia ser distribuído pelos membros dela.

Sem dúvida, nos dias atuais, o marxismo tem sido descartado porque supostamente é uma teoria fora de moda. É evidente que muitas das atuais máquinas prescindem até mesmo do trabalhador. Também o tempo histórico é outro, as sociedades e as relações de produção vigentes são outras e assumiram características impensáveis não só no século passado mas até mesmo há algumas décadas, atrás. Todavia, há setores da economia nos quais as relações de produção assemelham-se àquelas predominantes no séc. XIX. É o caso das atividades produtivas assumidas e realizadas pelos grupos domésticos, especialmente no meio rural brasileiro (p.ex. nas carvoarias, canaviais e outros mais), bem como do trabalho a domicílio, ao qual Marx (1991) já antepunha, ao ilustrá-lo, o adjetivo moderno.

Posto tudo isso, é no mínimo intrigante a atual mobilização internacional promovida por entidades e governos com o objetivo de retirar crianças e jovens do mercado de trabalho formal e informal, em pleno apogeu do neo-liberalismo que se revela na imposição de uma economia globalizada e que, ao mesmo tempo, amplia o mercado e elimina postos de trabalho, tornando escassos os empregos adultos e, claro, elevando as taxas de desemprego. E, sobretudo, quando as demais conquistas sociais vão sendo, paulatinamente, revogadas graças ao fortalecimento de partidos conservadores, nas últimas décadas, nos mais diversos países. Estranhamente é nesse mesmo momento que reaparece a luta, embora legítima, contra o trabalho infanto-juvenil. Está-se, de fato, diante da tardia cristalização da consciência dos direitos da criança e do jovem ou trata-se apenas, como de costume, de um movimento de expulsão deles como um mecanismo de reserva de emprego à população adulta?5 5 .Especialmente quando a taxa de desemprego nacional atinge 7,5% no mês de julho/99, conforme dados do IBGE divulgados pela mídia.

Em outras palavras, só quando tantos postos de trabalho são suprimidos diariamente torna-se possível e desejável dispensar o trabalho de menores? As justificativas são humanitárias, bem o sei, o que dificulta o levantamento de dúvidas e críticas, sob o risco de se parecer retrógrado. Mas, não é possível deixar de argüir acerca dos motivos invisíveis dessa mobilização, ao menos no que concerne ao plano internacional. Sem que se dê conta, pode-se estar atravessando mais um processo de expulsão de uma força de trabalho que, ao fim e ao cabo, não mais é necessária.

Por certo, há inúmeros profissionais governamentais, pesquisadores e lideranças que, direta ou indiretamente, lutam pela construção de uma sociedade menos desigual e mais justa. A grande maioria deles sabe que toda reivindicação, tem quase sempre, no mínimo, duas faces: uma invisível, que esconde propósitos que devem permanecer encobertos no decorrer dela, e outra visível, capaz de mobilizar as massas. Apostam, contudo, nos pequenos avanços que, passo a passo, a ação coletiva viabiliza. No que diz respeito ao trabalho infantil, os objetivos assumidos pelas organizações verdadeiramente comprometidas com essa- luta, na década atual, podem ser assim resumidos: a denúncia sistemática das violações aos direitos da criança e do adolescente e as conseqüências que o trabalho pesado e insalubre pode acarretar-lhes; o sensibilizar outras organizações e o público externo com os quais elas se relacionam, orientando a busca de caminhos para a erradicação do trabalho infantil, e protegendo o adolescente do trabalho penoso e perigoso, (cf DCI-Brasil/CUT, 1996,p. 162)

A maioria dos mobilizados, no entanto, dificilmente percebe o uso ideológico que governos e organismos internacionais, direta ou indiretamente vinculados ao grande capital, podem fazer quando encampam essas e outras bandeiras. Eis porque a consciência crítica é a única arma com a qual todo ator social conta, quando se vê impelido a abraçar bandeiras socialmente legítimas, sem contudo sucumbir à manipulação de pessoas, grupos, entidades ou instituições de qualquer espécie.

Antes de prosseguir, e para evitar interpretações equivocadas das idéias aqui desenvolvidas, é importante reafirmar que se compartilha com todos aqueles que assumem como princípio básico o direito do adulto ao trabalho digno e compatível com a condição humana. Que a exploração da força de trabalho, que os liberais de todas as facções e nuances consideram legítima e inevitável em sociedades capitalistas, deve ser regulada, vigiada, coibida, controlada e punida com base em leis adequadas ao homem e às sociedades modernas (o que acontece na maioria dos países ocidentais mais ricos). Reafirma-se, pois, uma vez mais, a convicção de que o trabalho é uma atividade a ser desenvolvida preferencial e eminentemente por adultos, em condição de liberdade e segurança, sem pôr em risco a saúde fisica e mental, respeitada uma jornada suportável e legal de trabalho (atualmente, máximo de 8h/dia), e com uma remuneração compatível com o trabalho realizado e que seja capaz de garantir ao trabalhador e à sua família uma qualidade de vida digna e satisfatória em consonância com os padrões vigentes. E que o trabalho escravo, de adultos e especialmente de crianças e de jovens, deve ser proibido e punido com a maior severidade, porque é de todo incompatível com nossa humanidade e, nessa medida, inaceitável sobretudo neste fim de século. No que se refere à criança e ao jovem, além do trabalho escravo deve ser igualmente repudiada e punida toda e qualquer atividade perversa e que ponha em risco a saúde e o desenvolvimento físico, psíquico e social deles, no campo ou nas cidades. Reconhece-se, pois, em concordância com o slogan veiculado quase diariamente que o lugar de criança é na escola. Mas não se vê a incompatibilidade inevitável entre escola e trabalho. Reserva-se o direito de pôr entre parênteses os motivos reais dessas campanhas, especialmente em países nos quais o controle do Estado está ainda em poder das forças conservadoras que representam, inclusive, os setores empresariais exploradores da mão de obra infantil e juvenil. Assim, a contribuição neste debate consiste em por em discussão, juntamente com o trabalho exploração, o trabalho enquanto instrumento familiar de socialização dos mais jovens, sobretudo no nível da pobreza. Neste sentido, o tema fica desdobrado em três tópicos: considerações acerca do conceito de trabalho infantil, quando o trabalho é exploração, quando o trabalho é instrumento de socialização.

Ao seguir este rumo de análise adentra-se em terreno minado, areias movediças mesmo. Mas, só aparentemente se contraria a corrente mais vanguardista. É preciso ter cuidado e coragem ao lidar com questões polêmicas e que envolvam princípios. Caso contrário há sempre o risco de se ser carregado pelas ondas ideológicas que apenas agitam as marés e, posteriormente, permitem que a ordem social retorne quase ao equilíbrio anterior, uma vez que os aspectos mais essenciais dos problemas não são de fato postos em causa. E, no futuro, reencontrando o terreno fértil voltam, então, revigorados e até revestidos de modernidade. O exemplo mais contundente e atual diz respeito às conquistas trabalhistas deste século, historicamente abominadas pelas elites dirigentes, e que são, agora, sem o menor pejo, combatidas e revogadas em nome da superação do atraso.

Trabalho infantil: o que é ?

Retoma-se, nesta segunda parte do texto, ampliando-as, algumas das idéias desenvolvidas em seminário sobre trabalho infantil (em abril de 1996), ao comentar o documento posto em debate pelos organizadores6 6 .0ficinas de Trabalho, realizadas na PUCSP e na USP, promovidas pela Secção Brasileira da DCI em conjunto com a CUT.

A pergunta que dá título a este tópico - o que é trabalho infantil? -tem recebido respostas diversas e até mesmo controversas. Para a Organização Internacional do Trabalho(OlT) trabalho infantil é toda atividade de trabalho executada por criança menor de 15 anos, com o objetivo de prover seu sustento e/ou o sustento de sua família (DCI-Brasil/CUT, op.cit).

Há autores que consideram trabalho infantil qualquer atividade que tenha por objetivo, direto ou indireto, a manutenção da vida, feita por crianças-toda atividade que impede a escolaridade regular, o descanso e as brincadeiras (DCI-Brasil/CUT,op.cit,p.25). Nessa medida, até mesmo atividades domésticas rotineiras seriam trabalho, uma vez que liberam o adulto para a atividade no mercado de trabalho formal ou informal.

Demartini e Lang (1983), ao discutirem a família e a escola como agências socializadoras, assumem que o trabalho infantil abrange "todas as atividades sentidas como tal pelo sujeito". O que, sem dúvida, é uma conceituação vaga e subjetiva.

Então, ficaria a critério de quem realiza uma atividade considerá-la ou não trabalho. Porém, por um outro ângulo, poderiam existir atividades que por sua natureza e/ou pelas condições nas quais são realizadas constituem trabalho? Pode-se considerar a execução de certas tarefas satisfatória ou insatisfatória, agradável ou desagradável, desejável ou indesejável, alienante ou não. Mas independe da vontade individual, definir uma tarefa ou atividade como trabalho, é algo externo ao sujeito. Há uma percepção social do que em uma sociedade, e em determinada época histórica, é ou não trabalho. Por outro lado, a valorização do trabalho e a hierarquização das atividades concebidas como tal. dependem da herança cultural de cada grupo, de cada sociedade.

E, à guisa de ilustração, pense-se o caso de atividades domésticas nos tempos atuais, deixando de lado porém, o velho e atual problema da tradicional distribuição delas em função do pertencimento a um gênero. Por certo que o mais razoável seria a defesa intransigente de uma distribuição de tarefas e de responsabilidades que abrangesse a todos- indistintamente- homens e mulheres, de acordo com sua condição de: idoso, adulto, jovem ou criança. Sem dúvida, poucas tarefas domésticas podem ser sentidas como agradáveis. Porém, poucas também são aquelas das quais se pode prescindir na vida diária, inclusive quando se faz tão escassa a mão-de-obra doméstica. A questão não é realizá-las ou não, mas sim dosar sua distribuição de acordo com as condições particulares de cada sujeito que habita a mesma casa- o mesmo lar. Esta é uma situação específica que coloca um problema não menos específico: quando não há a chamada empregada(o) doméstica(p), ou as tarefas são distribuídas ou caberá a uma única pessoa executá-las. E esta pessoa é, costumeiramente, a mãe. Distribuí-las entre os demais adultos e crianças é indesejável e. necessariamente, explorá-los? O resultado de não distribuí-das não seria bem pior, à medida que pode criar as condições objetivas e subjetivas para que os mais novos interiorizem a exploração do outro, do adulto, especialmente da mulher-mãe e/ou avó com muita naturalidade. Finalmente, a realização de tarefas domésticas não constitui, em si, impedimento à escolaridade regular, ao descanso, nem sequer às atividades lúdicas

Ao ampliar excessivamente o conceito de trabalho infantil corre-se o risco de esvasiá-lo tornando-o demasiado genérico. O que constitui, além do mais, uma simplificação equivocada e perigosa do problema. Há, ainda, o risco de, direta ou indiretamente, fornecer as bases teóricas legitimadoras, de mais essa inculcação de valores de classe (refiro-me aqui às classes médias) nas camadas populares- e ao fazê-lo, cada um acaba por assumir, conscientemente, a condição de veículo privilegiado dessa inculcação.

Posto tudo isto, e consciente das limitações inerentes à proposta, colcoa-se como talvez mais razoável, ao menos por ora, a sua concepção nos termos em que o faz a OIT, com uma ligeira modificação, ou seja, a atividade executada por criança menor de 15 anos, direta ou indiretamente remunerada- e que tem o objetivo de prover seu sustento e/ou o sustento de sua família.

Quando o trabalho infantil é exploração

A face exploração do trabalho de menores e de jovens, apontada por autores vários, é revelada com bastante propriedade na análise que Marx (1991) faz sobre a jornada de trabalho em fábricas inglesas, entre os anos 30 e 60 do século passado, nos mais diversos ramos industriais. São crianças e jovens, entre 07 e 18 anos, submetidos a uma jornada excessiva e nas condições as mais precárias. Também menciona o trabalho de crianças ainda mais novas, de 04 a 06 anos de idade, já submetidas a uma jornada semelhante à dos adultos, nas minas, em fábricas de telhas e de ladrilhos e em fábricas de chapéu de palha. E, já nessa época, denuncia a perversidade do "moderno trabalho a domicílio" em alguns ramos da produção com base na atividade de mulheres- jovens e de crianças- desde os cinco até, aproximadamente, os 12 ou 15 anos de idade, em jornadas excessivas (Marx, op. cit. p. 391).

Já nesse escrito, o autor aponta, além da exploração, a perversidade das condições de trabalho, a incompatibilidade com a vida escolar e, como se viu acima, o agravamento desse quadro com o início do trabalho a domicílio (que nada mais é do que um dos aspectos da terceirização em tempos de globalização). E, finalmente, o autor indica os sucessivos passos através dos quais, especialmente na segunda metade do século, o Parlamento Inglês foi incorporando à Lei Fabril artigos destinados a coibir o trabalho de crianças nas indústrias e nos domicílios urbanos, na agricultura e, por último, nas minas.

Mais, de um século depois, a despeito do notável desenvolvimento científico e tecnológico promovido e vivido pelo homem nesse período, o mundo ainda se vê às voltas com tamanha iniqüidade: da exploração e da escravidão de crianças e de jovens- em suas mais diversas modalidades, desde a prostituição ao trabalho em plantações, teares, minas, olarias, carvoarias, sapatarias e outras mais.

Neste sentido, a descrição da Experiência Pastoral Junto às Famílias de Carvoeiros. em Ribas do Rio Pardo (MS) é exemplar. As condições de vida e de trabalho dessas famílias, e portanto de seus filhos, são por demais indignas e abjetas. É impossível acompanhar a descrição delas sem se sentir dominado pelo profundo sentimento de indignação. O relato demonstra a eficácia da ação Pastoral e de outros órgãos não-governamentais em coibir o trabalho de menores, ao mesmo tempo que também desnuda os mecanismos perversos que permitem aos proprietários dessas carvoarias o encobrimento do que realmente fazem em seus domínios: a exploração impiedosa de famílias e, nelas, de crianças e de jovens (Barbosa, 1998).

Também é exemplar a descrição, contida no texto já mencionado da DCI-Brasil/CUT, sobre o trabalho domiciliar para as sapatarias de Franca (SP). Mulheres, jovens e crianças são diariamente submetidos a uma jornada contínua de trabalho, sem nenhum limite temporal, uma vez que trabalham em sua própria casa - em seu domicílio. E isto ocorre nos dias atuais dentro dos limites urbanos de uma cidade média no Estado mais rico da Federação, mas na qual as autoridades tardam em agir.

E, no entanto, a ação de autoridades encontra amparo legal quando, concebendo uma modalidade de trabalho indesejável e nocivo, assumem coibi-la. É o caso descrito por um Promotor Público da região canavieira de Ribeirão Preto: segundo seu testemunho, ele conseguiu condicionar liberação de empréstimos bancários à inexistência de trabalhadores infantis nas plantações de cana.

Em todos os exemplos acima, bem como naqueles que quase diariamente ocupam amplos espaços na mídia - que leva ao interior de todos os lares cenas dantescas de crianças esquálidas, impedindo, assim, o anelo ao desconhecimento dos fatos como desculpa para a omissão individual e coletiva - há um certo consenso em relação ao que se concebe como exploração infantil. Resumindo os pontos consensuais, pode-se dizer que o trabalho infantil é exploração quando: é realizado em condições inadequadas, prejudiciais e/ou perversas; exige da criança ou do jovem uma atividade constante e desproporcional a suas forcas, a seu estágio de desenvolvimento psicossocial; a atividade impede as brincadeiras, os jogos, o descanso e. em especial, a escolarização regular, tão imprescindível à preparação deles para a cidadania plena. Em tais condições, por certo, o trabalho infantil além de constituir exploração é nocivo à saúde física e mental de quem o realiza, e põe em risco o futuro das novas gerações de brasileiros.

A escravidão constitui o limite máximo dessa exploração e, infelizmente, é mais comum do que se supõe. Denúncias ocasionais aparecem quer em trabalhos acadêmicos quer, sobretudo, nos últimos anos, na mídia. As madeireiras e as fazendas agro-pastoris do Centro-Oeste e do Norte do país parecem ser, de acordo com o que é veiculado, as campeãs dessa prática abominável.

Em relação a ambas, exploração e escravidão, não há como tergiversar. Nenhuma espécie de acordo é possível: devem ser proibidas, combatidas, punidas. Combatê-las é, e não poderia ser diferente, o objetivo primordial assumido com toda clareza pelas organizações que se dedicam a esta causa no Brasil e nos demais países, sobretudo naqueles mais pobres. O único senão diz respeito à ambigüidade do conteúdo veiculado acerca da relação família-criança trabalhadora.

É comum, na fala de profissionais e de leigos, a exploração de menores ser atribuída à família particular de cada um deles. No que concerne aos profissionais, muitos ainda se encontram sob a influência de certa tradição nas ciências sociais de acordo com a qual o pai, enquanto chefe do grupo familiar e representante da autoridade pública no seu grupo particular, reproduz com a mulher e com o seus filhos a hierarquia de dominação-subordinação socialmente vigente. Nessa perspectiva o pai explora a força de trabalho deles. Quanto aos leigos, de maneira geral,.interpretam aquilo que está visível, mulheres com crianças no colo ou ao seu redor em cruzamentos de ruas movimentadas, crianças que trazem para casa o fruto de pequenos biscates que realizam em casas alheias ou nas ruas, crianças e jovens enviados e/ou obrigados a trabalhar, em idade precoce pelos próprios pais, para a garantia da sobrevivência do grupo doméstico. Para o leigo, estes são todos exemplos que apenas atestam a exploração dos filhos pelos pais.

Reconhecendo embora a existência de casos nos quais a hipótese acima é parcialmente verdadeira, o que o trabalho de crianças e de jovens verdadeiramente oculta, encobre, é a real constante e sistemática exploração da família deles. Ao dizer isto está-se repetindo uma obviedade: a vida de crianças e de jovens é o reflexo das condições de sua família singular7 7 .Veja-se o precioso trabalho de Alvim, M.R.B (1984). Ao estudar o significado do trabalho infantil em uma fábrica com vila operária no Estado de Pernambuco, entre os anos de 1930 e 1950, a autora analisa a relação entre modelo familiar e trabalho de crianças e de jovens.

E as propostas, governamentais ou de instituições não governamentais acabam por desnudar esta realidade. Ou seja, quando um governo se vê compelido a garantir o chamado salário educação a uma família, que nada mais é do que garantir aos pais um salário complementar que lhes permita abrir mão dos trocados que os filhos amealham diariamente, esse governo está reconhecendo a insuficiência da remuneração paga ao trabalhador adulto para a sobrevivência mínima dele e de sua família (no caso das cestas básicas aplica-se o mesmo raciocínio). Medidas dessa natureza são compreensíveis quando propostas por governos e grupos de oposição, defensores de uma nova ordem econômica e social. Porém, quando são assumidas pelos responsáveis diretos pela manutenção do status quo parecem, no mínimo, estranhas e ambivalentes. Porque se os governantes empenham-se em demonstrar, publicamente, preocupação com a extrema pobreza que vitima a ampla maioria da população, ao mesmo tempo, são eles mesmos os responsáveis legais pela manutenção de uma política econômica concentradora de renda e produtora de maior pobreza e miséria. No caso brasileiro, a manutenção do salário mínimo em um nível tão insignificante e vil mediante a justificativa do risco de falência de municípios, de Estados e do próprio pais, é insustentável e fala por si mesma.

E quando uma família vive nesse limite da extrema pobreza não lhe sobra outra alternativa a não ser pôr a trabalhar, indistintamente, idosos, adultos, jovens e crianças, homens e mulheres. Nestes termos, ao se falar de exploração do trabalho de crianças e de jovens pobres está-se falando da exploração das famílias deles. Nunca é demais repetir, sobretudo porque neste texto, ela é a idéia central a ser enfaticamente reafirmada. Não é possível mobilizar uma sociedade contra o trabalho infantil isoladamente: é necessário deixar claro que ele só existe porque a família dessa criança é submetida à mais vil exploração e, muitas vezes até à escravidão. Caso contrário, estar-se-á sendo cúmplice do encobrimento de nossa verdadeira chaga social: a pobreza de tantos. E. ainda por cima, estar-se-á incutindo, ou reafirmando, em pessoas já tão desamparadas, os mais nefastos sentimentos de inadequação e de culpa pelo simples fato de colocarem o filho a trabalhar desde tenra idade. Afinal, os ecos das matérias veiculadas nela mídia chegam aos mais longínquos rincões. Por tudo isto. há que se ter cuidado de distinguir entre o trabalho exploração e perverso e aquele que está intimamente associado à vida e que em famílias populares, especialmente no campo, ainda constitui instrumento de socialização, como se verá a seguir.

Quando o trabalho infantil é instrumento de socialização

Em famílias camponesas ou mesmo em famílias urbanas, mas cuja tradição rural ainda é recente, o trabalho ocupa um lugar central na existência e regula, de certa maneira, as relações interpessoais. A centralidade do trabalho, e a imperfeita substituição dele pela escola no meio urbano, é demonstrada com propriedade por Mello (1988), ao comentar a substituição das bases da identidade após o estabelecimento urbano de famílias rurais.

Sem dúvida, para todos os que, direta ou indiretamente, estudam e/ou trabalham com populações rurais ou de origem rural, a centralidade do trabalho é consensual. E ao reconhecê-la admite-se, necessariamente, que o trabalho constitui um dos valores básicos desses grupos. Aliás, valor transmitido às novas gerações pelo exemplo vivo e quotidiano dos idosos e dos adultos, muito mais do que por simples palavras. Nessa medida, a criança vive o ambiente de trabalho, do amanhecer ao anoitecer, muito antes de poder participar dele ativamente. A educação de crianças e de jovens dá-se no meio rural, no trabalho, com o trabalho e para o trabalho.8 8 .A este respeito, veja-se: a) Mello e Souza, A. C. (1964) Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro: José Olympio; b) Mello, S.L. (1988); c) Gomes, J. V. (1987) Socialização: um estudo com famílias de migrantes em bairro periférico de São Paulo. São Paulo: IPUSP. Tese de doutoramento; d) Martins. J.S.R. (1991) A criança na luta pela terra e pela vida. Em J.S.R Martins O Massacre dos inocentes. São Paulo: Huicitec.

Martins (1991) realça a importância do trabalho na ação educativa familiar, de maneira primorosa, ao contrapor grupos familiares bastante distintos. Para uns, habitantes de Canarana (Mato Grosso), oriundos do Rio Grande do Sul, e que migraram em busca de melhores condições de vida, o trabalho é missão familiar: desde a infância a criança é preparada para o futuro. E o futuro é a vida e o trabalho para si mesmo na propriedade conquistada e que será legada à nova geração. Esses grupos familiares vivem sob o primado do trabalho. "A família se mantém através do trabalho de todos os seus membros- independentemente da idade" E, de acordo com as palavras do autor, é a possibilidade de pensar e preparar o futuro, a continuidade de uma vida regular e previsível, que dá significado ao trabalho e à escolaridade. Para ele. "0 primado do trabalho é, na verdade, o primado da família. O trabalho reproduz a família." E o temor de todos é a falta da possibilidade de trabalhar. Nestas condições, o filho é o herdeiro que tem por destino preservar a terra na qual há de trabalhar: E "a infância é o período da vida em que a criança se prepara para herdar." E a escolarização delas constitui a oportunidade de aprender a dominar a nova tecnologia e os novos esquemas que regulam as relações sociais e, inclusive, financeiras e comerciais (Martins, 1991, p. 60-63).

A esse grupo, Martins contrapõe um outro constituído por famílias de posseiros habitantes, então, de São Pedro da Água Branca e Floresta, no Maranhão. Sem a terra, vivem no limite da sobrevivência vagando de uma a outra frente de trabalho: Para eles não há lugar no mundo e a vida não tem futuro. A escolarização, pois, não faz o menor sentido. Desde muito cedo a criança aprende que "o lugar de cada um é o lugar de seu trabalho, o lugar em que tem direito de trabalhar." (Martins, op. cit. p..76)

Se essas são histórias representativas da vida de setores camponeses estabelecidos no Norte do País, nas demais regiões agrícolas a situação não parece diferir muito, ou seja, a vida familiar e pessoal depende das condições concretas de trabalho e de perspectivas futuras minimamente previsíveis e satisfatórias. Só quando é possível planejar o futuro a escolarização dos filhos pode ser cogitada. Mesmo assim, a pouca familiaridade dessas populações com a vida escolar cria-lhes barreiras culturais limitadoras da escolaridade regular constante. Vencê-las deveria constituir um dos objetivos primordiais das instituições educativas.9 9 .Esta é uma das idéias centrais defendidas em minha tese de Livre-Docência. Em estudos acerca da família e da socialização em camadas populares urbanas, tive oportunidade de, através de pesquisa longitudinal, acompanhar ao longo de mais de uma década o desenrolar da relação de crianças e de jovens com o trabalho e com a escola. A grande maioria deles, desde muito cedo, freqüentava a escola com regularidade, e nenhum deles foi o que se costuma considerar uma criança trabalhadora.

Porém, especialmente os meninos, pareciam sentir uma atração quase irresistível, talvez não pelo trabalho em si e muito mais pela conseqüência dele: o dinheiro. Cedo algumas crianças descobriam o mundo que o dinheiro lhes abria: as balas, guloseimas, pequenos objetos pessoais, roupas. Enfim, o consumo. E, muito além do consumo, o valor social atribuído ao indivíduo capaz de contribuir para as despesas domésticas. Desse modo, iniciaram-se no trabalho nas horas de folga e de lazer, nos períodos de férias ou de greves escolares. O motivo não era a estrita sobrevivência, mas o prazer de adentrar o mundo adulto, de trabalho, e de ganhar alguns trocados.

Ao mesmo tempo, embora regularmente matriculados em escolas públicas do bairro e das cercanias, para alguns deles as dificuldades escolares pareciam quase intransponíveis, desde os primeiros anos. Nesses casos, após sucessivas reprovações, acabavam invertendo a ordem de suas prioridades: o trabalho de ocasional passava a atividade principal, enquanto a escola tornava-se secundária. Contudo, para a maioria deles, as atividades remuneradas imiscuiam-se em suas vidas, contínua e progressivamente, como uma decorrência natural da existência, quase sempre como algo desejável. Deparava-me, assim, com uma situação que, aparentemente, se não contradizia, ao menos punha entre parênteses a imperiosidade do trabalho precoce e a clássica oposição escola-trabalho. Ou seja, deparava-me com um dado raramente mencionado na literatura e que me parecia um veio promissor de pesquisa. Afinal, parafraseando Bourdieu (1989), só a pesquisa pode permitir-nos evitar simplificações teóricas, às quais já nos acostumamos, e que difundidas como "verdades" não passam de verdades parciais ou de meias verdades.

Se o que acima descrevi acontecia com jovens urbanos pobres na região metropolitana de São Paulo, no mesmo tempo e na mesma época, inúmeros outros jovens pobres, e até mesmo crianças, estavam obrigados a trabalhar desde idade precoce. Os trocados por eles diariamente amealhados ajudavam a sobrevivência quotidiana de seus grupos domésticos particulares. Casos havia, como ainda ocorre, de aprisionamento de crianças menores em casa, às vezes até acorrentadas, para garantir a atividade ocupacional dos pais e demais adultos da unidade doméstica. Para todas essas crianças e jovens a escola, sem dúvida, sempre esteve, está e estará fora de cogitação. Por sorte, há anos venho insistindo, ao menos no meio urbano, embora seja considerável o contingente populacional que ainda vive em condições sub-humanas e inadmissíveis de vida, a grande maioria da população infanto-iuvenil urbana empenha-se em uma luta diuturna entre a família, a escola e o trabalho que precisa ser melhor conhecida, compreendida e amparada. Os esforços individuais e coletivos deles, em sua luta pela sobrevivência, têm pouca ou quase nenhuma visibilidade, sobretudo porque não preenchem os costumeiros requisitos dos chamados problemas sociais. São simplesmente famílias, crianças e jovens pobres absolutamente comuns que formam a nossa velha conhecida massa urbana. E estudá-los tem sido um desafio, conforme já o disse em diversas oportunidades. Também para eles são necessárias políticas públicas que lhes permitam alcançar e manter uma vida satisfatória e digna, presente e futura (Gomes, 1995).

Mas, o que é comum a todos esses grupos estabelecidos há décadas no meio urbano, é a tradição rural ainda recente, em função da qual assumem o ideal do trabalho enquanto um dos instrumentos essenciais de socialização. E, no decorrer de seu estabelecimento urbano, à medida que incorporam progressivamente valores predominantes no novo meio e em camadas sociais abastadas apropriam-se, também, do ideal de infância enquanto fase de lazer e de escolarização. O resultado disso é a experiência da ambigüidade na educação de seus filhos: sabem que a pobreza requer que a família prepare a criança e o jovem para o trabalho, e prepará-las com esse fim é o que saberiam e sabem fazer com segurança. Sabem, também, que criança deve freqüentar a escola e não trabalhar, mas a maior parte deles também sabe que a pouca escolaridade não lhes impediu o trabalho no meio urbano, e em seu meio são raríssimos os exemplos de melhor colocação em função de maior escolaridade. Acrescente-se a tudo isso o temor de ver o filho, precocemente, seduzido pelos marginais que habitam o bairro e que podem ser até o vizinho ao lado. Nessas condições, a maior parte estimula o envolvimento da criança com atividades ocupacionais que, inicialmente esporádicas, por um motivo ou por outro se fazem tão atraentes que acabam por se tornar prioritárias (Gomes, 1996).

Todavia, há histórias de grupos familiares urbanos nos quais também se verifica o fenômeno moderno da adolescência prolongada10 10 .Estas idéias acham-se desenvolvidas em: Campos, MM .& Gomes, J.V. (1996). Brazilian chíldren: Images, conceptions, prójects Em CP. Hwang; ME. Lamb & E S.Irving Images of childhood (pp.143-166) New Jersey: Nesses grupos, é comum a recusa do jovem em procurar trabalho que, para ele, é uma obrigação a ser cumprida apenas na idade adulta. Portanto, por seus pais. E não é que os pais tenham pretendido criá-lo preguiçoso. Apenas não conseguiram incutir em seus próprios filhos o valor trabalho e a responsabilidade a ele associada, pelo menos enquanto meio de subsistência. Embora trabalhadores pobres, por motivos vários, dentre os quais sobressai a apropriação recente de valores com os quais não sabem ainda lidar (aliás, o que ocorre também dentre populações de outras camadas sociais, não é prerrogativa dos mais pobres), acabam por reproduzir uma situação já em si mesma problemática e que lhes dificulta ainda mais a existência.

Conclusão

A idéia da infância e do início da juventude como fase de jogos e de escolarização é historicamente recente para todas as camadas sociais. Para a grande maioria das famílias brasileiras, essas idéias encontram-se, no presente, em processo de apropriação. Além disso, levando em conta a extensão territorial de nosso país, é-se obrigado a supor a existência de uma pluralidade de arranjos domésticos, nos quais a ação educativa é exercida, e não poderia ser diferente, em consonância com as condições concretas que caracterizam a vida quotidiana desses grupos.

Destarte, a luta contra o trabalho indesejável e perverso e contra a exploração de crianças e de jovens é mais do que legítima e deve prosseguir. Sobre isto não resta a menor dúvida. Contudo ao promovê-la é necessário todo cuidado para não retirar dos pais aquilo que constitui o valor básico que norteia a ação educativa deles: o trabalho.

É um acontecimento digno de nota retirar-se, com o fêz o Governo Federal, em pouco mais de um ano (de acordo com discurso do Presidente da República, em cadeia nacional de televisão, em 1998 e reiteradas vezes) cerca de 30.000 crianças brasileiras do trabalho em carvoarias, canaviais, olarias, plantações de sisal, e outros. Mas, não é suficiente. Dizer "não ao trabalho infantil" e '"lugar de criança é na escola", requer políticas públicas que permitam estender tais direitos à ampla maioria da população sem, todavia, tornar mais inseguros os pais. Por exemplo, nas regiões agrícolas nas quais predominam as pequenas e as médias propriedades familiares, pode-se pensar e pôr em prática a adequação do calendário escolar às épocas de plantio e colheita. Desde que, de fato, haja garantia governamental de oferecimento de escolas de qualidade satisfatória a essas populações. Mas também é necessário garantir a produção e o financiamento dela, além da comercialização da colheita com preços adequados. No meio urbano, por seu turno, cabe garantir aos mais novos o acesso à escola de boa qualidade e que lhes permita usufruir de uma cidadania plena para a qual o emprego, com alguma estabilidade, condignamente remunerado, é condição sine qua non. Ou seja, sem escolas adequadas e de qualidade, sem salário mínimo digno e geração de empregos para os adultos e para os jovens, parece inconsistente o combate ao trabalho infantil.

Referências Bibliográficas

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  • Mello e Souza, C. (1964). Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro: José Olympio.
  • Endereço para correspondência:
    Jerusa Vieira Gomes
    Faculdade de Educação
    Universidade de São Paulo
    Avenida Brigadeiro Luis Antônio, 2842, apto 54.
    Jardim Paulista, São Paulo, Cep 01402 - 000.
  • 1
    .Estas siglas referem-se respectivamente às organizações: Organização Internacional do Trabalho (OIT), Defesa Internacional da Criança (DCI), Sociedade Internacional de prevenção ao Abuso, Negligência e Maus Tratos da Infância (ISPICAN) e Grupo Internacional sobre o Trabalho Infantil (IWGCL)
  • 2
    .Nesses tempo de globalização, canais de TV a cabo têm, repetidas vezes, apresentado o filme,
    Ddens (Bélgica 1994) sobre os primeiros passos do primeiro socialista belga. E que retrata a mais absoluta miséria, a fome crônica que caracterizavam a vida da grande maioria da população, submetida à impiedosa e sistemática exploração do trabalho de adultos, de jovens e
    de crianças pela única fonte de sobrevivência familiar existente na cidadezinha: a tecelagem.
  • 3
    Para revisão histórica ampla sobre o período que abrange, dos anos 70 a 1995, veja-se: DCI/Brasil e CUT. Trabalho infantil no Brasil: Um estudo das estratégias e políticas para sua eliminação. Texto mimeo, São Paulo, 1996.
  • 4
    .Enquanto reviso estas páginas, desenrola-se na PUC-SP um Seminário sobre o Trabalho Infantil, durante o qual foi lançada a publicação
    Trabalho infantil, desafio à sociedade: Avaliação do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil no Período de 1996-97, em edição conjunta do IEE/PUC-SP, SEAS/MPAS, com apoio do UNICEF. Nessa publicação são apresentados programas bem-sucedidos de erradicação do trabalho infantil desenvolvidos nos Estados de Mato Grosso do Sul, Pernambuco e Bahia que dão testemunho da importância dessas pressões sobre os organismos governamentais. Não obstante, há notícias de trabalho escravo e infantil na Serra do Mar, em município pertencente à região metropolitana de São Paulo.
  • 5
    .Especialmente quando a taxa de desemprego nacional atinge 7,5% no mês de julho/99, conforme dados do IBGE divulgados pela mídia.
  • 6
    .0ficinas de Trabalho, realizadas na PUCSP e na USP, promovidas pela Secção Brasileira da DCI em conjunto com a CUT.
  • 7
    .Veja-se o precioso trabalho de Alvim, M.R.B (1984). Ao estudar o significado do trabalho infantil em uma fábrica com vila operária no Estado de Pernambuco, entre os anos de 1930 e 1950, a autora analisa a relação entre modelo familiar e trabalho de crianças e de jovens.
  • 8
    .A este respeito, veja-se: a) Mello e Souza, A. C. (1964)
    Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro: José Olympio; b) Mello, S.L. (1988); c) Gomes, J. V. (1987)
    Socialização: um estudo com famílias de migrantes em bairro periférico de São Paulo. São Paulo: IPUSP. Tese de doutoramento; d) Martins. J.S.R. (1991) A criança na luta pela terra e pela vida. Em J.S.R Martins O
    Massacre dos inocentes. São Paulo: Huicitec.
  • 9
    .Esta é uma das idéias centrais defendidas em minha tese de Livre-Docência.
  • 10
    .Estas idéias acham-se desenvolvidas em: Campos, MM .& Gomes, J.V. (1996). Brazilian chíldren: Images, conceptions, prójects Em CP. Hwang; ME. Lamb & E S.Irving
    Images of childhood (pp.143-166) New Jersey:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 1998
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