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Doação de medula óssea na perspectiva de irmãos doadores

Resumos

Este estudo objetivou caracterizar o perfil sociodemográfico e descrever a percepção de irmãos doadores de medula óssea acerca da doação. Trata-se de estudo descritivo, exploratório e com recorte longitudinal. Participaram 20 doadores relacionados de medula óssea, com idade entre 18 e 42 anos (média=30,5 anos, dp=7,47). Foram utilizadas entrevistas, aplicadas antes e imediatamente após a doação. Foi realizada análise estatística descritiva dos dados sociodemográficos e análise de conteúdo categorial dos dados qualitativos. Nas entrevistas anteriores à doação, apareceram como eventos estressores o adoecimento e o tratamento do irmão e a responsabilidade de serem os doadores. No período posterior à doação, foi relatada ansiedade na véspera e no dia da doação, dor no dia seguinte, e o reconhecimento do apoio da equipe como elemento facilitador do processo de doação. Frente aos achados é interessante que a equipe possa traçar estratégias de intervenção que permitam atender as necessidades específicas dos doadores.

Doadores de Tecidos; Família; Transplante de Medula Óssea; Saúde Mental


This study aimed to characterize the sociodemographic profile of sibling bone marrow donors and to describe how they perceive the donation. This was a descriptive, exploratory and longitudinal study. Participants were 20 related bone marrow donors, between 18 and 42 years of age (mean=30.5 years, sd=7.47). Interviews were held before and immediately after the donation. Sociodemographic data were subject to descriptive statistical analysis and qualitative data to categorical content analysis. In the interviews held before the donation, stressor events were the sibling’s disease and treatment and the responsibility of being the donors. During the interviews after the donation, the following were mentioned: anxiety on the day before and on the day of the donation, pain the following day, and acknowledgement of the health team’s support as a facilitator of the donation process. In view of the findings, it is important for the team to outline intervention strategies to meet to the donors’ specific needs.

Tissue Donors; Family; Bone Marrow Transplantation; Mental Health


Este estudio objetivó caracterizar el perfil socio demográfico y describir la percepción, de hermanos donadores de médula ósea, acerca de la donación. Se trata de estudio descriptivo, exploratorio y con recorte longitudinal. Participaron 20 donadores-relacionados de médula ósea, con edades entre 18 y 42 años (promedio=30,5 años, de=7,47). Fueron utilizadas entrevistas, aplicadas antes e inmediatamente después de la donación. Fue realizado un análisis estadístico descriptivo de los datos socio demográficos y análisis de contenido categorial de los datos cualitativos. En las entrevistas antes de la donación aparecieron como eventos causantes de estrés: el enfermarse, el tratamiento del hermano y la responsabilidad de ser los donadores. En el período posterior a la donación fue relatada ansiedad (en la víspera y en el día de la donación), dolor en el día siguiente, y reconocimiento del apoyo del equipo como elemento facilitador del proceso de donación. Frente a lo encontrado, se recomienda que el equipo planifique estrategias de intervención que permitan atender las necesidades específicas de los donadores.

Donadores de Tejido; Família; Trasplante de Medula Ósea; Salud Mental


ARTIGO ORIGINAL

Doação de medula óssea na perspectiva de irmãos doadores1

Érika Arantes de Oliveira-CardosoI; Manoel Antônio dos SantosII; Ana Paula MastropietroIII; Júlio César VoltarelliIV

IPsicóloga, Doutor em Psicologia, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, SP, Brasil. E-mail: erikaao@ffclrp.usp.br

IIPsicólogo, Doutor em Psicologia, Professor Doutor, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, SP, Brasil. E-mail: masantos@ffclrp.usp.br

IIITerapeuta Ocupacional, Doutor em Psicologia, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, SP, Brasil. E-mail: anapmastro@bol.com.br

IVMédico, Doutor em Clínica Médica, Professor Titular, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, SP, Brasil. E-mail: jcvoltar@fmrp.usp.br

Endereço para correspondência

RESUMO

Este estudo objetivou caracterizar o perfil sociodemográfico e descrever a percepção de irmãos doadores de medula óssea acerca da doação. Trata-se de estudo descritivo, exploratório e com recorte longitudinal. Participaram 20 doadores relacionados de medula óssea, com idade entre 18 e 42 anos (média=30,5 anos, dp=7,47). Foram utilizadas entrevistas, aplicadas antes e imediatamente após a doação. Foi realizada análise estatística descritiva dos dados sociodemográficos e análise de conteúdo categorial dos dados qualitativos. Nas entrevistas anteriores à doação, apareceram como eventos estressores o adoecimento e o tratamento do irmão e a responsabilidade de serem os doadores. No período posterior à doação, foi relatada ansiedade na véspera e no dia da doação, dor no dia seguinte, e o reconhecimento do apoio da equipe como elemento facilitador do processo de doação. Frente aos achados é interessante que a equipe possa traçar estratégias de intervenção que permitam atender as necessidades específicas dos doadores.

Descritores: Doadores de Tecidos; Família; Transplante de Medula Óssea; Saúde Mental.

Introdução

O transplante de medula óssea (TMO) vem se constituindo como alternativa eficaz de tratamento para enfermidades potencialmente fatais(1), cujos diagnósticos geram impacto psicológico para o paciente e para sua unidade familiar(2). As famílias que se veem confrontadas com esse desafio geralmente enfrentam a ruptura da vida cotidiana, tal como era vivida antes do diagnóstico. Aliado a esse pesar, os familiares se veem obrigados a encarar a destruição do mito familiar de que as doenças fatais só acontecem com os outros(3).

O diagnóstico instaura um momento de crise, na medida em que novo conflito se instala, gerando inquietação e insegurança, tanto no paciente como nos familiares: submeter-se ou não ao TMO. Esse questionamento se dá, principalmente, em virtude das peculiaridades da terapêutica – o transplante é visto como tratamento salvador e, ao mesmo tempo, um tratamento ameaçador(4), devido aos riscos associados.

Uma vez definida a opção pelo transplante, inicia-se a busca pela identificação do doador de medula óssea compatível, que pode ser proveniente do núcleo familiar (doador relacionado) ou disponibilizado mediante a doação de voluntários (doadores não relacionados). Em geral, a doação é realizada por algum familiar, frequentemente um irmão, escolhido por meio de exame prévio para a detecção da compatibilidade(1). Desse modo, um novo protagonista é introduzido na cena: o doador de medula óssea.

O doador é internado na véspera do procedimento e permanecerá hospitalizado por dois a três dias. Na maioria dos casos, para a realização da aspiração da medula, o doador recebe anestesia geral ou espinhal. A coleta é feita por acesso bilateral das cristas ilíacas posteriores, por meio de agulhas calibrosas que realizam punções no osso ilíaco. O volume total da medula retirado, em média, aproxima-se de um litro. Depois de concluído o procedimento, o doador, frequentemente, necessitará da autotransfusão de sangue. Receberá alta no dia seguinte à doação, recuperando-se em aproximadamente 20 dias. Não obstante o fato de ser procedimento invasivo, normalmente não deixa sequelas físicas(1).

Na doação relacionada, o que motiva o doador é o fato de o indivíduo ser colocado, potencialmente, como o salvador da vida de um membro familiar, sendo muito difícil a recusa da doação nessas circunstâncias. A responsabilidade delegada pela família em relação à sobrevivência do irmão torna-se, muitas vezes, sobrecarga emocional opressiva, o que pode desencadear montante significativo de angústia(5).

Em estudo realizado com o objetivo de avaliar a experiência da doação de medula óssea, por doadores relacionados e não relacionados, antes e após o procedimento da coleta(6), os resultados indicaram que, no período pré-doação, os doadores relacionados endossaram mais itens do inventário de depressão de Beck (BDI) e, após a doação, relataram sensação de dor maior do que os não relacionados. Tais resultados sugerem a importância dos fatores psicológicos na doação de medula óssea.

O mesmo autor e seus colaboradores(7), posteriormente, realizaram pesquisa visando identificar as mudanças ocorridas depois da doação para doadores relacionados. Mediante análise do BDI, constataram que, aproximadamente seis meses depois da doação, os doadores, cujos receptores faleceram, apresentavam maior índice de sintomas de depressão do que os demais, cujos irmãos sobreviveram. Tal resultado mostra que o estado emocional do doador relacionado está associado à sobrevida do paciente(8).

Estudo anterior(9) já havia demonstrado que a depreciação da qualidade de vida e da saúde física do receptor causam impacto adverso na vida do doador relacionado. Confirma-se, assim, que as condições físicas do receptor estão associadas às reações emocionais do doador(4).

Em relação à vivência da doação de medula óssea, cuja literatura é ainda muito restrita, percebe-se que o ato de doar acarreta diversas implicações psicológicas para os doadores: antes da doação, em forma de angústia(10-11), imediatamente após o processo, graças à influência dos fatores psicológicos e, decorridos anos, pelas modificações advindas na qualidade de vida(12).

Observa-se escassez de estudos dedicados à avaliação e à vivência e às implicações subjetivas da doação de medula para o doador relacionado. O presente estudo visa diminuir essa lacuna. Constata-se, nas publicações, que as atenções estão mais voltadas para a compreensão do processo de transplante de medula óssea para os pacientes(13), ou para os demais membros do núcleo familiar(2). O tema da doação de órgãos aparece especialmente nas doações pós-morte, segundo as percepções dos familiares(14) e dos profissionais envolvidos(15).

Nesse contexto, o presente estudo teve por objetivo caracterizar o perfil sociodemográfico dos participantes e conhecer a percepção dos irmãos doadores de medula óssea acerca da doação, identificando os motivos, sentimentos e expectativas relacionados ao processo.

Método

Trata-se de estudo descritivo, exploratório e com recorte longitudinal. Pode ser caracterizado como pesquisa clínica, uma vez que o problema investigado emerge da experiência prática do pesquisador(16).

Participantes

Participaram do estudo 20 doadores de medula óssea, todos irmãos de pacientes da Unidade de Transplante de Medula Óssea (UTMO) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Os participantes foram recrutados de uma série consecutiva de doadores avaliados na UTMO, seguindo-se critérios de amostra não probabilística de conveniência. Foram adotados os seguintes critérios de inclusão: participantes maiores de 18 anos, de ambos os sexos, doadores relacionados de medula óssea, que aceitaram participar da pesquisa. Os critérios de exclusão foram: antecedentes de transtornos psiquiátricos e/ou debilidade orgânica, ou qualquer outra condição física/intelectual que pudesse comprometer a compreensão da tarefa.

A idade dos participantes variou de 18 a 42 anos, com média de 30,5 anos e desvio padrão de 7,47. Como mostra a Tabela 1, a amostra foi bem distribuída em relação ao sexo, 11 homens e 9 mulheres, 60% eram casados. Observou-se baixa escolaridade: 55% não haviam completado o ensino fundamental, além de diversidade de ocupação, com predomínio de atividades que exigem baixa qualificação profissional, e baixa renda familiar: 70% dos participantes recebiam de um a dois salários mínimos mensais. Os irmãos foram acometidos por doenças hematológicas graves, a maioria recebeu o diagnóstico de leucemia mieloide crônica.

Cuidados éticos

A coleta de dados ocorreu após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HCFMRP-USP (Processo nº7617/99). Foram esclarecidos antecipadamente os objetivos do estudo e as condições de sigilo profissional para os participantes, que concordaram livremente em colaborar, ainda, assinanado o termo de consentimento livre e esclarecido. Foi enfatizado que a recusa em participar do estudo não acarretaria qualquer prejuízo ao atendimento do participante, ou de seu irmão, na instituição hospitalar.

Instrumentos

Como instrumento foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada. A entrevista é um dos principais meios de que dispõe o investigador para a coleta de dados, uma vez que valoriza a presença consciente e atuante do investigador e oferece a possibilidade de o informante alcançar liberdade e espontaneidade em suas respostas(17).

Na etapa pré-doação, o roteiro de entrevista visava coletar informações sobre antecedentes pessoais, história familiar, condição de vida atual, percepção acerca do adoecimento do irmão, do transplante de medula óssea e da doação da medula, motivação e expectativas associadas à doação, bem como expectativas e projetos futuros dos doadores. Na pós-doação, a entrevista teve o propósito de investigar a percepção dos doadores acerca do processo de doação: lembranças do que aconteceu no momento imediatamente anterior à doação, da aspiração da medula e do momento imediatamente posterior a essa.

Coleta de dados

A coleta de dados foi dividida em dois momentos: antes e imediatamente após a doação. As entrevistas foram realizadas em ambiente preservado e gravadas em áudio, mediante o consentimento do participante. Seguiu-se roteiro previamente estabelecido, aplicado individualmente. A duração média das entrevistas foi de uma hora.

Análise dos dados

Os dados referentes à caracterização sociodemográfica da amostra de doadores foram submetidos à análise descritiva, com medidas de frequência, dispersão e medida central, mediante utilização do programa SPSS, versão 13.0.

As entrevistas foram analisadas qualitativamente. Foram empregados os procedimentos da análise de conteúdo categorial(18). As gravações transcritas, na íntegra e literalmente, constituíram-se no corpus de análise. Em seguida, foi realizada a leitura horizontal das respostas das questões. Os relatos foram categorizados por meio da análise de conteúdo, que seguiu os passos: (1) pré-análise: organização do material e sistematização das ideias, (2) descrição analítica: categorização dos dados e (3) interpretação referencial: tratamento e interpretação dos dados. Posteriormente, foram selecionados segmentos de falas para ilustrar as subcategorias construídas.

Resultados

As categorias encontradas estão sistematizadas na Figura 1. Foi dada atenção às subcategorias encontradas em cada categoria, que aparecerão destacadas em negrito.


Vida antes do adoecimento do irmão

Em relação às condições de vida, constatou-se que 18 doadores nasceram em uma cidade pequena e abandonaram sua cidade natal em busca de melhores condições de trabalho. As famílias de origem são numerosas; metade dos doadores possuía mais de seis irmãos. Era 14 filhos, mais o pai e a mãe. Com 18 anos mudamos para uma cidade maior (masculino, 36 anos, separado).

Em função do grande número de pessoas na família, 16 doadores afirmaram que precisaram trabalhar desde a infância para auxiliar financeiramente os pais. Essa necessidade de trabalho precoce foi utilizada para justificar o abandono dos estudos. De fato, 11 dos doadores não chegaram a completar o ensino fundamental. Eu não podia estudar muito por causa do trabalho. Estudei até a quinta série só. Foi uma vida meio sofridona (masculino, 40 anos, casado).

O relacionamento com a família nuclear foi considerado bom por 17 dos participantes. Sempre fui próxima dos meus pais. Com os meus irmãos brigava, mas logo tava junto de novo (masculino, 40 anos, casado). Aparecem no discurso de 17 participantes dificuldades no relacionamento com a mãe. Destaca-se, desde muito cedo, a sobrecarga familiar como característica marcante da organização familiar. Depois que ela ficou viúva, ela era severa. Acho que tinha medo de criar a gente errado e acabou afastando nós dela (feminino, 18 anos, casada).

O casamento foi considerado precoce por metade dos doadores, que afirmaram não estar preparados para a vida conjugal e acabaram se afastando da família nuclear depois do matrimônio. Eu fugi com ele com 13 anos. Era muito nova, tava vivendo meu primeiro amor. Depois me afastei de todo mundo, cada qual vai cuidar da sua família (feminino, 34 anos, casada).

Em geral, o relacionamento com o irmão acometido foi considerado bom, sendo que 12 dos doadores acreditavam que foram sempre mais próximos desse irmão e quatro alegaram que tinham boa relação, ficando ainda mais próximos depois da descoberta de que seriam os doadores. A gente já era próximo. Mas depois que eu descobri a gente continua irmão, mas parece que é mais ... (masculino, 40 anos, casado). Em contrapartida, quatro dos doadores afirmaram que tinham dificuldade no relacionamento com o irmão enfermo e que esse quadro não se alterou após o adoecimento e a doação. Nosso relacionamento continua sendo temperamental. Ele é ruim e não mudou nada. O que mudou é que agora eu sei que ele depende de mim (feminino, 33 anos, desquitada).

Mudanças advindas do adoecimento do irmão

As reações mais comuns ao diagnóstico, referidas pelos participantes, foram "susto" e "desespero", verbalizados por todos os doadores, que alegaram que a descoberta da doença foi evento inesperado. De fato, 18 doadores não haviam notado nada de errado com a saúde do irmão antes do diagnóstico da enfermidade. Eu não tinha notado nada de errado nele. Ele começou a suar muito e procurou um médico. Foi tudo muito rápido (feminino, 31 anos, casada).

Frente ao impacto do diagnóstico, amplificado pelo início abrupto da doença, a possibilidade de realização do TMO surgiu para 14 doadores como fator tranquilizador, enquanto que, para os outros seis, parece ter funcionado mais como evento desencadeador de ansiedade. O que fazer? Se não fizesse o transplante, só com o remédio ele não ia ficar bom, mas se fizesse e morresse? (masculino, 40 anos, casado).

Muitas vezes os temores e fantasias acerca do procedimento estavam relacionados ao desconhecimento da técnica, uma vez que a maioria dos participantes nunca havia ouvido falar em transplante de medula óssea, como era o caso de 16 dos doadores. A desinformação propiciou o surgimento de pré-concepções e temores infundados. Eu pensava logo que era uma cirurgia. Pensava em uma operação na espinha, que podia nem mais andar ... (masculino, 34 anos, casado)

Em três depoimentos apareceu, ainda, a percepção de dificuldades inerentes ao procedimento, sendo mencionadas as restrições impostas por tal técnica à vida do paciente e, até mesmo, os óbitos decorrentes de complicações do TMO. As pessoas depois do TMO sobrevivem uns seis meses, né? Mas é a chance dele de viver mais algum tempo ... (feminino, 33 anos, separada).

Essa ambivalência entre depositar confiança na possibilidade de cura e considerar a inevitabilidade de um desfecho fatal permeou o discurso dos doadores. O potencial de salvação foi apontado como o fator mais significativo que os levara a se posicionar favoravelmente à realização do TMO. Quando falaram que era transplante eu vi que a coisa era grave mesmo; sei que morre muita gente, mas é a chance de ficar bom, né? (feminino, 22 anos, casada). Também se constata, nessa fala, que a indicação do TMO funcionou como sinalizadora da gravidade do quadro.

Quanto à doação da medula óssea, o fato de terem sido os escolhidos, dentre os familiares testados, para todos os doadores veio acompanhado por reações de ansiedade. Quando da doação, eles me assustaram muito. Chegou até a me dar febre. Fiquei apavorada (feminino, 33 anos, separada).

Todos demonstraram que assimilaram e apreenderam as informações básicas acerca do processo. Vou para uma sala de cirurgia, vou tomar uma anestesia geral para a medula ser retirada por agulhas. Depois essa medula vai ser tratada e passada para o meu irmão (masculino, 22 anos, solteiro). Dezenove dos doadores consideraram a anestesia geral como maior fonte de ansiedade. Temiam a possibilidade de não voltarem mais do estado induzido pelo anestésico. E se quando eu tiver lá dormindo, eu dormir para sempre? (masculino, 28 anos, solteiro).

Emergiram, ainda, em quatro doadores fantasias relativas às implicações decorrentes do processo de doação, tais como: o temor de secar todo o sangue, de transmitir características de personalidade ao receptor, de ficar impotente após o ato da doação. Confusão muito comum entre os leigos é a equivalência entre a medula óssea e a medula espinhal, que transpareceu no temor de ficar paralítico. Esse negócio só me preocupa não andar mais, mas se é para salvar minha irmã, prefiro ficar na cadeira de rodas e ela viva (masculino, 36 anos, separado).

Apesar desses temores, a recusa em servir de doador foi nula, sendo que o maior motivo que justificou a decisão para doar a medula foi a possibilidade e consequente responsabilidade de salvar a vida do irmão, mesmo nos casos em que membros da família constituída se posicionaram de modo contrário à doação. Eu tô muito assustada, tô com medo. Tenho que pensar que eu tenho filhos, mas, fazer o quê? Tem que ser eu! Então que seja (feminino, 22 anos, casada).

Apareceram, ainda, como motivos para a aceitação do encargo da doação o constrangimento causado pela pressão da família nuclear e dos amigos, bem como os preceitos religiosos, em especial naqueles doadores que não apresentavam dificuldades de relacionamento com o paciente. Pensei em não doar, mas o que eu ia dizer pra minha mãe? Meus amigos também me aconselharam: teu irmão precisa docê ... aí eu não tive escapatória (masculino, 28 anos, solteiro).

Quando questionados se o órgão a ser doado para o irmão fosse um rim e não a medula óssea, 18 participantes responderam que doariam e dois argumentaram que fariam a doação, caso não houvesse risco de vida. Quanto a doar a medula para um desconhecido, 17 manifestaram que doariam, dois não doariam e um doaria caso fosse para um conhecido. É muito cansativo, é o tipo de coisa que só se faz para quem se ama (masculino, 28 anos, solteiro).

Vivenciando a doação de medula

Nas entrevistas ocorridas após a doação da medula, 14 participantes queixaram-se da necessidade de ficar internados, em especial devido à impossibilidade da presença de um acompanhante. Eu, no começo, fiquei muito nervosa. Nunca tinha ficado internada. Ainda mais sozinha. Foi difícil até conseguir dormir (feminino, 22 anos, casada). Nos relatos de 12 participantes apareceu a insônia na véspera da doação. Eu não consegui dormir, rolava na cama de um lado para o outro. Nunca chegava o outro dia, acho que foi a noite mais longa da minha vida (feminino, 31 anos, casada).

Os sentimentos vivenciados foram classificados por todos os doadores como desagradáveis, como: medo, nervosismo, ansiedade e preocupação. O medo de morrer apareceu no discurso de 11 dos 20 doadores. Eu estava com medo, tinha medo de morrer, medo de não acordar mais, mas mesmo assim eu não pensei em desistir (feminino, 34 anos, casada). Essas sensações desagradáveis, para esses doadores, perduraram até o momento do ingresso no centro cirúrgico. Quando eu fui descendo para o centro cirúrgico fui sentindo um friozinho na barriga, aí fui me dando uma tremedeira, que eu achei que ia desmaiar (masculino, 27 anos, casado).

Dezenove doadores relataram ter sentido um pouco de dor no dia posterior à doação. Tá um pouco de dor, uma moleza, mas na hora não doeu nada, a dor vem depois (feminino, 22 anos, casada). No entanto, 18 doadores afirmaram que a doação foi mais fácil do que imaginaram que seria. No final a doação foi melhor que eu pensava, não vi nem senti nada (masculino, 36 anos, separado). Esses participantes referiram como elementos que facilitaram tal processo o contato prévio com a equipe, ocorrido no estágio pré-TMO e na primeira semana da internação do irmão, bem como o apoio recebido desses profissionais. Acho que foi mais fácil para mim porque eu já estava acostumada com o hospital e com as pessoas daqui (feminino, 18 anos, casada).

Em relação aos significados atribuídos à doação, quando solicitados, no final da entrevista, a completar a frase: "ser doador para mim é...", a maioria (14 doadores), afirmou ser algo muito positivo, um privilégio, pela oportunidade de poderem salvar a vida de alguém. O que eu sinto é uma alegria de ter sido o escolhido, que Deus permitiu isso da gente, poder servir alguém. E ser um ser abençoado (masculino, 38 anos, casado). Três participantes descreveram como um acontecimento "normal", com pontos positivos e negativos. Normal. Bom e ruim. Bom por poder ajudar meu irmão, ruim por causa do medo (feminino, 34 anos, casada). Três participantes afirmaram não ser nada bom, que preferiam não ter doado a medula. Não muito bom. Eu tive que ficar contra o meu marido, que não queria que eu doasse. Eu queria que fosse outra pessoa (feminino, 31 anos, casada).

Discussão

Os dados obtidos mostram que, na fase anterior ao processo de doação da medula óssea, uma questão aparece de modo recorrente: o impacto que o adoecimento do familiar tem na vida do irmão doador. O diagnóstico de uma doença potencialmente fatal é desencadeador de reações disfóricas, como "susto" e "desespero", que mobiliza toda a unidade familiar. Tal dado é corroborado por achados da literatura, que mostram que o impacto psicológico do diagnóstico não atinge apenas o paciente, mas se estende a toda a unidade familiar(3).

Foram comuns nos relatos as mudanças que ocorreram depois da descoberta da doença do irmão, em especial as alterações vivenciadas no sistema familiar. Essas modificações geralmente apareceram acompanhadas de tonalidade emocional disfórica, mas, também, são significadas positivamente como oportunidade de reaproximação dos membros familiares. Tal movimento de reunificação familiar parece estar relacionado à sobrecarga de sentimentos mobilizados por diagnóstico de doença onco-hematológica, cujo reservado prognóstico traz consigo o temor suscitado pela possibilidade bastante concreta da perda do familiar(4).

Aliado ao adoecimento do irmão, aparece ainda o fato de o transplante ser visto como tratamento salvador e ameaçador ao mesmo tempo, gerando importante impacto psicológico e ambivalência emocional no paciente e em sua família(4). Trata-se, porém, de efetiva possibilidade de salvação em casos de doenças refratárias aos tratamentos convencionais, por vezes considerado como o único meio disponível de se alcançar a cura(4). Essa esperança é o que faz com os que os doadores incentivem o irmão a submeter-se ao TMO.

Quanto à tomada de decisão acerca da doação da medula óssea, apesar dos temores referentes ao processo de doação, a recusa foi nula. Esses dados corroboram os achados da literatura, que apontam como principais motivações, na doação relacionada, o fato de o sujeito ser colocado, potencialmente, como o salvador da vida de um membro familiar, e os preceitos religiosos. Daí porque é muito difícil sustentar uma recusa em tais circunstâncias, apesar do medo e da ambivalência que marcam o desejo de doar a medula(14). Essa responsabilidade de doar a medula e de ver colocado sobre si o encargo de "salvar o irmão", e a consequente impossibilidade de se eximir de tal responsabilidade, podem se tornar opressivas e conduzir à angústia psicológica e sintomas de ansiedade no doador relacionado de medula óssea(5). No presente estudo os doadores relataram a vivência de sentimentos desagradáveis como medo, nervosismo, ansiedade e preocupação.

Os resultados obtidos vão ao encontro do esperado, de acordo com a literatura, encontrando-se a afirmação que os doadores relacionados de medula óssea apresentam reações emocionais negativas, advindas do estresse desencadeado pela doação e suas implicações psicológicas(6). De acordo com os dados coligidos durante as entrevistas, esse quadro de estresse acaba interferindo em todas as esferas da vida de relações entre irmão/doador. Com efeito, os participantes relataram dificuldades familiares e profissionais, que aumentavam sua vulnerabilidade aos estressores psicossociais.

Em relação às dificuldades vivenciadas nas relações familiares, no discurso dos doadores evidenciou-se o conflito que se estabelece entre a família de origem, incentivando e, até certo ponto, pressionando para que a doação aconteça, e a família constituída que, muitas vezes, se opõe tenazmente a tal ato, por mais meritório que seja. A evidência de conflitos familiares deflagrados pela oportunidade de doar a medula é também um achado da literatura(4).

Conforme apontam os resultados, percebe-se que o quadro de tensão emocional e estresse perduram até à véspera da doação, sendo que, nesse momento, figuram como fatores tranquilizadores o contato prévio do doador com o ambiente hospitalar e o fato de ficar internado na UTMO, onde recebem o apoio da equipe multiprofissional.

Considerações finais

Este estudo demonstrou que a doação de medula óssea acarreta diversas implicações psicológicas para o irmão doador, que vivencia como eventos estressores o adoecimento do irmão, a decisão do tratamento, a descoberta da compatibilidade e a responsabilidade de ser o doador. Frente aos achados é interessante que a equipe possa traçar estratégias de intervenção, tanto de caráter educativo como psicoterapêutico, que permitam atender as necessidades específicas desses indivíduos em cada estágio vivenciado, de modo a favorecer a expressão emocional e a elaboração dos sentimentos despertados. Esses cuidados, voltados ao doador, devem se estender desde o período da descoberta de que seriam os doadores até o final do tratamento de seus irmãos.

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  • Corresponding Author:
    Érika Arantes de Oliveira-Cardoso
    Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto. Departamento de Psicologia e Educação.
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  • 1
    Paper extracted from Master’s Thesis "Repercussões psicológicas da doação da medula óssea no doador relacionado", presented to Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, SP, Brazil. Supported by FAPESP, process # 2000/01464-0.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      Out 2010

    Histórico

    • Aceito
      16 Nov 2009
    • Recebido
      29 Jun 2009
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