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Mulheres nas equipes de enfermagem: identificação organizacional e vivências de prazer e sofrimento

Resumos

OBJETIVO:

analisar o grau de influência da identificação organizacional nas vivências de prazer e de sofrimento das mulheres integrantes das equipes de enfermagem, de dois hospitais gerais de Belo Horizonte.

MÉTODO:

estudo quantitativo, realizado com 97 enfermeiras e 414 técnicas de enfermagem, escolhidas por conveniência, em seus locais de trabalho. Utilizou-se um questionário autoadministrado, com três escalas do tipo Likert: auto e heteropercepção, identificação com a organização e vivências de prazer e de sofrimento no trabalho.

RESULTADOS:

as relações estruturais explicaram percentual pequeno da variabilidade da identificação organizacional e demonstrou que a auto e heteropercepção apresentam-se como fatores pouco relevantes na identificação do profissional com sua organização.

CONCLUSÕES:

ao se considerar o quanto a auto e heteropercepção e a identificação organizacional impactam, em conjunto, as vivências de prazer e de sofrimento, observou-se maior poder explicativo para esgotamento profissional, falta de reconhecimento, liberdade de expressão e realização profissional.

Identidade de Gênero; Enfermagem; Autoimagem; Trabalho Feminino


OBJECTIVE:

to analyze the degree of influence of the organizational identification on the experiences of pleasure and suffering of women who are members of the nursing staff of two general hospitals in Belo Horizonte.

METHOD:

a quantitative study was conducted with 97 nurses and 414 nursing technicians chosen by convenience in their workplaces. We used a self-administered questionnaire containing four Likert-type scales: self and hetero-perceptions; identification with the organization; and experiences of pleasure and pain at work.

RESULTS:

the structural relations explained a small percentage of the variability of organizational identification, showing that the self and hetero-perception are presented as relevant factors in professional identification with the organization. When considering how much the self and the hetero-perception and organizational identification all together impact in the experiences of pleasure and pain, a higher explanatory power is observed for: professional exhaustion, lack of recognition, freedom of expression and professional achievement.

Gender Identity; Nursing; Self Concept; Women, Working


OBJETIVO:

analizar el grado de influencia de la identificación organizacional en las vivencias de placer y de sufrimiento de las mujeres integrantes de los equipos de enfermería de dos hospitales generales de Belo Horizonte.

MÉTODO:

estudio cuantitativo realizado con 97 enfermeras y 414 técnicas de enfermería, escogidas por conveniencia en sus locales de trabajo. Se utilizó un cuestionario autoadministrado conteniendo cuatro escalas tipo Likert: auto y heteropercepción; identificación con la organización; y vivencias de placer y sufrimiento en el trabajo.

RESULTADO:

a relaciones estructurales explicaron un porcentual pequeño de la variabilidad de la identificación organizacional, demostrando que la auto y heteropercepción se presentan como factores poco relevantes en la identificación del profesional con su organización. Al considerar cuanto la auto y heteropercepción y la identificación organizacional impactan en el conjunto en las vivencias de placer y sufrimiento, se observa un mayor poder explicativo para: agotamiento profesional, falta de reconocimiento, libertad de expresión y realización profesional.

Identidad de Género; Enfermería; Autoimagen; Trabajo Femenino


Introdução

A identidade é construída por meio do exercício de papéis, em um dado contexto social, e mediada pelo processo de identificação, no qual o "outro" assume papel relevante. A identidade se refere à autopercepção do sujeito na interação entre o "eu" e a sociedade e entre o interior e o exterior. A identificação, por sua vez, diz respeito à obtenção pelo sujeito das qualidades do "outro", com o intuito de elevar sua autoestima. Mediante um conjunto de identificações, o indivíduo não apenas reconhece "quem ele é" como também adquire a capacidade de se reconhecer como distinto, perceber semelhanças e compreender a vida coletiva( 11. Fernandes MER, Marques AL, Carrieri AP. Identidade organizacional e os componentes do processo identificatório: uma proposta de integração. Cad Ebape. 2009;7(4):688-703. ). A identificação ocorre quando as crenças dos sujeitos sobre a organização tornam-se referência para a sua autopercepção, gerando o senso de pertencimento( 22. Bizumic B, Reynolds KJ, Turner JC, Bromhead D, Subasic, E. The role of the group in individual functioning: school identification and the psychological well-being of staff and students. Appl Psychol. 2009; 58(1):171-92. ).

Do processo subjetivo de vinculação do indivíduo com a organização e com o trabalho, podem resultar vivências de prazer e de sofrimento. Para que o trabalho seja percebido, principalmente, como fonte de prazer, é necessário que o indivíduo receba o devido reconhecimento durante a realização de tarefas( 33. Gernet I, Dejours C. Évaluation du travail et reconnaissance. Nouvell Reve Psychosociol. 2009;8(2):27-36. ), proveniente de duas fontes de julgamento: utilidade e beleza. A primeira diz respeito à relevância técnica, social ou econômica da atividade desempenhada pelo trabalhador, sendo o julgamento proferido por pessoa hierarquicamente superior a ele; a segunda diz respeito à singularidade e à especialidade do trabalho executado, visando o reconhecimento por parte dos colegas que o avaliam. A identificação com o trabalho e com a organização irá decorrer dos resultados desses julgamentos( 44. Dejours C. Addendum da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. In: Lancman S, Sznelwar LI. Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro: Fiocruz, Brasília: Paralelo 15; 1993/2008. p. 163-78. - 55. Brant LC, Minayo-Gomez C. Manifestação do sofrimento e resistência ao adoecimento na gestão do trabalho. Saúde Soc. 2009;18(2):237-47. ).

Nesse contexto, o objetivo geral deste artigo foi analisar o grau de influência da autopercepção e da heteropercepção na identificação organizacional e nas vivências de prazer e de sofrimento de mulheres integrantes das equipes de enfermagem, de dois hospitais gerais de Belo Horizonte, MG.

Historicamente, a enfermagem tem se caracterizado por ser profissão predominantemente feminina e numericamente representativa no contexto hospitalar( 66. Rossetti AC, Gaidzinski RR. Estimating the nursing staff required in a new hospital. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2011;19(4):1011-7. ). As ações de cuidado, dirigidas às pessoas, nos processos de diagnóstico e em terapia, realizados pelas equipes de enfermagem, mobilizam grande carga emocional e podem gerar vivências de sofrimento no trabalho. A relevância do presente estudo, portanto, está em analisar se o processo de identificação com as organizações e o reconhecimento social pelo trabalho podem minimizar o sofrimento e fazer sobressair o prazer.

Ao se realizar o levantamento em periódicos da área da saúde, não foi possível localizar artigos que estabelecessem relação entre identificação organizacional e vivências de prazer e de sofrimento no trabalho, nem tampouco escalas para a avaliação da auto e heteropercepção. Constatou-se, também, que a maior parte dos trabalhos publicados sobre identidade e percepção da imagem profissional prioriza a utilização de métodos qualitativos. Visando preencher essa lacuna do conhecimento, a proposta neste trabalho foi a de um modelo quantitativo para analisar o comportamento das variáveis em foco.

Método

Esta pesquisa é de caráter descritivo, correlacional, de corte transversal e de abordagem quantitativa, com a participação de 511 mulheres integrantes das equipes de enfermagem, em dois hospitais gerais de Belo Horizonte, MG. O hospital A pertence à rede municipal de saúde, atende exclusivamente usuários do SUS, possui 409 leitos e conta com um quadro de 2.553 profissionais. O hospital B não tem fins lucrativos, atende pacientes encaminhados por planos de saúde e pelo Sistema Único de Saúde - SUS, possui 360 leitos e conta com um corpo funcional de 1.500 funcionários.

A coleta de dados realizou-se durante os meses de novembro e dezembro de 2012. Garantiu-se o anonimato das participantes na utilização das informações, atendendo os princípios éticos da Resolução nº 196/96, do Conselho Nacional de Saúde. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa dos hospitais: A (Protocolo nº385866/2010, em 9/12/2012) e B (Protocolo nº370/11, em 26/05/2011), e conduzida de acordo com os padrões éticos exigidos. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), e preservou-se a confidencialidade dos dados.

Seleção da amostra

A partir de listagem de funcionários da área de enfermagem, do sexo feminino, dos dois hospitais (A e B), foi possível obter a distribuição dos funcionários pelos cargos, totalizando 229 enfermeiras e 1.038 técnicas de enfermagem, sendo: 142 enfermeiras e 614 técnicas de enfermagem no hospital A; e 87 enfermeiras e 424 técnicas de enfermagem no hospital B. Aplicando uma margem de erro de 5% e 95% de confiança para populações finitas, estimou-se e se obteve uma amostra total de 511 sujeitos, sendo: 61 enfermeiras e 224 técnicas de enfermagem no hospital A e 36 enfermeiras e 190 técnicas de enfermagem no hospital B.

O critério de inclusão utilizado foi o de conveniência para o pesquisador, disponibilidade das mulheres para participarem da pesquisa e ter, pelo menos, 6 meses de casa. Foi entregue a cada enfermeira e técnica de enfermagem, em seu local de trabalho, um questionário autoadministrado, contendo instruções sobre seu preenchimento. Após a entrega, foi estabelecido um período para o recolhimento do instrumento já respondido, sendo adotado o critério de realizar, no máximo, três retornos para recolher os questionários. Ao final de duas semanas em cada hospital foi encerrada a coleta de dados.

Variáveis do estudo e instrumento de coleta de dados

As variáveis do estudo e as relações de causalidade entre elas estão detalhadas na Figura 1.

Figura 1
Modelo da pesquisa

No questionário foram operacionalizadas quatro dimensões do modelo:

- a autopercepção refere-se aos atributos que o indivíduo dá a si próprio e que estão relacionados à estima pessoal e profissional;

- a heteropercepção refere-se àquilo que o indivíduo considera que os outros lhe atribuem;

- a identificação organizacional envolve as percepções de cada indivíduo em relação ao sentido de pertencer a uma organização, o que leva a definir a si próprio em relação à organização;

- as vivências de prazer e de sofrimento no trabalho referem-se tanto às percepções de prazer quanto às de sofrimento, vinculadas ao trabalho e à organização.

Para avaliar a percepção que os indivíduos têm de sua categoria profissional utilizou-se a Escala de Auto e Heteropercepção, desenvolvida e validada especialmente para este estudo. Para construir a escala, optou-se por utilizar a tradição léxica composta por adjetivos característicos de determinada categoria profissional, associados a notas que variaram entre 1 (descreve muito mal) e 5 (descreve muito bem), com igual número de alternativas positivas e negativas. Cada adjetivo foi avaliado pelo respondente duas vezes: primeiro sobre o modo como ele percebe sua categoria profissional (autopercepção), segundo sobre a percepção que a sociedade têm de sua categoria profissional (heteropercepção).

Para validar a escala, contou-se com uma amostra composta por 243 estudantes do último ano do curso de enfermagem. Os dados foram registrados por meio do programa de informática Statistical Package for Social Sciences. Após a depuração da base, avaliou-se a dimensionalidade por meio da análise fatorial exploratória, para cada dimensão da escala proposta, com extração de fatores por componentes principais, usando o critério de análise do scree plot. O resultado foi a composição de uma escala com 30 itens, distribuídos em nove dimensões: dedicação (amiga, companheira, dedicada, humana); esforço (árdua, desgastante, produtiva, trabalhadora); ética (ética, honesta, honrada, confiável); tecnicidade (inteligente, sábia, estudiosa); inovação (criativa, inovadora); reconhecimento (renomada, respeitada, admirada, prestigiada); realização (otimista, alegre, feliz); subordinação (obediente, submissa, dependente) e dinamismo (dinâmica, estimulante, desafiante).

Para avaliar as questões relativas à identificação organizacional do modelo de pesquisa, utilizou-se a Escala de Identificação Organizacional - OID, composta por seis fatores: orgulho de trabalhar na instituição; felicidade por ser membro da instituição; forte sentimento de pertencer à instituição; fortes laços com a instituição; sentimento de apoio institucional e conhecimento suficiente sobre a instituição, já validado previamente( 77. Almeida ALC A Influência da identidade projetada sobre a reputação organizacional [tese de doutorado]. Belo Horizonte (MG): Programa de Pós-graduação em Administração da Universidade Federal de Minas Gerais; 2005. 361 p. ). A concordância ou discordância com cada uma das situações foi avaliada através de uma escala Likert de 5 pontos.

Para avaliar as questões relativas às vivências de prazer e sofrimento, utilizou-se a Escala de Indicadores de Prazer e Sofrimento no Trabalho - EIPST. Tal escala integra um Inventário sobre o Trabalho e o Risco de Adoecimento (Itra), construído com base no referencial teórico da psicodinâmica do trabalho, composto, no total, por quatro escalas independentes, e já validado previamente( 88. Mendes AM. Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisas. São Paulo (SP): Casa Psi; 2007. p. 29-48. ). A EIPST é composta por quatro dimensões, sendo duas para prazer e duas para sofrimento: a primeira indica a realização profissional e a liberdade de expressão; a segunda, o esgotamento emocional e a falta de reconhecimento. A frequência em que ocorreram vivências positivas e negativas foi avaliada através de uma escala Likert de 5 pontos (1=nunca; 5=sempre). Buscando manter um instrumento válido e confiável, reduziu-se tal escala, utilizando-se a fórmula de Spearman-Brown, mantendo um número de itens em cada uma das quatro dimensões da escala que permitisse confiabilidade mínima de 0,700 (alpha de Cronbach). Isso significa que o instrumento empregado é uma versão reduzida do original( 88. Mendes AM. Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisas. São Paulo (SP): Casa Psi; 2007. p. 29-48. ).

O último bloco do questionário continha informações sociodemográficas, tais como idade, escolaridade, número de filhos, tempo de trabalho no hospital, turno de trabalho.

Registro e análise dos dados

As respostas dos participantes foram registradas em banco de dados, por meio do programa de informática Statistical Package for Social Sciences, e analisadas por meio da Modelagem de Equações Estruturais com abordagem multigrupos.

Analisando as variáveis componentes do modelo, observou-se o máximo de dados ausentes na Q1.34, com 9,5% (53) de dados ausentes, que representaram 3,8% da base do hospital A (1068/[236*119]) e 3,66% para o hospital B (1365/[119*313]), percentual relativamente pequeno para significar ameaça à integridade das análises( 99. Cooper DR, Pamela SS. Marketing research. New York: McGraw-Hill; 2006. 412p. ). Inicialmente, procedeu-se à exclusão dos casos com perda de dois desvios-padrão acima da média do grupo, e acima de dois desvios-padrão da média de dados ausentes da base. Excluíram-se nove casos na base de cada hospital. Esses dados ausentes foram repostos pelo procedimento denominado "expectativa de maximização", para encontrar a máxima verossimilhança de parâmetros, levando à presença de 531 casos completos na amostragem da pesquisa.

Identificando os casos extremos como os que ficaram fora dos limites de ±2,58 em relação à média, obteve-se a contagem de 609 respostas extremas (0,96% da base). Esses casos foram repostos por valores menos ofensivos dentro dos limites das escalas. Identificando os casos extremos multivariados, conforme a distância de Mahalanobis (medida baseada em correlações entre variáveis pela qual diferentes padrões podem ser identificados e analisados), comparada a uma estatística qui-quadrado com 0,1% de significância e 119 graus de liberdade detectaram-se quatro casos extremos para um hospital e 15 para o outro. Visando manter uma amostra de tamanho apropriado para o teste do modelo, bem como avaliar a possível influência dos casos na análise, procedeu-se a testes com e sem casos extremos na pesquisa. As diferenças entre os resultados foram mínimas e não perceptíveis, não mudando as conclusões obtidas no estudo.

Na sequência, avaliou-se o atendimento do pressuposto de normalidade por meio dos testes Z de significância da curtose e assimetria, bem como do teste Komogorov-Smirnov. Os parâmetros de assimetria e curtose foram notáveis em cada grupo de análise, revelando discrepâncias significativas (valor Z fora dos limites de ±1,96) e expressivas (medidas fora dos limites de ±1) para praticamente todas as variáveis( 1010. Hair JF, Black WC, Babin BJ, Anderson RE. Multivariate data analysis. 7th. New Jersey: Prentice Hall, Upper Saddle River; 2010. 960 p. ). Da mesma forma, os testes globais de significância demonstraram desvios expressivos da normalidade, nos casos supracitados, relevando haver discrepância que instiga a utilização de métodos mais robustos à violação desse pressuposto, tais como os mínimos quadrados parciais (partial least squares). Avaliaram-se, ainda, os pressupostos de linearidade e multicolinearidade, por meio das medidas de inflação de variância dos diagramas de dispersão (de 100 pares de variáveis) e da matriz de correlação dos dados. As evidências demonstraram que o grau de redundância (valores de inflação de variância menores que 10 e correlações entre ±0,9) e o pressuposto de linearidade foram atendidos e não se detectou nenhum desvio notável.

Na sequência, procedeu-se à avaliação da qualidade das escalas por meio do método de análisefFatorial exploratória (extração por componentes principais e rotação direct oblimin). Realizou-se o teste utilizando-se, inicialmente, as respostas de autopercepção e depois as de heteropercepção. Os resultados dessa avaliação mostraram que alguns indicadores não caíram em seus respectivos fatores, apesar de a escala de heteropercepção mostrar boa coerência. No entanto, dado o objetivo de se utilizar a diferença entre as percepções e sua influência na identificação e nas vivências de prazer e sofrimento no trabalho, aplicou-se, na análise, a diferença entre tais indicadores para identificar os fatores subjacentes.

Resultados

Do total da amostra nos dois hospitais, 48,2% das mulheres não tinham filhos e 44,2% tinham de um ou dois filhos; 44,2% eram solteiras e 42,9%, casadas. Quanto à escolaridade, 68,5% tinham nível médio/técnico de ensino, 15,7%, graduação e 13,7%, especialização. Quanto ao tempo de trabalho, 26,4% estavam a menos de um ano no hospital, 49,9%, entre 1 e 5 anos e 18,9%, mais de 10 anos; 19% eram enfermeiras e 81%, técnicas de enfermagem; 73,3% trabalhavam em turno diurno. A média de idade foi de 36,77 anos (desvio-padrão=9,97).

A Tabela 1 indica os resultados da análise fatorial exploratória.

Tabela 1
Análise fatorial exploratória: escala de auto e heteropercepção

As dimensões encontradas são compatíveis com o esperado pelas escalas, e demonstra que houve congruência entre os itens e as escalas previstas no estudo, com exceção para os indicadores "estimulante" e "dinâmica" da dimensão "dinamismo", que foram levados para as dimensões "inovação" e "realização", respectivamente.

Para a escala de vivências de prazer e de sofrimento no trabalho( 88. Mendes AM. Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisas. São Paulo (SP): Casa Psi; 2007. p. 29-48. ), após a exclusão de quatro itens (liberdade para usar a minha criatividade, insegurança, medo e inutilidade), dentre os selecionados inicialmente para compor o instrumento( 88. Mendes AM. Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisas. São Paulo (SP): Casa Psi; 2007. p. 29-48. ), por apresentar baixa comunalidade e/ou cargas cruzadas, obteve-se uma solução fatorial satisfatória, conforme demonstrado na Tabela 2.

Tabela 2
Análise fatorial exploratória: escala de vivências de prazer e de sofrimento no trabalho

Os resultados para a análise da identificação organizacional resultaram em somente um fator, como esperado( 77. Almeida ALC A Influência da identidade projetada sobre a reputação organizacional [tese de doutorado]. Belo Horizonte (MG): Programa de Pós-graduação em Administração da Universidade Federal de Minas Gerais; 2005. 361 p. ) (Tabela 3).

Tabela 3
Análise fatorial exploratória: identificação organizacional

Prosseguiu-se com a avaliação da qualidade geral das medições, por meio das medidas alpha de Cronbach, confiabilidade composta e variância média extraída. Tais medidas representam a confiabilidade geral das escalas/fatores e dos indicadores. As medidas alpha de Cronbach e confiabilidade composta indicam o percentual da variância atribuída ao verdadeiro escore da variável latente, ou seja, o percentual da variância livre de erros aleatórios de medição, sendo aceitos valores tipicamente superiores a 0,700, mas podendo compreender valores de até 0,600 para escalas em construção( 99. Cooper DR, Pamela SS. Marketing research. New York: McGraw-Hill; 2006. 412p. ). Essas medidas mostram que as escalas detêm propriedades aceitáveis, pois se constituem, em sua maioria, por valores superiores a 0,800. Já a variância média extraída representa a confiabilidade média dos indicadores e deve apresentar valores superiores a 0,400, sendo esse o caso para todas as escalas.

Na sequência, avaliou-se a validade das medições por meio do procedimento de validade de construto( 99. Cooper DR, Pamela SS. Marketing research. New York: McGraw-Hill; 2006. 412p. ) e aplicou-se a abordagem de modelagem de equações estruturais para esse fim( 1111. Bagozzi RP, Yi Y. Multitrait-multimethod matrices in consumer research. J Consumer Res. 1991; 17(4):426-39. ), utilizando-se o método de estimação por mínimos quadrados parciais (partial least quares), o mais apropriado, dada a relação amostra versus tamanho do modelo e a presença de desvios da normalidade( 1212. Fornell C, Bookstein F. Two structural equation models: LISREL and PLS applied to consumer exit-voice theory. J Marketing Res. 1982;19(4):440-52. ).

A validade de construto tem três componentes: validade convergente, validade discriminante e validade nomológica. Na validade convergente, busca-se identificar se todos os indicadores têm, como origem, o mesmo fator, que significa avaliar se as cargas fatoriais dos indicadores são significativas no nível de 5% ou 1% unicaudal( 1212. Fornell C, Bookstein F. Two structural equation models: LISREL and PLS applied to consumer exit-voice theory. J Marketing Res. 1982;19(4):440-52. ). Tal critério revelou que praticamente todos os indicadores atenderam o requisito proposto com boa confiabilidade, dado que o quadrado das cargas fatoriais padronizadas foi superior a 0,4, em sua maioria. Para medir a validade discriminante( 1212. Fornell C, Bookstein F. Two structural equation models: LISREL and PLS applied to consumer exit-voice theory. J Marketing Res. 1982;19(4):440-52. ), comparou-se a variância média extraída dos indicadores com o quadrado das correlações entre os pares dos construtos. Todas as escalas apresentaram validade discriminante segundo esses critérios. Os resultados das análises precedentes demonstraram que os construtos apresentam validade discriminante. Finalmente, aplicou-se o modelo geral de pesquisa aos dados apresentados. Utilizando-se o método bootstrapp, verificou-se quais relações entre auto e heteropercepção mostraram significância estatística no nível 5% de significância unicaudal (Tabela 4).

Tabela 4
Relações estruturais testadas na amostra completa

Em geral, as relações estruturais explicaram percentual pequeno da variabilidade da identificação organizacional (R2=8,5%), demonstrando que a diferença entre auto e heteropercepção apresenta-se como fator pouco relevante na identificação do profissional com sua organização. Ao considerar o quanto a auto e a heteropercepção e a identificação organizacional impactam as vivências de prazer e de sofrimento, observa-se maior poder explicativo para: 1) esgotamento profissional (R2=25,06%); 2) falta de reconhecimento (R2=27,47%); 3) liberdade de expressão (R2=16,67%) e 4) realização profissional (R2=28,38%). Essa análise atende o objetivo central da presente pesquisa, que foi o de estabelecer a correlação entre auto/heteropercepção, identificação organizacional e vivências de prazer e de sofrimento no trabalho.

Discussão

Para a dimensão "dedicação" da escala de auto e heteropercepção da categoria profissional, observou-se uma relação negativa com "esgotamento profissional" e positiva com "liberdade de expressão" (da escala de vivências de prazer e de sofrimento no trabalho). Tal constatação revela que as enfermeiras que avaliam sua profissão como "humana", "companheira", "amiga" e "dedicada" e obtêm o reconhecimento da sociedade por tais atributos, tendem a se sentir menos frustradas e sobrecarregadas e mais gratificadas, além de perceberem a existência de cooperação e confiança entre colegas.

A dimensão "esforço" da escala de auto e heteropercepção impactou, de forma significativa e negativa, todas as dimensões de prazer, e, de forma significativamente positiva, todas as dimensões de sofrimento, estabelecendo também forte relação negativa com identificação organizacional. Tal resultado revela que a percepção de uma profissão, que exige muitos esforços no cotidiano de trabalho, gera expressivo desprazer e sofrimento, bem como mitiga a identificação do profissional com sua organização. Tal sentimento torna-se ainda mais proeminente quando a autoavaliação do esforço não é reconhecida pela sociedade. Esses resultados são preocupantes, à medida que outras pesquisas apontam que a fraca identificação profissional pode ter impacto negativo na saúde física e mental dos trabalhadores( 1313. Haslam SA, Jetten J, Postmes T, Haslam C. Social identity, health and well-being: An emerging agenda for applied psychology. Appl Psychol. 2009;58(1):1-23. ) e no bom desempenho profissional( 1414. Bizumic B, Reynolds K J, Meyers B. Predicting social identification over time: the role of group and personality factors. Pers Individ Dif. 2012;53(4):453-8. ). Cabe ressaltar que, historicamente, o ideário vocacional da mulher na enfermagem funda-se nas qualidades de cuidadora, abnegada, dedicada, delicada e carinhosa, ou seja, qualidades tipicamente femininas realizadas, ainda, sob jugo da autoridade médica, cuja categoria profissional é majoritariamente masculina( 1515. Santo TBE, Oguisso T, Fonseca RMGS. The professionalization of Brazilian nursing in the written media of the end of the nineteenth century: a gender analysis. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2011;19(5):1265-71. - 1616. Brito MJM, Montenegro LC, Alves M. Relational experiences of power and gender for nurse-managers of private hospitals. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2010;18(5):952-9. ).

A dimensão "inovação" da escala de auto e heteropercepção apresentou impacto significativo e positivo somente na identificação organizacional, revelando que indivíduos que avaliam sua profissão como criativa e inovadora desenvolvem maiores afinidades com sua organização. Note-se que a inovação está muito relacionada aos desafios propostos às equipes pelas lideranças que, por sua vez, podem aumentar a identificação do grupo e potencializar a crença coletiva na capacidade de executar várias tarefas em ambientes complexos( 1717. Lee C, Farh JL, Chen ZJ. Promoting group potency in project teams: The importance of group identification. J Organiz Behav. 2011;32:1147-62. ). Assim, a identificação do grupo com a liderança que, em última instância, representa a organização, é central para o desenvolvimento da confiança do grupo em si mesmo.

Aqueles profissionais que percebem sua profissão como alegre e otimista, itens que pertencem à dimensão "realização" da escala de auto e heteropercepção, tendem a vivenciar menor sofrimento e maior prazer em seu trabalho, bem como maior identificação com a organização. Tais relações foram significativas em nível de 5% unicaudal, revelando grande poder preditivo dessa dimensão na construção da autoimagem profissional e de atitudes e posturas positivas perante as organizações. Tal resultado confirma que a identificação dos indivíduos com a organização é fortemente afetada pela percepção de que organização é processualmente justa e trata os membros das equipes com respeito( 1818. Blader SL, Tyler TR. Testing and extending the group engagement model: Linkages between social identity, procedural justice, economic outcomes, and extra role behavior. J Appl Psychol. 2009;94:445-64. ).

Ter uma imagem profissional de "prestigio" e "renome", na dimensão "reconhecimento", da escala de auto e heteropercepção, culmina em menor sofrimento e maior realização profissional. Tal dimensão mostrou-se importante também na determinação da identificação organizacional, indicando que o reconhecimento profissional afeta significativamente a identificação com a organização (p<0,05).

Neste estudo, a dimensão "subordinação" da escala de auto e heteropercepção não se revelou importante nas vivências de prazer e sofrimento, nem, tampouco, na identificação organizacional, dado que nenhuma dessas relações mostrou significância estatística. Nesse sentido, os dados corroboram o entendimento de que as equipes de enfermagem negam o discurso de subordinação e inferiorização dos enfermeiros aos médicos; situação que se caracteriza como o grande enfrentamento imaginário dessa categoria profissional( 1919. Moreira MCN. Images in the venus' mirror: woman, nursing and modernity. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 1999;7(1):55-65. ).

A dimensão de "tecnicidade", que remete ao desafio intelectual da profissão, revelou-se como fator que fortalece o sofrimento e diminui o prazer, exceto para a "liberdade de expressão". Infere-se, portanto, que profissionais que acreditam que sua profissão é altamente técnica e avaliam que a sociedade a percebe como sendo de baixa complexidade intelectual, tendem a experimentar maior sofrimento e menor prazer.

A dimensão "ética" afetou somente a vivência de sofrimento no trabalho com relações positivas. Isso demonstra que, à medida que aumenta a autopercepção de elevados padrões éticos inerentes à profissão, sendo tais padrões não reconhecidos pela sociedade, tem-se aumento do sofrimento profissional.

A variável identificação organizacional, por sua vez, apresentou elevado impacto positivo sobre as vivências de prazer e negativo sobre vivências de sofrimento.

Conclusão

O objetivo geral deste artigo foi analisar o grau de influência da autopercepção e da heteropercepção na identificação organizacional e nas vivências de prazer e de sofrimento das mulheres integrantes das equipes de enfermagem de dois hospitais gerais de Belo Horizonte, MG. A conclusão a que se chega com este estudo é a de que a variável identificação do indivíduo com a organização na qual trabalha apresenta elevado impacto positivo sobre as vivências de prazer e negativo sobre as vivências de sofrimento. Por outro lado, não foi possível estabelecer uma relação causal entre auto e heteropercepção e identificação organizacional, ou seja, não é possível afirmar que quanto mais positiva a auto e heteropercepção e quanto maior a congruência entre elas maior será o nível de identificação dos indivíduos com a organização. Também não é possível comparar os resultados obtidos, neste estudo, com outros, uma vez que na literatura científica não existem trabalhos similares.

A limitação metodológica da pesquisa está relacionada ao tamanho da amostra, que pode ser ampliada para permitir análises estatísticas de maior robustez conceitual, como a modelagem de equações estruturais, utilizando a análise de estruturas de covariância. Também se sugere que futuras pesquisas sejam acompanhadas de análises qualitativas, a fim de propiciar melhor interpretação do comportamento das variáveis em estudo.

Os percentuais de explicação encontrados revelam terreno fértil para a avaliação da influência de outros fatores individuais (personalidade, valores, experiência de vida) e contextuais (qualidade de vida no trabalho, infraestrutura, remuneração) tanto na identificação organizacional quanto nas vivências de prazer e sofrimento no trabalho, em futuros estudos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sept-Oct 2013

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2013
  • Aceito
    17 Jul 2013
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