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O avesso da liberdade

RESENHAS

As versões da liberdade

Maria Isabel Limongi

NOVAES, Adauto (org.). 2002. O avesso da liberdade. São Paulo : Companhia das Letras.

A liberdade diz-se de muitos modos: liberdade do querer, do fazer, autonomia, participação política, direito. A liberdade emprega-se também de muitos modos: como simples palavra ou como conceito, como arma política ou elemento doutrinal, como idéia reguladora ou apelo à experiência. E a liberdade, por dizer-se e empregar de muitos modos, deixa-se ainda pensar de muitos modos, em diversos planos discursivos – daquele em que o que está em questão é o seu conceito e a possibilidade de pensá-lo ao do comentário aos grandes temas emergentes, como a globalização e o avanço tecnológico, que parecem de algum modo colocá-la em risco. A coletânea O avesso da liberdade, organizada por Adauto Novaes, reunindo um conjunto de conferências proferidas sobre o tema, dispõe ao leitor toda essa diversidade, ao mesmo tempo em que oferece um certo recorte do panorama intelectual brasileiro.

Há, assim, um primeiro grupo de artigos dedicados à questão que poderíamos chamar de "transcendental": a liberdade é pensável? Quais os impasses, as dificuldades conceituais, os paradoxos que é preciso vencer ou enfrentar para que faça sentido o emprego dessa noção? Tudo depende do quadro conceitual em que nos movemos. Como, por exemplo, pensar a liberdade nos quadros de uma doutrina materialista? Como pensar, sem fazer recurso a outra realidade senão a da matéria, sem recorrer ao espírito ou a qualquer outra forma de dualismo, a ação, a voluntariedade e a liberdade que lhe são próprias, se a matéria é o elemento de uma ordem natural, cujas determinações ela sofre desde o exterior? Em um dos artigos que integram a coletânea, Francis Wolf mostra como o materialismo de Epicuro situa-se aquém desse dilema, ao mesmo tempo em que dele toma consciência pela primeira vez.

Em contraste, o artigo de Moacyr Novaes, debruçando-se sobre a obra de Santo Agostinho, em especial o De Libero Arbitrio, ilumina um conceito alternativo de liberdade, formulado para dar conta de outros problemas, como o da origem do mal no interior da doutrina cristã. A liberdade agostiniana pensada como uma qualidade espiritual, atributo da alma racional, de uma vontade capaz de aderir por si mesma à ordem das coisas, como também de recusá-la, sem deixar-se determinar por ela – tal liberdade pouco tem a ver com a de Epicuro, da mesma forma como os impasses que enfrenta são também outros. Como se pode exercer a liberdade assim pensada, diante das mais diversas determinações de ordem histórica, cultural e afetiva, que sofremos e que nos constituem enquanto homens? Eis um problema com que esteve concernido Pascal, um dos grandes herdeiros de Agostinho no início da Idade Moderna, não para resolvê-lo, como indica o artigo de Franklin Leopoldo e Silva, mas para fazer da liberdade um paradoxo e dele extrair uma visão trágica da existência humana.

Entre os contemporâneos de Pascal não faltaram críticos à noção de livre-arbítrio, de matriz agostiniana. Renato Janine Ribeiro lembra-nos em seu artigo como Hobbes empenhou-se em mostrar, pela via da lógica e da ciência, os impasses dessa noção, declarando-na impensável e procurando esvaziar a partir daí o seu sentido político. Em Hobbes, de modo muito claro, a questão transcendental (o livre-arbítrio é pensável?) entrecruza-se com a questão política (faz sentido o anseio por liberdade, entendida como participação nas decisões da res publica?) – o que nos lembra de que não são jamais neutras as posições diante dos impasses transcendentais da liberdade. É nesse contexto que se situou o esforço teórico de Espinosa para trazer à luz, como apresenta Paulo Vieira Neto, um conceito não agostiniano de liberdade, compatível com nossa inscrição no mundo e com as determinações que dele sofremos. Espinosa tinha tão claro quanto Hobbes as conseqüências políticas subjacentes aos problemas conceituais da liberdade.

A questão de saber como conciliar a liberdade do homem com as suas determinações mundanas é ainda um problema para nós, como ilustra o ensaio de Gerd Bonheim, em que a antinomia entre a vivência da liberdade e a experiência dos condicionamentos de nossa conduta é apresentada como um "grande desafio" a ser vencido. É também o que mostra Renauld Barbaras, ao comentar o modo como Merleau-Ponty enfrentou esse mesmo problema e o impasse a que nos conduz. Ainda que possamos elaborar convincentemente, como faz Merleau-Ponty, o conceito de uma liberdade inscrita no mundo e nele situada, como conciliar essa "concepção existencial" da liberdade, que faz dela um traço constitutivo da condição humana, com "uma concepção moral ou política", que impõe a tarefa de determinar as condições precisas em que se pode ou não ser livre?

A pergunta por essas condições norteia um segundo grupo de artigos que compõem nossa coletânea, nos quais a noção de liberdade é tomada em seu sentido eminentemente político.

Quanto à determinação do sentido e do conteúdo político da liberdade, vale mencionar a contribuição de dois artigos: o de Newton Bigtotto, que mostra como o conceito político de liberdade delineou-se no Renascimento a partir de uma recuperação dos textos da Antigüidade clássica, e o de François Hartog, que recupera o debate na França pós-revolucionária em torno da relação entre a Revolução e os modelos políticos da Antigüidade, que culminou no memorável artigo de Benjamin Constant, criticando o suposto anseio revolucionário de retorno aos antigos e distinguindo entre a liberdade destes e a dos modernos. Ambos os artigos apontam para o modo como o conceito político da liberdade, como empregado entre nós, moldou-se historicamente nesse diálogo, nem sempre afirmativo e pacífico, com o republicanismo antigo.

É precisamente desse conceito de liberdade que partem aqueles artigos que se perguntam pelas condições particulares e efetivas do seu exercício. Nessa linha, Sérgio Paulo Rouanet e Fernando César Teixeira França, condicionando a liberdade à democracia (como faz igualmente Adauto Novaes, no artigo que serve de introdução à coletânea), perguntam-se pelas condições desta última, sem as quais não pode haver liberdade.

A democracia, argumenta Teixeira França, acompanhando Claude Lefort, é o regime social que historicamente se seguiu à queda do Antigo Regime e dos valores que o sustentavam, como a crença em uma hierarquia e em uma justiça natural de que a autoridade política seria a fiadora. A dinâmica democrática é a do conflito, a da necessidade de legitimação permanente dos diversos e nunca universais anseios e discursos sociais, cabendo-nos zelar por essa sua indeterminação, como antídoto à ameaça totalitária que ronda a democracia desde o seu interior, pondo em risco a liberdade.

É também à democracia, mas agora à idéia de uma democracia universal, ou de uma ordem democrática supranacional, que Sérgio Paulo Rouanet recorre de modo a reservar um lugar para a liberdade nos tempos da globalização. Em tom mais cético, mas não dissonante, Fábio Konder Komparato, partindo da oposição entre liberdade e totalitarismo, analisa o modo como, segundo ele, o imperialismo americano posterior à Guerra Fria, por não sofrer nenhum tipo de limitação, de ordem moral, política ou econômica, anuncia a "ressurreição do flagelo totalitário".

É ainda a liberdade democrática o que está em questão no artigo de Charles Malamoud, que se pergunta sobre o modo como essa noção pôde incorporar-se às práticas sociais e políticas da Índia contemporânea, malgrado sua estrutura não igualitária. A resposta de Malamoud a esse aparente paradoxo realça o esforço dos demais autores da coletânea de rastrear a história da liberdade em nossa cultura: se as práticas democráticas tiveram acolhida na Índia, é porque na tradição e nos textos da Antigüidade indiana encontram-se conceitos similares àqueles que sustentaram a democracia no Ocidente, dentre os quais a liberdade.

Não deixa de ser sugestivo comparar esse processo de migração das idéias, descrito por Malamoud, com um outro, para o qual se volta o artigo de Luiz Carlos Villalta tratando dos movimentos inconfidentes no Brasil colonial. Nesse caso também, documenta Villalta, as idéias migraram da França e da América do Norte para dar corpo aos mais diversos anseios locais, entre os quais a liberdade perdeu-se e deu com os burros n'água, posto que dois desses movimentos – o mineiro e o baiano – fracassaram, e o terceiro – a Inconfidência do Rio de Janeiro – não chegou a engendrar nenhuma ação política. Parece assim haver outras condições, além daquelas observadas por Malamoud no caso da Índia, para a migração politicamente bem sucedida das idéias.

Há ainda pelo menos um outro sentido da liberdade, destacado na coletânea por um terceiro grupo de artigos. Trata-se da liberdade de inventar, que é a liberdade do artista, cuja gênese Jorge Colli procurou rastrear, localizando no romantismo o momento em que a liberdade teria ganho esse novo sentido. É esse o sentido que inspira a contribuição de Willi Bolle, que analisa os procedimentos inventivos de Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas, no tratamento da linguagem e do tema, o sertão. Trata-se para Bolle de mostrar como Guimarães Rosa, mobilizando certos procedimentos literários, inventou um novo sertão, muito distinto do de Euclides da Cunha. É também essa liberdade inventiva que Olgária Mattos saúda em um artigo sobre o papel atribuído à narrativa por Walter Benjamin.

Há, por fim, dois artigos que tratam de modo difuso da liberdade a partir de uma indagação sobre a relação do homem com a natureza. O jurista Carlos Frederico Marés propõe que trabalhemos com o paradigma de "direitos coletivos", para assegurar a "harmonia do planeta" e dar à liberdade "a dimensão da poesia vivida". O físico Luiz Carlos Oliveira, por sua vez, em um artigo bastante informativo sobre os novos rumos da ciência e da tecnologia, indaga-se sobre o poder que esse avanço acelerado conferiu-nos e que, segundo ele, só pode ser empregado sem perigo quando balizado pelos imperativos de uma ética da inclusão.

Os artigos de O avesso da liberdade são, como se vê, desiguais. Desiguais na abordagem, nas preocupações e na profundidade da reflexão que dedicam ao tema. Mas é essa desigualdade mesma que faz o interesse do livro, para além do interesse particular que este ou aquele artigo, muitos deles de primeira linha, possa despertar. Pois ela ilustra muito bem a complexidade da malha discursiva no interior da qual uma noção tão rica quanto a de liberdade adquire um sentido para nós, ainda que por vezes difuso. Isso não é pouca coisa quando lembramos que o livro, bem como o ciclo de conferência que lhe deu origem, destina-se a um público amplo, nem sempre sensível a essa complexidade e às dificuldades que ela impõe ao pensamento.

Recebido em 30 de janeiro de 2004

Aprovado em 14 de fevereiro de 2004

Maria Isabel Limongi (belimongi@yahoo.com.br) é Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2004
  • Data do Fascículo
    Jun 2004
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