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A gente sente farta, mas depois esquece

We miss you, but then we forget

Te extrañamos, pero después olvidamos

Resumo

A finada Eufrásia Ferreira /d͡ʒaɾiguka/ foi a última falante mulher da língua guató, que falou desde criança. Aqui está um relato de alguns momentos que passamos com ela entre a cidade de Corumbá e o Pantanal, para deixar marcada a memória de seu valor.

Palavras-chave:
Guató; Pantanal; Morte linguística.

Abstract

The late Eufrásia Ferreira /d͡ʒaɾiguka/ was the last woman to speak the Guató language, which she learnt as a child. This is a record of some of the moments we spent with her, between the city of Corumbá and the Pantanal, as memoire to her worth.

Keywords:
Guató; Pantanal; Language death

Resumen:

La finada Eufrásia Ferreira /d͡ʒaɾiguka/ fue la última mujer hablante de la lengua guató, que aprendió cuando era niña. Aquí está un relato de algunos momentos que pasamos junto a ella entre la ciudad de Corumbá y el Pantanal, para dejar marcada la memoria de su valor.

Palabras clave:
Guató; Pantanal; Muerte lingüística

/d͡ʒaɾiguka/


/d͡ʒaɾiguka/, ou Eufrásia Ferreira (*???? - † 05/09/2021)

Longe da pátria vivo ieu distante
De meus irmão da minha mãe querida
Sofrendo tanto nesta frô da idade
aqui me espero terminar m’a vida
No çumitério é onde os morto dorme
onde meu corpo adormirá um dia
O mundo fica para quem tem sorte
a minha sorte lá na tampa fria
(Música cantada pelo finado Geraldo, marido da dona Eufrásia (URL: https://youtu.be/WajTZPgdFuc)

Ála! Djariguká, ou Eufrásia Ferreira, era a última mulher fluente na idioma guató. (Note-se que o gênero aqui é feminino mesmo, segundo o uso da palavra “idioma” no português pantaneiro). Seu nome em neobrasileiro se dizia também como Frávia, ou mesmo Flávia. Mas a nossa variante favorita era Frásia. Quá! Afinal ela nos brindava não com disfrases, mas com eufrases. Nome e condição valem. A agora finada Eufrásia morreu numa data cada vez mais distante: na metade do dia 5 de setembro de 2021, internada no Sistema Único de Saúde de Corumbá (MS). Que Deus bote sua alma onde merece...

Nossa conhecença de Eufrásia datava de 2016, quando Nego ajudou na empreitada de lutar com a idioma. Nego (ou Porfírio) conhecia Eufrásia de longa data, pois era filho da prima e ex-sogra dela, a finada Negrinha. Nego definiu a empreitada como uma “procuração de índio”. Vôte! A procuração resultou. “Aquela bugrinha ali é a Eufrásia, que o senhor está procurando”, apontou Porfírio. Logo ela estaria lecionando sua idioma, o guató, que agora prendemos em nossas gravações.

Certa vez, Eufrásia contou que ouvira o finado Getúlio (o Vargas) dizer que ela era a mãe do Brasil, pois era índia. Vivemos na Pátria Matricida por excelência. Eufrásia estava internada desde o dia 31 de agosto com infecção que a fez perder muito sangue e com uma pneumonia que dificultava sua respiração. Dias antes de ser internada, tinham dado soro com medicamento e mandaram-na para casa. Seu filho de criação contou-nos que ligou para o posto de saúde para buscarem ela com ambulância, mas no posto disseram que tinham casos mais importantes a tratar. Quando o caso se tornou “importante” para a enfermagem e os doutores, a finada Eufrásia já estava obrando sangue. Ála! Várias vezes! No posto, nem fraldas para ela forneceram, que já estava fraca, para manter alguma dignidade de asseio nestas condições, entre sangue e diarreia.

Após isto, Eufrásia chegou a recobrar seu senso, fazendo piada e perguntando das coisas. Logo foi arrastada para outra deterioridade. Foi entubada e, pelo último fim, partiu-se. Que Deus ponha sua alma onde merece...

Mais de uma vez nos despedimos de Eufrásia, ao finalizar mais um campo. Algumas vezes ela observou sobre nossa partida, explicando o limite das saudades: “No começo sente farta, mas depois esquece”. Para nós, vai ser difícil esquecer Eufrásia. Vai ser impossível não sentir sua falta. E mais. Devemos fazer com que mais gente não esqueça dela, mesmo não tendo a conhecido. Desta vez, não nos despedimos e nunca mais o faremos.

Eufrásia não sabia quando nasceu. É assim com índia véia. Não por culpa de falta total de registro. O finado pai de Eufrásia, Joãozinho, até tinha tirado um documento p’ra sua filha mais velha, mas a certidão foi dextraviada. Assim, não há data de verdade quando Djariguká foi doada à luz. Seus documentos foram retirados de novo quando ela já era mulher feita e indicavam uma data de nascimento “por rumo”, para fins burocráticos. Afinal, diz o Estado, se alguém tá vivo, logo, deve ter nascido.

Se a data é incerta, o local do partejamento não é, não. A Djariguká nasceu em um aterro guató chamado /he-d͡ʒ-ofád͡ʒáhɔ/ ou “o local dos jaós”. Em idioma de brasileiro era aterro do Bananal. Entendam os senhores que o povo guató nem não tinha muito gosto por ajuntação. Como já disse Vicente (outro último falante do guató), quem gosta de viver embolado é bugio. Guató, não. Não era vida de andança, mas de canoança. Antes de ficarem marginados por fazendas e na cidade, viviam esparramáveis por margens antes físicas que morais: de rios, de corixos, de campos inundados, de baías e de morrarias. Hoje o Pantanal tá uma seca só, com seus matos chamuscados, com seus bichos torrados. Mas como seu próprio nome anuncia, na época de chuvas o chão seco escasseava. No dia 10 de dezembro de 1826, o Langsdorff (o Barão alemão-russo que foi ficar louco nos sertões do Império brasileiro) botou este fraseado constatativo no seu diário: “Estamos no Pantanal, onde, a cada ano, o rio cava um novo leito” (Silva [org.] 1997SILVA, Danuzio Gil Bernardino da (org.). 1997. Os Diários de Langsdorff - Volume III: Mato Grosso e Amazônia, 21 de novembro de 1926 a 20 de maior de 1828 [online]. Tradução: Márcia Lyra Nascimento Egg e outros. Campinas: Associação Internacional de Estudos Langsdorff. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ.: 21).

O Pantanal virava só um mundão de céu em cima e água em baixo. Dois mundos que se espelham. Enquanto o céu é espelhado na água, Vicente conta que as nuvens são camalotes rodando. Nós estamos dentro da água, mas não percebemos.

P’ra varar a cheia, a guatozada aglomerava em aterros. Na idioma de gente, o guató, “aterro” se diz /maɾábɔhɔ/. Para transfazer sua morada, nessas terras alagadas, a indiaiada chamava reunião. Ajuntavam-se. Empunhavam umas barrigadas de jacarés, que são duras e funcionam à moda de balde. Assim iam arrepanhando terra sobre terra, misturada com cacos de pote. Colocavam umas conchas de caramujo aruá para dar suporte. Deste amontoado surgia um terraço, que vencia em altura as águas dos pantanais. Por ali passavam as cheias.

No aterro onde nasceu Eufrásia não se criava mais nenhum cacho de banana. Uma bandidaiada espreitava para logo roubar. Aborrecido, Joãozinho, o finado pai de Djariguká, enjoou de ficar no Aterro do Bananal. Abandonou-o e levou a família p’ra Pindaíva, uma localidade no rio Paraguai.

Lá na Pindaíva que ocorreu coisa triste: Djariguká foi exilada pelo próprio pai que foi disparando tiro e outro tiro contra a filha. Eufrásia correu de Joãozinho. Dois tiros passaram perto de sua cabeça. Explicou a finada Eufrásia que o pai dizia que filha mulher ajuntava urubuzada. Os urubus podiam não só querer a filha, mas também aproveitar da mãe. Por isso justificava sua violência. Era uma ciumagem que só. O finado Joãozinho até que era bom são. Mas bêbado se desembestava. Ála merda! Mas foi o próprio pai quem quis urubuzear a filha que fez fugir a tiros.

Causo de invisível e malassombrado. Foi lá na Pindaíva que o pai Joãozinho morreu. Quando gente morre, tem que abandonar a casa, que fica terrorizada. Ouviam os passos do finado Joãozinho na casa. A família (já sem Eufrásia) daí se mudou para um barraco. Diz que não era o tempo dele morrer - e parece que foi por isso que assombrou a família. Que Deus ponha a alma no lugar que merece! “Aí destraviemo tudo”, explicava Eufrásia.

A família (já sem Eufrásia) também desceu o rio, seguindo para a ilha Ínsua, que hoje é posse do povo guató.

Para morar fora da casa, Eufrásia se amigou com Davi, filho de uma falante de guató. A mãe de Davi era dona Negrinha, prima mais velha de Eufrásia. Eufrásia e Davi fizeram morada na boca do São Lourenço. Ao que parece, foi aí que a finada Adair Palácio, doutoranda em linguística, encontrou Eufrásia no fim da década de 1970. Palácio não entrevistou direito a família de Eufrásia, pois anotou que Davi e Damião falavam guató. Nunca falaram d’uma vez. Ao que parece, Palácio nunca gravou nada com Eufrásia, como faria com seu irmão mais novo, o finado Cipriano. Já nessa época, Cipriano morava em Corumbá, mesma cidade onde morreria depois de uma vida de cachaça e vagação na rua, em setembro de 2016.

Eufrásia e Davi pegaram trecho, rumo da ilha Ínsua, ainda antes de o pai Joãozinho morrer. Lá persistiu um grupo de mulheres guatós faladeiras, que se visitavam e cortavam na idioma. Eufrásia conversava lá com a tia Zulmira, com dona Negrinha, com a tia Erotilde. Lá cresceu Manuel Damião, único filho de Eufrásia. Estava em meio a falantes da idioma, mas nunca foi nativo da língua de suas parentas.

Aí, na imagem que o finado Joãozinho usou, mulher é que nem carniça. O demo vige sua peçonha dentro de mais de uma garrafa de pinga, que mais de um macho homem aprecia de beber. Monstra assanhagem de pai ou bruta feiura de ódio de esposo-amigado. As ruindades vareiam nos homens afamilhados. A vida é descompensada. Ála! Eufrásia saiu de uma assanhagem e bruta violência para cair em outra brabeza, a do marido.

Mesmo com a finada Negrinha (mãe de Davi e sogra de Eufrásia) defendendo o guató, Davi proibia que Eufrásia falasse na idioma e era prático em agarrar cabelo, puxar cabeça, dar murro no corpo. Certa vez, depois de verem certa selvajaria contra Eufrásia, a mulherada parentada dela conseguiu pegar Davi na pancada.

Enervada, uma delas já deu ideia de vamo matar mesmo este violento.

Eufrásia disse que não.

Pressionado pelas fazendas, o povo guató caiu na lapa do mundão.

Escorraçados em suas terras, uns do povo guató trabalhavam de peão e escravo. Outros se arretiraram, exilados em sua terra. A diáspora guató se instalou na periferia de Corumbá. A guatozada se esparramava no bairro do morro do Cristo e no bairro do Aeroporto, nas bordas da cidade. Na década de 1970, quando o povo guató era tido como extinto, no Cristo havia um local chamado “bugreiro”. Ajuntamento de bugre.

Eufrásia e Davi acompanharam o êxodo guató que os levou para Corumbá. Os ataques de fereza de Davi continuaram na cidade. Certa vez disse que ia matar Eufrásia na rede, forcar, pegar tesoura p’ra furar ela. Foi quando Eufrásia fugiu de vez do maldoso. Tempo depois o Davi se matou de beber e nem foi de pinga. Bebeu é álcool de combustível, pois a pinga era proibida na fazenda que o finado labutava. Que Deus tenha ponhado a alma no lugar que merece!

Quando ‘tava p’ra morrer Davi quis reaver com o filho, que tinha maltratado muito. Tinha ciumeira do filho com a mãe. Ála, do filho com a mãe! Damião não quis nem ver o pai no leito da dona Morte. Eufrásia morreu já sem ter contato com Damião há muitas décadas. O filho caiu no trecho para se afastar do pai e nunca mais quis nem saber da agora finada mãe.

Eufrásia foi babá e “doméstica” de uma professora. Isto tudo sem carteira, lembrando que “doméstica” era uma denominação para uma qualidade de escrava. Trabalhou como faxineira de restaurante de turista - colonizadores viandantes, travestidos de consumidores-visitantes. O restaurante ficava às margens do rio Paraguai. Por aquelas bandas de Corumbá que conheceu Geraldo, com quem logo iria amigar e se mudar p’ra lutar em fazenda, lutar criando os filhos dele e lutar com merenda. Muitos anos não remunerados como força de trabalho responsável pela ordem da casa de seu segundo esposo. E por extensão, trabalho para a fazenda.

Depois de anos de trabalho nas fazendas, Geraldo e Eufrásia foram parar na cidade de Coxim. A saudade trouxe Geraldo, e Eufrásia, de volta para Corumbá. Só no fim da vida Eufrásia teve uma renda própria, pela aposentadoria. Entretanto, Eufrásia nos informava que igual sua mãe Sabina, que era pura índia, não sabia mexer em dinheiro.

Eufrásia dizia com orgulho para suas companheiras do dia a dia: “eu ganho com esta aqui”, e apontava p’ra sua língua. Estava comentando sobre o fato de pagarmos as horas de sua consultoria e tradução em guató. Ô verdade! Após anos sem algum dinheiro próprio, continuava sem apropriar para si mesmo sua renda, que ia em boa parte para sustento da casa. Rica de mãos vazias.

Aquela que foi a casa de Eufrásia fica na rua Goiás, lote 17, bairro Aeroporto, numa região de ocupações à beira do trilho do trem onde a urbanização avança sobre os barracos e ocupações irregulares. A cada vez que voltávamos, novas casas, de gente já mais abastada, eram construídas em formas quadrangulares de um gosto peculiar.

A pequena casa de Eufrásia era composta de sala-cozinha, banheiro e um quarto. Nela moravam cinco pessoas. A sala de estar de Eufrásia foi nossa sala de aula. Antropólogos e linguistas fazem campo, atividade que chamam de trabalho. Salvo breves e poucas exceções, os professores de antropologia e linguística não ensinam muito da etnografia e coleta de dados, deixando seus estudantes ao Deus dará. Felizmente, a casa de Eufrásia foi nossa escola.


Sessão de elicitação na casa de Eufrásia, Com Kristina Balykova e Gustavo Godoy

Após pagar as contas de casa, o que lhe cabia de dinheiro restante para consumo pessoal, Frávia destinava para as cervejas e as pingas que bebia no bar da Polina, sua vizinha de bairro. A Frávia não só destampava TSSS! a lata de gelada cerveja, principalmente da Gracial, mas também a barrigudinha, amarga marvada. Assim ficava meio alta, a vez porre. Polina anotava o que Frásia bebe em seu caderno: tantas e tantas Graciais, tanto de pinga. No final do mês, “É tanto R$, Frávia” dizia Polina.

Fato curioso-triste é o fim da palavra para “chicha” na idioma guató. Chicha era o cauim de guató, feito de forma peculiar. A guatozada subia no pé da palmeira acuri e fazia uns furos no tronco. Lá ficava um suco do palmito fermentando. Depois era pegar um canudo e chupar aquela chicha de acuri. Segundo anota o finado Max Schmidt (1914SCHMIDT, Max. 1914. Die Guato und ihr Gebiet. Ethnologische und archäologische Ergebnisse der Expedition zum Caracara-fluss in Matto-Grosso. Baessler-Archiv: Beiträge Zur Volkekunde, 4 (6): 251-283.: 277), a palavra botada na idioma seria /mokɯda/ que o som aparenta com /mókɯ/ “beber” e /madá/ “árvore”. Esta birita tradicional, muito apreciada nas festas de viola de cocho até o começo do XX, desapareceu. Nem Eufrásia, nem Vicente, menos ainda outros cortadores de algumas palavras do guató lembravam. Quá! Mas lembravam de nomes para outras bebidas, até mesmo quem nem soube muito de guató. Pinga é /mapokɯ́/. A cerveja é a pinga que escuma: /miɾod͡ʒapokɯ́/.

No bar de Polina, aprendemo’ algumas frases. Uma vez, quando a latinha de cerveja acabou, Frávia lecionou: /mat͡ʃáɾa/ “(a lata) ficou seca”. Mesmo que tenha sido uma faísca miúda perto de um fogo da língua que chegou até Eufrásia por diversos descaminhos, para nós era radiante ouvir a idioma fora dos momentos em que estávamos armados de gravador, câmera e caderno.

Eufrásia não era índia aldeada, era meia desligada de seus patrícios. Mas havia notável exceção, sua primermã e amiga Jaci, guató mestícia com cearense, também chegada às cervejas. Eram muito amigas.

Antes do bar de Polina, nos entornos da casa da finada Eufrásia, a idioma intrigava alguma gurizada. Nossa presença quase diária aguçou a curiosidade de uns guris da vizinhança. Primeiro, vieram olhar a gente na sala da casa dela, alguns na porta. Certamente, a presença d’uns branquelas ali com umas tralhas de gravação seria algo curioso. Depois destas observações, os guris não voltavam lá muitas vezes. Entretanto, várias vezes em que chegávamos ou saíamos de nossa jornada de gravação, os guris apareciam na rua e gritavam p’ra gente responder “Como fala pacu?”, “Como diz peixe?”, “E água?”. Nunca soubemos, nem perguntamos, exatamente o que a gurizada achava daquela idioma.

Para juntar mais alguns trocados, Eufrásia ia catando latinhas na rua. Entramos também neste ramo da reciclagem. Logo estávamos juntando latinhas em sacolas plásticas para levar até a casa dela. Beiradeávamos com Eufrásia as ruas em busca de latas, no meio do capim ou perto do meio fio. Desfizemos assim algumas marcas das festas de dias anteriores, retiramos o que algum caminhante descabeçeado atirava sem compromisso no chão.

Uma vez por mês era momento de sacar aposentadoria e pagar as contas. Ao banco iam de ônibus, que baldeava até a praça da República. No banco, Eufrásia e Geraldo se deparavam com a máquina na qual se coloca o cartão, se digita a senha, daí se retira o dinheiro. Era a letrona esta máquina de sacar dinheiro. Letrona, eletrônica, caixa eletrônico: não sabiam manejar este bicho sozinhos, e pediam ajuda para seu filho de criação. Quando estávamos lá, ajudávamos também na expedição até a letrona.

Assim os dias de Eufrásia atravessavam alguma regularidade cotidiana. Em casa, fazendo comida, fritando pelanca de vaca ou salsicha, lavando rôpa e prato, bebendo água que gela em garrafinhas plásticas, olhando a porta de casa. Enfim, indo para Polina. Bebendo algo que deixe bêbedo, que deixe feliz. Visitando Jaci. Catava latinha. Retirava dinheiro na letrona para colocar na sua bolsa, que enchia de papel só para ficar fofa e nem parecer que era só vazia. Pagava contas. Por vezes, visitava Brandina, irmã do finado violento Davi.

Eufrásia guiava Geraldo por aí andan-andando pelas ruas mal asfaltadas. Geraldo já estava cego há alguns anos. Durante nossas gravações da idioma, Geraldo tentava cortar e imitar algumas palavras. Não era grande o êxito. Inventava algo para ver se acertava. De alguma coisa soube. Em julho de 2018, Eufrásia nos avisava: não falem mais /giɾod͡ʒapokɯ́/ “cerveja”, agora Geraldo já entende esta palavra! Agora vamo falar /godíváj/ “latinha”! Assim tentava ocultar o sentido para seu marido, que só gostava de guaraná, não se aperceber do vício. Dizia para o esposo: “Vou ali na reta! Já volto!” e ia para o bar tomar umas.

É triste quando vemos aquele querer-bem com parecença de demonhado. Foi certo dia um triste causo, ave-maria, que soubemos como a desconhecença e o desjuízo estavam também com o finado Geraldo.

Eufrásia cortava acocorada umas mandiocas. O almoço estava atrasado p’ra ela. Reclamou do Cabeção, seu outro filho de criação, que não tinha movido dedo p’ra manusear comida. Que que custava ajudar na cozinha? Se zangava. Geraldo, com ar de controle, quis reprová-la. Se preocupava com as aparências, com o que iam achar dela reclamando assim. Por fim bravejou qual besta-fera: você é bugre que nem sabe assinar o nome. Sabe da ‘dioma mas é bugre anarfabeta. (Note bem, Geraldo sabia apenas assinar o nome.) Eufrásia chorou, magoada. Para tentar acabar com a briga, levamos ela para almoçar na frente do porto. Ela disse que era bom passar os olhos no rio e esfriar o coraçebo.

Certa vez decidimos por retirar Eufrásia deste dia a dia e fazer viagem p’ro meio do Pantanal, onde moravam alguns de seus primos. Eufrásia tinha dito que ficava mofando em casa. Em 2018, convidamos para ir até a Uberaba, nome da aldeia na ilha Ínsua, atual Terra Indígena Guató.

O mundo é feito de desencontros. As distâncias às vezes estão próximas. Fazia já décadas que Eufrásia não via alguns de seus primos, como Alfredo, Ginho, Benedito e outros. Na ilha Ínsua, ela reencontrou os parentes, mas desconheceu o lugar onde morara. Diferenciou tudo, comentou. Antes tinha muito mais mato, a gente vivia mais nas bordas mesmo, perto das praias. Não passou uma semana Eufrásia já quis voltar para seu dia a dia urbano, por causa de mosquito ser marvado demais e por causa da preocupação com seu véio.


Os patrícios da idioma Djygwapo e Djariguká, 15 de janeiro de 2018.

Antes disso, propusemos ir prosear com Vicente, o homem mais fluente na idioma. Vicente mora com uma porção grande de gato na beira do rio São Lourenço, não muito longe de sua foz no Paraguai. Queríamos refazer um momento de conversa em guató com o par dos últimos falantes mais fluentes. Quem sabe juntando os dois isso não aconteceria? Não.

A conversa não fluiu. Eufrásia pedia para Vicente falar mais duro. Pois, há muito tempo, era meia surda assim. Ruim de ouvir, pois uma égua parida meteu um coice nela e, mesmo com a proteção de uma cerca de taquara, a porrada desacordou Eufrásia. Quando acordou, já não escutava direito. Por isso pedia para Vicente falar mais duro. Os dois pareciam mais interessados em prosear com a gente do que dialogar entre si. Mas valeu de algo, como a explicação de Eufrásia: o diabo tem dois nomes, /mokʷidĩgigi/ e /mot͡ʃibo/. Os dois não dialogaram, mas fingiram que convidaram um ao outro p’ro bate-papo:

- Vicente: i-otɯ́ go-dɯ́-ʃʲéʊ̯́vɯ.

- Eufrásia i-ótɯ́-jo mani go-ʃʲéʊ̯́vɯ́ i-ótɯ́.

- Vicente: vou falar na ‘dioma de índio.

Continuaríamos trabalhando com Vicente e Eufrásia separados.

Desmemoriada. Assim narrava a si mesma, assim apresentava-se-nos Eufrásia. Queríamos suas lembranças! Desejávamos entender suas esquecenças... Eufrásia dizia que já não sabia, esquecera-se. Dizíamos que ela sabia muito. Por vezes, engasgava, hesitava, trocava alguns sons. Pedíamos sentenças muito longas, “Não sô capaz!” - frustrava-se. Tentávamos elicitar começando estruturas mais elementares, palavras, depois frases pequenas. Chegamos a belos textos. À vez regados por seus gestos, esparços em guató mas abundantes na idioma de português neobrasileiro.

“Fala duro, ieu num escuto” assim deveríamos falar a elicitação em quase-grito, pelo já citado causo da égua parida. Voz alta para vencer a fronteira de sua orelha, para tentar escavar o que sabia da sua idioma. “Cabô duma vez os índio”, comentava Eufrásia, que era meio purista em desconsiderar as pessoas mastigadas, os mestícios, na suas ideias sobre seu povo.

Muitos e muitos foram os comentários, estes que chamamos de metalinguísticos, que pudemos apanhar das frases de Eufrásia, quando não recuperava sua língua ou quando botava dúvida:

Agora ‘tá meio difircir, eu djá esqueci.

Lembro mais eu esqueci como que fala assim.

É mas eu não sei como fala na ordem

Djá esqueci o nome como q’fala também.

‘Se daí eu djá num sei mais, muita coisa que eu djá num sei mais.

Este daí iô já não sei mais não.

Nesse daê não sô mais capaz de falá... Já tem muita coisa que djá esqueci... num alembro. À vez é fáci mas eu ... num sei mais.

Outros eram otimistas com nossa capacidade:

Ê verdade! Aprendeu um poco né, Xô Gustavo! Eu acho é graça. Já tá aprendendo, Dona Kristina. ‘Tão querendo virar índio. Tem vez que dá graça.

A derradeira visita que fizemos a Eufrásia foi em março de 2020. Nessa época, o medo da pandemia causou efeitos na rotina da cidade de Corumbá, onde Eufrásia morava. Havia toque de recolher, mesmo antes de casos terem sido confirmados. O álcool 70% de limpar mão rapidamente sumiu das prateleiras. Máscaras também não havia.

O medo sempre assombrou nossos campos. O medo da perda era inevitável, por se tratar de amigos idosos, últimos falantes do guató. A morte apunhalaria e calaria a nossa professora faladeira?

Quando se fala pela última vez uma frase ou uma palavra de uma língua? Quando alguém deixa de pensar numa idioma que aprendeu no colo? São coisas irrespondíveis. O que sabemos é qual foi a última coisa que Eufrásia nos contou. A história da seca universal e do Carão, ou melhor da Carãona. Um mito.

Mito é demais de bom. O melhor dos causos. Agora o nome “mito” tá meio sujo pela política, considerado meio estroncho pela história e mesmo pela antropologia. Esta última prefere cosmologia, que tem som de “gosma”. Os povos indígenas também não gostam mais de “mito”. Também não gostam mais nem de “indígena”.

Mas mito é alta estirpe literária e filosófica. É uma análise conceitual do mundo. Além de ser um todo completo. Uma elicitação é coisa boa e complicada de fazer, para entender direito o que se quer fazer dizer. Um causo mítico tem a força do que é um todo. Daquilo que tem estilo, uma sustança e consistença interna. Desde o começo buscamos saber que histórias a guatozada antiga contava. E, primeiro com Eufrásia depois com Vicente, fomos os primeiros a documentar, num texto completo e com gravações disponíveis, algo da mitologia guató na idioma.

Não foi tão óbvio. Eufrásia dizia que não conseguia mais se alembrar. Vicente observou, depois de contar uma história, que parece mentira, mas que não é. Afinal a guatozada velha não ia ficar assim contando mentira.

Em fevereiro de 2017, Eufrásia conversou que “Nos primórdios, na origem da terra, os animais falavam”. Um clássico começo de mito. Frase bem conhecida que faz brilharem os olhos esbugalhados de qualquer pessoa com afeição por mitos. Em vão. Eufrásia insistiu que tinha visto isto na TV.

Eufrásia explicava que não se lembrava de quase nenhuma história que os adultos guatós contavam. Na época em que era menina, os adultos eram rígidos: conversavam entre si, separados das crianças. A gurizada ficava para lá, distante da roda de conversa. Se chegassem perto, um adulto já mandava embora. “Apanhei muito de minha mãe já”, observava. Assim, não aprendeu os causos de origem do mundo que a guatozada contou.

Felizmente seu esquecimento não era total, era mais uma avaliação sua. Aprendemos com ela a origem do macaco-prego, que antigamente eram um bando de guri sem-vergonha que não deu goiaba para Nossa Senhora que passou, com o menino Jesus no colo, pedindo umas frutas. Soubemos do bugiozão, macacão Golira, que sequestrou uma mulher guató. Que Tamanduá era padre pecador que Jesus transformou, suas listras eram cruz, sua cauda batina. Que o dourado, o peixão brabo, tem fereza porque mordeu um cordão que tava no pescoço de Jesus. Que a traiçoeira baía Gaíva, braba que só, era uma cidade de pecadores. Para muitas das histórias, não conseguimos versão em guató. Agora jamais conseguiremos.

Nem só de guató foi que a casa de Eufrásia nos lecionou. A idioma do brasileiro aprendemo de igual. Quá que o neobrasileiro não é o português de escola, encarecido de livro, de doutos defensores da gramática inexistente. É o idioma onde se diz “mulher meu” é ninguém vem com asterisco p’ra censurar. O real é desgramático. O comum parece que causa estranhez, quando se diz que tcheguemo e ninguém pergunta qual dicionário lemo.

Aqui vai uma tentativa de botar na escrita a derradeira contação de Eufrásia, o último guató que soubemos dela, a história da seca e da Carão-mulher. Mesmo já tendo contado vários causos em guató, presentado várias palavras, Eufrásia mostrava uma insegurança, na abertura da narrativa. Antes de cortar em guató, botou em português:

- Kristina: Dona Eufrásia a senhora pode contar a história do carão pra gente de novo?

- Eufrásia: Do carão?

- Kristina: Aham.

- Eufrásia: Será que... que vai dar certo?

- Kristina: Pode fa.. contar em português primeiro.

- Eufrásia: Ham?!

- Kristina: Pode falar em português primeiro.

- Eufrásia É...

Chegô bastante gente no... caçando água que ‘tava seco. Que secô o mundo intero. Num tinha água. Aí... morreu criança, morreu djente grande, véio. É. Esses otro que aguentô mai sairô forô andando, no campo, no mato.

Aí sairô onde ‘tava esse Carão cantando. Em cima da moita assim. Por de trás da moita e o Carão tava sentado por decima do pote dele. Aí... forô lá pra vê. Falarô: “O Carão tá cantando deve ter água aí. Aí forô lá pidiram água pra ela. Puque daquele tempo passarinho falava, né. É [A mulher Carão] falou qu’ele* qu’ela ‘tava gritando porque... tava pra morrê de sede. - “Que nada você tem água”. Aí forô lá pegarô o Carão derrubaram ele no tchão.

He ha! Aí forô distampa o pote. PO-TÃO tamanho desta sala aqui. ‘Tava até escuuro de água no fundo. “Aí você falando que num tem água, espia como que tá de água”. Aí tudo co vasilha né o caneco entcherô caneco beberô água. Aí num tinha água grande pra levá. Pá leva água. Entcherô os caneco dele. Aí dipoi vortarô lá pa inche uma lata, né, pá leva pra casa. Aí forô lá pegarô a lata e... vortarô lá pa enche de água. E o Carão ficô lá esborrachado no chão, num subiu.

Aíi.. levarô água. Tamparô o pote dele. Ee... e forô embora. Pegarô o carão e botarô de volta lá em cima de novo pa onde ‘tava. “Aí! Fica aí! Cuida sua água aí”. Aí largarô o Carão lá e forô embora pa casa. Mai num fizerô nada cum ela, só pu* é: derrubarô puque canhô a água né. Derrubarô no tchão.

Aí forô embora. Aí eu num sei se vortarô no outro dia, de certo purque não tinha água. Aí quando deu a chuva, quando Deus mandou a chuva daí sairô tudo assim po po largo, tudo de boca pra cima parando água. Purque num tinha água, parando água com boca. Aí começô djunta água nos corixo, numa baixada, né. Aê que ficô água de novo. E aí não seco mais a água puque tod* todo dia chove, né. Aí largarô mão do Carão, ficô lá memo. Em cima do pote dele. Né que já teve água o mundo inteiro, né.

Aí eleee.. largarô de mão do Carão. Ficô lá memo em cima do pote dele. Que já teve água pa tuda parte, né. Deixarô ele.

- Geraldo: Carão é bençoado.

- Eufrásia: U’um.

Foi a última contação que nos premiou em prosa. Nunca mais veríamos ela, nem escutaríamos seus causos. Nunca mais ouviremos a boniteza do idioleto eufrasiano do guató, aquele que primeiro tivemos conhecimento mais próximo e que dominava nossos dados. Seu esposo Geraldo, também não. Geraldo falecera um ano antes de Eufrásia, em agosto de 2020, com sofrimento parecido. Nossa esperança de voltar a ver o bom humor de Eufrásia em Corumbá agora se converte em luto. A cidade que se diz “branca” agora será para sempre um luto nostálgico. Sempre algo fará falta. O guató já foi língua falada nesta cidade, nas margens do rio, porto de Corumbá, onde gurizada guató e neobrasileira jogava bola.

A mãe de Eufrásia, pura índia que falava português por rumo e não sabia mexer em dinheiro, perdera todas suas irmandades para o sarampo, pouco antes de Eufrásia nascer, na década de 1940. Eufrásia perdeu também primos e tios para a doença. No ano de 1925, o etnólogo Max Schmidt voltava para o Pantanal, após 20 anos sem estar no lugar. Queria saber de um menino chamado Méki, que tinha sido seu guia na viagem anterior. Schmidt (1942: 54)SCHMIDT, Max. 1942. Resultados de mi tercera expedición a los guatos efectuada en el año de 1928. Revista de La Sociedad Científica Del Paraguay, 5(6): 41-75. RONDON PALÁCIO, então, anotou a sorte do menino: <matchoga> “já morreu”. Descobriu que, como tantos guatós, Méki tinha perecido em uma das epidemias que devastaram as populações indígenas brasileiras.

“Agora até o mosquito dá doença. Não ‘tá bom a vida, a vida não, o movimento... antes o mosquito não dava doença, só dava coceira!”, comentou seu Geraldo sobre a dengue, antes do crescimento de casos de coronavírus.

Já no começo da pandemia, seu Geraldo comentara que um vizinho parou o carro ao vê-los andar pela rua e avisou que eles não deviam sair. Seu Geraldo disse que o vizinho é bom, mas que quase respondeu, pois seria uma “ôdácia” falar quando ele próprio poderia sair de casa. Falamos a seu Geraldo que o vizinho dizia a verdade, que não era para ficar saindo. Observamos que o vizinho estava preocupado e que a doença era grande mesmo. Eufrásia então comentou do “povo do Japão” [assim teve dito!]: - “Mas onde já se viu comer morcego?! Que povo mais inútir!”. Geraldo falou “que Deus proteja”.

Geraldo morreu antes das vacinas. Eufrásia nem se vacinou, não. Corumbá é demais de bolsonarista, e esta demência contagiou a opinião pública. Foi demorada a vacinação lá, mesmo já liberada sem restrição de idade.

A finada Eufrásia, que agora saudamos, foi a última mulher a falar guató. Mas não passou a idioma para o seu único filho. As últimas crianças a aprenderem guató foram as filhas de sua prima mais velha, Estelita: três meninas, que começaram a falar na margem do rio Paraguai. Nenhuma delas reteve em si a idioma. O motivo delas pararem de falar: a morte de sua mãe, assassinada de pandemia de sarampo. Eufrásia conta da morte de Estelita:

Aí ela morreu, coitada, por causa do sarampo. Ela já ‘tava com sarampo no corpo. Aí ‘tava brotando no corpo dela. Diz-que, eu num vi. Aí [Estelita] saiu p’ra catar roupinha de criança: cueiros, essas coisa, camisa de criança. Aí estava chuviscando. Aí [Estelita] pegou aquela garoa e atacou a febre. Então a febre trespassou [...]. Morreu jovem ainda, mas já era mãe de filho, de bastante filho. Coitada ela faleceu por causa disso porque a febre trespassou e negócio recolheu, diz que abolhou tudo por dentro. É foi onde perdeu a vida dela. Mas mulher nova trabalhadeira que ela era. Cuidava da roça, carpia, saía para pescar, cuidava das crianças, lavava a roupa. Aí a coitada ’cabou.

Pedro, marido de Estelita e falante de guató, se dextraviou e separou-se das filhas. Desfez-se o último elo de transmissão geracional do guató. Foi a última vez em que o guató seria falado como “língua materna”. As três meninas cresceram e esqueceram a idioma.

Eufrásia Ferreira não lembrava direito de seu avô; era criança naquele tempo. Tinha umas memórias, mas parecia que era meio sonho. Enfim, lembrava que se chamava Joaquim, mas não sabia qual era o nome dele em guató. Era Joaquim Ferreira, cujo nome foi anotado por Frederico Rondon (1939) como “Jorítana”. Em 1938, estava vivendo no porto de uma fazenda. Rondon (não o marechal, mas outro) o descreveu como um guató de 40 anos, embora aparentasse mais. Explicou: a aparência de Joaquim estava assim pelo excesso de álcool. Sobre seu humor: apesar dos infortúnios, é bem-humorado. No ano de 1919, Joaquim perdera três filhos, por causa da gripe espanhola. Só restou Sabina Ferreira. Após sobreviver a uma pandemia, alguns anos depois da visita de Rondon, Sabina doaria Eufrásia à luz.

No leito da dona morte, o olhar se perde dos olhos, já opacos desbrilhantes. O sopro da respiração, motor da fala, agora é quietação do ar. O movimento dos músculos torna-se dureza. As expressões das rugas agora não se expressam. Em breve, um corpo descarnado de um espírito desencarnado. Com o tempo não sobra nem o pó do osso de quem finou-se. Que Deus bote a alma em seu devido lugar.

Os humanos são incapazes de controlar a morte, nem por isso (ou exatamente por isso) deixam de investir em ritos públicos, cerimônias, limpezas e dietas. Queremos guiar a vida, mesmo depois da morte. A morte é provavelmente a grande questão antropológica. Todas as outras parecem irrelevantes diante de sua estatura e nenhum outro problema é mais saliente no pensamento humano. Afinal, morrer é um universal absoluto que compartilhamos com todos os seres vivos. Mas em todas as eras, por todos os povos, a morte foi e é negada. É tão difícil conceber o fim da vida que as culturas postulam diversos descaminhos pós-morte. Grandes civilizações lutaram contra a morte, querendo domesticá-la. É o exemplo de um povo vizinho dos guatós, os bororos, que dedicam toda a sua potência ritual para encenar o caminho das almas.

Vicente, patrício de Eufrásia, o homem mais fluente em guató que ainda vive, nos explicou que quando uma pessoa morre, não pode queimar o campo, uma formação vegetal das mais comuns no Pantanal. Não pode, porque o incêndio é capaz de queimar a alma do morto, que continua por um tempo a penar nos lugares onde passou em vida. O Pantanal agora ardeu em chamas queimando vivos e mortos em uma escala nunca dantes vista. Além das almas que foram desencarnadas dos bichos, muitas outras devem ter se chamuscado.

Pouco antes de conhecermos Eufrásia, em 2016, seu irmão mais criança, o finado Cipriano, tinha morrido em situação de rua e já degradado por anos de alcoolonialismo. Certa vez, comentando o aparecimento do finado Cipriano no mundo dos sonhos, Eufrásia observou: os mortos não falam.

A morte é a incomunicabilidade.

Explicou Eufrásia: Agora só ieu deste lote. De sua família, era a derradeira. Antes foi este finado Cipi que não conseguia falar no sonho. Cipriano não tinha parada, ficava num asilo, de onde volta e meia fugia, ficava manguaçando, catando latinha, dormindo na borda do çumitério, não tinha sossego, ficava andan-andando por aí. Adoeceu de dor no estômago e morreu no dia 5 de setembro de 2016. Mesma data em que sua irmã morreria cinco anos despois.


Fotos 3x4 de Cipriano e Francisca, irmãos mais crianças de Eufrásia

Se é difícil acreditar que um ente querido possa cair eternamente no vazio da morte, há uma questão mais complicada: a da morte das línguas. É difícil crer na quietação do ar da fala de um povo. Uma riqueza coletiva que se esvai, por não ter mais boca que fala e orelha que escuta. Ao contrário do português neobrasileiro, toda língua nativa desta Terra dita Brasil lambe, em diferentes níveis, o amargo sabor da morte, que sempre ronda.

Com Eufrásia descobrimos que coletar novos dados em palavras era também coletar novos lados do Ser. O encontro com abandono e a proximidade das distâncias que levaram a idioma ao despropósito. Era triste-belo o poema.

Antes de Eufrásia morrer, gravamos muitas horas de sua voz. Ao escutar, certa vez ela disse que estávamos prendendo a voz dela ali no gravador. O esposo de Eufrásia observava que existia um lugar que a alma ia depois da morte. Este lugar não é Inferno nem nada assim. É o Esquecimento. Esperamos ter prendido uma voz que não seja perdida. E que a memória de Eufrásia não caminhe para o Esquecimento. A humanidade mais pobre, disse uma reportagem sobre a morte da finada Júlia, mãe de Vicente, a “penúltima” mulher fluente em guató. Agora a humanidade e o Pantanal ficam ainda mais pobres.

Referências

  • SILVA, Danuzio Gil Bernardino da (org.). 1997. Os Diários de Langsdorff - Volume III: Mato Grosso e Amazônia, 21 de novembro de 1926 a 20 de maior de 1828 [online]. Tradução: Márcia Lyra Nascimento Egg e outros. Campinas: Associação Internacional de Estudos Langsdorff. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ.
  • SCHMIDT, Max. 1914. Die Guato und ihr Gebiet. Ethnologische und archäologische Ergebnisse der Expedition zum Caracara-fluss in Matto-Grosso. Baessler-Archiv: Beiträge Zur Volkekunde, 4 (6): 251-283.
  • SCHMIDT, Max. 1942. Resultados de mi tercera expedición a los guatos efectuada en el año de 1928. Revista de La Sociedad Científica Del Paraguay, 5(6): 41-75. RONDON PALÁCIO

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2022
  • Aceito
    20 Maio 2022
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