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Fronteiras do nós: um caminho aberto para a escrita

Fronteras del nosotros: un camino abierto a la escritura

Boundaries of us: A path open for writing

Resumo

Este texto reflete sobre a escrita de Veena Das em Textures of the Ordinary. Argumenta que, no processo de descrição das formas de vida e de elaboração de conceitos, a autora mantém os traços da vida de seus interlocutores em seus escritos quanto aos distintos tons e subtons das histórias que ela ouviu e viveu. Defende que os capítulos do livro nos abrem para a possibilidade de imaginar formas de escrita etnográfica em que os tons e os subtons presentes na vida diária apareçam como constitutivos da linguagem e dos processos de transmissão de experiência.

Palavras-chave:
Veena Das; Escrita etnográfica; Formas de vida; Etnografia

Resumen

Este artículo reflexiona sobre la escritura de Veena Das en Textures of the Ordinary. Sostiene que, en el proceso de describir modos de vida y elaborar conceptos, la autora mantiene las huellas de las vidas de sus interlocutores en sus escritos mediante los diferentes tonos y subtonos de las historias que escuchó y vivió. Se argumenta que los diferentes capítulos del libro nos abren a la posibilidad de imaginar formas de escritura etnográfica en las que los tonos y subtonos presentes en la vida cotidiana aparezcan como constitutivos del lenguaje y de los procesos de transmisión de la experiencia.

Palabras clave:
Veena Das; Escritura etnográfica; Formas de vida; Etnografía

Abstract

This paper reflects on Veena Das's writing in Textures of the Ordinary. We argue that in the process of describing forms of life and elaborating concepts, the author keeps traces of her interlocutors lives in her writings through the different tones and subtones of the stories she heard, lived, and recounts. We argue that the different chapters of the book open up the possibility of imagining forms of ethnographic writing in which the tones an subtones present in daily life appear as constitutive oflanguage and the processes of transmitting experience.

Keywords:
Veena Das; Ethnographic Writing; Forms of Life; Ethnography

Lembro-me claramente da sensação que senti e me levou a este comentário sobre Textures of the Ordinary. Doing Anthropology after Wittgenstein. Eu estava em casa, lendo o Capítulo 5 “Disorders of Desire or Moral Striving? Engaging the Life of the Other”, e me divertindo com a forma escolhida por Veena Das para narrar os esforços empreendidos pelo casal Kuldip e Saba para viverem o amor. A pergunta que iniciava a conversa, e que parecia algo trivial: “você soube que o Kuldip se casou?”1 1 Did you know that Kuldip has gotten married? (Das 2020DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary. Doing Anthropology After Wittgenstein. Fordham University Press.:158, tradução minha), foi o que permitiu que Das entrasse no intenso trabalho realizado pelos membros das duas famílias para acomodar, em seu cotidiano, o encontro amoroso entre uma jovem muçulmana e um rapaz hindu. Ao se recusar a retratar hindus e muçulmanos como comunidades fechadas em si mesmas, Das traça os movimentos feitos pelos familiares do casal a fim de transformar um estranho em um parente. Todos tiveram que expandir e reabitar seu próprio mundo que fôra modificado por este encontro. O amor é, assim, pensado como um engajamento dentro da intimidade agonística do parentesco, que movimenta, na trama da vida diária, religiosidade, nacionalismo, Estado, entre outros temas. O casal apaixonado exigiu de Veena Das uma forma de escrita que, ao mesmo tempo, descrevesse os sonhos, as imaginações e os desejos de se viver uma vida juntos e as tensões, os conflitos e as decepções que esta escolha provocou nos membros de ambas as famílias e neles próprios. Ao me divertir com a escrita de Das, passei a refletir sobre o nosso encontro com as pessoas e suas histórias, e também sobre como transmitir o conhecimento que recebemos a um público mais amplo.

A história de Kuldip e Saba está localizada entre os capítulos que recontam as histórias de Sita (Capítulo 4) e a de Swapan (Capítulo 6). O leitor familiarizado com o trabalho de Das se lembrará de Sita em Life and Words (2007DAS, Veena. 2007. Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary. Berkeley: University of California Press. ) e de Swapan em Affliction (2015DAS, Veena. 2015. Affliction: Health, Disease, Poverty. New York: Fordham University Press. ). Kuldip e Saba também já haviam aparecido em outras “encarnações” textuais (Das 2010DAS, Veena. 2010. Engaging the Life of the Other: Love and Everyday Life”. In: Ordinary Ethics: Anthropology, Language and Action. Edited by Michael Lambek. New York: Fordham University Press. Pp. 376-400.). Em Textures, Veena Das revive esses encontros para refletir sobre o próprio processo de produção do conhecimento antropológico como algo que não é estático, que não se encerra em uma verdade, e que existem questões que precisam do trabalho do tempo para que elas apareçam e estabeleçam um novo sentido. Os três textos discutem, por diferentes meios, aquilo que Das chama de “estética do parentesco”. No entanto, os capítulos que antecedem e sucedem aquele que trata do encontro amoroso trazem as faces sombrias e corrosivas das relações de família. O que me move no trabalho de Das é o aprendizado de que as histórias de sofrimentos, dores e ressentimentos não surgem na vida diária a partir de grandes eventos. Ao contrário, são os pequenos gestos, fugazes demais para serem rapidamente percebidos como importantes, que permitem compreender as dores que habitam as relações. No grupo de leitura em que debatíamos a obra de Das, foi unânime a percepção de que os tons da escrita destes três capítulos são bastante distintos.

Ler o livro na sequência escolhida pela autora foi fundamental para que eu pudesse perceber a importância de cada capítulo na tessitura de seu argumento. Ler Textures é se deparar com o investimento intelectual de uma vida, no qual Veena Das avança, recua, muda de direção em temas como cotidiano, evento, ordinário/extraordinário, ética e ceticismo, entre tantos outros. Ao compor a obra com reflexões que se iniciaram vinte e cinco anos atrás, Veena Das mantém as diversas temporalidades que habitam seu pensamento e permitem ao leitor se encontrar com os diferentes momentos de sua vida. Ler Textures enquanto uma obra - uma obra difícil, diga-se de passagem - me possibilitou acumular certas ideias, temas e conceitos trabalhados por Das, mas também os risos e as lágrimas de seus interlocutores e dela própria. Para este comentário, no entanto, gostaria de trazer algo que me parece pouco debatido sobre o trabalho de Veena Das: os traços da vida de seus interlocutores presentes nos diferentes tons e subtons dos capítulos, como um dos elementos que permitem ao leitor se encontrar com as formas de vida que ela descreve.

Os trabalhos de Veena Das nos falam sobre a importância de habitar a vida com as pessoas que conhecemos, movimento que nos abre para uma “descida ao ordinário” e possibilita caminhos para sair das “narrativas congeladas” e encontrar “a vida das palavras” (Das 2007DAS, Veena. 2007. Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary. Berkeley: University of California Press. , 2020DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary. Doing Anthropology After Wittgenstein. Fordham University Press.). Parece-me que quanto mais habitamos a vida com as pessoas, mais diversas são as estéticas possíveis de compartilhamento de experiências. Por isso, a atenção à gama de entonações e humores faz parte daquilo que Veena Das chama de “atenção aos detalhes” (Das 2020DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary. Doing Anthropology After Wittgenstein. Fordham University Press.). Tons, subtons e humores criam sensações e imagens acústicas cujo desafio é, exatamente, o de transmiti-las em formato textual. O que quero dizer é: descrever e transmitir no texto um momento de alegria é bastante diferente de escrever: “ele sorriu”, mesmo porque um sorriso pode significar exatamente o oposto. No momento em que redigia este comentário, fiquei me perguntando: ao apagarmos em nossos textos a diversidade estética do encontro, não estaríamos também “congelando” as formas de vida? Em minha leitura, os capítulos de Textures nos abrem para a possibilidade de imaginar diferentes formas de escrita etnográfica. Eles me ajudaram a compreender que o encontro com a singularidade da vida exige de nós um esforço imaginativo de escrita em que tons e subtons apareçam como constitutivos da linguagem e dos processos de transmissão de experiência. Os traços acústicos e os humores das histórias narradas pelas pessoas com as quais Das habitou a vida se fazem presentes em seus escritos e nos levam à questão sobre os limites da subjetividade.

Peço ao leitor que dê um salto comigo para o Capítulo 9, “Of Mistakes, Errors, and Superstition: Reading Wittgenstein’s Remarks on Frazer”, pois nele me deparei com uma frase que talvez ajude a explicar o que quero dizer, cito:

Semelhante à imaginação de que minha dor poderia estar em outro corpo (Das 2007DAS, Veena. 2007. Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary. Berkeley: University of California Press. ), Wittgenstein também está nos provocando a imaginar que os limites de nossos corpos não são os limites de nossa subjetividade, pois nossa existência é sempre capaz de ser mais, ou outra, do que suas realizações atuais. Assim, apesar de toda a nossa mundanidade, talvez nunca estejamos totalmente em casa em um mundo particular2 2 “Similar to the imagination that my pain could be in another body (Das 2007), Wittgenstein is also provoking us to imagine that the boundaries of our bodies are not the boundaries of our subjectivity for our existence is always capable of being more, or other, than its present realizations. For all our worldliness, then, we might never be fully at home in any particular world.” (Das 2020DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary. Doing Anthropology After Wittgenstein. Fordham University Press.:258, tradução e grifos meus).

Veena Das tece uma crítica aos usos dos termos subjetivo e subjetividade como se fossem sinônimos e defende que precisamos qualificar melhor o que entendemos com esses conceitos. Se a antropologia é um exercício de habitar a vida com as pessoas - e também com os textos - para depois transmiti-los a um público mais amplo, esse exercício coloca o tempo todo em questão os limites das subjetividades. Onde termina o pesquisador e onde começa o que ele viu e ouviu? E, ainda, como delimitar as fronteiras entre o pesquisador e os textos que possibilitam sua abertura de mundo? Se o livro trata do processo de habitar a vida com as pessoas e também com os textos, fiquei refletindo sobre as fronteiras borradas entre Das e Wittgenstein ou Cavell, por exemplo, e também sobre as fronteiras entre Veena, Kuldip e Saba. Aqui, me parece que Veena Das faz um jogo em que ela coloca em relação os autores com os quais ela dialoga, seus interlocutores e a si mesma. Mas Veena não para neste ponto, ela se preocupa com aquele que será o leitor de seu trabalho. O livro é um convite à expansão…

Em Textures, Veena Das parece experimentar de forma ainda mais contundente as descrições de formas de vida. Descrever formas de vida é um caminho bastante distinto da elaboração de textos em que os exemplos são recortados da vida social e se tornam ferramentas para ilustrar conceitos predefinidos ou para reforçar uma interpretação geral. Este caminho mais usual incorre no perigo de cairmos na armadilha que é a de impor uma realidade ao outro, ou aos muitos outros cujas singularidades são apagadas. A escolha por descrever formas de vida faz com que o autor encontre a vida das palavras e também os tons, os subtons e os humores que fazem aquele mundo. É perceber que as histórias que o pesquisador considera adjacentes pode ser o ponto exato que dá sentido à experiência. Em minha leitura, a maneira como Veena Das descreve as formas de vida e cria os conceitos acaba mantendo neles os traços da vida dos seus interlocutores e isto é, para mim, onde encontramos a potência de sua escrita. A ideia de opacidade, por exemplo, não dá para ser desconectada do encontro com Sita ou com a própria sogra de Das. O que ela entende por “engajamento na vida do outro” nos remete a Kuldip e Saba e aos membros de ambas as famílias. Em Das, os conceitos só podem ser pensados com as vidas que possibilitaram sua elaboração. As subjetividades do autor e de seus interlocutores se encontram no momento da descrição e produzem a conexão entre etnografia e biografia. Por isso a etnografia de Veena Das é também uma autobiografia.

Para finalizar, retomo a questão da estética dos textos e os traços das vidas presentes nos conceitos e na descrição das formas de vida. Se estamos lidando com experiências singulares, por que fazemos textos tão iguais? Um livro como Textures nos convida a não repetir fórmulas teóricas ou narrativas. O que ele coloca como tarefa é o exercício de imaginar e experimentar mais.

Referências

  • DAS, Veena. 2007. Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary Berkeley: University of California Press.
  • DAS, Veena. 2010. Engaging the Life of the Other: Love and Everyday Life”. In: Ordinary Ethics: Anthropology, Language and Action Edited by Michael Lambek. New York: Fordham University Press. Pp. 376-400.
  • DAS, Veena. 2015. Affliction: Health, Disease, Poverty New York: Fordham University Press.
  • DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary. Doing Anthropology After Wittgenstein Fordham University Press.
  • 1
    Did you know that Kuldip has gotten married?
  • 2
    “Similar to the imagination that my pain could be in another body (Das 2007DAS, Veena. 2007. Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary. Berkeley: University of California Press. ), Wittgenstein is also provoking us to imagine that the boundaries of our bodies are not the boundaries of our subjectivity for our existence is always capable of being more, or other, than its present realizations. For all our worldliness, then, we might never be fully at home in any particular world.”
  • Financiamento

    Os autores agradecem o apoio financeiro da FAPESP - Número do processo: 2018/15928-2 e 2019/25691-2

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Cunha Comerford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Fev 2023
  • Aceito
    16 Jun 2023
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