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Apresentação: leituras (com)partilhadas de Textures of the ordinary

Com trabalhos que hoje praticamente a dispensam de apresentações à comunidade antropológica brasileira, Veena Das tem se tornado referência para pensar temas como violência, sofrimento, pobreza urbana, saúde, parentesco, Estado (cf, por ex, Das e Poole, 2004DAS, Veena & POOLE, Deborah. 2004. Anthropology and the Margins of State. Santa Fe: School for Advanced Research Press.; Das, 2006DAS, Veena. 2006. Life and Words: Violence and the Descente into the Ordinary. California: University of California Press.). Em livro recente, Textures of the Ordinary: doing anthropology after Wittgenstein (Das, 2020DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary: Doing Antropology after Wittgenstein. Nova York: Fordhan University Press.), ela nos brinda com (auto)reflexões inspiradoras sobre o fazer etnográfico, a qualidade da escuta e da descrição antropológica, a vida dos conceitos, se enveredando pelas texturas do cotidiano de seus interlocutores e das relações travadas com eles, e com seus textos, ao longo de toda a vida. Como o seu pensamento, que trava diálogo com a filosofia de Wittgenstein e Cavell e que se alimenta de muitos períodos de trabalho de campo em periferias indianas, revendo personagens conhecidos de seus/suas leitores/as, o livro em tela é denso, complexo e - por que não dizer? - difícil. Enfrentá-lo não foi simples, mas se tornou possível a partir de um esforço coletivo.

Tirando proveito da aprendizagem técnica de realizar encontros virtuais, adensada durante a pandemia de COVID-19, entre o segundo semestre de 2021 e o primeiro semestre de 2022, realizamos 14 encontros on-line, de periodicidade quinzenal, para a discussão conjunta de cada um dos capítulos de Textures. A dinâmica dos encontros tratou de rodada de impressões sem a obrigatoriedade de exposição do conteúdo, lido previamente. Com sessões abertas, além de Adriana Vianna, Camila Pierobon, Fabiana Jardim, Letícia Ferreira, Manuela Cordeiro e Mariana Côrtes, autoras dos comentários deste debate, também passaram pelas discussões Carolina Parreiras, Liliana Sanjurjo, Natália Lago, Carolina Branco, Daniela Petti, Everton Rangel, Dibe Ayoub, Macarena Modesto, Silvia Pereira, Mylena Mateuzi, Jonathan da Motta, Jeferson Scabio, dentre outros/as, que contribuíram imensamente com suas perspectivas e aos quais somos verdadeiramente gratas. Todos os nossos encontros foram transcritos, possibilitando um retorno às nossas conversas e, lidos a posteriori, evidenciaram o nosso próprio processo de encontro com o livro.

O contato com Veena Das já vinha sendo tecido tanto pela participação junto com Paula Lacerda e Camila Pierobon na pesquisa por ela coordenada, intitulada Implementation of COVID-19 related policies: implications for household inequalities across five countries1 1 Para mais detalhes, cf. Pierobon, Lacerda e Rui, 2021. , quanto pela entrevista que concedeu ao dossiê organizado por Letícia Ferreira e Adriana Vianna, publicada em inglês na Revista Sociologia e Antropologia (2021),2 2 http://www.sociologiaeantropologia.com.br/v-11-n-03/ e em português na Revista Exilium (2022).3 3 https://periodicos.unifesp.br/index.php/exilium/issue/view/865/78 Tal aproximação permitiu que a própria Veena Das se juntasse a nós na última sexta-feira útil de dezembro, exatamente no dia 17/12/2021, para reagir às nossas impressões sobre o livro, conferindo mais sentido ao esforço empenhado. Gentilmente recebeu nossas angústias elementares - “por que ‘textures’?”, “qual a diferença entre ‘everyday’ e ‘ordinary’? entre everyday eventual e everyday actual”? - e nossas indagações sem resposta imediata - “quanto de detalhe um texto etnográfico tem que ter?”; “como escrever de modo a produzir diferentes sensações no leitor?”. Mais gentilmente ainda, demonstrou interesse em ser interlocutora deste debate, produzindo sua própria leitura dos comentários realizados, também aqui publicada. Para tal, os comentários escritos tiveram suas versões prévias igualmente discutidas pelo coletivo de autoras e foram traduzidos para o inglês para que Veena Das pudesse lê-los. O texto produzido é mais uma dobra do seu pensamento contínuo, inquieto. Ali ela inclusive afirma que, para escrever Texture, por vezes abandonou a si mesma para seguir a escrita.

É, portanto, dessa empreitada partilhada que surge este debate. Ao ganhar vida pública, tal debate nos coloca a responsabilidade de tentar reproduzir a intensidade teórica e afetiva dos encontros realizados e o imenso privilégio que foi a oportunidade de realizar uma leitura demorada, compartilhada, com ritmo e compromisso espontâneos. Ao invés de entrar apenas de modo interessado em capítulos específicos, ao ler o livro todo, sequencialmente, apreendemos o trabalho de encadeamento de cada capítulo na confecção das camadas do argumento. Longe de tentar tão somente “entender” a obra, nossos encontros foram atravessados por impressões referentes aos conceitos e aos conteúdos apresentados e também pelo compartilhamento de experiências de pesquisa e por interlocuções teóricas acionadas a partir da leitura. Mas, sobretudo, nossos encontros foram atravessados pelas variadas sensações mobilizadas pelas diferentes formas de escrita dos capítulos - como aborda Camila Pierobon no comentário inaugural. Saímos, ao fim, ainda mais admiradoras da obra de Veena Das, reconhecendo a potência desse livro para uma discussão mais ampliada em torno da teoria, da pesquisa e da escrita em antropologia e também mais admiradoras da pessoa que é Veena Das, alguém que encontrou na produção intelectual inquieta e sempre em (re)composição um espaço para o compartilhamento de ideias e um lugar de investimento do seu próprio desejo. Camila tem razão ao escrever que Textures pode ser lido como “investimento intelectual de uma vida”.

Perpassa o livro igualmente a reflexão sobre a incognoscibilidade. Veena Das escreve que é preciso tolerar o que não se sabe; que há limites do que é possível conhecer num determinado momento da vida e num determinado momento da relação com o outro. Por isso, escrever e pensar com hesitação é importante. Chama a atenção, neste aspecto, como as histórias de campo são retomadas para oferecer novas interpretações nesse seu momento da vida; é como se ela pudesse voltar anos e anos aos seus diários de campo e perceber coisas que não foram percebidas anteriormente. Em razão disto, alguns capítulos terminam em tom de suspense, em outros, suas descrições deixam fios soltos; em um deles, especificamente, há o sincero reconhecimento de que não há mais para onde avançar (“vou parar por aqui…”). A prática etnográfica pode ser apreendida, assim, através da memória, do correr da vida, sendo a passagem do tempo uma importante chave de entrada para o livro, como aborda o comentário seguinte, de Adriana Vianna, que bem observa que o tempo importa em Textures não porque tenha qualquer capacidade reveladora por si mesmo, mas porque é agente ativo na movimentação de sentidos passados, presentes e futuros.

Outro aspecto central do livro, desde seu título, é a vida ordinária. Se esta contém elementos como hábito ou repetição, também é feita de imaginações, de ceticismo, de perigo; abarca o cotidiano e o extraordinário, o mundano e o sobrenatural; o efêmero e o durável; o previsível e o imprevisível. É nela que se constrói e se destrói. Menos que defini-la, Veena Das está interessada em descrevê-la ou em tê-la como perspectiva para problematizar conceitos filosóficos, decisões éticas, ação política. A vida ordinária não é um objeto ou um campo de conhecimento, mas é desde onde se pode atravessar fronteiras temáticas e disciplinares, modelos teóricos e metodológicos; é onde se encontram o fazer etnográfico e a produção conceitual, como tão bem observam Fabiana Jardim e Mariana Côrtes no terceiro comentário, dedicado a perscrutar três modos de atenção à vida na obra. O cuidado em relação aos detalhes, às palavras e à vida dos conceitos, presentes em todo o livro, são parte também do tipo de conhecimento paciente proposto por Veena Das.

Creio ser possível dizer, assim, que os eixos elencados pelos três primeiros comentários (escrita, tempo e vida) são transversais a toda a obra, ganhando novas camadas a cada nova interlocução teórica e a cada situação etnográfica eleita. Conjuntamente, os três iluminam pontos fortíssimos de Textures e facilitam modos de caminhar pelo livro. Mas a obra possibilita também outras aberturas e outras camadas ocultas, talvez menos evidentes ao leitor ocidentalizado, mesmo menos conscientes, quiçá à própria autora. É o que faz pensar o quarto comentário, de Manuela Cordeiro. Se o diálogo com a filosofia ocidental é explícito desde o subtítulo da obra, Manuela sugere, de modo contraintuitivo, que a filosofia vaishnava, especialmente seu grande livro, o MahaBharata, pode estar subjacente à estética e ao argumento do livro. Outra chave de leitura a percorrer.

Por fim, o quinto e último comentário, de Letícia Ferreira, toca em um dos temas responsáveis pela disseminação da obra de Veena Das no Brasil: sua abordagem referente ao estudo do Estado a partir das margens aqui privilegiada pelo enfoque nos capítulos 2 e 8. Letícia entrevê a partir deles ampliação das reflexões empíricas e metodológicas já conhecidas da autora. A “textura da lei”, ao ser esmiuçada descritivamente para dentro e para fora dos documentos oficiais, e a “política do ordinário”, elaborada no nível da necessidade e do cotidiano, se fazem diante do caráter tão racional e burocrático quanto mágico e corriqueiro do Estado. Neste aspecto, pode haver uma inversão de seu argumento consagrado: o Estado torna-se menos ponto de chegada da análise e mais perspectiva desde onde também se ilumina a importância do ordinário.

São, portanto, cinco perspectivas de leituras que abrem para aspectos variados da obra. Ao discutirmos os comentários ora publicados, falamos entre nós que os textos se tocam, mas também tomam caminhos próprios. Lemos e discutimos o mesmo livro, mas ainda assim o fizemos de modos muito diferentes. Nessa infinita capacidade de mobilizar variadas impressões reside também um ponto importante da obra e que volta a ser abordado em seus comentários: as vidas que vivemos com palavras, textos e com pessoas. Ao publicar essa experiência, esperamos estimular, em variados tempos, ainda muitas e muitas outras leituras.

Referências

  • DAS, Veena & POOLE, Deborah. 2004. Anthropology and the Margins of State Santa Fe: School for Advanced Research Press.
  • DAS, Veena. 2006. Life and Words: Violence and the Descente into the Ordinary California: University of California Press.
  • DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary: Doing Antropology after Wittgenstein Nova York: Fordhan University Press.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Cunha Comerford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2023
  • Aceito
    28 Jun 2023
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