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DESAFIOS ÀS PRÁTICAS DE REDUÇÃO DE DANOS NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE1 1 Apoio e financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes); Conselho Nacional deDesenvolvimento Científico, Tecnológico (CNPq); e Fundação de Apoio à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig)

DESAFÍOS A LAS PRÁCTICAS DE REDUCCIÓN DE DAÑOS EN LA ATENCIÓN PRIMARIA A LA SALUD

RESUMO.

Este estudo teve por objetivo analisar os saberes e práticas dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), direcionados a usuários de álcool e outras drogas à luz da estratégia de redução de danos. Como característica específica do público deste estudo, foram escolhidos ACS que participaram do curso Caminhos do Cuidado. Utilizando-se o método qualitativo, foram realizadas entrevistas semiestruturadas como fonte de coleta de dados e análise de conteúdo para a sistematização dos achados. Os dados demonstraram que mesmo aqueles profissionais que relatavam conhecer o conceito de redução de danos e a possibilidade de utilizar esta abordagem para o cuidado de usuários de álcool e outras drogas no contexto da Atenção Primária à Saúde (APS), não conseguem ofertar cuidados que se aproximem desta estratégia. Isto ocorre uma vez que os entrevistados não respeitam a liberdade de escolha, pautam-se no proibicionismo e no ideal de abstinência. Esta dificuldade prática em desenvolver o cuidado, baseado nesta abordagem, se relaciona com a percepção moralizante sobre o uso de drogas, sua associação ao crime e o foco na possibilidade de se extinguir o uso de drogas nas sociedades.

Palavras-chave:
Redução de dano; agente comunitário de saúde; formação profissional

RESUMEN.

Este estudio tuvo como objetivo analizar los saberes y prácticas de Agentes Comunitarios de Salud (ACS) frente a usuarios de sustancias psicoactivas y la estrategia de reducción de daños. Fueron elegidos ACS que participaron del curso “Caminhos do Cuidado”. A partir de una perspectiva cualitativa se realizaron entrevistas semiestructuradas, la información obtenida fue análisis de contenido con el fin de sistematizar los resultados. Los datos demostraron que a pesar de que los profesionales relaten conocer el concepto de reducción de daños y la posibilidad de utilizar esta estrategia para el cuidado de usuarios de sustancias psicoactivas en el contexto de Atención Primaria en Salud (APS) no logran ofrecer cuidados que se acerquen de esta estrategia. Esto sucede principalmente cuando los ACS no respetan la libertad de elección de los usuarios, se centran en el prohibicionismo y en el ideal de abstinencia. Esta dificultad para efectuar el cuidado con base en la reducción de daños se relaciona con una percepción moralista acerca del uso de drogas, asociando el consumo con el delito, además de destacar la posibilidad de erradicar el uso de drogas en las sociedades.

Palabras-clave:
Reducción de daño; agente comunitario de salud; formación profesional

ABSTRACT.

This study aimed to analyze the knowledge and practices of Community Health Agents trained by the Care Pathway Project, aimed at users of alcohol and other drugs from the perspective of the Harm Reduction strategy. Data showed that even those professionals who reported knowing the concept of harm reduction and the possibility of using this approach to provide care for alcohol and other drug users in the context of Primary Health Care (PHC), they are unable to offer care as described in this strategy. This occurs because the interviewees do not respect freedom of choice, they advocate prohibitionism and the ideal of abstinence. This practical difficulty in developing care based on this approach is related to the moralizing perception about drug use, its association with crime and the focus on the possibility of extinguishing the use of drugs by societies.

Keywords:
Harm reduction; community health agent; Professional education

Introdução

O consumo de substâncias psicoativas faz parte da história da humanidade, estando em muitos contextos vinculado a rituais, cultura e costumes. Entretanto, o uso prejudicial e abusivo destas substâncias pode ocasionar problemas de saúde e sociais para a vida das pessoas. Além destas implicações, há um conjunto de crenças e percepções dos profissionais de saúde que pode contribuir para o aumento das barreiras relacionadas ao acesso e vinculação dos usuários de álcool e outras drogas aos serviços de saúde existentes. Dentre estas barreiras que podem impedir que usuários e familiares busquem auxílio e tenham acesso aos serviços de saúde está o estigma que a população, familiares, profissionais e os usuários possuem sobre esta condição (Ronzani, Noto, & Silveira, 201417. Ronzani T. M., Noto A. R., & Silveira P. S. (2014). Reduzindo o estigma entre usuários de drogas:guia para profissionais e gestores. Juiz de Fora, MG: UFJF.).

A estigmatização associada aos usuários de drogas e a repetição de jargões como “a droga está destruindo a nossa sociedade” ou “devemos declarar guerra às drogas”, trazem consigo uma “demonização” da substância que se estende ao usuário e este passa a ser visto como uma “pessoa má” (Karam, 200810. Karam M. L. (2008). A Lei 11.343/06 e os repetidos danos do proibicionismo. In H. Carneiro (Org.), Drogas e Cultura: novas perspectivas. (pp.105-120) Salvador: Edufba.). A internalização desta percepção sobre a droga e sobre o usuário pelos profissionais de saúde reduz a percepção dos sujeitos e as possibilidades de estabelecer com eles e para eles suporte social, educacional e de saúde.

Outro desdobramento do processo de estigmatização é atribuir ao indivíduo as causas e a responsabilidade individual por sua condição, o que também dificulta a possibilidade de cuidado. Muitas pessoas não iniciam o tratamento ou o abandonam prematuramente porque são estigmatizados e, consequentemente, percebidos de forma negativa pela população e pelos profissionais de saúde. Portanto, a qualidade do trabalho em saúde com usuários de álcool e outras drogas está relacionada à forma como os profissionais percebem o uso de drogas e os usuários (Ronzani et al., 201417. Ronzani T. M., Noto A. R., & Silveira P. S. (2014). Reduzindo o estigma entre usuários de drogas:guia para profissionais e gestores. Juiz de Fora, MG: UFJF.).

As deficiências na formação dos profissionais de saúde para lidar com a abordagem e tratamento de usuários de álcool e outras drogas possuem impactos sobre a prática desses profissionais prejudicando e negligenciando cuidados possíveis e necessários a este público-alvo (Peyraube, 201714. Peyraube R. (2017). Estigma de Las Personas que Usan Drogas. Cuidados de laSalud y Derechos Humanos En América Latina. In M. D. Vecchia (Org.), Drogas e Direitos Humanos:reflexões em tempos de guerra às drogas (pp. 29-51). Porto Alegre: Rede Unida.). Estudos apontam que a capacitação dos profissionais da atenção primária para a compreensão do contexto onde se situa o usuário, o uso de drogas e a estigmatização é uma das necessidades para o alcance do cuidado integral a pessoas que fazem uso prejudicial de drogas (Júnior, Silva, Noto, Bonadio, & Locatelli, 20159. Júnior J. M. L., Silva E. A, Noto A. R, Bonadio A. N., & Locatelli D. P. (2015). A educação permanente em álcool e outras drogas: marcos conceituais, desafios e possibilidades. In T. M. Ronzani, P. H. A. Costa, D. C. B. Mota, & T. J. Laport (Orgs.), Redes de atenção aos usuários de drogas: políticas e práticas. (pp.155-187) São Paulo: Cortez .).

Ocorre que várias lacunas são apontadas aos processos educacionais atualmente desenvolvidos. Geralmente, a oferta de processos educacionais voltados aos profissionais de saúde é marcada por ações pontuais, fragmentadas, variadas no que tange à metodologia (Ceccim & Feuerwerker, 20045. Ceccim R. B., & Feuerwerker L. C. M. (2004). O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis, 14(1), 41-65.) e organizadas a partir de interesses políticos. Não há uma proposta de continuidade do processo formativo ou mesmo uma interlocução com outras áreas, o que dificulta o processo de mudança pretendido. Merece ainda destaque a crença de gestores e pesquisadores em um efeito mágico do processo educacional, como se fosse possível uma mudança rápida nas atitudes profissionais (Júnior et al., 20159. Júnior J. M. L., Silva E. A, Noto A. R, Bonadio A. N., & Locatelli D. P. (2015). A educação permanente em álcool e outras drogas: marcos conceituais, desafios e possibilidades. In T. M. Ronzani, P. H. A. Costa, D. C. B. Mota, & T. J. Laport (Orgs.), Redes de atenção aos usuários de drogas: políticas e práticas. (pp.155-187) São Paulo: Cortez .).

Outros desafios apontados na literatura aos processos de formação dos profissionais de saúde para atuação na área de álcool e outras drogas são o engajamento dos gestores na proposta; a falta de autonomia dos profissionais para realizarem o trabalho que gostariam; a imensa rede de profissionais do SUS espalhados pelas equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF), Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), hospitais; a falta de comunicação entre os dispositivos da rede de saúde e intersetoriais (Júnior et al., 20159. Júnior J. M. L., Silva E. A, Noto A. R, Bonadio A. N., & Locatelli D. P. (2015). A educação permanente em álcool e outras drogas: marcos conceituais, desafios e possibilidades. In T. M. Ronzani, P. H. A. Costa, D. C. B. Mota, & T. J. Laport (Orgs.), Redes de atenção aos usuários de drogas: políticas e práticas. (pp.155-187) São Paulo: Cortez .); a sobrecarga de trabalho dos profissionais; a alta rotatividade destes atores (Mendes, 201211. Mendes E. V. (2012). O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde:o imperativo da consolidação da estratégia saúde da família. Brasília: Organização Pan-Americana de Saúde.); a situação de ilegalidade e a perspectiva proibicionista (Menéndez, 201212. Menéndez E. (2012). Sustancias consideradas adictivas: prohibición, reducción de daños y reducción de riesgos. SaludColectiva, 8(1), 9-24.) além da dificuldade de lidar com a complexidade dos problemas que abarcam o uso de álcool e outras drogas.

Contudo, o processo de incorporação do conhecimento à prática profissional é complexo, indo além da mera transmissão da informação ou aquisição de conhecimentos técnicos. A própria abordagem da política sobre drogas no Brasil é bastante ambígua: ora se assume uma política de saúde voltada à abordagem de redução de danos que busca a emancipação do sujeito e reconhece sua autonomia, ora se impõe por meio da política proibicionista o discurso moral higienista por abordagens de isolamento em hospitais, prisões, clínicas de tratamento e outras instituições voltadas à prática da exclusão social (Queiroz, Gomes, Reis, Knupp, & Aquino, 201415. Queiroz I. S., Gomes A. P., Reis A. L., Knupp D. F. D., & Aquino C. R. (2014). Repertórios interpretativos de profissionais da rede de saúde mental e atenção primária de Belo Horizonte sobre uso de drogas. Saúde Debate, 38, 80-93.http://dx.doi.org/10.5935/0103-104.20140005.
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).

Na abordagem de usuários de álcool e outras drogas sob a perspectiva da redução de danos o objetivo deve ser produzir sujeitos mais autônomos, com responsabilidade por suas escolhas e corresponsáveis pela superação de suas dificuldades sem, entretanto, deixar de reconhecer e intervir sobre as vulnerabilidades que envolvem este uso (Conte et al., 20046. Conte M., Mayer R. T. R., Reverbel C., Sbruzzi C., Menezes C. B., Alves G.T., et al. (2004). Redução de Danos e Saúde Mental na perspectiva da Atenção Básica. Boletim da Saúde. 8(1), 59-77.; Cavallari & Sodelli, 20024. Cavallari C. D., & Sodelli M. (2002). Redução de Danos e vulnerabilidade enquanto estratégia preventiva na escola. In S. D. Seibel (Org.), Dependência de Drogas (pp.795-809). São Paulo: Atheneu.). Como uma abordagem baseada em um conceito mais ampliado no campo da saúde coletiva ela requer a valorização do desejo e das possibilidades dos sujeitos para os quais estamos buscando a oferta de cuidados.

As experiências internacionais têm demonstrado que onde as políticas de redução de danos estão em vigor, as economias dos custos em saúde - como, por exemplo, na redução das infecções virais de pessoas com HIV e hepatite C - e a melhoria da qualidade de vida das pessoas que usam drogas, estão sendo percebidas e comprovadas pelas práticas de intervenção, tal como prover drogas de forma sistemática e monitorada para usuários dependentes. Intervenções mais amplas, abarcando legislações e políticas públicas de provisão, como algumas verificadas em países da Europa, estão possibilitando a redução dos crimes e prisões vinculadas ao uso de drogas e a redução da mortalidade por overdose (Wiessing et al., 201723. Wiessing L., Ferri M., Belacková V., Carrieri P., Friedman S. R., Folch C., et al. (2017). Monitoring quality and coverage of harm reduction services for people who use drugs: a consensus study. Harm Reduction Journal, 14 (1),19.).

Entretanto, conforme assinala Menéndez (201212. Menéndez E. (2012). Sustancias consideradas adictivas: prohibición, reducción de daños y reducción de riesgos. SaludColectiva, 8(1), 9-24.), é preciso difundir as evidências e estudos com foco na redução de danos e os sucessos obtidos por meio das experiências de descriminalização das drogas - como no caso de Portugal, na América Latina e de alguns países da Europa que implementaram de forma mais completa as ações de redução de danos - a partir da legalização, para que consigamos fortalecer as políticas de drogas baseadas em direitos humanos (Menéndez, 2012).

Todavia, na maioria dos países, as ações de redução de danos continuam centradas nos indivíduos e não em políticas mais amplas que incluem aspectos estruturais e mudanças nas legislações (Menéndez, 201212. Menéndez E. (2012). Sustancias consideradas adictivas: prohibición, reducción de daños y reducción de riesgos. SaludColectiva, 8(1), 9-24.). Sem enfrentamento desta situação também se torna difícil monitorar a eficácia dos serviços de redução de danos, pois estes produzem melhores resultados quando combinadas as várias estratégias de intervenções (Wiessing et al., 201723. Wiessing L., Ferri M., Belacková V., Carrieri P., Friedman S. R., Folch C., et al. (2017). Monitoring quality and coverage of harm reduction services for people who use drugs: a consensus study. Harm Reduction Journal, 14 (1),19.).

No Brasil, uma das ações de educação voltada às equipes atuantes na atenção básica com foco na redução de danos de maior abrangência, foi a formação do projeto Caminhos do Cuidado, iniciada em 2013. Visando a ampliação do cuidado em saúde mental na atenção básica, com ênfase na abordagem de usuários de álcool e outras drogas, o projeto levou reflexões baseadas na estratégia de redução de danos a mais de 280 mil profissionais. A proposta abarcou agentes comunitários de saúde e auxiliares e técnicos de enfermagem das ESF de todo território nacional (Brasil, 20163. Brasil, (2016). Caminhos do Cuidado: relatório 2016. Ministério da Saúde. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/ ICICT.).

A proposta do curso era capacitar os profissionais citados mediante atividades presenciais e atividades de campo (atividades de dispersão) distribuídas ao longo de cinco semanas de curso. Cada turma era apoiada por tutores, profissionais de saúde graduados com mínimo de um ano de experiência profissional em saúde mental ou atenção primária, para refletir sobre os cuidados que lançavam em seu território sobre a população envolvida com drogas.

As atividades propostas pelo projeto Caminhos do Cuidado caracterizavam-se por serem dinâmicas, realizadas a partir da construção de cuidados em cada território e buscavam integrar os casos vivenciados no dia a dia das ESF para reflexão dos alunos. A metodologia de aplicação propunha problematizar as posturas dos profissionais, identificar o uso de drogas e o usuário no contexto da sociedade capitalista e construir possibilidades de cuidado em redes intersetoriais. O curso buscou refletir com os alunos as possibilidades de cuidado a partir de dois eixos de formação: a) conhecimento do território, das redes de atenção, dos conceitos, políticas e as práticas de cuidado em saúde mental, de acordo com a Política Nacional de Atenção Integral aos usuários de álcool e outras drogas; b) construção junto aos ACS da “caixa de ferramentas” para os cuidados possíveis de usuários de álcool e outras drogas em cada território, a partir da perspectiva de redução de danos (Brasil, 20163. Brasil, (2016). Caminhos do Cuidado: relatório 2016. Ministério da Saúde. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/ ICICT.).

Diante deste contexto, propomos neste artigo, refletir sobre as percepções e práticas de agentes comunitários de saúde capacitados pelo projeto Caminhos do Cuidado, direcionados a usuários de álcool e outras drogas tendo como norte para esta reflexão a abordagem de redução de danos.

Método

Este estudo utilizou-se da abordagem qualitativa, pois buscou a compreensão de sujeitos específicos e suas práticas em saúde a partir de suas experiências particulares. O contexto do estudo foi um município localizado na região da Zona da Mata do Estado de Minas Gerais. A escolha do contexto deu-se considerando ser este o município de maior porte populacional da região de saúde onde o mesmo está localizado, de fácil acesso da pesquisadora responsável e o grande número de agentes comunitários de saúde que concluíram a formação do projeto Caminhos do Cuidado neste território.

O município conta com população aproximada de 110 mil habitantes, possui baixa cobertura da Estratégia Saúde da Família (63%), contando com apoio de dois núcleos de NASF no componente da atenção básica. Até dezembro de 2016, o município em questão contava com a seguinte rede de atenção psicossocial: na atenção especializada, um CAPS modalidade II regional e 1 CAPS álcool e drogas (CAPS ad) III Regional. Cabe a ressalva que o CAPS ad III fora implantado no início de 2016 e até o momento da coleta dos dados (abril e maio de 2016) estava sem o financiamento ministerial e com equipe incompleta, o que provavelmente comprometia a qualidade do apoio dado aos casos identificados pelas ESF. No componente hospitalar havia seis leitos de saúde mental implementados e, por fim, no componente de urgência e emergência, havia dois hospitais gerais e a cobertura do Samu Regional (Ministério da Saúde, 201613. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica (2016). Histórico de cobertura de Saúde da Família. Recuperado em 17 de junho, 2016, de Recuperado em 17 de junho, 2016, de http://dab.saude.gov.br/dab/historico_cobertura_sf/historico _cobertura_sf_relatorio.php .
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).

O primeiro critério utilizado para compor o plano amostral foi a seleção de ACS que havia concluído o curso Caminhos do Cuidado. Os participantes foram eleitos por amostragem intencional, sendo indicados pelos enfermeiros de maneira proposital com base na qualidade das informações que poderiam ser obtidas deles (Turato, 201122. Turato E. R. (2011). Tratado da metodologia da pesquisa clinico-qualitativa: construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. Rio de Janeiro: Vozes.). O contato da pesquisadora com os enfermeiros deu-se por meio telefônico, sendo solicitado a estes profissionais sugerir um ACS representativo dos cuidados possíveis de serem dirigidos a usuários de álcool e outras drogas em cada território e que tivesse concluído o curso Caminhos do Cuidado. Posterior contato telefônico era feito com o indicado para obter a concordância ou não do profissional em contribuir com este estudo, cedendo entrevista à pesquisadora responsável. Não houve negativas à participação.

A opção de incluir ACS que passaram por esta formação deu-se por acreditar que estes seriam profissionais que reuniriam percepções menos estigmatizantes e que pudessem contribuir com achados inovadores no que tange às possibilidades de cuidados de usuários de álcool e outras drogas no contexto da APS.

Foram realizadas seis entrevistas semiestruturadas, sendo as mesmas interrompidas neste ponto, uma vez que os participantes começaram a repetir os conteúdos já encontrados e considerando que já contávamos com ampla gama de materiais a serem explorados.

Cada entrevista foi conduzida a partir de roteiro guia que buscava conduzir o diálogo de forma a motivar que os ACS relatassem sobre como percebiam o uso de drogas e o usuário, como entendiam a redução de danos, quais práticas dirigiam no dia a dia de seu trabalho a familiares e usuários de álcool e outras drogas e quais os fatores que dificultavam e os que facilitavam o cuidado deste público. Todos os seis participantes (5 mulheres, 1 homem) possuíam vínculo efetivo de trabalho, atuando há cerca de dez anos na atenção básica do município, com idade média de 36,5 anos.

Ao final da sexta entrevista e estando todas transcritas, realizamos o processo de leitura das mesmas sendo possível identificar os seguintes temas: a) a percepção que o informante trazia sobre o uso de drogas; b) a percepção sobre o usuário; c) o que aparecia sobre o conceito, as práticas e a percepção sobre a estratégia de redução de danos; d) os fatores que dificultavam o cuidado de usuários de álcool e outras drogas; e) as potencialidades para este cuidado e, f) quais ações a ESF direcionava a este público. Cada um destes temas foi identificado no texto com uma cor específica. Seguindo as orientações de Bardin (19771. Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70.), após esta etapa, procedemos com a identificação de elementos nos conteúdos que se aproximavam, que se destacavam ou que repetiam com mais frequência.

A cada entrevista e repetição deste processo foi necessário realizar reagrupamentos ou novas identificações nas entrevistas anteriores. Findada esta etapa de categorização vertical, foi realizada a categorização horizontal quando se buscou comparar entre os discursos a frequência que cada categoria apareceu, bem como todas as categorias, subcategorias e subtemas identificados no corpus documental.

Foram cumpridos todos os procedimentos que garantissem a confidencialidade e privacidade dos participantes, tendo este estudo obtido o parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Resultados

Reflexões sobre o uso de drogas e sobre o usuário

Ao lidar com usuários de álcool e outras drogas, geralmente os ACS revelam medo, despreparo e sentem-se mal apoiados para atuar com a questão das drogas, situações já encontradas no estudo de Cordeiro, Soares, Oliveira, Oliveira e Coelho (20147. Cordeiro L., Soares C. B., Oliveira E., Oliveira L. C., & Coelho H. V. (2014). Avaliação de processo educativo sobre consumo prejudicial de drogas com agentes comunitários de saúde. Saúde e Sociedade, 23(3), 897-907.https://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902014000300013.
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). Apesar de o tema de drogas ser frequentemente considerado como problema de saúde pública e da abordagem de redução de danos estar inscrita como orientadora de cuidados nas legislações de saúde mental e atenção básica, isto não reflete na organização da abordagem necessária dos profissionais e serviços de saúde prevalecendo as abordagens de culpabilização dos usuários e o desejo de abstinência, conforme relato das ACS 4 e ACS 2, respectivamente:

Depende muito do querer deles. Sem o querer do paciente, querer melhorar, querer se envolver no tratamento, se engajar na causa, não tem jeito. Eu acho que não tem jeito.

Às vezes os usuários de drogas, eles não falam pra gente. É a família que fala. Ai por isso que você sabe que eles usam, entendeu? Eles não chegam pra você e falam. É a família que fala. Ai essas pessoas elas tem vontade de parar e tal, mas ao mesmo tempo essa vontade passa rápido, entendeu? Pelas atitudes de tá indo procurar, roubando e tal.

Outras vezes ocorreu a coexistência entre a percepção moral direcionada ao uso de drogas e a percepção como um problema de saúde. Apesar da aparente contradição entre entender o uso de drogas como um problema moral ou entendê-lo como um problema de saúde, ambos os modelos vão no sentido da abstinência como o único resultado desejado. Isto, ao mesmo tempo em que causava inquietação e sentimento de frustração aos ACS participantes deste estudo, levava ao imobilismo, uma vez que no que tange às ações em saúde relatavam que “a gente não sabe o que fazer. Querer a gente quer, mas não sabe o que fazer.” (ACS 5).

Nenhum dos entrevistos apresenta uma percepção sobre drogas que não seja marcada pelo estigma da proibição, de substância maligna e indesejável.

No que tange aos fatores percebidos pelos ACS que podem levar ao uso abusivo de álcool e outras drogas, os entrevistados apontam uma amplitude deles. Dentre estes pontos percebidos como condicionantes do uso de drogas estão a necessidade de refúgio de problemas (todos os informantes), a pressão de grupos (3), a desigualdade de oportunidade (3), o uso de drogas por familiares (2) e a disponibilidade fácil das drogas (1). Entretanto, os informantes não relatam ações desenvolvidas ou buscadas pelas ESF que possam minimizar estes fatores de risco. Neste sentido, não há ações de prevenção ao uso de drogas desenvolvidas pelas ESF, o que nos faz crer que, com relação ao uso abusivo de drogas, as equipes continuam na contramão da proposta de atuação das equipes de saúde da família atuando de forma curativa.

Vale ressaltar que esta gama de fatores identificados pelos ACS é própria de toda complexidade de questões individuais, culturais, políticas e sociais que envolvem o uso de drogas. A abordagem de redução de danos que toma a saúde coletiva como norte orientador propõe uma visão mais ampla desta problemática, buscando compreender a complexidade dos fatores relacionados ao uso de drogas na sociedade contemporânea. Esta abordagem critica a política proibicionista que retroalimenta o tráfico e instrumentaliza para uma prática que compreenda e interfira em desigualdades sociais, dirigindo as ações de forma mais politizada e com impactos mais globais (Santos, Soares, & Campos, 201018. Santos V. E., Soares C. B., & Campos C. M. B. (2010). Redução de danos: análise das concepções que orientam as práticas no Brasil. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 20(3), 995-1015.https://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312010000300016
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).

Aspectos que dificultam ou auxiliam para os cuidados possíveis a usuários de álcool e outras drogas no contexto da APS:

Além das limitações provocadas pela estigmatização do usuário de álcool e outras drogas já apontadas, o despreparo e falta de amparo de outros profissionais e outros pontos de atenção para lidar com as situações encontradas, pode contribuir para agravar a situação de vulnerabilidade, conforme podemos observar no relato da ACS 1 quando cita uma abordagem realizada com um usuário de drogas de sua área de abrangência:

Mas olha só o que você tá fazendo com a vida! Você tá se excluindo da sociedade. Não é a sociedade que te exclui. É você próprio, primeiro, que ta excluindo da sociedade. Não é todo lugar que você sente bem de entrar. Você [acha] que os outros tá com medo de você. Ce acha que os outros tá com nojo de você e as vezes a pessoa nem tá .... Ai eu falei: tá vendo! Vale a pena usar droga? Na hora que tá só vocês dois, tudo bem, é outra pessoa vocês dois. Ces param com isso, entendeu? Então assim... eu mostro: olha o que vocês tão fazendo com a vida de vocês!

O apoio de profissionais e serviços da rede inter, intrassetorial e a utilização de espaços citados por alguns informantes e identificados como potencializadores para o cuidado - como os CAPS ad, os NASF, os Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) e as discussões de casos entre equipes matriciadoras - se fortalecem como necessários à realização de práticas efetivas e tecnologias relacionais sadias entre ACS e população adstrita. Além destas equipes matriciais, neste estudo os ACS frisam a importância dos enfermeiros das ESF e dos profissionais de NASF como essenciais aos cuidados de usuários de drogas.

Dentre os informantes, quatro citam que têm o apoio dos profissionais dos NASF do município para pensar as possibilidades de cuidado direcionadas a usuários de álcool e outras drogas. Isto, ao mesmo tempo em que legitima a importância deste dispositivo para a resolução dos casos mais complexos acompanhados pelos profissionais das ESF, também nos faz problematizar a formação dos profissionais de saúde que compõem os NASF que deveriam contribuir para uma percepção mais crítica e abrangente sobre a questão das drogas.

Cabe, entretanto, a resalva de que a implantação do dispositivo NASF no município é recente, datando de cerca de pouco mais de um ano, e que a baixa cobertura de ESF, bem como o grande número de pessoas sob responsabilidade de cada equipe prejudica a possibilidade de um apoio mais contínuo. Acreditamos que as possibilidades de trabalho dos profissionais do NASF no sentido de problematizar as vivências, realizar discussões de casos e auxiliar de forma mais contínua e qualificada o processo de formação dos profissionais das ESF pode estar sendo prejudicado pelos fatores acima descritos.

Chama também atenção a fala dos ACS do quanto o apoio do enfermeiro da ESF é imprescindível para direcionar o cuidado a este público-alvo. Todos os informantes citam o enfermeiro como uma referência neste cuidado. Algumas vezes criticam ou denunciam a falta de apoio deste profissional e outras ressaltam sua importância. Geralmente é ao enfermeiro que os casos são levados. Na prática diária são estes profissionais que dão aos ACS a acolhida imediata das angústias e direcionam os encaminhamentos com usuários e familiares de álcool e outras drogas.

Por outro lado, potencializar o cuidado e apoio dos profissionais da enfermagem aos demais integrantes das equipes de atenção primária passa também por rediscutir a função destes profissionais nas ESF. Vários estudos propõem analisar a capacidade real dos profissionais enfermeiros integrantes das equipes da estratégia saúde da família para desenvolver o ideal proposto para este dispositivo de APS. Silva, Motta e Zeitoune (201019. Silva V. G., Motta M. C. S., & Zeitoune R. C. G. (2010). A prática do enfermeiro na Estratégia Saúde da Família: o caso do município de Vitória/ES. Revista Eletrônica de Enfermagem, 12, 441-448. doihttp://dx.doi.org/10.5216/ree.v12i3.5278.
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), em estudo realizado em Vitória/ES, identificam que geralmente o tempo gasto com ações de promoção à saúde e prevenção de doenças pelos enfermeiros de ESF é significativamente menor do que o gasto com atividades gerenciais nas UBS’s e assistência curativa. Outras questões apontadas pelos autores são a quantidade de atribuições dos enfermeiros das ESF como dificultador para a realização das ações definidas para as ESF; a tendência produtivista dos profissionais e gestores de saúde que têm inviabilizado os momentos de reflexões sobre os processos de trabalho e situações de saúde da população e a defasagem das ações de educação permanente destes profissionais.

É importante observar que algumas limitações apontadas para o cuidado de usuários de álcool e outras drogas dizem respeito a um leque de limitações de todo contexto de implementação das políticas de saúde de forma geral (Mendes, 201211. Mendes E. V. (2012). O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde:o imperativo da consolidação da estratégia saúde da família. Brasília: Organização Pan-Americana de Saúde.). Neste sentido foram recorrentes as seguintes limitações: excesso de famílias sob responsabilidade dos ACS, dificuldade de comunicação entre os pontos de atenção, falta de outros recursos comunitários e sociais, burocratização do acesso a alguns dispositivos especializados, a falta de recursos materiais para o trabalho, dificuldades com transporte para ações da equipe, dificuldade com transporte de pacientes, trabalho de equipe fragmentado, estrutura física precária das UBS e territórios sem cobertura de NASF. Entretanto, isto não pode levar ao imobilismo das equipes gestoras e assistenciais de atenção primária e saúde mental, mas auxiliar na compreensão de toda a complexidade de problemas que envolve o fortalecimento das equipes de APS.

Redução de danos e as práticas direcionadas aos usuários de álcool e outras drogas

Apesar de um discurso quase unanime dos ACS de “o que eu poderia fazer com um usuário dessa forma [que não quer ou não consegue parar de fazer o uso de drogas] é a redução de danos” (ACS 6), o direcionamento das práticas demonstra que os cuidados ofertados pelos ACS a este público não se aproxima da abordagem de redução de danos na medida em que não respeita a liberdade de escolha, se pauta pelo proibicionismo e pelo ideal de abstinência, sendo estes princípios básicos da abordagem de redução de danos de acordo com Sodelli (201220. Sodelli M. (2012). A Abordagem de Redução de Danos Libertadora na Prevenção: Ações redutoras de Vulnerabilidade. In Silva E. A., & Micheli D. (Orgs.), Adolescência, uso e abuso de drogas:uma visão integrativa. São Paulo: FAP-UNIFESP.) e princípios éticos a serem observados e respeitados pelos profissionais de saúde, de acordo com Peyraube (201714. Peyraube R. (2017). Estigma de Las Personas que Usan Drogas. Cuidados de laSalud y Derechos Humanos En América Latina. In M. D. Vecchia (Org.), Drogas e Direitos Humanos:reflexões em tempos de guerra às drogas (pp. 29-51). Porto Alegre: Rede Unida.).

Dentre as possibilidades de ações desenvolvidas pelas ESF e citadas pelos ACS, verificamos algumas intervenções que, inicialmente, poderíamos considerar ações voltadas à estratégia de redução de danos, como “oferta de preservativo, visita domiciliar para estes usuários e ofertar cuidados para outras condições de saúde” (ACS 5). Entretanto, compartilhando com o entendimento de Sodelli (201220. Sodelli M. (2012). A Abordagem de Redução de Danos Libertadora na Prevenção: Ações redutoras de Vulnerabilidade. In Silva E. A., & Micheli D. (Orgs.), Adolescência, uso e abuso de drogas:uma visão integrativa. São Paulo: FAP-UNIFESP.), de que a estratégia de redução de danos deve basear-se na percepção de que o uso de drogas insere-se no contexto de vulnerabilidades e que o cuidar vai além de tarefas técnicas de profissionais, não foram identificadas efetivamente ações baseadas nos cuidados propostos pela abordagem de redução de danos.

Quando orientados pelo princípio da redução de danos que defendemos neste estudo, os profissionais da APS, amparados por outros dispositivos intra e intersetoriais, devem conseguir identificar as redes sociais encontrando e auxiliando no fortalecimento de fatores de proteção como a escola, família e amizades. No mais, se espera destes profissionais uma postura crítica na política compreendendo os macrocontextos que possibilitam o uso indevido de drogas: a miséria, que angaria jovens e crianças para o tráfico; o abandono afetivo; o incentivo à criação de necessidades de consumo próprio da sociedade capitalista; o individualismo e o estímulo a uma vida sempre mais frenética, competitiva e moderna (Sudbrack & Borges, 200221. Sudbrack M. F. O., & Borges J. S. (2002). Terapia de Redes Sociais. In S. D. Seibel (Org.), Dependência de Drogas . São Paulo: Atheneu .).

Vale ressaltar que durante os diálogos, os ACS citavam exemplos de usuários de drogas que fizeram ou fazem tratamentos e acompanhamentos de situações de saúde crônicas como tuberculose, hanseníase e outros, entretanto não relatam tal fato percebendo-o como um cuidado efetivo ou que contribua com a qualidade de vida das pessoas, uma vez que só é percebida como bem sucedida aquela intervenção que conseguir promover a interrupção do uso de drogas.

O que a gente tinha mais problema, ele se mudou, que é um que a gente dava... Ele morava até do lado do posto. Que foi um paciente que deu bastante trabalho pra gente porque era um paciente hipertenso, que não fazia uso de medicação e fazia muito uso de álcool. Ai a família dele se mudou e ele ficou sozinho morando praticamente na rua lá. Ficou num quartinho da igreja e não se alimentava... Uma coisa que a gente tinha que ficar em cima dele direto. Orientando sempre... Quando não... No começo quando eu não... Eu entrei pra trabalhar, ainda tinha lá na Colônia que internava, ele ficou internado lá umas duas ou três vezes pra desintoxicar e ele voltava. Ficou certo tempo sem beber. Também tinha epilepsia. Tem neh. Porque ele não faleceu ainda. ... Ele foi, internou. A gente orientou procurar. E..., mas, sucesso, sucesso, eu acho que não, porque pela notícia que a gente tem até hoje ele ainda faz o uso do álcool (ACS 6).

Quando questionados se haveria alguma ação desenvolvida pela equipe da ESF que os ACS acreditavam que ia ao encontro da estratégia de redução de danos, observamos que eles a associaram basicamente à ação de distribuição de seringas e preservativos. Esta perspectiva está relacionada com as primeiras experiências de redução de danos no Brasil que, de início, eram voltadas à redução do risco de transmissão de hepatites e Aids entre usuários de drogas injetáveis. Santos, Soares e Campos (201018. Santos V. E., Soares C. B., & Campos C. M. B. (2010). Redução de danos: análise das concepções que orientam as práticas no Brasil. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 20(3), 995-1015.https://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312010000300016
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) referem que a redução de danos tem sido difundida com excesso de pragmatismo, muitas vezes reproduzindo práticas técnicas sem embasamento teórico definido. Neste sentido, é necessário apresentar a redução de danos como uma diretriz de trabalho e não como uma ação com fim em si mesma, focada na distribuição de insumos.

Esta dificuldade prática em desenvolver o cuidado baseado na estratégia de redução de danos, essa percepção de que “pouco se pode fazer na realidade” (ACS 5) dá-se em função da perspectiva proibicionista adotada pelos ACS, uma vez que consideram que as drogas são essencialmente imorais. Assim, a dificuldade relatada tem a ver com a meta estabelecida de abstinência total, com a percepção moralizante sobre o uso de drogas, sua associação ao crime e o foco na possibilidade de se extinguir o uso de drogas das sociedades, questões bastante reforçadas na mídia e no senso comum.

Discussão e análise dos dados

O diálogo com os ACS demonstrou a prevalência da compreensão negativa sobre drogas e a extensão deste entendimento aos usuários. Esta percepção moral sobre o uso de substâncias psicoativas como crime e erro, segue o modelo de “Guerra às Drogas” e reflete também a condução da política de drogas brasileira (Rodrigues, 200816. Rodrigues T. (2008). Tráfico, Guerra, Proibição. In H. Carneiro (Org.), Drogas e Cultura: novas perspectivas (pp. 91-204). Salvador: Edufba .).

Outra implicação da percepção das drogas como substâncias malignas a priori, é que tal fato prejudica a identificação das relações que os indivíduos estabelecem com as substâncias e os padrões de uso (Rodrigues, 200816. Rodrigues T. (2008). Tráfico, Guerra, Proibição. In H. Carneiro (Org.), Drogas e Cultura: novas perspectivas (pp. 91-204). Salvador: Edufba .). Este pode ser um fator que auxilia na explicação sobre a resistência que os profissionais da APS apresentam para implementar no dia a dia de seu trabalho os vários recursos disponíveis e eficientes para abordar e tratar pessoas com problemas com drogas. Estes recursos incluem instrumentos de triagem simples, medicações eficazes e técnicas adequadas capazes de modificar de forma decisiva os padrões de uso de substâncias. De posse destes recursos, os serviços da atenção primária poderiam contribuir com alta resolutividade para minimizar os problemas com drogas na direção da saúde e da reinserção social (Costa, Mota, Paiva, & Ronzani, 20158. Costa P. H. A., Mota D. C. B., Paiva F. S., & Ronzani T. M. (2015). Desatando a trama das redes assistenciais sobre drogas: uma revisão narrativa da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, 20(2), 395-406.https://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015202.20682013
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). Entretanto, é necessário, antes, conseguir problematizar a concepção que os profissionais possuem sobre o uso de drogas nos diversos contextos.

A despeito da concepção moralizante observada no contexto deste estudo, vários processos de formação, como o projeto Caminhos do Cuidado e os cursos ofertados pela Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad), possuem em sua estrutura a direção no sentido de provocar a reflexão sobre atitudes, crenças e sentimentos sobre o uso e o usuário de drogas. Entretanto, conforme Costa et al. (20158. Costa P. H. A., Mota D. C. B., Paiva F. S., & Ronzani T. M. (2015). Desatando a trama das redes assistenciais sobre drogas: uma revisão narrativa da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, 20(2), 395-406.https://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015202.20682013
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), a formulação de um conceito ou pensamento pelo sujeito dá-se não só pela formação, mas também a partir de sua vivência física, moral, espiritual e psicológica. Os autores ponderam que o olhar dos profissionais de saúde sobre o uso de drogas não está descolado do restante da sociedade, pelo contrário, se insere nele, como parte de um processo sócio-histórico e atravessado pelos valores societários vigentes.

Considerando que as unidades básicas de saúde (UBS) são as instituições mais próximas, ou em alguns casos as únicas, a que as pessoas podem recorrer quando vivenciam o uso problemático de drogas, o despreparo ou as abordagens moralizantes e estigmatizantes encontradas neste estudo ou mesmo a reprodução do senso comum podem reforçar a exclusão e a inaptidão social sendo, muitas vezes, mais prejudiciais do que o próprio uso de substâncias, conforme alertam Ronzani et al. (201417. Ronzani T. M., Noto A. R., & Silveira P. S. (2014). Reduzindo o estigma entre usuários de drogas:guia para profissionais e gestores. Juiz de Fora, MG: UFJF.) e Peyraube (201714. Peyraube R. (2017). Estigma de Las Personas que Usan Drogas. Cuidados de laSalud y Derechos Humanos En América Latina. In M. D. Vecchia (Org.), Drogas e Direitos Humanos:reflexões em tempos de guerra às drogas (pp. 29-51). Porto Alegre: Rede Unida.).

Considerando a relevância dada pelos ACS aos profissionais de enfermagem das ESF, cremos que investir na capacitação destes profissionais e apoiá-los para uma prática mais confiante, menos estigmatizante e baseada em evidências é primordial para um cuidado efetivo de usuários de álcool e outras drogas no contexto da APS, devendo ser uma constante nos investimentos e rumos das políticas de saúde mental em nível federal, estadual e municipal.

Compartilhamos o entendimento de Costa et al. (20158. Costa P. H. A., Mota D. C. B., Paiva F. S., & Ronzani T. M. (2015). Desatando a trama das redes assistenciais sobre drogas: uma revisão narrativa da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, 20(2), 395-406.https://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015202.20682013
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) de que o cuidado de usuários de álcool e outras drogas requer tempo para a escuta, o vínculo, a corresponsabilização e exige alto nível de integração entre os profissionais das equipes de atenção. Exige também disposição, treino de habilidades para alternativas inovadoras de cuidado, capacidade técnica e gerencial, além de um comprometimento político com a qualidade das políticas públicas.

Tais considerações são feitas não em busca de encontrar outro lugar de cuidado para usuários de álcool e outras drogas, mas para fortalecer a necessidade de maiores investimentos na atenção primária, de reafirmação da necessidade de rediscutir a formação voltada para a integralidade com foco na saúde coletiva e reafirmar a necessidade de capacitação para estes profissionais. Urge ainda reconhecer o imperativo da ampliação das equipes que devem apoiar estes cuidados primando por relações de trabalho sadias, tão importantes no processo de cuidar.

Quanto à abordagem de redução de danos, esta considera que as pessoas podem estabelecer diversas relações com as drogas podendo variar desde o uso recreacional, nocivo e compulsivo. Ações voltadas à prática de redução de danos consideram o indivíduo como o centro do tratamento e neste sentido é a construção do vínculo e a escuta que possibilitará avaliar o lugar que cada substância ocupa na vida das pessoas, que motivações veem para o uso, para a redução ou interrupção deste uso, se necessário (Sodelli, 201220. Sodelli M. (2012). A Abordagem de Redução de Danos Libertadora na Prevenção: Ações redutoras de Vulnerabilidade. In Silva E. A., & Micheli D. (Orgs.), Adolescência, uso e abuso de drogas:uma visão integrativa. São Paulo: FAP-UNIFESP.). Somente a partir desta direção entendemos ser possível a construção dos projetos terapêuticos singulares necessários aos cuidados daqueles que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas.

Este estudo demonstra que o foco dos ACS é a abstinência. Sendo esta a meta, não podemos falar de ações baseadas nas propostas de redução de danos libertadoras (Sodelli, 201220. Sodelli M. (2012). A Abordagem de Redução de Danos Libertadora na Prevenção: Ações redutoras de Vulnerabilidade. In Silva E. A., & Micheli D. (Orgs.), Adolescência, uso e abuso de drogas:uma visão integrativa. São Paulo: FAP-UNIFESP.) no sentido de produzir sujeitos mais autônomos e apostar nas possibilidades que o vínculo entre profissional e usuário pode provocar e nas ações que abordam o uso nocivo de drogas sem ter como foco a necessidade de interromper este uso.

Considerações finais

Os dados deste estudo reforçam que, para haver resolutividade no espaço da APS em direção ao cuidado de usuários de álcool e outras drogas, é necessária uma rede em saúde e intersetorial articulada, que considere os determinantes sociais e toda complexidade de questões individuais e sociais que abarca o uso de drogas. Um nível de atenção isolado ou desarticulado não conseguirá atingir sequer sua função nesta rede. Daí, a importância da utilização da ferramenta de matriciamento, de abarcar outros setores estratégicos como a segurança, a educação e outros dispositivos comunitários.

Entretanto o cuidado direcionado a usuários de álcool e outras drogas que acreditamos depende também da capacidade de o Estado liderar e coordenar uma política sobre drogas baseada em evidências, que supere o poder de decisão de atores privados e externos com interesses de perpetuar a situação de exclusão ou de se privilegiar financeiramente das vulnerabilidades de determinados grupos (Bello, 20152. Bello, L. A. (2015). Desafios da transferência da evidência científica para o desenho e implementação de políticas sobre o uso de substâncias psicoativas. In T. M. Ronzani, P. H. A. Costa, D. C. B. Mota, & T. J. Laport (Orgs.), Redes de atenção aos usuários de drogas:políticas e práticas (pp.17-39). São Paulo: Cortez.).

O projeto Caminhos do Cuidado, pela sua metodologia de pensar ações a partir das necessidades cotidianas dos atores da APS e por ser um dos mais ambiciosos processos de formação em termos numéricos, merece destaque e novos estudos sobre seus impactos. No mais, é preciso investigar seus desdobramentos em outros contextos e em nível nacional. De momento, cremos que propiciou espaços de reflexão sobre o tema do uso de drogas de maneira reflexiva nos serviços de saúde, uma vez que este é um assunto que continua a melindrar pelo setor. Entretanto, com relação aos achados deste estudo, nos direcionam para que sejam pensados processos de formação contínuos, envolvendo a amplitude dos profissionais de saúde e que não tenham fins em si mesmos.

Por fim, acreditamos que são necessários programas de educação permanente voltados aos profissionais de saúde que se debrucem sobre as bases teóricas da redução de danos de forma a ampliar sua capacidade de direcionar os cuidados de usuários de álcool e outras drogas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2017
  • Aceito
    12 Fev 2018
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