Resumos
O estudo empírico descrito neste artigo focalizou as transformações que ocorrem no discurso pedagógico em relação ao nível conceitual do conhecimento e visou ampliar a compreensão do processo de constituição do conhecimento escolar. Foi conduzido em uma escola da rede pública estadual, no município de Valinhos, Estado de São Paulo, e as fontes de pesquisa foram os Parâmetros Curriculares Nacionais de Ciências Naturais, um livro didático e as aulas de uma professora da 8ª série do ensino fundamental. Adotaram-se os procedimentos de análise documental e observação de aulas, e a principal referência teórico-metodológica foi a teoria de Basil Bernstein. A metodologia mista de investigação adotada nesta pesquisa mostrou-se interessante por permitir que uma abordagem quantitativa demarcasse um espaço de reflexão sobre os aspectos qualitativos envolvidos na análise do processo de recontextualização. Os resultados flagraram o processo de recontextualização e revelaram que, ao longo desse processo, ocorreu um empobrecimento do nível de exigência conceitual. Isso se deu - dentro dos limites desta investigação - por meio de perdas no que se refere à intradisciplinaridade, à complexidade das competências científicas e à complexidade dos conteúdos científicos mobilizados no processo de ensino/aprendizagem. Identificados os pontos nos quais ficou mais evidente a tendência às perdas no nível de exigência conceitual do conhecimento escolar, ressaltam-se elementos que podem trazer alguma contribuição para os processos de produção e implantação de políticas educacionais, bem como de produção de materiais didáticos e de formação dos professores.
Conhecimento escolar; Recontextualização; Exigência conceitual
The empirical study described in this article has focused on the transformations that occur in the pedagogical discourse in relation to the level of conceptual knowledge and it has aimed at extending the understanding of the process of constitution of school knowledge. The study was conducted in a public state school in the municipality of Valinhos, in São Paulo state, and its research sources were the National Curriculum Parameters of Natural Sciences, a textbook and the classes of an 8th grade teacher. I adopted the procedures of document analysis and classroom observation, and the main theoretical-methodological reference was the theory of Basil Bernstein. The mixed research methodology adopted in this research proved to be interesting because it allowed a quantitative approach to demarcate space for reflection on the qualitative aspects involved in the analysis of the process of recontextualization. The results seized the process of recontextualization and revealed that, throughout this process, there was an impoverishment of the level of conceptual demand. This took place - within the limits of this investigation - through losses in relation to intradisciplinarity, to the complexity of scientific competences and the complexity of the scientific content used in the teaching / learning process. After identifying the points at which the trend of losses in the level of conceptual demand of school knowledge was the most evident, I emphasize elements that can bring some contribution to the processes of production and implementation of educational policies, as well as of production of teaching materials and of teacher training.
School knowledge; Recontextualization - Conceptual demand
ARTIGOS
A recontextualização e o nível de exigência conceitual do conhecimento escolar
Claúdia V. Galian
Universidade de São Paulo
Correspondência Correspondência: Glaúdia V. Galian Av. da Universidade, 308 05508-040 - São Paulo/SP claudiavalentina@usp.br
RESUMO
O estudo empírico descrito neste artigo focalizou as transformações que ocorrem no discurso pedagógico em relação ao nível conceitual do conhecimento e visou ampliar a compreensão do processo de constituição do conhecimento escolar. Foi conduzido em uma escola da rede pública estadual, no município de Valinhos, Estado de São Paulo, e as fontes de pesquisa foram os Parâmetros Curriculares Nacionais de Ciências Naturais, um livro didático e as aulas de uma professora da 8ª série do ensino fundamental. Adotaram-se os procedimentos de análise documental e observação de aulas, e a principal referência teórico-metodológica foi a teoria de Basil Bernstein. A metodologia mista de investigação adotada nesta pesquisa mostrou-se interessante por permitir que uma abordagem quantitativa demarcasse um espaço de reflexão sobre os aspectos qualitativos envolvidos na análise do processo de recontextualização. Os resultados flagraram o processo de recontextualização e revelaram que, ao longo desse processo, ocorreu um empobrecimento do nível de exigência conceitual. Isso se deu - dentro dos limites desta investigação - por meio de perdas no que se refere à intradisciplinaridade, à complexidade das competências científicas e à complexidade dos conteúdos científicos mobilizados no processo de ensino/aprendizagem. Identificados os pontos nos quais ficou mais evidente a tendência às perdas no nível de exigência conceitual do conhecimento escolar, ressaltam-se elementos que podem trazer alguma contribuição para os processos de produção e implantação de políticas educacionais, bem como de produção de materiais didáticos e de formação dos professores.
Palavras-chave: Conhecimento escolar - Recontextualização - Exigência conceitual.
Este artigo apresenta e discute o resultado de uma pesquisa que teve como tema o conhecimento escolar, entendido como o resultado da transformação do conhecimento oriundo de seu campo de produção quando de sua inserção nas condições escolares, notadamente as que se referem ao tempo, ao espaço e à forma de lidar com os saberes.
Desde as leituras iniciais realizadas no contexto de tal investigação, evidenciou-se que refletir sobre a relevância do conhecimento escolar para a formação dos alunos gera muitos questionamentos. Mas, diante de qualquer dessas questões, permanece a certeza de que receber das gerações mais antigas as indicações do que já foi constituído em termos de conhecimento é um direito inalienável das crianças e dos jovens. E também de que à escola cabe transmitir uma seleção desse saber que deveria permitir o uso, a compreensão e o questionamento das informações e dos instrumentos disponíveis na sociedade. Deixar de cumprir essa função social esvazia a escola de seu sentido maior, como indica Maria das Mercês Sampaio (1998):
a escola pública faz sentido à medida que consiga realizar seu trabalho específico, de conhecimento e de ampliação de horizontes, de compreensão do mundo. (p. 22)
Diversas pesquisas indicam que os jovens apontam para a crença no poder da educação escolarizada como instrumento de transformação positiva de suas condições de vida (GIOVINAZZO JR., 1999, 2003; MECONI, 2004; OLIVEIRA, 2001; SOUZA, 2003). Mas, para além das possíveis convicções desses jovens em relação à escolarização, o que é oferecido aos alunos submetidos a esse processo? De que forma o conhecimento tem sido tratado nos documentos oficiais, nos materiais utilizados por professores e alunos e nas salas de aula? Com que nível de complexidade tais conhecimentos têm sido abordados nessas instâncias?
Foi no âmbito dessas questões que se inseriu a presente investigação, focalizando-as do ponto de vista do ensino da disciplina de ciências e admitindo-se que esse conhecimento deve garantir ao aluno o domínio de instrumentos, habilidades de pensamento e conceitos que lhe permitam conhecer o mundo que o cerca - em seus aspectos naturais e nas múltiplas intervenções humanas sobre ele - para entender, questionar e marcar sua posição diante do discurso do poder embutido nas práticas sociais em que está inserido, movendo-se na direção de uma sociedade mais justa. Nessa perspectiva, buscaram-se indícios do que se disponibiliza aos alunos para a aprendizagem da disciplina em questão, no que se refere ao nível conceitual com que é tratado o conhecimento científico.
A pesquisa teve como principal referência teórico-metodológica a teoria de Basil Bernstein e incidiu sobre o processo de recontextualização do conhecimento científico para fins de transmissão escolar.
A concepção do autor sobre o papel da teoria na leitura do empírico justificou a escolha por tomá-lo como referência teórica e metodológica para esta pesquisa. Sua compreensão dos mecanismos de produção, reprodução e transformação culturais e da relação teoria/empiria hoje se perpetua nos estudos de diversos grupos de investigação, notadamente nos trabalhos do Grupo de Estudos Sociológicos de Sala de Aula (ESSA), vinculado ao Centro de Investigação em Educação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
Os estudos relacionados ao ensino e à aprendizagem de ciências desenvolvidos por esse grupo analisam, entre outros temas, textos curriculares (programas e manuais escolares), práticas pedagógicas e relações entre discursos, sujeitos e espaços, sob um enfoque teórico-metodológico ligado à teoria de Bernstein.
Pela centralidade desses estudos nas escolhas metodológicas realizadas na pesquisa que ora se apresenta, traz-se um exemplo de investigação conduzida pelo Grupo ESSA com o objetivo de encontrar características mais favoráveis à aquisição de conhecimento científico e competências investigativas por alunos de diferentes origens sociais. Ana Maria Morais, Isabel Neves e Delmina Pires (2004) analisaram a prática pedagógica do professor e a aquisição científica das crianças, focando a interação entre a origem social destas, a prática pedagógica e a aprendizagem científica, e tendo o nível atingido pelas crianças nas competências cognitivas complexas1 1 - Dentre as competências cognitivas complexas, destacam-se, por exemplo, a análise e a síntese. como medida de aquisição.
A análise da prática das professoras foi realizada em termos das relações entre sujeitos (professor/alunos), discursos (intradisciplinaridade, interdisciplinaridade e conhecimento acadêmico/não-acadêmico) e espaços (espaço do professor/espaço dos alunos).
As pesquisadoras ressaltam, a partir de sua análise, que os resultados indicam que uma prática altamente favorável à aprendizagem das crianças de origens sociais diferentes deve mesclar características como: fracas fronteiras entre espaços do professor e dos alunos; relações comunicativas abertas entre professor-alunos e alunos-alunos; critérios de avaliação explícitos; fraco compassamento2 2 - O compassamento refere-se à utilização do tempo no processo de ensino-aprendizagem. Um fraco compassamento da aprendizagem significa uma administração mais flexível do tempo nas aulas, visando respeitar os diferentes tempos de aprendizagem dos alunos. da aprendizagem; fortes relações intradisciplinares; alto nível de exigência conceitual e alto nível de proficiência investigativa.
Elas destacam ainda, com base nesse e em outros estudos do Grupo ESSA, de forma bastante sugestiva para o contexto em que se inseriu a pesquisa a que se refere este artigo:
Não é necessário baixar o nível de exigência conceitual para todas as crianças terem sucesso na escola. Aumentar o nível da exigência conceitual é, inclusive, um passo crucial no sentido de que todos devem ter acesso a um nível maior de literacia científica valorizada tanto pela comunidade científica quanto pela sociedade em geral. (p. 14)
Indicado o contexto teórico que norteou as escolhas metodológicas e as análises das informações obtidas, e trazidas algumas indicações de reflexões estabelecidas por pesquisadores que circulam no mesmo contexto de investigação, é possível localizar a preocupação central da pesquisa apresentada neste artigo: a recontextualização, ou seja, as transformações que ocorrem no discurso pedagógico oficial no decorrer do processo de produção de livros didáticos e na prática docente, especialmente no que se refere ao nível conceitual do conhecimento escolar de ciências.
Dentro de tal enfoque, apresenta-se a pergunta central que norteou este estudo: que transformação ocorre com o discurso pedagógico oficial (DPO), do ponto de vista do nível conceitual de conhecimentos e competências e das relações entre discursos, no seu deslocamento entre os campos da recontextualização e da transmissão?
A análise dos dados incidiu sobre três instâncias de recontextualização: (1) os Parâmetros Curriculares Nacionais de Ciências Naturais (PCN/CN) para o quarto ciclo do ensino fundamental, representando aqui a expressão do DPO; (2) o livro didático distribuído à escola pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD/2005), fruto da recontextualização do DPO realizada pelas editoras e pelos autores desses materiais, no campo recontextualizador pedagógico; e (3) a prática docente de uma professora de ciências desenvolvida junto a uma turma de 8a série do ensino fundamental, que evidencia o contexto da transmissão, no campo da reprodução do discurso pedagógico. Os procedimentos de pesquisa adotados foram a análise documental e a observação de aulas.
A pesquisa foi realizada em uma escola da rede pública estadual do município de Valinhos, Estado de São Paulo, e as três fontes foram analisadas segundo uma metodologia que se baseou nos procedimentos e nos instrumentos criados e aplicados por diferentes autores ligados ao Grupo ESSA. As respostas às questões colocadas por este estudo pretenderam possibilitar uma melhor compreensão do processo de constituição do conhecimento escolar de ciências, bem como trazer alguma contribuição para a discussão acerca dos determinantes sociológicos que podem estar atuando no sentido de enriquecer ou enfraquecer a relação de alunos e professores com tal conhecimento. Diante desse objetivo de pesquisa e da preocupação central anunciada acima, e com base no referencial teórico adotado, derivaram duas hipóteses norteadoras da investigação: (1) de que seria possível flagrar e explicitar o processo de recontextualização do conhecimento escolar de ciências e (2) de que esse processo evidenciaria uma tendência ao rebaixamento do nível de exigência conceitual.
Neste estudo, fez-se a opção pela adoção de uma metodologia mista de pesquisa, compreendendo que as formas de investigação quantitativa e qualitativa não são incompatíveis e podem ser utilizadas complementarmente conforme a natureza das questões de investigação, de modo a permitir análises aprofundadas.
Assim, a orientação metodológica assumiu caráter quantitativo ao tomar por base, para a construção de modelos e para a análise dos dados, indicadores numéricos e cálculos, segundo o quadro teórico escolhido. Por outro lado, seguiu uma linha qualitativa ao lidar com indicadores e descritores, além dos dados obtidos na observação direta dos contextos em estudo, buscando seu significado e as relações entre eles.
O processo de levantamento de informações assumiu caráter quantitativo na organização e operacionalização dos aspectos levantados no exame documental e na observação da prática; assumiu, ainda, um caráter qualitativo durante todo o processo, desde a seleção dos aspectos a serem investigados.
O tratamento dos dados também assumiu esse duplo caráter: tratamento quantitativo e análise interpretativa do conteúdo dos documentos e das aulas observadas.
Questões teóricas centrais
No sentido de discutir alguns dos conceitos da teoria de Bernstein que permitam compreender o caminho adotado nesta pesquisa - tanto no que se refere aos procedimentos de pesquisa quanto à análise dos dados -, é necessário apresentar inicialmente o conceito de dispositivo pedagógico desenvolvido por esse autor. Tal dispositivo consiste de um conjunto de regras que regulam internamente a comunicação pedagógica e incidem sobre uma série de significados passíveis de serem transmitidos pela escola.
Para realizar a seleção de quais significados serão trazidos para o currículo escolar - e de que forma eles serão tratados -, as regras do dispositivo pedagógico contam com relativa estabilidade e expressam as posições dominantes na arena de disputa pela hegemonia em determinado grupo social. Assim, o dispositivo pedagógico não é ideologicamente neutro e a relativa estabilidade de suas regras deve-se à ligação que mantém com a distribuição do poder e das formas de manutenção da ordem social.
O dispositivo pedagógico proporciona a gramática intrínseca da comunicação pedagógica. Ele consiste no meio pelo qual se relacionam poder, conhecimento e consciência, ou seja, é uma atividade moral fundamental e atua por meio de três conjuntos de regras relacionadas entre si: as regras distributivas, cuja função é regular as relações entre o poder, os grupos sociais, as formas de consciência e a prática; as regras recontextualizadoras, que regulam a formação do discurso pedagógico específico; e as regras de avaliação, que estabelecem os critérios para a prática (BERNSTEIN, 1998).
As regras distributivas distinguem duas classes de conhecimento: o pensável, que trata do conhecimento já produzido pelo homem, e o impensável, aquilo que ainda está para ser elaborado em termos de conhecimento. A primeira dessas classes refere-se ao conhecimento de que já se dispõe para explicar os fenômenos. A segunda diz respeito aos significados criados para explicar aquilo que não encontra sentido diretamente nas práticas, envolvendo produção de novos conhecimentos.
O que as regras distributivas definem, para o autor, é quais ordens de significados serão acessíveis a quais grupos sociais. Elas atuam na definição de quem terá acesso a essas duas classes de conhecimento.
O espaço para o impensável representa o espaço de busca por outros significados, para além do que já se dispõe como explicação para as práticas e para os fenômenos do mundo. Em última instância, representa o espaço para o questionamento da própria ordem social vigente. Daí a necessidade de controle do acesso a tal espaço.
Bernstein (1996) ressalta que
o dispositivo pedagógico representa tanto o controle sobre o 'impensável' quanto o controle sobre aqueles que podem pensá-lo [por meio das regras distributivas]. (p. 257)
As regras de avaliação tratam da transformação do discurso pedagógico em prática pedagógica, por meio da especialização do tempo, do espaço e do texto produzido, unidos em relação especial (BERNSTEIN, 1998). É um princípio de ordenamento do discurso pedagógico que se dá pela definição de um tempo e de um espaço específicos, que gerarão determinado texto. As práticas pedagógicas constituem, inter-relacionam e regulam as possibilidades de dois princípios de comunicação que definem o que o autor denomina como forma do contexto comunicativo.
As regras de recontextualização referem-se a um conceito central para a compreensão da pesquisa apresentada neste artigo: o processo de recontextualização. Nesse processo, é produzido um conjunto de significados relacionados à ciência que tratam de um conhecimento que, em seu local de produção, nas universidades e centros de pesquisa, por exemplo, é autoexplicativo, mas que, ao ser tratado na escola, terá de ser mediado para fins de transmissão. Tal mediação, realizada pelo dispositivo pedagógico, produz um vazio discursivo potencial, um espaço para a criação de significados. Assim, uma parte do conhecimento científico é submetida às condições escolares de transmissão. Nesse processo de adequação, o conhecimento científico modifica-se, de tal sorte que o discurso pedagógico de ciências não se confunde com o discurso científico (BERNSTEIN, 1996).
No processo de recontextualização, o texto (por exemplo, científico), desde o campo de produção do conhecimento, sofre inúmeras transformações até que esteja pronto para o uso por alunos e professores na sala de aula.
O conceito de discurso pedagógico também é relevante para compreender a investigação apresentada. Trata-se de um princípio de inserção de um discurso instrucional (DI), de habilidades específicas, em um discurso regulador - ou regulativo - (DR), de ordem moral, que é dominante sobre o primeiro. Segundo Bernstein (1996),
o discurso instrucional diz respeito à transmissão/aquisição de competências específicas e o discurso regulativo à transmissão de princípios de ordem, relação e identidade. (p. 297)
Cumpre destacar que o discurso pedagógico diz respeito a um quê e a um como da prática pedagógica. Assim, no contexto de ensino-aprendizagem, o quê refere-se aos conceitos e competências desenvolvidos na prática pedagógica e o como refere-se às relações entre discursos que se estabelecem nessa prática (relações entre conhecimentos relativos à disciplina em estudo - intradisciplinaridade -, relação entre conhecimentos acadêmicos e não-acadêmicos e relação entre discursos de diferentes disciplinas - interdisciplinaridade), às relações entre sujeitos (professor/alunos e alunos/alunos) e às relações entre espaços (espaço do professor/alunos e espaço aluno/aluno).
Apresentados os conceitos de dispositivo pedagógico - com seus conjuntos de regras -, de recontextualização e de discurso pedagógico, outros dois conceitos absolutamente centrais na teoria de Bernstein devem ser destacados: a classificação e o enquadramento, que se referem, respectivamente, à configuração das relações de poder e de controle expressas nas relações de comunicação.
Para uma primeira aproximação a esses conceitos, pode-se indicar que, no caso da comunicação pedagógica, a classificação se expressa, por exemplo, no grau de manutenção das fronteiras entre as disciplinas. Quanto maior o distanciamento entre elas, quanto maior o esforço por manter tal separação, mais forte é a classificação. Quanto mais essas fronteiras se esbatem, mais fraca é a classificação. Já o enquadramento se expressa, por exemplo, na forma que assumem as relações professor/aluno. Quanto mais o controle se concentra nas mãos do professor - por exemplo, em relação à seleção dos temas a serem abordados ou à sequência com que serão trabalhados -, mais forte é o enquadramento. Na medida em que esse controle passa a ser exercido também pelos alunos, o enquadramento enfraquece.
Aspectos metodológicos
O que se pretendeu evidenciar foi o resultado do processo de recontextualização que incide sobre o conhecimento científico selecionado para a transmissão escolar. Assim, uma das características pedagógicas que se pretendeu focalizar foi (1) a exigência conceitual com que são tratados os conhecimentos e as competências científicas nos PCN/CN, no livro didático e na prática docente. Para esta análise, considerou-se a complexidade de conteúdos e competências e o grau de intradisciplinaridade com que o conhecimento científico é tratado. Tal abordagem permitiu buscar indícios da transformação ocorrida nessas instâncias de recontextualização no que se refere especialmente ao componente instrucional do discurso pedagógico (ao quê do discurso pedagógico).
Outra via de recontextualização considerada neste estudo foram (2) as relações entre discursos, especificamente entre discursos dentro da disciplina, e entre o conhecimento acadêmico e não-acadêmico, mais uma vez nas três instâncias (PCN/CN, livro didático e prática docente). Nesse caso, a investigação incidiu sobre o como do discurso pedagógico.
No micronível da sala de aula, considerou-se mais um aspecto referente ao como do discurso pedagógico: (3) a relação entre sujeitos, especificamente entre professor e alunos, que se expressa na comunicação pedagógica. Tal análise incidiu apenas nessa instância de recontextualização e visou identificar em que medida a modalidade de prática pedagógica poderia potencializar ou limitar o nível de exigência conceitual, a intradisciplinaridade e o estabelecimento de relações entre conhecimentos acadêmicos e não-acadêmicos no tratamento do conhecimento escolar de ciências.
A figura 1 permite identificar as três instâncias de recontextualização e as características pedagógicas escolhidas para buscar as respostas às questões relativas ao nível conceitual do conhecimento escolar de ciências:
Clique para ampliar
A análise proposta neste estudo incidiu sobre o segundo e o terceiro níveis do modelo do discurso pedagógico desenvolvido por Bernstein3 3 - Ver modelo do discurso pedagógico adaptado por Morais e Neves (2003). - os níveis da recontextualização e da transmissão. De forma a evidenciar o nível conceitual com que o conhecimento escolar de ciências é tratado nas três instâncias de recontextualização, alguns dos aspectos ligados ao quê e ao como do discurso pedagógico foram escolhidos a fim de cumprir os propósitos assumidos. A figura 2 indica os aspectos selecionados para a análise do discurso pedagógico (DP) nas bases propostas neste estudo:
Clique para ampliar
Para realizar a investigação, foram extraídas 15 unidades de análise (UA)4 4 - As unidades de análise (UA) consistem em um ou mais períodos que têm um determinado significado semântico. de cada instância de recontextualização. No presente artigo, optou-se por explicitar o tratamento dado à questão referente ao nível de exigência conceitual; portanto, ainda que diretamente relacionada a esse ponto, não será detalhada a abordagem realizada em torno das relações entre sujeitos (indicada pelo número 3 na figura 1).
A seguir são apresentadas algumas UA extraídas de cada uma das instâncias de recontextualização e sobre as quais se realizou a análise. Nestas e nas demais UA, buscaram-se as características pedagógicas apontadas na figura 2 (grau de estabelecimento de relações intradisciplinares, complexidade dos conteúdos científicos e complexidade das competências científicas) e, em seguida, calculou-se o nível de exigência conceitual com que o conhecimento é tratado nas diferentes instâncias.
Unidade de análise n˚ 7 (PCN)
Estabelecimento de relações entre os fenômenos da fotossíntese, da respiração celular e da combustão para explicar os ciclos do carbono e do oxigênio de forma integrada ao fluxo unidirecional de energia do planeta.
Unidade de análise n˚ 14 (aulas)
Como funciona a centrífuga na máquina de lavar? O que seria sólido? A roupa. Ela acelera o processo de separação.
Unidade de análise n˚ 7 (livro didático)
Quando várias substâncias estão juntas, o conjunto recebe o nome de mistura. Por exemplo, quando você adiciona uma colher de açúcar (substância pura) a um copo com água (substância pura), obtém uma mistura.
O cálculo do nível de exigência conceitual
Um elevado grau de estabelecimento de relações entre conteúdos da disciplina estudada, associado à mobilização de conteúdos e competências científicas mais complexas, constitui um tratamento do conhecimento num elevado nível de exigência conceitual. No que se refere à intradisciplinaridade, isso se justifica porque o estabelecimento de relações entre os conteúdos da mesma disciplina favorece a constituição de uma visão integradora do conhecimento científico. Tal visão reflete a natureza organizacional do conhecimento científico, o qual, segundo Bernstein, é caracterizado por um discurso vertical, com uma estrutura hierárquica orientada no sentido de integrar proposições para operar em níveis de abstração crescentes (MORAIS; NEVES, 2007). Por outro lado, a abordagem de conteúdos e competências científicas mais complexas permite que paulatinamente se adquira uma visão mais ampla e aprofundada da ciência.
Cumpre destacar que o cálculo do nível de exigência conceitual, de acordo com os estudos do Grupo ESSA5 5 - O procedimento para o cálculo do índice compósito que expressa numericamente o nível de exigência conceitual dos materiais analisados encontra-se em diversos estudos do Grupo ESSA, por exemplo, em Calado (2007). , não leva em conta o estabelecimento de relações entre conhecimentos acadêmicos e não-acadêmicos. Entretanto, nesta pesquisa, considerou-se que tal característica pedagógica também influencia no nível de exigência conceitual com que o conhecimento é tratado na escola. A relevância do estabelecimento de relações entre o conhecimento acadêmico e o não-acadêmico para o nível conceitual em que o conhecimento será tratado na escola reside no fato de, sob esse enfoque, tratar -se o conhecimento tendo como ponto de partida o que o aluno sabe acerca dos fenômenos estudados e, a partir daí, avançar para conhecimentos e competências mais complexos. Nesse caso, os conhecimentos que os alunos portam serviriam como um meio para atingir maior nível conceitual, garantindo uma aprendizagem significativa. Mas essas relações também podem significar avançar muito pouco ou quase nada a partir do que o aluno já sabe, se, no equilíbrio entre conhecimento acadêmico/não-acadêmico, o último adquirir mais importância do que o primeiro, ou se o conhecimento acadêmico servir apenas como instrumento para melhorar a compreensão do conhecimento não-acadêmico.
Verificar como a relação entre conhecimento acadêmico e não-acadêmico é abordada nos documentos oficiais, nos livros didáticos e, especialmente, na prática docente pode lançar alguma luz sobre o que se propõe e o que se efetiva na sala de aula nesse sentido. Assim, na pesquisa ora apresentada, para a análise da relação entre conhecimento acadêmico e não-acadêmico considerou-se o grau de manutenção da fronteira entre eles, assumindo o maior estatuto, no contexto educacional, do conhecimento acadêmico.
Para efetuar o cálculo do nível de exigência conceitual, foram considerados os graus de complexidade das competências e dos conteúdos científicos e o grau de intradisciplinaridade para as UA extraídas das três instâncias de recontextualização a fim de calcular os índices parciais para cada um desses aspectos.
Os graus de intradisciplinaridade, complexidade das competências científicas e complexidade dos conteúdos científicos foram convertidos em valores numéricos. Ressalta-se que o menor valor numérico foi atribuído às classificações muito fortes porque elas significam, do ponto de vista da intradisciplinaridade, o não estabelecimento de relações entre os conteúdos da disciplina, o que se associa à abordagem de conceitos mais simples no que se refere à complexidade dos conteúdos científicos e à mobilização de competências científicas que exigem baixo nível de abstração. O valor numérico mais alto foi atribuído às classificações muito fracas, pois elas significam, do ponto de vista da intradisciplinaridade, o estabelecimento de relações entre conteúdos, e expressam, no que se refere à complexidade dos conteúdos científicos, a abordagem de conceitos complexos e, no tocante à complexidade das competências científicas, a mobilização de competências mais elaboradas. Assim, a cada UA foi atribuído um valor numérico de acordo com o grau de intradisciplinaridade, a complexidade dos conteúdos científicos e a complexidade das competências científicas; a partir disso, calcularam-se os índices parciais de exigência conceitual para as três características pedagógicas analisadas.
Efetuados os cálculos dos índices parciais para os critérios analisados, para cada instância de recontextualização analisada pôde-se chegar ao nível de exigência conceitual na sua totalidade, a partir do cálculo de um índice compósito. Este é calculado a partir dos índices parciais. Dessa forma, a partir dos índices parciais obtidos para cada um dos critérios analisados - intradisciplinaridade, complexidade dos conteúdos científicos e complexidade das competências científicas -, calculou-se o índice compósito que representa o nível de exigência conceitual encontrado em cada instância de recontextualização considerada.
Relações sugeridas no movimento de análise dos resultados
Na condução do estudo, evidenciou-se a possibilidade de flagrar três momentos do processo de recontextualização do conhecimento científico, por meio da análise da forma de expressão das características pedagógicas definidas nas fontes - PCN e livro didático - e na prática docente acompanhada. No sentido de identificar a tendência encontrada no processo de recontextualização analisado, foram destacadas as formas de expressão de cada uma das características consideradas nesta investigação. Assim, no documento que porta o discurso pedagógico oficial, os PCN/CN, foi possível identificar uma preocupação, por parte dos agentes responsáveis por essa instância de recontextualização, em destacar e prescrever para os professores (1) a atenção para o estabelecimento de relações entre os conteúdos de temas diferentes dentro da área das ciências, (2) a mobilização de competências científicas mais complexas e (3) a mobilização de conteúdos científicos menos concretos, inclusive aqueles que tratam dos grandes temas unificadores das ciências e que exigem um maior nível de abstração. Entretanto, no que se refere ao estabelecimento de relações entre os conhecimentos acadêmicos e não-acadêmicos, nessa primeira instância de recontextualização considerada, os agentes recontextualizadores não pareceram se preocupar em estabelecer critérios claros para a constituição de tais relações na prática docente.
Na segunda instância de recontextualização considerada nesta pesquisa - o livro didático -, identificou-se uma desconsideração por parte do autor e da editora em relação aos três aspectos analisados. Tal desconsideração revelou-se em (1) uma indicação pouco clara das relações entre os conteúdos dentro da área de ciências, tendendo para a não realização de tais relações, (2) uma tendência para a mobilização de competências científicas mais simples e (3) uma tendência para a mobilização de conteúdos científicos complexos, mas que não chegam a permitir a compreensão dos temas unificadores das ciências. As relações entre conhecimentos acadêmicos e não-acadêmicos também aqui não receberam a devida atenção por parte dos agentes recontextualizadores, tendendo a não serem indicadas no livro didático.
Nas aulas, os três aspectos considerados expressaram a mesma tendência de desconsideração, por meio do destaque para (1) o não estabelecimento de relações entre conteúdos dentro do tema em estudo, (2) a ênfase na mobilização de competências científicas simples, ainda que tendendo a uma menor perda nesse sentido do que a encontrada no livro didático, e (3) a mobilização preferencial de conteúdos mais concretos, que exigem menor capacidade de abstração. Também a professora deixou de cuidar do estabelecimento de relações entre conhecimentos acadêmicos e não-acadêmicos, desprezando-as em suas escolhas para a abordagem dos temas em estudo.
A figura 3 compõe um panorama dessas formas de expressão da intradisciplinaridade, da complexidade das competências científicas, da complexidade dos conteúdos científicos e das relações entre conhecimento acadêmico e não-acadêmico, com a indicação dos índices parciais obtidos e do nível de exigência conceitual atingido em cada instância. Nela, evidencia-se mais claramente a tendência de perda da exigência conceitual ao longo do processo de recontextualização:
Clique para ampliar
É possível, inicialmente, constatar o decréscimo acentuado da ênfase no estabelecimento de relações entre temas das ciências naturais. Nos PCN/CN, o índice parcial é muito favorável e vai diminuindo gradativamente até chegar à sala de aula, onde se encontra bastante empobrecido. Deixar de atribuir importância à integração dos saberes dentro da disciplina em estudo contribui para a fragmentação do conhecimento e para o estabelecimento de um nível superficial de tratamento das questões científicas, dificultando a realização de grandes sínteses e a compreensão dos temas unificadores da ciência. O direcionamento para os grandes temas, visando ao desenvolvimento da capacidade de elaboração de sínteses mais complexas sugerido nos PCN/CN, não chega de fato a marcar a relação professor-aluno-conhecimento.
Na primeira passagem acompanhada nesta pesquisa de uma instância de recontextualização a outra - na passagem dos PCN para o livro didático -, a perda em relação a essa característica é muito significativa. E o que pode explicar essa primeira tendência de perda? Ela talvez remeta a uma preocupação dos agentes recontextualizadores pedagógicos - a editora e o autor do livro didático estudado - com o que é entendido, nesse caso, como impossibilidade do professor, diante de sua precária formação, de lidar com um livro que encaminhe as discussões que estabelecerá com seus alunos para os temas unificadores da ciência. Sendo este o caso, porém, diante de um professor com graves lacunas em sua formação e de um livro que evita o estabelecimento de uma perspectiva mais relacional na abordagem do conhecimento, teme-se que se esteja constituindo continuamente, nas aulas de ciências, uma visão do conhecimento científico como um lote de informações fragmentadas e passíveis de serem acessadas sem a mobilização de formas mais complexas de pensamento.
Por outro lado, verifica-se a perda durante o processo de recontextualização do conhecimento científico no que se refere ao nível de complexidade dos conteúdos científicos selecionados para o ensino de ciências. Optar pela mobilização dos conteúdos de menor complexidade - no livro didático e, ainda mais acentuadamente, nas aulas -, mais diretamente relacionados com a base material pela qual circulam os alunos, prende-os à compreensão que já tinham dos fenômenos estudados, possivelmente propiciando a aquisição de um vocabulário novo para se referirem ao que já conheciam, mas sem o avanço para outra forma de compreensão dos conceitos que pudesse apontar para a integração futura do conhecimento em torno dos temas científicos. Associando-se isso à carência de situações de aula que possibilitem o confronto entre o saber da experiência, do dia a dia, e aquele que exige um maior nível de abstração para sua apreensão, fica ainda mais evidente a configuração de um contexto nada favorável para o avanço em direção ao pensamento complexo. Assim, também essa perda no nível de complexidade dos conteúdos científicos ao longo do processo de recontextualização aponta para um dos mecanismos pelos quais se dá a redução do potencial da escola de cumprir seu papel de elevação da capacidade de compreensão mais profunda e abrangente do mundo em que se vive.
A busca pela mobilização de competências científicas mais complexas faria todo o sentido se acompanhada pela abordagem integradora dos temas e pela complexidade crescente dos conteúdos científicos tratados. Mas também em relação a essa característica houve uma perda ao se partir da análise dos PCN em direção à prática pedagógica. Entretanto, tal característica mostrou-se mais relevante para o professor do que para o autor do livro didático adotado. É possível que a tendência posta pelo tipo de exigência enfatizado nas avaliações oficiais do ensino básico - o desenvolvimento de habilidades e competências - mantenha o professor alerta para a necessidade de criar situações que permitam treinar os alunos para um bom desempenho em tais situações de avaliação, ainda que esse treino adquira um ar de adestramento ao se estabelecer sobre um vazio de conteúdos.
Outro aspecto revelado pelos resultados diz respeito ao estabelecimento de relações entre os conhecimentos acadêmicos e os não-acadêmicos. O que se pôde destacar é que mesmo nos PCN as indicações para o tratamento desse aspecto apresentam contornos indefinidos e que, no livro didático e na prática docente, ele é paulatinamente desprezado. Embora a importância de considerar o conhecimento trazido pelo aluno seja uma questão recorrente nas discussões sobre educação que se configuram nas mais diversas esferas - desde as que se dão no campo intelectual até as mais embebidas no senso comum -, esta pesquisa indica que não está sendo devidamente considerada a forma pela qual esse conhecimento deve ser utilizado como ponto de partida para discussões que avancem no sentido de permitir as necessárias rupturas entre as explicações iniciais e o novo conteúdo a ser apreendido. Percebe-se que a falta dessa definição nas diferentes instâncias de recontextualização pode funcionar como um elemento a mais para o rebaixamento da complexidade dos conteúdos científicos e o consequente rebaixamento do nível de exigência conceitual encontrado. Isso ocorre porque a mobilização dos conhecimentos dos alunos parece estar funcionando, na prática, não como um ponto de partida, mas como um limite para a abordagem dos conteúdos científicos, uma vez que são priorizados aqueles para os quais se possam encontrar exemplos claramente perceptíveis no dia a dia das crianças.
A desconsideração diante da necessidade de encontrar meios de garantir a apresentação do conhecimento não-acadêmico e o movimento essencial de continuidade e ruptura com esse saber inicial, verificado nas três instâncias de recontextualização, geram ainda mais preocupação sobre a relação com o conhecimento científico que está sendo construída no interior da escola. E tal preocupação aumenta diante da lembrança de que esses jovens vivem em um município que oferece poucas vias de acesso a bens culturais e de que, no caso de grande parte deles, o nível de escolaridade dos pais constitui um dado a mais no sentido de desfavorecer o desenvolvimento de discussões que apontem para a apreensão e o uso de conceitos menos concretos. Porém, o desalento no caso desta pesquisa recai sobre o não cumprimento da função social da escola, e não sobre as impossibilidades da família, uma vez que é à instituição escolar que cabe o papel de ampliação de horizontes culturais. O fato de as famílias apresentarem carências não pode servir de justificativa para o mau desempenho da escola; tais carências, antes, representam fatores adicionais na composição de um contexto que não valoriza a relação com o conhecimento socialmente acumulado e que, portanto, exige ainda mais da escola no sentido de cumprir sua função.
Cabe, ainda, indicar que a análise de todas as características pedagógicas investigadas ressaltou as vias pelas quais se pode dar a perda no nível de exigência conceitual do conhecimento escolar de ciências e permitiu afirmar que muitas são as possibilidades de intervenção que podem ser desenvolvidas para buscar a manutenção de um nível conceitual mais elevado no trato com o conhecimento científico. O adestramento para desenvolver as competências científicas que são alvo das avaliações oficiais não pode garantir, isoladamente, qualquer elevação da capacidade de acessar conhecimentos mais complexos. Há que se cuidar das diferentes dimensões no trato do conhecimento - das relações entre discursos, entre sujeitos, entre espaços - para que se possa almejar o acesso de todos ao "conhecimento poderoso", ou seja, aquele que permite "fornecer explicações confiáveis ou novas formas de se pensar a respeito do mundo" (YOUNG, 2007, p. 1294).
No que se refere ao conhecimento ligado às ciências naturais, a concepção defendida nesta pesquisa é de que ele representa um meio de acesso a instrumentos, habilidades de pensamento e conceitos cujo domínio permite entender, questionar e marcar posição diante do discurso do poder embutido nas relações sociais. A abordagem dessa fração do saber sob um baixo nível de exigência conceitual - como se evidenciou no contexto estudado - representa a restrição da possibilidade de compreensão do mundo em que se vive e das oportunidades de pensar em outra configuração do real.
Acompanhou-se, nesta pesquisa, um processo de recontextualização do conhecimento científico que assumiu um caráter de redução, de perda conceitual acentuada em relação ao saber de onde provém o discurso instrucional das ciências naturais. Entretanto, a afirmação dessa hipótese de pesquisa não significa que se possa tomar tal configuração como uma sentença da qual não se pode escapar. Fica a certeza de que este é um caminho de recontextualização, não o único e, decerto, não o melhor. Aceita-se, aqui, o fato de que a escola lida com uma fração do conhecimento científico transformada de modo a constituir uma disciplina escolar e que, portanto, na escola não se faz ciência. Afirma-se, ainda, a possibilidade de se ter como meta um processo de recontextualização - e o conhecimento escolar dele resultante - que assuma um sentido de explicitação das relações entre os conteúdos estudados e de priorização do desenvolvimento de competências científicas e conteúdos científicos mais complexos.
Recebido em: 22.05.2010
Aprovado em: 16.02.2011
Cláudia V. Galian é professora do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
- BERNSTEIN, Basil. A estruturação do discurso pedagógico: classes, códigos e controle. Petrópolis: Vozes, 1996.
- ______. Pedagogia, control simbólico e identidad Madrid: Morata, 1998.
- CALADO, Sílvia. S. Currículo e manuais escolares: processos de recontextualização no discurso pedagógico de ciências naturais no 3º ciclo do ensino básico. Dissertação (Mestrado em Educação - Ciências) - Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2007.
- GIOVINAZZO JR., Carlos Antônio. A produção acadêmica sobre a educação escolar do aluno-adolescente - 1981-1995 Dissertação (Mestrado) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1999.
- ______. A educação escolar segundo os adolescentes: um estudo sobre a relação entre a escola e seus alunos. Tese (Doutorado) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade, Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.
- MECONI, Samantha. A escola na visão de alunos de ciclo II do ensino fundamental Dissertação (Mestrado) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2004.
- MORAIS, Ana Maria; NEVES, Isabel. Processos de intervenção e análise em contextos pedagógicos. Educação, Sociedade & Culturas, Lisboa, v. 19, p. 49-87, 2003.
- ______. A teoria de Basil Bernstein: alguns aspectos fundamentais. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 2, n. 2, p. 115-130, 2007. Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/praxiseducativa/article/view/313/321>. Acesso em: 11 jun. 2008.
- MORAIS, Ana Maria; NEVES, Isabel; PIRES, Delmina. The "what" and the "how" of teaching and learning: going deeper in a sociological analysis and intervention. In: MULLER, Johan; DAVIES, Brian; MORAIS, Ana (Eds.). Reading Bernstein, researching Bernstein Londres: Routledge & Falmer, 2004.
- OLIVEIRA, Rosa M. Moraes Anunciato de. "Na escola se aprende de tudo...": aprendizagens escolares na visão dos alunos. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2001.
- SAMPAIO, Maria de Mercês F. Um gosto amargo de escola: relações entre currículo, ensino e fracasso escolar. São Paulo: EDUC, 1998.
- SOUZA, Regina M. Escola e juventude: o aprender a aprender. São Paulo: EDUC, 2003.
- YOUNG, Michel. Para que servem as escolas? Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 101, p. 1287-1302, 2007. Disponível em: < http://cedes.unicamp.br>. Acesso em: 09 out. 2008.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Dez 2011 -
Data do Fascículo
Dez 2011
Histórico
-
Aceito
16 Fev 2011 -
Recebido
22 Maio 2010