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Sobre o pêndulo isócrono de Christiaan Huygens

On the isochronous pendulum of Christiaan Huygens

Resumos

Apresentamos uma solução alternativa para o problema do pêndulo cicloidal. Trata-se de um procedimento híbrido, envolvendo algumas idéias puramente geométricas utilizadas por Huygens e conhecimentos rudimentares de cálculo diferencial e integral. Ao final, discutimos um aparente paradoxo relacionado com esse problema.

Chistiaan Huygens; pêndulo cicloidal


We present an alternative solution to the cycloidal pendulum problem. Our procedure is an hybrid one, since it involves some purely geometrical ideas as well as the rudiments of integral and differential calculus. At the end, we discuss an apparent paradox related to this problem.

Chistiaan Huygens; cycloidal pendulum


ARTIGOS GERAIS

Sobre o pêndulo isócrono de Christiaan Huygens

On the isochronous pendulum of Christiaan Huygens

M. BurrowesI; C. FarinaII,1 1 E-mail: farina@if.ufrj.br.

IDepartamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

IIInstituto de Física, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO

Apresentamos uma solução alternativa para o problema do pêndulo cicloidal. Trata-se de um procedimento híbrido, envolvendo algumas idéias puramente geométricas utilizadas por Huygens e conhecimentos rudimentares de cálculo diferencial e integral. Ao final, discutimos um aparente paradoxo relacionado com esse problema.

Palavras-chave: Chistiaan Huygens, pêndulo cicloidal.

ABSTRACT

We present an alternative solution to the cycloidal pendulum problem. Our procedure is an hybrid one, since it involves some purely geometrical ideas as well as the rudiments of integral and differential calculus. At the end, we discuss an apparent paradox related to this problem.

Keywords: Chistiaan Huygens, cycloidal pendulum.

1. Introdução

Nos séculos XVII e XVIII a medição precisa do tempo era extremamente importante para a navegação, uma vez que uma boa determinação das longitudes requeria métodos confiáveis para se medir intervalos de tempo. Enquanto a medição de latitudes era feita, nessa época, com boa precisão, o mesmo não ocorria com relação à medição de longitudes. A elaboração de métodos para se medir longitudes desafiou, nesse período, mentes de cientistas brilhantes, como Galileo Galilei, Jean Dominique Cassini, Christiaan Huygens, Isaac Newton e Edmond Halley, entre outros. Governos de paises como a Espanha e a Holanda costumavam, inclusive, oferecer grandes prêmios para aqueles que resolvessem satisfatoriamente o problema da medição de longitudes [1].

O físico, matemático e astrônomo holandês Christiaan Huygens, nascido em Haia em 1629, esteve envolvido, praticamente, durante quarenta anos de sua vida tentando desenvolver e melhorar cronômetros marítimos. Em particular, ele estava interessado em construir um pêndulo isócrono, isto é, um pêndulo que tivesse o mesmo período qualquer que fosse a sua amplitude de oscilação. Embora Galileo (1564-1642) soubesse que um pêndulo simples com pequenas amplitudes de oscilação tem um período que independe da amplitude, Huygens já sabia que para grandes amplitudes de oscilação o período de um pêndulo simples passa a depender de sua amplitude. Huygens verificou, ainda, que o período de um pêndulo simples é tanto maior quanto maior for sua amplitude de oscilação.

Inicialmente, a estratégia de Huygens foi colocar obstáculos em ambos os lados de um pêndulo simples pois, dessa forma, à medida que o fio encostava no obstáculo o comprimento efetivo do pêndulo se tornava menor. Como o período de um pêndulo diminui se encurtamos seu comprimento, esse procedimento poderia fornecer um mecanismo que compensasse o aumento do período para grandes amplitudes. Construir um pêndulo isócrono parecia ser de extrema relevância na utilização de cronômetros marítimos que envolvessem pêndulos, uma vez que o balanço dos navios alterava, inevitavelmente, as amplitudes de oscilação de um pêndulo. No entanto, apesar de toda a genialidade de sua idéia, Huygens tentou em vão determinar a forma apropriada dos obstáculos a serem colocados ao lado de um pêndulo que cumprissem seus objetivos e decidiu interromper, temporariamente, suas tentativas empíricas.

Por uma feliz coincidência, Huygens foi convidado pelo filósofo, físico e matemático francês Blaise Pascal (1623-1662) a participar de uma competição sobre a ciclóide, uma nova curva que acabara de ser introduzida por Mersenne (e independentemente por Galileo) e que estava atraindo a atenção de muitos matemáticos da época devido ao seu carater não-algébrico. Tendo participado desse concurso, Huygens se tornou um especialista nas propriedades peculiares da ciclóide e não foi preciso passar muito tempo para que se perguntasse se essa curva particular não lhe ajudaria a resolver o problema do pêndulo isócrono. Sua intuição estava correta: como veremos, se um pêndulo simples tiver seu movimento restrito por obstáculos que obriguem a partícula presa em seu extremo inferior a descrever uma trajetória cicloidal, seu período será o mesmo qualquer que seja a amplitude de oscilação. Huygens também demonstrou que os obstáculos deveriam ter uma forma cicloidal para que a trajetória do pêndulo fosse cicloidal, de modo que resolveu completamente o problema que se propusera inicialmente. Os detalhes dessa história fascinante são descritos de um modo extremamente agradável na referência [2].

Neste trabalho, nosso principal objetivo é apresentar um método simples e alternativo aos existentes na literatura para se calcular o período de um pêndulo cicloidal. Como veremos, o nosso método permite demonstrar que o pêndulo cicloidal é, de fato, isócrono sem sequer termos de resolver uma equação diferencial ou mesmo realizar uma integração. No entanto, para obtermos o valor específico do período de um pêndulo cicloidal, teremos de fazer uma integral simples. Por esses motivos, acreditamos que, para principiantes, o nosso método é mais simples do que os encontrados em alguns livros [3, 4], ou mesmo em artigos, como por exemplo [5]. Mesmo assim, antes de apresentar a nossa solução será conveniente para a discussão subseqüente relembrar a definição da ciclóide e uma de suas principais propriedades.

2. A ciclóide

Suponha que um disco de raio R role sem deslizar sobre uma superfície plana e rígida. A curva descrita por qualquer ponto localizado na periferia do disco é, por definição, uma ciclóide. Essa curva está indicada na Fig. 1. Essa é a definição cinemática da ciclóide. Por conveniência, uma vez que discutiremos o movimento de uma partícula deslizando sobre uma superfície cicloidal lisa, desenhamos a ciclóide com a sua concavidade para cima. Além disso, escolhemos os eixos cartesianos de modo que a superfície plana está localizada em y = 2R, a origem está no ponto mais baixo da ciclóide e o eixo é um eixo de simetria dessa curva. O disco de raio R é chamado círculo gerador da ciclóide.


Seja P o ponto da periferia do disco que está na origem quando o disco tem o seu centro sobre o eixo . Seja q o ângulo que mede a rotação do disco à medida que ele se move rolando sem deslizar sobre a superfície, ou melhor, o ângulo entre a semi-reta que vai do centro do disco até o ponto P e a vertical, quando P está numa posição genérica, como indicado na Fig. 1. Desse modo, quando P está na origem temos q = 0. Note que qualquer posição do ponto P(x,y) pode ser parametrizada pelo ângulo q. Não é difícil mostrar que

conhecidas como equações paramétricas da ciclóide.

Vamos, agora, enunciar duas importantes propriedades geométricas da ciclóide. Considere o ponto P numa posição genérica de sua trajetória cicloidal. Se traçarmos uma reta perpendicular à ciclóide passando por P essa reta irá cruzar a superfície plana precisamente no ponto de contato entre o círculo gerador (o disco) e a superfície, denotado na Fig. 2 como ponto A. Essa propriedade pode ser entendida lembrando que, instantaneamente, todos os pontos do disco se movem num movimento de rotação pura em torno de um eixo que passa pelo ponto A e é perpendicular ao plano do disco (eixo instantâneo de rotação). Portanto, a velocidade de um ponto qualquer do disco (estando ele na periferia ou não), é perpendicular à reta que passa por esse ponto e o ponto de contato A. E como a velocidade de um ponto da periferia do disco é tangente à trajetória cicloidal, fica demonstrada a propriedade que acabamos de afirmar (analise novamente a Fig. 2 e reflita sobre o que foi dito anteriormente).


Além disso, se traçarmos uma reta tangente à ciclóide passando por P, argumentos geométricos simples mostram que ela interceptará a circunferência do disco no seu ponto mais baixo, designado como ponto B na Fig. 2. Com a definição da ciclóide e as propriedades que acabamos de enunciar, estamos prontos para apresentar o nosso método.

3. Solução alternativa para o pêndulo isócrono

Assim como na solução original de Huygens, o ponto de partida de nosso método consiste em analisar a projeção vertical do movimento de uma partícula deslizando sem atrito sobre uma superfície cicloidal cujo círculo gerador tem raio R.

Suponhamos que uma partícula seja abandonada a partir do repouso de um ponto P0 da superfície cicloidal. Seja H a altura desse ponto em relação ao ponto mais baixo da ciclóide, ou seja, y(t = 0) = H, como indica a Fig. 3. Usando a lei da conservação da energia mecânica podemos calcular o módulo da velocidade da partícula (v) em sua descida quando ela se encontra num ponto arbitrário P, cuja altura é dada simplesmente por y:


Lembrando que a velocidade da partícula é sempre tangente à trajetória, a componente vertical de sua velocidade é dada por

onde o ângulo b está definido na Fig. 3 e o sinal negativo aparece porque estamos considerando a partícula em sua descida.

Precisamos, agora, relacionar b com y a fim de obter uma equação diferencial simples para y. Isso pode ser feito usando-se as propriedades geométricas da ciclóide apresentadas na seção anterior e mostradas na Fig. 2. Podemos, então, escrever

onde d está definida na Fig. 3 como um dos catetos do triângulo retângulo que aparece nessa figura. Conseqüentemente, temos

Substituindo esse resultado na Eq. (3), obtemos

Por um argumento simples de simetria é imediato concluir que o intervalo de tempo transcorrido desde o instante inicial até o instante em que a partícula atinge o ponto mais baixo da superfície cicloidal pela primeira vez, é igual a t/4, onde t é o período de suas oscilações. Integrando, então, a última equação, obtemos

Em princípio, esperaríamos que t fosse função de H, uma vez que H aparece no integrando e também no limite superior da integral anterior. Obviamente, se quisermos saber quanto vale esse período, deveremos resolver essa integral. No entanto, se estivermos interessados apenas na dependência de t com H, não será necessário resolver essa integral, como veremos a seguir. Será suficiente fazer uma simples mudança da variável de integração, escolhendo apropriadamente uma variável, a fim de extrair toda a dependência em H. Com esse objetivo, definimos a nova variável x := y/H (dy = Hdx). Com isso, a equação anterior toma a forma

onde definimos a integral numérica

Uma simples inspeção nas duas últimas fórmulas mostra que H desapareceu da expressão do período. Conseqüentemente, o período para esse movimento não depende da amplitude das oscilações. Em outras palavras, qualquer que seja o ponto sobre a superfície cicloidal de onde a partícula é abandonada, ela atingirá o ponto mais baixo da superfície no mesmo instante. Desse modo, se obstáculos forem colocados ao redor de um pêndulo simples de modo a fazer com que a partícula pendurada pelo fio descreva uma ciclóide, esse pêndulo terá um período independente da amplitude de suas oscilações.

Embora tenhamos demonstrado que um pêndulo cicloidal é, de fato, isócrono sem termos resolvido nenhuma equação diferencial, nós não obtivemos a expressão para esse período, isto é, seu valor numérico, uma vez conhecidos os valores de R e g. No entanto, essa tarefa pode ser feita sem muito esforço resolvendo-se a integral anterior. Completando quadrados, reescrevemos a integral numérica na forma

Fazendo a mudança de variáveis

temos

Substituindo a Eq. (8) em (6), obtemos, finalmente

que é precisamente o resultado bem conhecido para o período das oscilações de uma partícula deslizando sem atrito sobre uma superfície cicloidal gerada por um círculo de raio R [5].

4. Um aparente paradoxo

O período que acabamos de obter, t = 2p, é válido para uma partícula oscilando sobre uma superfície cicloidal em torno de seu ponto mais baixo com qualquer amplitude, inclusive, pequenas amplitudes de oscilação em torno desse ponto (que designaremos por Pb). Como vimos, a ciclóide é uma curva traçada por um ponto da periferia de um disco rolando sem deslizar sobre uma superfície plana. Portanto, esperaríamos, ingenuamente, que o período de pequenas oscilações em torno de Pb fosse o mesmo que o período das pequenas oscilações de um pêndulo simples de comprimento igual ao diâmetro do círculo gerador da ciclóide, isto é, = 2R (lembre-se de que o eixo instantâneo de rotação do disco passa pelo ponto de contato entre ele e a superfície plana).

No entanto, olhando para a Eq. (9), vemos que o período do pêndulo isócrono coincide com o de um pêndulo simples, oscilando com pequenas amplitudes, mas de comprimento = 4R e não = 2R. Como podemos explicar esse aparente paradoxo? A resposta é bastante simples: embora o raio de curvatura da trajetória de um pêndulo simples de comprimento 2R seja, obviamente, 2R num ponto qualquer dessa trajetória, o raio de curvatura da trajetória cicloidal gerada por um círculo de raio R, em seu ponto mais baixo (Pb), é 4R. Na verdade, não é difícil verificar essa afirmação, como mostramos a seguir.

Para q << 1 as equações paramétricas da ciclóide tomam a forma

Eliminando q das equações anteriores, obtemos y = x2/(8R). Supondo que seja válida a condição x << R (que significa y2 << R2), a relação anterior pode ser colocada na forma

A Eq. (11) define uma circunferência centrada no ponto Cb = (0,4R) e de raio rb = 4R, como indicado na Fig. 4. Ou seja, mostramos que o raio de curvatura de uma ciclóide como a da Fig. 1, gerada por um círculo de raio R, em seu ponto mais baixo, é rb = 4R.


O fato de que rb > 2R pode ser entendido, pelo menos qualitativamente, se observarmos que a rotação pura do círculo gerador da ciclóide se dá em torno de um eixo instantâneo de rotação que se move ao longo da superfície plana (o contato entre o disco e a superfície ocorre cada vez num ponto diferente da superfície)

Vale mencionar um outro modo de se obter esse raio de curvatura. Trata-se de um método baseado em argumentos puramente cinemáticos [6]. Fazendo q = wt na Eq. (1) com w constante, temos, para t = 0, vx = 2wR e ay = w2R. Como nesse instante ay = /r, concluímos que r = /ay = 4R, de acordo com a demonstração anterior.

5. Comentários finais

Embora Huygens tenha dedicado grande parte de seu tempo ao estudo de cronômetros marítimos, em particular ao estudo do pêndulo isócrono, ele também deu enormes contribuições em outras áreas, desde a astronomia até a física e a matemática (o leitor interessado pode apreciar todas as suas contribuições na Ref. [7]). Num certo sentido, pode-se dizer que ele continuou o trabalho de Galileo e foi, com justiça, considerado por Lagrange como o sucessor científico de Galileo, como fica explícito nas próprias palavras de Lagrange: "Huygens foi destinado a melhorar e desenvolver a maioria das descobertas importantes de Galileo".

A ciclóide tem sido tema de muitos estudos e discussões depois do trabalho de Huygens sobre o pêndulo isócrono. A sua história sempre esteve relacionada com problemas de física, como ocorreu, por exemplo, com o problema da braquistócrona, proposto por J. Bernoulli em 1696 e considerado como um marco no desenvolvimento do cálculo variacional. De fato, até mesmo trabalhos experimentais têm sido desenvolvidos baseados nas propriedades da ciclóide, como por exemplo o aparato usado no estudo de conservação do momento linear numa colisão bidimensional [8]. Nesse sentido, acreditamos que a discussão apresentada em nosso trabalho venha a dar, por minúscula que seja, mais uma contribuição à linda história da ciclóide e seja de alguma utilidade em cursos introdutórios de mecânica.

Agradecimentos

Agradecemos a Leon Algamis e M. Moriconi por valiosas discussões. Agradecemos também ao segundo árbitro pelas sugestões e por corrigir pequenas imprecisões históricas. C.F. agradece ao CNPq pelo apoio financeiro parcial.

[6] Esse método foi indicado pelo segundo árbitro durante o processo de publicação desse artigo.

Recebido em 17/11/2004; Aceito em 25/2/2005

  • [1] Dava Sobel, Longitude (Walker Publishing Company Inc., 1995).
  • [2] Semyon Grigorevich Gindikin, Christiaan Huygens, Pendulum Clocks, and a "Curve Not at All Considered by the Ancients", in Tales of Physicists and Mathematicians (Ed. Birkhäuser, Boston, 1988), p. 75.
  • [3] Arnold Sommerfeld, Mechanics (Academic Press Inc., New York, 1952), p. 94.
  • [4] L. Landau and E. Lifchitz, Méchanique (Mir, Moscou, 1969), p. 85.
  • [5] Charles T.P. Wang, Am. J. Phys. 50, 1178 (1982).
  • [7] Oeuvres Complètes (Société Hollandaise des Sciences, Hague: Nijhoff, 1938), v. 18.
  • [8] Myung-hyun Ha, Yang-kie Kim and Sang Bub Lee, Am. J. Phys. 69, 1187 (2001).
  • 1
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Abr 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2005

    Histórico

    • Recebido
      17 Nov 2004
    • Aceito
      25 Fev 2005
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