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Meurer, J. L.; Bonini, A.; Motta-Roth, D. (Org.). Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. 295p

RESENHA

Meurer, J. L.; Bonini, A.; Motta-Roth, D. (Org.). Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. 295p.

Francieli Socoloski Rodrigues

Universidade Federal de Santa Maria - UFSM

Nos últimos anos, a Lingüística Aplicada tem apontado significativamente para uma perspectiva social, discursiva, enunciativa, do fenômeno lingüístico, que caracteriza um novo estatuto epistemológico e metodológico para a investigação da linguagem, em contraste, por exemplo, com o estatuto dos estudos cognitivistas. Leffa (2006, p. 3), ao apresentar uma recente obra que delineia vertentes de pesquisa em Lingüística Aplicada em termos de temas e métodos, aponta como tendência da área a opção por metodologias qualitativas, de cunho interpretativista, que valorizam a contextualização do que é pesquisado. Nessa perspectiva, os estudos de gênero textual/discursivo ocupam um lugar de destaque cada vez maior, o que pode ser evidenciado pelos vários trabalhos publicados sobre o assunto nos últimos anos e pela projeção que o SIGET _ Simpósio de Estudos de Gêneros textuais _ vem adquirindo no quadro nacional de eventos sobre a linguagem.

Notadamente associada ao trabalho de Bakhtin, a noção de gêneros do discurso tem sido retomada sob diversos pontos de vista, que se aproximam entre si no olhar social sobre a linguagem, mas que se diferenciam em termos de teorização e tratamento desse objeto. Ao mapear essas diferentes perspectivas para o estudo de gêneros, o livro Gêneros: teorias, métodos, debates, organizado por José Luiz Meurer, Adair Bonini e Désirée Motta-Roth, vem atenuar a carência da área em termos de publicações que viabilizem o diálogo entre as diferentes abordagens sobre o assunto.

O livro cumpre muito bem a meta de "trazer aos leitores interessados no ensino e no uso da linguagem um painel rico e pluralista sobre o conceito de gênero textual/discursivo", conforme proposta apresentada pelos organizadores no prefácio. Assim, é leitura indispensável para todos os interessados na compreensão da linguagem como prática social, especialmente aos professores de linguagem que buscam sustentar sua prática pedagógica sob uma perspectiva social e discursiva do fenômeno lingüístico, voltada para o trabalho com os gêneros em sala de aula, conforme sugerido pelos Parâmetros Curriculares Nacionais de língua portuguesa e línguas estrangeiras.

Os organizadores optaram por dispor os doze capítulos do livro a partir de três grandes rótulos _ abordagens sociossemióticas, sociorretóricas e sociodiscursivas _, segundo traços teóricos gerais que unem os trabalhos. Na primeira parte do livro, são discutidas as abordagens sociossemióticas, herdeiras, em maior ou menor grau, da proposta sistêmico-funcional de M. A. K. Halliday, que evidencia a correlação entre texto e contexto, o entrelaçamento entre linguagem e vivência humana.

A posição de Ruqayia Hasan sobre o tratamento dos gêneros é abordada no primeiro capítulo do livro por Désirée Motta-Roth e Viviane Heberle. As autoras explicitam o modo como Hasan integra texto e contexto ao unir em um modelo de análise os construtos de configuração contextual (a situação na qual o gênero se constitui) e estrutura potencial de gênero (conjunto de elementos textuais opcionais e obrigatórios do gênero). Para Hasan, os traços específicos de um contexto permitem predizer a seqüência e a recorrência de certos elementos textuais obrigatórios e opcionais da estrutura potencial de gênero e vice-versa.

Por sua vez, a perspectiva de Jim Martin, apresentada no segundo capítulo por Orlando Vian Júnior e Rodrigo E. de Lima-Lopes, tem como conceitos-chave gênero e registro, associados aos contextos de cultura e de situação, respectivamente. Martin destaca que o contexto de cultura é um plano mais geral e abstrato que o contexto de situação, de modo que as escolhas efetuadas no primeiro são refletidas no segundo e então materializadas na linguagem. Nesse sentido, Martin lança críticas à proposta de Hasan por considerar que seu ponto de partida é o registro e não o construto gerador deste _ o gênero. Em relação a essa questão, é de se observar que, no capítulo dedicado ao trabalho de Hasan, realmente o contexto de cultura não recebe maior atenção na proposta de análise. Resta saber se Hasan, em sua obra, não aprofunda esse ponto ou se essa é uma lacuna apenas no capítulo do livro aqui resenhado.

Os capítulos três, quatro e cinco situam os estudos de gênero dentro de uma teoria crítica do discurso, que utiliza como instrumental de análise a gramática sistêmico-funcional. No capítulo três, é discutida a Lingüística Crítica de Roger Fowler, uma das correntes formadoras da Análise Crítica do Discurso. Sumiko Nishitani Ikeda caracteriza tal perspectiva como voltada para interpretar criticamente os valores sociais e ideológicos investidos nas escolhas lingüísticas a partir da análise dos textos à luz dos contextos sociais em que são usados. Embora pareça clara a relação entre estudos de gêneros discursivos e estudos críticos do discurso, talvez valeria a pena justificar, no texto, a inclusão de um capítulo sobre a Lingüística Crítica em um livro sobre gêneros, ou seja, argumentar sobre as contribuições de uma perspectiva crítica para a análise de gêneros, o que facilitaria a compreensão para iniciantes na área.

Gunther Kress foi também um dos precursores da Lingüística Crítica, mas suas formulações foram adquirindo um estatuto particular que acabou caracterizando um novo domínio, a Semiótica Discursiva, tratada no quarto capítulo por Anna Elizabeth Balocco. O referencial teórico proposto por Kress para a análise de gêneros objetiva demonstrar, a partir da análise dos diferentes sistemas de signos usados na construção dos sentidos, o modo como as representações negociadas via texto naturalizam sentidos socialmente ratificados ou instituem novos sentidos. É de se lamentar que, talvez pela limitação de espaço, a autora não tenha podido efetivamente explorar a mutimodalidade em sua análise, já que essa noção é atualmente tão associada ao nome de Kress e enriqueceria ainda mais esse interessante capítulo.

No quinto capítulo, último da seção de abordagens sociossemióticas, José Luiz Meurer discute, de modo claro e didático, a teoria e o método de Análise Crítica do Discurso (ACD) propostos por Norman Fairclough. O lingüista britânico não produz especificamente uma teoria de gêneros, mas fornece insights valiosos para uma análise crítica de gêneros que ultrapasse questões estruturais e proponha uma desconstrução do trabalho ideológico dos textos, uma vez que a linguagem pode (re)produzir, manter ou mudar relações sociais de poder. Para isso, a ACD propõe uma metodologia em que os eventos discursivos devem ser investigados a partir de três dimensões que se complementam: como texto, prática discursiva e prática social.

Na segunda seção do livro, são discutidas as abordagens sociorretóricas de John Swales, Carolyn Miller e Charles Bazerman para a análise de gêneros. Essas abordagens nasceram atreladas à tradição dos estudos de retórica e priorizam as noções de propósito e contexto. Os gêneros são vistos como situações retóricas do convívio social direcionadas a um propósito.

O sexto capítulo trata do trabalho de John Swales, cujo nome é referência na pesquisa e no ensino de gêneros no contexto acadêmico. Barbara Hemais e Bernardete Biasi-Rodrigues destacam que, desde o livro de 1990, Genre Analysis, um marco nesse campo de estudos, Swales tem trabalhado no refinamento de sua proposta a partir da reelaboração de conceitos, como o conceito de comunidade discursiva. Sua abordagem tem se consolidado como de cunho textográfico, ou seja, voltada para desvendar o texto a partir de uma perspectiva etnográfica, que inclui a investigação dos participantes e dos elementos da situação sociorretórica que gera o texto. Nesse sentido, parece que a seção de análise de dados do capítulo, que ficou mais centrada na análise do texto (modelo CARS), poderia ter um espaço maior dedicado a observações de caráter etnográfico.

Na mesma linha sociorretórica de Swales, Carolyn Miller e Charles Bazerman produzem uma teoria das ações retóricas, tema do sétimo capítulo, escrito por Gisele de Carvalho. Tanto em Miller quanto em Bazerman, gênero é entendido como ação social/retórica que é tipificada a partir de sua recorrência. Os gêneros são produzidos quando interpretamos situações novas como sendo similares a outras e criamos tipificações que serão incorporadas a nossa experiência e aplicadas a novas situações. Incorporados ao repertório sociorretórico de seus usuários, os gêneros funcionam como mecanismos estruturadores e, de certo modo, reguladores das ações e interações sociais.

Em relação à última seção do livro, a seção das abordagens sociodiscursivas, não parece claro, pelo menos da ótica de uma iniciante na área, o traço teórico geral que une os trabalhos da seção, diferenciando-os frente aos trabalhos das demais seções. Além disso, se, por um lado, os organizadores parecem entender uma proximidade entre os trabalhos de Bakhtin, Adam e Bronckart, visto que os dispõem nessa mesma seção, Rojo, por outro lado, opõe-nos, argumentando que, na vertente dos gêneros de textos (associada a Adam e Bronckart), há uma finalidade descritiva textual que distancia seus métodos do método sociológico bakhtiniano. Em vista do impasse gerado sobre a proximidade desses trabalhos, parece que a estrutura da seção poderia ser reavaliada.

No oitavo capítulo, a noção de gênero é discutida na perspectiva dialógica bakhtiniana. Rosângela Hammes Rodrigues chama a atenção para o fato de que, se o difundido conceito de "tipos relativamente estáveis de enunciados" não for compreendido no contexto dos estudos do Círculo, isso pode gerar uma visão reducionista de gênero como tipos de texto. A tipificação deve ser entendida no sentido de situações de interação verbal típicas, e não como mera tipificação formal, embora os gêneros também apresentem características lingüístico-textuais recorrentes. Enfim, Rodrigues reitera, ao longo de seu capítulo, que o que constitui um gênero é a sua ligação com uma situação social de interação e que essa noção deve ser pensada na perspectiva dialógica: todo dizer é uma reação-resposta a outros enunciados.

A distinção entre duas vertentes para o estudo de gêneros, uma mais orientada para o texto e outra para o discurso, é discutida por Roxane Rojo no nono capítulo. Na visão de Rojo, a primeira vertente, cujo enfoque é a materialidade textual, distancia-se da herança bakhtiniana, centrada sobretudo no estudo das situações de produção dos enunciados ou textos e em seus aspectos sócio-históricos. A partir disso, Rojo defende a relevância da vertente dos gêneros do discurso tanto para o estudo quanto para o ensino da linguagem, acreditando que a análise deve partir sempre dos aspectos sócio-históricos da situação enunciativa.

No décimo capítulo, é discutido o trabalho de Jean-Michel Adam. Adair Bonini deixa claro que Adam não propõe um programa de pesquisas para o gênero; centra-se, outrossim, em um mecanismo de textualização: a seqüência textual, entendida como recurso composicional dos vários gêneros. Para Adam, as seqüências seriam cinco (narrativa, argumentativa, descritiva, explicativa e dialogal) e seu uso estaria em relação pragmática com o gênero. Parece que Bonini destaca bem as fragilidades da proposta, sobretudo em relação a sua natureza epistemológica, uma vez que ela tenta combinar perspectivas que se opõem em certa medida (a pragmática e a análise do discurso francesa). Por outro lado, Bonini destaca também as contribuições da proposta, sobretudo no campo de ensino de produção textual: a noção de seqüência pode ser muito útil no desenvolvimento de capacidades do narrar, do relatar, etc., trabalhadas dentro de uma abordagem de gêneros.

A noção de gênero dentro do quadro do interacionismo sociodiscursivo (ISD) de Bronckart e demais estudiosos do Grupo de Genebra é tema do décimo primeiro capítulo. Anna Rachel Machado explicita desde o início que o ISD não toma os gêneros de textos como sua unidade de análise privilegiada, mas sim as ações verbais e não verbais. O interesse nos gêneros estaria no fato deles se constituírem como ferramentas semióticas complexas que permitem realizar ações de linguagem e assim participar das atividades sociais. Uma teoria sobre o processamento dessas ações de linguagem se configuraria nesses termos: o indivíduo, com base nas representações sobre as situações em que atua, adota um gênero que parece adequado à situação em que se encontra, adaptando-o aos valores particulares dessa situação. Nesse sentido, a proposta parece oferecer uma articulação consistente entre as restrições genéricas e a criatividade, muito bem explorada por Machado a partir de questões suscitadas por Clarice Lispector.

Por fim, a contribuição de Dominique Mainguenau para o estudo dos gêneros é tratada no último capítulo por Maria Marta Furlanetto. A proposta de Mainguenau é articulada dentro da perspectiva da análise do discurso francesa e toma como objeto a noção de arquivo, entendido como o conjunto de enunciados que dizem respeito a um mesmo posicionamento num campo discursivo, adquirindo uma identidade marcada (por exemplo, o discurso dos sem-terra). Cada texto está associado a um arquivo e materializa-se em um determinado gênero. O leitor pouco experiente na área careceria de um maior aprofundamento acerca da articulação entre a noção de gênero e o posicionamento de um arquivo.

O grande mérito do livro parece estar na pluralidade que o constitui, na valorização da diferença entre as diversas abordagens teórico-metodológicas para estudos de gênero. Outro ponto muito positivo é o design dos capítulos, que combina, de modo didático, teoria e exemplificação de análise, o que evidencia a preocupação em auxiliar pesquisadores iniciantes. As questões levantadas como pontos que poderiam ser reavaliados de modo algum comprometem a qualidade do projeto; objetivam apenas contribuir para a reflexão sobre essa obra. Enfim, é preciso reiterar a indicação do livro a todos os interessados em uma visão social, enunciativa e/ou discursiva da linguagem. Embora o objetivo da obra seja de cunho teórico-metodológico, em alguns momentos são oferecidos insights valiosos sobre o ensino com base em gêneros. A expectativa é de que as questões aplicadas possam ser desenvolvidas e detalhadas num próximo volume, voltado especificamente ao ensino, que consolidaria ainda mais o diálogo na área.

  • LEFFA, V. J. (Org.). Pesquisa em Lingüística Aplicada: temas e métodos. Pelotas: Educat, 2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2013
  • Data do Fascículo
    2007
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