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A TRADUÇÃO DE HUMOR NO TEATRO

HUMOR TRANSLATION IN THEATER

Resumo

Este artigo pretende trazer reflexões acerca da correspondência entre os Estudos da Tradução, a Dramaturgia e a Linguagem Humorística. Para tanto, será necessário que se levantem problemas acerca da transposição da linguagem humorística de um código linguístico a outro, e especificamente, serão feitas considerações acerca dessa correspondência com a linguagem cênica, no tocante à produção de comicidade, por meio das reflexões de Susan Bassnett (2005), Luciana Kaross (2007), Valentín García Yebra (1983), Sirkku Aaltonen (2000), Patrice Pavis (2008), Marlene Fortuna (2000; 2010; 2011), entre outros nomes do campo dos Estudos da Tradução e da Dramaturgia. Como prelúdio dessas reflexões, considera-se que haja criatividade por parte do ator/tradutor e demais agentes do teatro para que a linguagem humorística presente no texto-fonte tenha o mesmo efeito no espectador da língua-alvo em que se encena o texto dramático, ou seja, provoque o riso.

Palavras-chave
Tradução de Humor; Estudos da Tradução; Tradução Teatral; Reflexão Crítica

Abstract

This paper aims to make reflections concerning the correspondence between Translation Studies, Dramaturgy and the Humorous Language. To that end, it will be necessary to raise problems about the transposition of the humorous language from one linguistic code to another, and specifically, considerations will be made about this correspondence with the scenic language, regarding the production of comedy, through the reflections of Susan Bassnett (2005), Luciana Kaross (2007), Valentín García Yebra (1983), Sirkku Aaltonen (2000), Patrice Pavis (2008), Marlene Fortuna (2000; 2010; 2011), among others in the field of Translation Studies and Dramaturgy. As a prelude to these reflections, it is considered that there is creativity on the part of the actor/translator and other agents of the theater so that the humorous language present in the source text has the same effect on the target language viewer in which the dramatic text is staged, that is, it provokes laughter.

Keywords
Humor Translation; Translation Studies; Theatrical Translation; Critical Reflection

Considerações iniciais

O humor é uma linguagem complexa e tentar sistematizar o seu funcionamento é uma tarefa difícil de ser feita, porque ele é um fenômeno que não tem regras, e pode transitar deliberadamente em qualquer linguagem verbal e não-verbal para que se faça presente. E traduzir esse componente rico e adverso do funcionamento da língua, demanda criatividade, imaginação e competência linguística, comunicativa e cultural acerca da correspondência entre línguas distintas, e quiçá, linguagens semióticas.

E o propósito desse fenômeno é único: o riso. Cabe ao tradutor o empenho e o esforço de resgatar o presente no texto-fonte e torná-lo compreensível na língua em que versa. Esse artigo consiste em fazer uma reflexão crítica acerca do campo da Tradução do Humor, antes relegado ao campo da Linguística e que está tendo o devido reconhecimento na academia, não desmerecendo o trabalho dos colegas linguistas que lidaram com esse fenômeno em suas pesquisas, e sim mostrar o débito para com eles.

Tem-se ciência de que tratar do humor é levar em consideração o seu caráter elástico e semântico, mas que, a priori, pode ser uma resposta (o riso) a um estímulo ou situação que consideramos ser divertido, como por exemplo as cócegas ou presenciar alguém escorregar numa casca de banana ou em um piso molhado. Podemos dizer que o humor não vem do nada; ele necessita de uma função social, ou seja, para amenizar a densidade de determinada passagem ou até mesmo para atacar e direcionar disparates verbais a uma certa personalidade ou entidade. E como esse efeito é trabalhado na tradução? Esse artigo tem como propósito tecer reflexões acerca da teoria da tradução do humor, mais precisamente no campo teatral. Para tanto, faremos algumas considerações acerca do campo da tradução de humor, seguido da sua especificidade no teatro e encerrando com nossas considerações.

A tradução do humor

Valentín García Yebra (1983)Yebra, V. G.. Polisemia, ambigüedad y traduccion. In: YEBRA, V. G.. En torno a la traducción: teoría, crítica, historia. Madrid: Gredos Editorial, 1983, p. 70-90. diz o seguinte; ao tradutor que trabalha com o texto escrito, que “não lhe causem problemas as palavras homófonas, como também as não homógrafas. É por isso que a homofonia não é uma questão de teoria da tradução” (Yebra 39Yebra, V. G.. Polisemia, ambigüedad y traduccion. In: YEBRA, V. G.. En torno a la traducción: teoría, crítica, historia. Madrid: Gredos Editorial, 1983, p. 70-90. 1 1 “no le causan problemas las palabras homófonas pero no homógrafas. Por eso la homofonía no es asunto de la teoría de la traduccíon”. Todas as traduções aqui realizadas são de minha autoria. ). Essa constatação é passível de crítica, uma vez que a homofonia é um elemento crucial que faz parte da teoria da tradução, tanto para a tradução literária quanto para as demais linguagens, como a teatral, e se esse elemento dos jogos de palavras se faz presente no original, é importante que se resgate essa marca do texto-fonte e a traga para seu contexto sociolinguístico e cultural, para que o desenvolvimento da narrativa ou de determinado diálogo não se perca na tarefa tradutória.

Como bem pontuam Tiago Marques Luiz e Jeroen Vandaele (2019)Vandaele, J.; Luiz, T. M. “O humor na Tradução”. Cadernos de Tradução. 39.2 (2019): 326-338. Portal de Periódicos da UFSC. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/21757968.2019v39n2p326/40017. Acesso em: 18. jun. 2019.
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, traduzir o elemento humorístico no texto-fonte para outro código linguístico denota um grau de dificuldade, pois não está em jogo apenas “uma questão de transposição de significado, e sim de elementos culturais – como os aspectos sociolinguísticos de um determinado grupo – que estão envolvidos no processo” (Vandaele; Luiz 326Vandaele, J.; Luiz, T. M. “O humor na Tradução”. Cadernos de Tradução. 39.2 (2019): 326-338. Portal de Periódicos da UFSC. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/21757968.2019v39n2p326/40017. Acesso em: 18. jun. 2019.
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), e o tradutor precisa ter em mente que seu conhecimento prévio acerca desses elementos culturais e linguísticos não são o mesmo que o leitor imaginado, o que permite dizer que no caso do humor traduzido, a “percepção depende diretamente da concordância de fatos e impressões disponíveis tanto para o falante/escritor quanto para o ouvinte/leitor” (Del Corral 252 2 “perception depends directly on the concurrence of facts and impressions available to both speaker/writer and listener/reader”. ).

No tocante ao processo de tradução, há um consenso que um dos problemas está na relação entre denotação e conotação linguística, com enfoque na questão cultural de um determinado grupo, assim como particularidades da língua, como os trocadilhos, e que sendo da ordem do cultural, não são possíveis de serem separados. Pensar na sua intraduzibilidade é pensar intrinsecamente os aspectos culturais e linguísticos desse fenômeno da linguagem. Sobre as perdas e ganhos acerca da (in)traduzibilidade do humor, os estudiosos ponderam que a falha na tradução do elemento cômico se torna visível e, consequentemente, o efeito desejável não é alcançado, porém existe a outra interface, que “o tradutor de humor tem que lidar com o fato de que as ‘regras’, ‘expectativas’, ‘soluções’ e acordos sobre jogos sociais’ são muitas vezes específicos do grupo ou da cultura” (Vandaele; Luiz 332Vandaele, J.; Luiz, T. M. “O humor na Tradução”. Cadernos de Tradução. 39.2 (2019): 326-338. Portal de Periódicos da UFSC. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/21757968.2019v39n2p326/40017. Acesso em: 18. jun. 2019.
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).

Se pensarmos na tradução como uma representação exata do texto-fonte, incorreremos numa problemática bastante obsoleta, a da fidelidade, que ao mesmo tempo é desejável e improvável, pois cada tradutor, enquanto leitor daquela obra-fonte, trará sua bagagem de leitura e de conhecimento de mundo durante a transposição do conteúdo original. E mais precisamente no tocante ao humor, pode-se dizer que acontece o mesmo, pois cada tradutor de comédia, seja ele um humorista, ou um tradutor da esfera do teatro, irá “imprimir” a sua interpretação daquele conteúdo engraçado, denotando que a tradução, em qual domínio for, seja ele artístico ou literário, esforçará em realizar uma aproximação do original. E no caso do teatro, corrobora-se com o argumento de Patrice Pavis, de que a encenação “não tem que ser fiel ao texto dramático. Essa noção obsessiva do discurso crítico quanto à fidelidade é inútil, pois faria levar a que se dissesse, em primeiro lugar, no que se funda a comparação entre ponto de partida e resultado” (Pavis 24Pavis, P. O teatro no cruzamento de culturas. Tradução de Nanci Fernandes. São Paulo: Perspectiva, 2008).

A tradução do humor no teatro demanda uma interação entre atores e plateia, de modo que a mensagem destinada ao seu espectador seja realmente comunicada e apreendida pelos mesmos, desencadeando o riso, e segundo Luiz (2018)Luiz, T. M. “O interlúdio de Pedro, o bobo em Romeu e Julieta: uma proposta de tradução”. Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, vol. 4, núm. 8, 2018 (b), p. 89-95., se o ator/tradutor/humorista não “levar em consideração esse teor hermenêutico, ainda mais em se tratando de uma cena cômica com vários atores, a tradução teatral se compromete e o propósito daquele momento cômico se perde” (Luiz (b)Luiz, T. M. “Tradução de humor: Algumas considerações”. Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, vol. 2, núm. 1, p. 19-34, 2016(a). 88).

Um texto dramático, a priori, se difere de um poema ou romance, porque ele demanda uma relação intrínseca com a sua performance, e o mesmo pode-se dizer do humor. Se o texto teatral fornece os indícios textuais para a encenação, caberá ao tradutor/ator potencializar esse conteúdo no palco de modo criativo, convicto e, consequentemente, risível. Assim, iremos ao encontro da teorização do semiótico do teatro polonês Tadeusz Kowzan (1975), que elenca cinco linguagens semióticas para que o espetáculo ocorra: a primeira seria a linguagem verbal, na qual pode ou não ter uma versão escrita do texto; a segunda é a expressão corporal do ator; a terceira seria o aspecto externo do ator (a maquiagem, a indumentária e o gesto); a quarta seria o espaço do palco e por fim, o som não falado, que denotaria o cenário, a trilha sonora, cujo papel no espetáculo é o de acentuar ou atenuar a carga dramática de determinada cena (Kowzan, 1975 apudBassnett, 2013(b)Bassnett, S. Translation. The New Critical Idiom. New York: Routledge, 2013(b).).

A partir das considerações de Marlene Fortuna (2010Fortuna, M. Intertextualidade para a Comunicação Eficiente: do texto dramatúrgico à performance do ator em cena. Trabalho apresentado no DT 6 – Interfaces Comunicacionais do XV Congresso de Ciências da Comunicação. Anais do XV Congresso de Ciências da Comunicação, Vitória, ES, 2010(b), p. 1-15. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2010/resumos/R19-0170-1.pdf>. Acesso em 10 mar. 2019.
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; 2011)Fortuna, M. “KALLÍOPE: a musa grega da palavra transformada. Do texto escrito do dramaturgo à performance viva do ator em cena. Diálogos Entre-Mentes”. In: Simões, D. (org). Diálogos Intersemióticos. Volume 1. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2011(c), p. 196- 207., Susan Bassnett (2005Bassnett, S. Estudos de tradução. Tradução de Sonia Terezinha Gehring, Letícia Vasconcelos Abreu e Paula Azambuja Rossato Antinolfi. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005(a).; 2013)Bassnett, S. Translation. The New Critical Idiom. New York: Routledge, 2013(b)., Patrice Pavis (2008)Pavis, P. O teatro no cruzamento de culturas. Tradução de Nanci Fernandes. São Paulo: Perspectiva, 2008, entre outros estudiosos do teatro e da tradução, iremos elaborar as nossas reflexões acerca do microcampo da tradução do humor teatral.

Traduzindo o humor no teatro

Das características inerentes ao texto dramático, um elemento bastante relevante é a sua oralidade, como enfatiza Marlene Fortuna (2010)Fortuna, M. Intertextualidade para a Comunicação Eficiente: do texto dramatúrgico à performance do ator em cena. Trabalho apresentado no DT 6 – Interfaces Comunicacionais do XV Congresso de Ciências da Comunicação. Anais do XV Congresso de Ciências da Comunicação, Vitória, ES, 2010(b), p. 1-15. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2010/resumos/R19-0170-1.pdf>. Acesso em 10 mar. 2019.
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, pois o ator se situa no entremeio entre O QUÊ e o COMO da oralidade a ser transposta para o palco, e “quanto melhor for o performatizador da textualidade escrita, mais esta se amplia, dirigindo-se a uma redimensão transcendente”, de modo que ambos oralidade e grau de perfeição não se percam (Fortuna (b) 4Fortuna, M. A performance da oralidade teatral. 1ª edição. São Paulo: Annablume, 2000(a).).

No tocante ao humor, Fortuna ressalta a perfeição com que o ator deve externalizar, melhor dizendo, traduzir o O QUÊ – o conteúdo escrito – em consonância com o COMO – gesto, faces, maquiagem, etc – no momento da encenação, porém podemos dizer que perfeição é um termo caro a arte dramática, principalmente à arte do ator, e pensamos melhor no esforço e no manejo do ator para com o texto escrito, tendo em mente sua criatividade e sua percepção do conteúdo cômico que ele traduzirá em voz, gestos, etc, uma vez que o ator, tendo domínio da técnica da atuação, é capaz de demonstrar perspicácia, “não se permitindo mais ser escravizado por ela. [...] Tal liberdade se estende às extensões do seu ser, o ator dispõe-se a uma posição de completa interação com os circunstantes” (Fortuna (b) 85Fortuna, M. A performance da oralidade teatral. 1ª edição. São Paulo: Annablume, 2000(a).).

A crítica teatral e tradutora Bárbara Heliodora (2018)Heliodora, B. “Meus motivos para traduzir Shakespeare/ My reasons for translating Shakespeare”. In: Martins, M. A. P. and Guerini, A. Palavra de Tradutor: Reflexões sobre tradução por tradutores brasileiros/The Translator’s Word: Reflections on Translation by Brazilian Translators. Tradução de Thelma Christina Ribeiro Côrtes. Florianópolis: Editora da UFSC, 2018, p. 177-193. corrobora com a posição de Fortuna, em que os agentes da tradução teatral (diretor, ator e demais membros da companhia), no momento em que têm o primeiro contato com o texto do dramaturgo e constatam o ritmo das falas dos personagens, estão pensando na melhor maneira de expressar o teor textual ao seu público, o qual “recebe a devida orientação tanto para o conteúdo quanto para a beleza de qualquer peça” (Heliodora 178Heliodora, B. “Meus motivos para traduzir Shakespeare/ My reasons for translating Shakespeare”. In: Martins, M. A. P. and Guerini, A. Palavra de Tradutor: Reflexões sobre tradução por tradutores brasileiros/The Translator’s Word: Reflections on Translation by Brazilian Translators. Tradução de Thelma Christina Ribeiro Côrtes. Florianópolis: Editora da UFSC, 2018, p. 177-193.). No caso de passagens humorísticas, a crítica chama a atenção para que a carga semântica do texto não se comprometa, para que o conteúdo e a forma do texto estejam presentes simultaneamente (Heliodora 2018Heliodora, B. “Meus motivos para traduzir Shakespeare/ My reasons for translating Shakespeare”. In: Martins, M. A. P. and Guerini, A. Palavra de Tradutor: Reflexões sobre tradução por tradutores brasileiros/The Translator’s Word: Reflections on Translation by Brazilian Translators. Tradução de Thelma Christina Ribeiro Côrtes. Florianópolis: Editora da UFSC, 2018, p. 177-193.).

Assim, podemos dizer que se o tradutor tem como propósito a encenação desse texto no palco, ele não pode prescindir das particularidades que são inerentes ao espetáculo e deve preocupar-se para que o elemento cômico presente no original chegue ao seu espectador e desperte o riso. No campo da esfera cênica, temos o par tragédia e comédia, tipologia proveniente da literatura dramática grega, que com o deslindar cronológico, teve suas subdivisões em tragicomédia, farsa, comédia de costumes, entre outros. O texto dramático tem como principal característica ser encenado e não lido, uma vez que a experiência teatral “consiste de uma série de momentos de cumplicidade entre o ator e a plateia” (McLeish 153McLeish, K. “Translating Comedy”. In: Johnston, D. (ed.). Stages of Translation. Bath: Absolut Press, 1996, p. 153-159. 3 3 “consists of a series of moments of complicity between performer and spectator” ), e dentro dos Estudos da Tradução, existe uma dualidade: ou ser traduzido para o palco ou para a página, que segundo Bassnett (2005), o tradutor tem que ter em mente o estilo e a função do texto.

Se o propósito é a tradução ser encenável, o tradutor tem que se preocupar com duas particularidades do texto dramático, que em relação ao texto literário, denotam certo grau de dificuldade, a saber: “a) a concisão da forma dramática, e b) a necessidade de entendimento imediato por parte da plateia” (Heliodora 182Heliodora, B. “Meus motivos para traduzir Shakespeare/ My reasons for translating Shakespeare”. In: Martins, M. A. P. and Guerini, A. Palavra de Tradutor: Reflexões sobre tradução por tradutores brasileiros/The Translator’s Word: Reflections on Translation by Brazilian Translators. Tradução de Thelma Christina Ribeiro Côrtes. Florianópolis: Editora da UFSC, 2018, p. 177-193.), o que nos permite dizer que a palavra escrita no texto é

o motivo para que o ator se debruce no momento dos ensaios e, na hora da sua concretização no palco, a palavra acaba sendo efeito, ou seja, o potencial que estava escrito agora é oral e vai gerar uma catarse no espectador.

(Luiz (b)Luiz, T. M. “Tradução de humor: Algumas considerações”. Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, vol. 2, núm. 1, p. 19-34, 2016(a). 89)

Para Sirkku Aaltonen (2000)Aaltonen, S. Time-sharing on stage. Drama Translation in Theatre and Society. Topics in Translation 17. Clevedon/Bufffalo/Toronto/Sydney: Multilingual Matters Ltd., 2000., a tradução teatral tem duas orientações: a primeira é de cunho linguístico, melhor dizendo, textocêntrica, consequentemente, voltada à leitura, acompanhada de notas de rodapé para esclarecer ao leitor determinados aspectos da obra, como a cultura e a história, por exemplo, enquanto a segunda orientação direciona-se à questão estética, ou seja, à performance e à recepção pelo espectador. Aaltonen aponta três estratégias feitas pelos tradutores de teatro: a) traduzir o texto na íntegra, como forma de subserviência ao original, b) propor tradução parcial, com ruptura do original para atender ao propósito da encenação e, por fim, c) as chamadas “traduções rebeldes ao original”, que se baseiam em algum ponto temático do texto, ao invés de sua totalidade.

Segundo Bassnett (2005)Bassnett, S. Estudos de tradução. Tradução de Sonia Terezinha Gehring, Letícia Vasconcelos Abreu e Paula Azambuja Rossato Antinolfi. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005(a)., a tradução teatral esteve sujeita a críticas maciças por duas razões: ou o texto foi traduzido de forma excessivamente literal ou se tornou um texto dispare do texto-fonte, com muita liberdade. As críticas que Bassnett levanta tem como ponto de partida o texto escrito, que é para ser destinado a vozes e não ao papel, distanciando da leitura de página, denotando um caráter individual, uma vez que esse texto “contém uma gama de sistemas paralingüísticos identificáveis pelo leitor e que costumam ser mantidos em tradução” (Kaross 17Kaross, L. A tradução da comédia teatral em The Importance of Being Earnest: tradução comentada e anotada. 2007. 239f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Tradução) – Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007.).

Sobre a presença da linguagem humorística no teatro, trazemos a reflexão de Kenneth McLeish (1996)McLeish, K. “Translating Comedy”. In: Johnston, D. (ed.). Stages of Translation. Bath: Absolut Press, 1996, p. 153-159., que diz que a comédia tem sabido manter um elo com o seu público, indo ao encontro das reflexões de Vilma Arêas (1990). Ambos partilham da opinião de que as cenas cômicas estão devidamente registradas no texto e permitem o espectador rir de determinada situação, e essa cumplicidade entre o ator e plateia, assim como a interação entre eles proporciona melhor desenvolvimento da trama, captando a atenção da plateia, para que essa possa acompanhar o seu desenrolar, denotando uma qualidade que não se condiciona somente à escolha de atores para compor o elenco, mas também pela maneira como as emoções são trazidas à tona para esses profissionais durante a leitura dramática.

Na esteira do pensamento de Luciana Kaross, para a cumplicidade existir, as situações cômicas precisam estar vinculadas a situações familiares ou verossímeis, denotando “uma simulação de espontaneidade no texto teatral e, principalmente, no texto teatral cômico, pois é a espontaneidade que permite às piadas servir de gancho para as piadas seguintes” (Kaross 17Kaross, L. A tradução da comédia teatral em The Importance of Being Earnest: tradução comentada e anotada. 2007. 239f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Tradução) – Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007.). O tradutor de textos dramáticos tem que levar em consideração a relação do ator com a plateia no momento da performance Bassnett, (2005)Bassnett, S. Estudos de tradução. Tradução de Sonia Terezinha Gehring, Letícia Vasconcelos Abreu e Paula Azambuja Rossato Antinolfi. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005(a)., como também ter em mente que o texto é o ponto de partida para chegar ao estágio da performance, desde que os ajustes necessários à sua transposição para o palco possam estar dentro do período de duração do espetáculo, o que gira em torno de duas horas.

Ao fazer uma ponte com McLeish (1996)McLeish, K. “Translating Comedy”. In: Johnston, D. (ed.). Stages of Translation. Bath: Absolut Press, 1996, p. 153-159., pode-se dizer que o tradutor atua como mediador nesse processo de transposição do textual para o cênico, e que sua interferência seja mediana, para não comprometer o trabalho dos demais agentes do espetáculo. No tocante ao quesito da comédia, seu trabalho torna-se relevante, de modo que o texto encenado proporcione a relação de cumplicidade entre ator e plateia, como também fazer o público compreender o que está sendo transmitido, via expressões e gestos que captem a atenção do mesmo, podendo divergir um pouco do registro original (McLeish 155McLeish, K. “Translating Comedy”. In: Johnston, D. (ed.). Stages of Translation. Bath: Absolut Press, 1996, p. 153-159.).

Nas palavras de McLeish, o tradutor do texto cômico tem que trazer ao seu público a “motivação por detrás das palavras e, então, não tentar reproduzi-la, mas compreendê-la4 4 “the impulse behind the words, and then try not to reproduce it but to realise it”. ”, favorecendo a comunicação atores-plateia, tal como ocorre no texto-fonte, e encerra dizendo que “se isso pedir ‘um posicionamento’ do tradutor, que seja5 5 “if it requires ‘attitude’ in the translator, so be it”.” ” (McLeish 159McLeish, K. “Translating Comedy”. In: Johnston, D. (ed.). Stages of Translation. Bath: Absolut Press, 1996, p. 153-159.). Esse elo entre o tradutor e o texto escrito e o público respalda não apenas no entendimento cênico (que a performance seja compreensível à plateia), como também nos elementos linguísticos que circundam o texto, nos quais o tradutor possua sensibilidade e agudeza para perceber os trechos cômicos no texto-fonte, e que venham a soar de modo natural a plateia que se destina, para não haver estranhamento.

As piadas sutis e vulgares que aparecem no texto-fonte devem manter a mesma característica na performance, seja por meio de ajustes ou substituições no campo linguístico, uma vez que o tradutor trará ao texto em questão as convenções linguísticas, teatrais e culturais de sua língua. São esses elementos que vão nortear a gama de possibilidade de interpretação cênica, como também a sua externalização, corroborando com a seguinte reflexão de Marlene Fortuna:

Uma interlocução harmoniosa que incide o foco para uma comunicação iluminada, inesquecível. Para tanto, o emissor oral deve dominar com perfeição o O QUÊ do dramaturgo com seu respectivo COMO, também repertorizado com riqueza técnica, estética e sensível. Por outro ângulo, se o intérprete for desprovido do manancial que o COMO exige para enviar palavra e ficção flamejantes, o O QUÊ é derrotado

(Fortuna (b) 4Fortuna, M. Intertextualidade para a Comunicação Eficiente: do texto dramatúrgico à performance do ator em cena. Trabalho apresentado no DT 6 – Interfaces Comunicacionais do XV Congresso de Ciências da Comunicação. Anais do XV Congresso de Ciências da Comunicação, Vitória, ES, 2010(b), p. 1-15. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2010/resumos/R19-0170-1.pdf>. Acesso em 10 mar. 2019.
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).

Além disso, há de se ter em mente que dramaturgo, ator e tradutor são personalidades diferentes, e mesmo que o primeiro tenha ciência de que seu texto será repassado ao segundo e ao terceiro, o seu texto estará suscetível a modificações, a começar pelo trânsito do papel para a voz e o corpo do ator, o que permite inferir que fora a questão da mudança do aspecto escrito para o cênico, esses agentes “mexem e remexem tanto [no texto], a ponto de construir outra sintaxe, outra semântica, uma recente gramática textual” (Fortuna (c) 201Fortuna, M. A performance da oralidade teatral. 1ª edição. São Paulo: Annablume, 2000(a)., colchetes nossos). No tocante à linguagem humorística, os dramaturgos se valem dela quando necessário, seja em abundância na comédia, ou em certo grau dentro da tragédia, e transpor para o palco esse elemento risível – jogos de palavras, ironia, sarcasmo, deboche – para a voz e o corpo do ator, não apenas no âmbito linguístico, mas também na sua oralidade e performance psicomotora, demandando uma adequação cultural.

Para André Helbo (1987)Helbo, A. Theory of Performing Arts. Collection Critical Theory – Interdisciplinary Approaches to Language, Discourse and Ideology. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 1987., se não for levado em consideração o eixo temporal que difere o texto-fonte para a contemporaneidade, melhor dizendo, se o teatro contemporâneo ignorar ou somente respeitar o texto fonte em sua plenitude, isso resultará no pensamento errôneo de que não existe sobreposição entre texto e performance. Helbo enfatiza que “eles compartilham um território comum, o da tradução da escrita em signos cênicos6 6 “they share a common territory, that of the translation of writing into scenic signs”. ”, no qual o texto é considerado uma pré-dramaturgia que irá se transferir pela dramaturgia do diretor, do ator e da plateia (Helbo 46).

Helbo ressalta o caráter semântico para o estudo do texto do espetáculo, que segundo ele, consiste em reduzir o espetáculo à esfera cognitiva, ou seja, a “transmutação do significado do texto para o da produção do cenógrafo/praticante de teatro, tradução do universo cênico em representações semânticas por meio das estruturas mentais do espectador” (Helbo 131Helbo, A. Theory of Performing Arts. Collection Critical Theory – Interdisciplinary Approaches to Language, Discourse and Ideology. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 1987., itálico nosso7 7 “transmutation of the meaning of the text into that of the production for the scenographer/practitioner of theater, translation of the scenic universe into semantic representations by way of the spectator’s mental structures.” ). Se tradução consiste em um esforço cognitivo para que o texto-fonte seja lido para o público-alvo, o mesmo pode ser dito da tradução do humor no teatro, porque não se trata apenas de limitar a performance ao espaço do palco, em que o ator externaliza o humor verbal; traduzir o humor, independentemente de qualquer linguagem que se fará presente, consiste em algumas etapas, que elencamos aqui: a) a leitura da prévia do texto-fonte; b) identificação da linguagem humorística nesse texto; c) escolha e preparo do ator; d) inúmeros ensaios até que as falas estejam sincronizadas com o tempo de duração; e) a devida interpretação desse humor no palco, na televisão ou no cinema.

Sobre o trabalho com a linguagem, existem duas possibilidades para que a linguagem seja traduzida e interpretada de maneira compreensível pelos atores e apreendida pela plateia: a primeira diz respeito à pronúncia, que se facilitada, segundo Patrice Pavis (2008)Pavis, P. O teatro no cruzamento de culturas. Tradução de Nanci Fernandes. São Paulo: Perspectiva, 2008, torna a performance vocal possível, a qual é trabalhada durante as leituras em voz alta do texto, tanto pelo tradutor, como pelos membros da companhia teatral. Não obstante, a segunda possibilidade reside na carga semântica, isto é, pela escolha de palavras conhecidas do público, que não necessariamente precisam ser coloquiais. À guia de conclusão, o registro que aparece no texto-fonte, e que será transferido para a encenação, tem que estar condizente com o público que irá assistir e “ler” esse texto, de modo que não fuja da elaboração feita pelo autor para a construção do personagem.

A partir das considerações acima, o tradutor deve ter o devido cuidado, zelo e atenção para que a oralidade e a fluidez das cenas não se comprometam em sua encenabilidade, e um deslize dessa proporção pode comprometer tanto a atuação do ator como também a compreensão do público, indo ao encontro do argumento de Maria Helena Guimarães (2004)Guimarães, M. H. “A tradução para teatro”. Polissema, revista de Letras do ISCAP, Porto, nº 4, 2004, p. 59-70.: o tradutor não tem que atuar como leitor do texto-fonte, mas também de sua própria tradução, de modo que a comunicação oral e a representação do texto-fonte sejam reproduzidos na língua de chegada “de uma forma natural, de forma a evidenciar, sempre que necessário, os sociolectos e idiolectos próprios dos vários enunciadores/personagens colocados pelo autor em interacção” (Guimarães 60Guimarães, M. H. “A tradução para teatro”. Polissema, revista de Letras do ISCAP, Porto, nº 4, 2004, p. 59-70.). Cientes de que a tradução teatral é de tamanha complexidade, como também a linguagem humorística, nos momentos em que a transposição do sentido e da forma não venham a ser apreendidos pelo público, cabe ao ator reforçá-los via gestos e expressões corporais, de modo criativo.

Robert W. Corrigan (1964)Corrigan, R. W. “Translating for actors”. In: Arrowsmith, William; Shatuck, Roger (eds). The craft and context of translation: A critical symposium. New York: Anchor Books, 1964, p. 129-146., dramaturgo e tradutor de peças da Antiguidade Clássica, afirma que havia uma insistência em considerar o gesto como antecedente da oralidade, e que o gesto é “a verdadeira expressão do que sentimos, enquanto as palavras apenas descrevem o que sentimos” (Corrigan 130Corrigan, R. W. “Translating for actors”. In: Arrowsmith, William; Shatuck, Roger (eds). The craft and context of translation: A critical symposium. New York: Anchor Books, 1964, p. 129-146. 8 8 “the true expression of what we feel, while words describe what we feel” ), e felizmente essa concepção não mais é aceita, uma vez que o gesto não é um elemento acompanhador das palavras; gesto é “antes de tudo, a fonte, a causa e o diretor da linguagem, e, na medida em que a linguagem é dramática, é gestual” (Corrigan 131Corrigan, R. W. “Translating for actors”. In: Arrowsmith, William; Shatuck, Roger (eds). The craft and context of translation: A critical symposium. New York: Anchor Books, 1964, p. 129-146. 9 9 “is rather the source, cause, and the director of language, and insofar as language is dramatic, it is gestural”. ).

Fazendo uma correspondência entre gesto e palavra, ambos estão nivelados simultaneamente, em que o gesto é a externalização dramática do significado interno das palavras, e que essa conjunção consiste num jogo de significado que não tem uma fórmula exata, “mas que é definido em seu uso em conjunto; gesto é aquele sentido que está se movendo, em todos os sentidos da palavra: o que move as palavras e o que nos move” (Blackmur apud Corrigan 13410 10 No original: “but which is defined in their use together; gesture is that meaningfulness which is moving, in every sense of that word: what moves the words and what moves us.” ).

Além da dualidade palavra-gesto, outro fator importante para a tradução teatral está nas direções de palco, que nortearão a potência da palavra oralizada pelo ator, uma vez que elas servem como “diretrizes de motivação e ação em todas as partes individuais, e quando realizadas em performance, elas são tanto parte da peça quanto as palavras que os atores falam” (Corrigan 137Corrigan, R. W. “Translating for actors”. In: Arrowsmith, William; Shatuck, Roger (eds). The craft and context of translation: A critical symposium. New York: Anchor Books, 1964, p. 129-146. 11 11 “guidelines of motive and action throughout the individual parts, and when realized in performance, they are as much part of the play as the words the actors speak.” ), servindo de fio condutor para a tradução da palavra escrita ao palco. Corrigan é categórico ao dizer que as melhores traduções teatrais são aquelas nas quais o tradutor tem alguma prática ou vivência no teatro, e sem o devido treinamento e prática cênica, a tradução se reduzirá apenas ao aspecto semântico, e sem a devida familiaridade com a linguagem teatral, o tradutor “nunca produzirá traduções performáticas, e isto é, afinal, o propósito de fazer o trabalho em primeiro lugar” (Corrigan 13712 12 “will never produce performable translations, and this is, after all, the purpose of doing the job in the first place.” ).

Dessa forma, o tradutor de teatro atua como ator, no sentido de trazer os diálogos do autor em sua língua e em seu palco, sendo então um intérprete e um performer, estreitando a relação com o texto-fonte, tal qual como o ator em relação às direções de palco; existe a preocupação desses profissionais com relação à obra, no sentido de que sua interpretação seja clara e apreensível na sua língua, tal como foi a obra no seu contexto de partida. E em se tratando da comédia ou da presença da linguagem humorística no texto dramático, o tradutor tem como princípio não apenas a questão da encenação do referido texto, como também não pode ignorar o fato de que língua e cultura – e quiçá, prática teatral – estão associados (RosasRosas, Marta. “Por uma teoria da tradução do humor”. D.E.L.T.A., São Paulo, vol. 19, 2003, p. 133-161.).

O elo entre a teoria da tradução e do humor provém do domínio da linguagem, uma vez que é por meio dela que o ser humano se relaciona com o mundo, e embora a linguagem possa estar no âmbito da individualidade do homem, ela necessita de uma experiência social e coletiva para fazer sentido, ou seja, o que interessa à tradução do humor no teatro é o conteúdo, e evidentemente, a sua expressão no palco, tendo em mente o efeito principal: o riso. A linguagem do humor é rica em ambiguidades, se valendo de recursos como o trocadilho, o jogo de palavras, a ironia, a antítese, entre outros, tendo como efeito suscitar o riso no destinatário; no tocante à sua tradução, é imprescindível que o texto-traduzido tenha esses elementos para surtir o mesmo efeito que o texto-fonte.

Sobre trocadilhos e metáforas, a tradução teatral pode ser tão elaborada quanto à tradução literária, pois o teatro permite maior grau de liberdade para com a variante linguística presente no original, uma vez que esses elementos causadores da comicidade podem ser substituídos tanto por escolhas lexicais que não distanciem do seu significado, como também compensados via gestos e expressões corporais e faciais.

A tradução desse humor para o teatro-alvo tem que levar em consideração o pensamento subjacente ao conteúdo do texto, e se o texto performático não trazer à tona o desenrolar das ações cômicas conforme previstas no texto escrito, o espetáculo se compromete. E para que o princípio de suscitar o riso no espectador aconteça, o tradutor de textos humorísticos tem três possibilidades: abrir mão da passagem cômica, comprometendo o desenrolar da ação, propor uma tradução literal, prejudicando o significado proposto no texto, ou realizar uma adaptação do conteúdo na língua em que versa, criando um ambiente ou um sentido de maneira quase semelhante ao texto-fonte, e que “o tradutor tem de tomar tal decisão de caso em caso, e não há nenhuma regra simples para saber como lidar com estes tipos de situações” (Luiz (a) 32Luiz, T. M. “Tradução de humor: Algumas considerações”. Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, vol. 2, núm. 1, p. 19-34, 2016(a).).

Considerações finais

A tradução teatral é uma operação verbo-voco-visual, emprestando o termo de Haroldo de Campos, uma vez que o teatro articula a relação da palavra com a sonoridade e a recepção da plateia quando esse texto está em performance. Sobre o humor, seja no gênero comédia ou tragédia, o princípio norteador é despertar o riso no espectador, e que isso só é possível quando há cumplicidade entre ator e plateia.

Cabe diferenciar que interpretar no palco não é o mesmo que ler o texto dramático isoladamente, no entanto, durante a leitura, sejamos capazes de visualizar o desenvolvimento da ação, assim como as emoções McLeish, (1996)McLeish, K. “Translating Comedy”. In: Johnston, D. (ed.). Stages of Translation. Bath: Absolut Press, 1996, p. 153-159..

O gênero dramático comédia foi escrito especificamente para nos fazer rir. E traduzir a comicidade, melhor dizendo, o humor que gera essa comicidade, é um terreno profissionalmente interessante, porém com percalços profissionais. A peça dramática que contenha passagens cômicas deve ser traduzida de forma acessível, para produzir um efeito semelhante ao do texto-fonte, via tomada de decisão durante as escolhas tradutórias e cênicas, pensando no público frequentador do espaço do teatro.

A matéria do texto demanda um trabalho não apenas de leituras, mas também de ensaios que estejam sincronizados com o desenvolvimento da ação e a duração do espetáculo, girando em torno de duas horas, fazendo com que vejamos a tradução teatral do humor como um desafio, pois ela demanda maior preparo do ator para convencer a sua plateia de que aquele trecho é engraçado, despertando-lhe o riso. Além da escolha do ator que tenha relevância e veia cômica, o tradutor e a equipe por trás do espetáculo devem trabalhar horas a fio até que o texto esteja sincronizado e harmonizado com o tempo de fala dos atores (Luiz (a) 29Luiz, T. M. “Tradução de humor: Algumas considerações”. Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, vol. 2, núm. 1, p. 19-34, 2016(a).), e que esse texto performado não se distancie da intenção do autor original.

A princípio, seria uma questão de dizer que houve uma reformulação e recaracterização dos personagens em relação ao original, porém como se trata de uma linguagem diferente da literária, um dos aspectos do teatro – e como qualquer outro sistema audiovisual – está em explicitar o que o texto literário “pôde provar como uma mera indicação de fazê-lo implicitamente ou parcialmente omitindo-o” (Dusi 56), sendo imprescindível que haja uma mudança nas estratégias utilizadas, permitindo que “todo o elemento fundamental do texto-fonte apareça”, e que traduzir é uma atividade intersensitiva, melhor dizendo, que os significados oriundos da base possam ser refletidos na apreciação do novo texto (Dusi 58Dusi, N. “Tradução, Adaptação, Transposição”. In: Aguiar, D.; Queiroz, J.. Tradução, Transposição e Adaptação Intersemióticas. São Carlos: Pedro e João Editores, 2016, p. 53-68.).

Cabe ressaltar que o humor no teatro é um elemento rico e profícuo para a encenação, cabendo aos agentes do teatro, no momento dos ensaios, perceberem-no e saberem como transmiti-lo ao palco e ao seu espectador, de modo que o efeito desejado seja alcançado – o riso. Palavra, corpo, voz, caracterização e demais componentes semióticos do espetáculo contribuem para a potencialização e ressignificação do caráter cômico do texto original. Adicionado a isso, tem o caráter complexo cultural do humor que suscita questões de ordem intercultural e interlinguística da tradução, pois os espectadores imaginados pelos agentes do teatro podem não ter familiaridade com essas marcas imbricadas no componente linguístico, pois há a possibilidade de não haver correspondente na língua-alvo, cabendo ao ator ressignificar esse conteúdo na sua língua de modo criativo, para que não haja “estrangeirização” por parte do espectador.

Sintetizando, esse trabalho não consistiu apenas na reflexão jakobsoniana de tradução intersemiótica, mas no que Dinda Gorlée chamou de meta-criação, conceito esse que ela define como o intercâmbio entre as várias linguagens que criam metatextos culturais “que integram revisões explícitas e implícitas e comentários do leitor/ouvinte ou do tradutor/intérprete especializado” (Gorlée 69Gorlée, D. L. “Metacriações”. In: Aguiar, D. and Queiroz, J. Tradução, Transposição e Adaptação Intersemióticas. São Carlos: Pedro e João Editores, 2016, p. 69-134.), as quais prescindem da correspondência palavra-voz, resultando na reunião de linguagens verbais e não-verbais. Nas palavras da teórica, os textos-fonte e alvo irão se cruzar, sobrepor, dividir ou dissolver “na meta-criação, ou seja, a criação de ‘novos textos’ a partir de ‘velhos textos’, como uma operação palimpséstica (Gorlée 69Gorlée, D. L. “Metacriações”. In: Aguiar, D. and Queiroz, J. Tradução, Transposição e Adaptação Intersemióticas. São Carlos: Pedro e João Editores, 2016, p. 69-134.).

  • 1
    “no le causan problemas las palabras homófonas pero no homógrafas. Por eso la homofonía no es asunto de la teoría de la traduccíon”. Todas as traduções aqui realizadas são de minha autoria.
  • 2
    “perception depends directly on the concurrence of facts and impressions available to both speaker/writer and listener/reader”.
  • 3
    “consists of a series of moments of complicity between performer and spectator”
  • 4
    “the impulse behind the words, and then try not to reproduce it but to realise it”.
  • 5
    “if it requires ‘attitude’ in the translator, so be it”.”
  • 6
    “they share a common territory, that of the translation of writing into scenic signs”.
  • 7
    “transmutation of the meaning of the text into that of the production for the scenographer/practitioner of theater, translation of the scenic universe into semantic representations by way of the spectator’s mental structures.”
  • 8
    “the true expression of what we feel, while words describe what we feel”
  • 9
    “is rather the source, cause, and the director of language, and insofar as language is dramatic, it is gestural”.
  • 10
    No original: “but which is defined in their use together; gesture is that meaningfulness which is moving, in every sense of that word: what moves the words and what moves us.”
  • 11
    “guidelines of motive and action throughout the individual parts, and when realized in performance, they are as much part of the play as the words the actors speak.”
  • 12
    “will never produce performable translations, and this is, after all, the purpose of doing the job in the first place.”

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2019
  • Aceito
    06 Nov 2019
  • Publicado
    Jan 2020
Universidade Federal de Santa Catarina Campus da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Comunicação e Expressão/Prédio B/Sala 301 - Florianópolis - SC - Brazil
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