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Bakhtiniana. Uma revista de estudos do discurso

[...] temos em vista o discurso, ou seja, a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da linguística, obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso. [...] [As análises subsequentes] Podem ser situadas na metalinguística, subentendendo-a como um estudo – ainda não constituído em disciplinas particulares definidas – daqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam – de modo absolutamente legítimo – os limites da linguística.

Mikhail Bakhtin

Este é mais um número de Bakhtiniana, um periódico de qualidade que há treze anos vem publicando estudos sobre o discurso. Discurso – sabemos todos, é um termo polissêmico, um daqueles inúmeros termos que, na ciência, exige uma definição para ser compreendido dentro do arcabouço teórico de que é parte. Por isso, no periódico cujo título presta homenagem a um grupo de estudiosos que inovou de modo marcante e original os estudos da linguagem, vale retomarmos o sentido de discurso de acordo com a Análise Dialógica do Discurso – ADD, perspectiva teórica e metodológica de pesquisa inspirada na obra de Mikhail Bakhtin e o Círculo.

Discurso é um dos conceitos básicos elaborados pelo grupo constituído por Mikhail Bakhtin, Valentin N. Volóchinov e Pavel N. Medviédev, entre outros, que se reunia na década de 1920-1930 para discutir temas como a linguagem, em diferentes modalidades – literatura, filosofia, religião, cultura –, a criação ideológica, enfim, num difícil momento em que a própria sobrevivência estava em risco. E ainda que um Editorial não seja o espaço mais adequado para o aprofundamento da noção, destaquemos alguns aspectos dela. O conceito de discurso, que era realmente inovador naquele momento, referia-se à “língua em sua integridade concreta e viva” (BAKHTIN, 2008BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 4. ed. revista e ampliada. Tradução, notas e prefácio de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., p.207). Não abandonando a atenção aos aspectos propriamente linguísticos do enunciado, Mikhail Bakhtin propõe que se estudem aqueles “[...] aspectos da vida do discurso que ultrapassam – de modo absolutamente legítimo – os limites da linguística” (2008, p.207). Esses aspectos extralinguísticos, constituídos pelas relações dialógicas, apontam “posições de diferentes sujeitos” (BAKHTIN, 2008BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 4. ed. revista e ampliada. Tradução, notas e prefácio de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., p.209), conforme ele esclarece na sequência do texto em epígrafe. Em 1926, também Volóchinov tratava do enunciado concreto e da interação discursiva que atua sobre ele como uma força externa. Diz ele: “a situação integra o enunciado como uma parte necessária de sua composição semântica” (VOLOCHÍNOV, 2019VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLOCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia. Ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo, 2019, p.109-146., p.120; itálico no original). E o mesmo faz Medviédev no trecho a seguir, de 1928, em que destaca o aspecto axiológico do discurso: “A avaliação social é aquele denominador comum ao qual se reduzem o conteúdo e a forma em cada elemento da construção [do enunciado]” (MEDVIÉDEV, 2012MEDVIEDEV, P. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação de Beth Brait. Prefácio de Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2012., p.206). Em suma, o foco dos estudos conduzidos pela ADD é a língua (ou linguagem) em sua integridade concreta e viva, cujo sentido é alcançado por meio de relações dialógicas (que são axiológicas).

Nem por isso Bakhtiniana restringe a esse espectro teórico-metodológico a publicação de seus artigos, acatando estudos sob diferentes perspectivas discursivas. Em nossas páginas, são comuns os artigos que buscam o sentido de discursos diversos, fundamentando-se em teorias de diferentes pensadores, caso de Michel Foucault, Michel Pêcheux, Norman Fairclough, Oswald Ducrot, Jean-Claude Anscombre, Yuri Lotman, Algirdas J. Greimas, Jacques Fontanille, Dominique Maingueneau, entre muitos outros. Quando colocamos, na capa do periódico, que nosso “objetivo [é] promover e divulgar pesquisas produzidas no campo dos estudos do discurso”, temos consciência de que os estudos discursivos abarcam uma grande quantidade de teorias, por vezes complementares, por vezes contraditórias. Nosso objetivo, então, colocado de forma ampla, restringe-se à publicação de artigos de qualidade que tenham como escopo o “discurso”, compreendido de acordo com cada epistemologia que o toma como objeto.

É exatamente isso que ocorre neste terceiro número de 2021, em que podemos entrever análises do discurso a partir de vertentes teórico-metodológicas variadas. O primeiro texto, de Mailson Fernandes Cabral de Souza (UNICAP-PE), intitulado “Maria Emília Amarante Torres Lima: um resgate da memória da Análise do Discurso no Brasil”, retoma e valoriza a trajetória intelectual de Maria Emília Amarante Torres Lima, importante pesquisadora brasileira, orientada por Michel Pêcheux entre os fins da década de 1960 e 1980, quando passou um longo período em Paris. O texto expõe a trajetória da pesquisadora em um passado relativamente recente, mas parcialmente esquecido, valorizando o trabalho de uma pioneira nos estudos do discurso no Brasil, que inicialmente estavam vinculados à Psicologia Social. Com o aporte teórico-metodológico dos estudos desenvolvidos por Jeanne Marie Gagnebin sobre memória e narração, o texto relembra o trabalho de Torres Lima, recuperando sua memória dentro da história da Análise do Discurso brasileira e dissociando a análise pecheutiana de uma única narrativa histórica mais conhecida e lembrada entre nós. Além disso, em um momento de forte inflexão autoritária no país, torna-se imprescindível retomar o contato com a análise que Torres Lima realiza a respeito do funcionamento dos discursos de 1º de maio de Getúlio Vargas.

O segundo texto do número toma como fundamento teórico-metodológico a perspectiva bakhtiniana. Elaborado por Mohammadreza Hassanzadeh Javanian, da Freie Universität Berlin, Berlin, e Farzan Rahmani, da Faculty of Foreign Languages and Literatures, Department of English, Tehran, intitula-se “Piada pra morrer de rir: um estudo sobre o discurso carnavalesco no Filme Coringa de Todd Phillips”. O artigo discute diferentes elementos carnavalescos/carnavalizados presentes no filme Coringa (2019), mostrando como ele apresenta o conhecido personagem sob uma aura marcada pela consciência política, de forma a realizar um ataque contra a cultura dominante e oficial do universo de Gotham, tornando a anarquia uma condição utópica de liberdade.

Da análise do filme passamos à análise de um importante compositor atual de rap, no Brasil, no artigo que tem o instigante título “As barbas de um Bluesman: um signo de resistência negra no rap baiano”, redigido por Camilla Ramos dos Santos, Marlúcia Mendes da Rocha e Isaias Francisco de Carvalho, todos da Universidade Estadual de Santa Cruz (Ilhéus, Bahia). É um texto importante para quem deseja conhecer mais do rap e do hip hop brasileiros e sua atuação como signo ideológico na construção de uma consciência negra no Brasil. São analisadas canções do segundo álbum de Baco Exu do Blues, o Bluesman, destacando os modos como critica as condições de desigualdade socioeconômica e o racismo impostos ao afrodescendente, lançando um grito de resistência à necropolítica em nome de valores da ética e da poesia aliados ao fazer político. A partir de conceitos bakhtinianos e teorias sociais que nos levam a entender melhor o racismo estrutural que domina nosso país, o texto destaca o papel do rapper, mostrando como seu trabalho constitui um dos passos para “a construção de uma sociedade democrática nos termos de uma ética antirracista”.

O artigo seguinte, “O gênero discursivo e a disputa pelas formas de (re)construção das práticas sociais”, elaborado por Vanessa Arlésia de Souza Ferretti (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Campo Grande), tem como escopo teórico a Análise Crítica de Discurso e a Análise Crítica de Gêneros. A partir dessas lentes teóricas, a pesquisadora analisa uma sessão de grupo socioeducativo para homens autores de violência contra a mulher e aponta pontos de aberturas imprescindíveis na luta política por mudanças sociais.

Sob ainda outro ponto de vista teórico-metodológico, a Análise de Discurso originária da França, Gláucia Muniz Proença Lara (UFMG) escreve “Brasileiros na Europa: três histórias de sucesso”. A partir dessa perspectiva, o artigo aborda três narrativas de vida de migrantes brasileiros na Europa, buscando compreender, por meio da análise de seus discursos, que motivos os levaram à empreitada migratória e ao sucesso.

O artigo seguinte aborda o discurso bíblico religioso da epístola de Paulo aos Romanos. Ilderlândio Assis de Andrade Nascimento (UFRN), em “A diatribe na construção de sentidos da Carta de Paulo aos Romanos”, coloca em diálogo aquele discurso bíblico com a perspectiva bakhtiniana de linguagem, mostrando a ocorrência da diatribe materializada nos elementos linguístico-enunciativos configuradores do discurso direto retórico no texto. Dessa forma, revela a dialogicidade interna da carta, assim como o diálogo velado que encerra e o encontro de vozes e discursos que materializam os pontos de vista dos destinatários.

O último artigo contempla o discurso poético. Vadim Andreev (Universidade Estatal de Smolensk, Federação Russa) realiza a análise da evolução das categorizações de espaço e movimento na poesia do americano H. W. Longfellow, no artigo “Evolução do estilo: espaço e movimento nos poemas líricos de Longfellow”. O texto acompanha a organização estrutural de seus poemas ao longo de sua carreira, relacionando-a com seu mundo poético.

Completam o número uma resenha e uma entrevista, ambas de amplo alcance nos estudos da linguagem. Juliana Harumi Chinatti (UnB) resenha a obra Racismo estrutural, de Sílvio Almeida, essencial para qualquer pesquisa na área das ciências humanas que pretenda compreender a constituição do racismo em suas diferentes dimensões, suas relações com o poder e a ideologia. E Jean Carlos Gonçalves (UFPR) nos leva a conhecer melhor Dick McCaw, professor do Departamento de Drama, Teatro e Dança da Royal Holloway, Universidade de Londres e grande conhecedor da obra bakhtiniana no que se refere ao teatro, na entrevista “Bakhtin, discurso teatral e educação estética: uma entrevista com Dick McCaw”.

Como podem ver os leitores, trata-se de um número variado tanto do ponto de vista teórico quanto em termos dos diferentes discursos analisados e das diversas instituições e autores que congrega nove pesquisadores brasileiros de sete diferentes universidades brasileiras (UNICAP-PE, UESC-BA, UEMS-MS, UFRN-RN, UFMG-MG, UnB-DF, UFPR-PR) e três pesquisadores representando universidades estrangeiras (Berlim-Alemanha, Teerã-Irã, Smolenka-Federação Russa). Convidamos todos – leitores, autores e colaboradores – a saborear e incluir em suas pesquisas esse conjunto que, mais uma vez, dá ao periódico Bakhtiniana a oportunidade de participar ativamente da vida cultural e acadêmica brasileira e internacional. As submissões, assim como sua rigorosa seleção, realizada por competentes e colaborativos pareceristas do Conselho e ad hoc, permitiram chegar a este excelente resultado: Bakhtiniana mantém-se firme no compromisso de sempre criar possibilidades dialógicas entre a pesquisa ligada aos estudos discursivos da linguagem.

Nossa gratidão, mais uma vez, dirige-se ao constante e importante apoio, auxílio e reconhecimento da PUC-SP que, por meio do Plano de Incentivo à Pesquisa (PIPEq)/Publicação de Periódicos (PubPer-PUCSP) – 2021, Solicitação 18.937, possibilitou mais este número e, assim, a continuidade do periódico Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso. Por outro lado, lamentamos imensamente, assim como toda a comunidade acadêmica e científica, o desaparecimento do apoio da CAPES e do CNPq aos periódicos brasileiros de excelência, configurando, também nesta área, o descaso pela ciência que singulariza o atual governo.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski 4. ed. revista e ampliada. Tradução, notas e prefácio de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
  • MEDVIEDEV, P. O método formal nos estudos literários Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação de Beth Brait. Prefácio de Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2012.
  • VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLOCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia Ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo, 2019, p.109-146.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2021
  • Data do Fascículo
    July/Sept. 2021
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