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Ética participativa em Bakhtin. Pandemia e pansemia

RESUMO

O projeto filosófico concebido por Bakhtin no início do século XX visava fundar uma filosofia moral que modificasse a atuação do homem na vida cotidiana e na cultura. A data em que se presume que o texto foi escrito [1924?] indicaria o rumo que tomava esse pensamento e o modo como ele propunha, quase utopicamente, a transformação cultural em um momento marcado por enormes tensões políticas e a construção social de um sujeito concreto, cuja responsabilidade moral estivesse historicamente situada e se convertesse em um modo de ação participativa. Desde aquele momento histórico, um século se passou, e hoje pode ser oportuno confrontá-lo com o nosso presente, em um planeta governado pela economia capitalista e uma população sofrendo com uma pandemia de grandes proporções. Longe da pretensão de estabelecer uma comparação, oferecemos alguns apontamentos e imagens que estimulam a reflexão sobre essa filosofia ética, a qual não acreditamos poder abarcar em sua complexidade1 1 Este texto foi escrito a partir de uma comunicação realizada pelos autores no 22º. InPLA, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, em 2021, durante o Simpósio “Pensamento bakhtiniano: recepção, teoria e prática”, e foi originalmente apresentado (e posteriormente escrito) em espanhol: Ética participativa en Bajtín. Pandemia y pansemia.

PALAVRAS-CHAVE:
Mikhail Bakhtin; Ética participativa; Pandemia; Ato ético

ABSTRACT

The philosophical project that Bakhtin conceived at the beginning of the 20th century aims to find a moral philosophy that modifies the performance of man in daily life and in culture. The date [1924?] on which its writing is presumed would indicate the direction that Bakhtinian thought was taking, proposing an utopian cultural transformation in a time marked by enormous political tensions, and the social construction of a real subject, whose moral responsibility historically situated would turn into a mode of participatory action. Since that historical moment, a century has passed, and today it may be opportune to confront it with our present, in a planet governed by the capitalist economy with its population living a pandemic of great proportions. Far from establishing a comparison with that ethic project, we will offer some notes and images that encourage reflection on a philosophy that we do not believe we can cover in its complexity.1 1 This text was presented as a communication by the authors for the 22nd InPLA - Intercâmbio de Pesquisas em Linguística Aplicada [Exchanging of Resarches in Applied Linguistics] at Pontificate Catholic University of São Paulo - PUC-SP, in 2021, in the symposium “Pensamento bakhtiniano: recepção, teoria e prática” [Bakthinian Thought: Reception, Theory and Practice]. It was originally presented (and later written) in Spanish: Ética participativa en Bajtín. Pandemia y pansemia.

KEYWORDS:
Mikhail Bakhtin; Participatory Ethics; Pandemic; Ethic Act

I.

A intenção explícita de Mikhail Bakhtin ao escrever seu ensaio Para uma filosofia do ato ético (2010 [1924?])4 4 Para referência, ver nota 2. era propor uma filosofia moral que permitisse recuperar a responsabilidade dos atos situados temporalmente do sujeito pessoal, diante das vastas áreas de expansão da cultura, em suas diferentes manifestações na arte, na ciência e nas formas e valores de vida. Hoje já se passou exatamente um século desde que ele escreveu seus textos, e pode ser oportuno relê-los e confrontá-los com nosso presente, em um planeta governado por uma pandemia de grandes proporções, embora apenas possamos oferecer algumas notas e apontamentos que nos incitem à discussão de um ensaio muito denso, que não cremos poder abarcar em toda sua complexidade.

Cabe pensar que, na data em que se presume sua redação (1920-1924) em Vitebsk, o contexto era pós-revolucionário e talvez transcorresse a guerra civil (1918-1921), anterior à fundação da URSS por Lenin em 1922, o que parece indicar o rumo que tomava o pensamento de Bakhtin e o modo quase utópico de uma transformação cultural em um momento marcado por enormes tensões políticas. Ele se atreve a propor a construção social de um sujeito “concreto”, cuja responsabilidade moral estivesse historicamente situada e se convertesse em um modo de ação participativa em todas as ordens do fazer, tanto cotidianas como específicas. É oportuno destacar o potencial político do projeto bakhtiniano (BRANDIST, 2009BRANDIST, C. Una revisión desde el marxismo. Bajtín: ética, política y el potencial del dialogismo. Herramienta. Revista de debate y crítica marxista, 2009. Disponível em: https://herramienta.com.ar/una-revision-desde-el-marxismo-bajtin-etica-politica-y-elpotencial-del-dialoguismo. Acesso em: 29 set. 2021.
https://herramienta.com.ar/una-revision-...
), ainda que Bakhtin não fosse declaradamente marxista.

O ensaio parte de uma crítica à filosofia de seu tempo, em que, revisando pensadores centrais, Bakhtin observa, em suas propostas, que o mundo da vida real concreta e o mundo da cultura, no qual os atos são objetivados, estão separados, e que até a filosofia da linguagem se colocou do lado da abstração, desconhecendo a intensa emotividade subjetiva da palavra. Sua proposta, então, é tornar ambos os mundos participantes necessários na unidade do ser que se realiza na vida, tanto em termos da responsabilidade moral cotidiana, como da responsabilidade especializada. Só assim pode ser superado o divórcio entre os dois planos, questão que havia delineado claramente no artigo de 1919, “Arte e responsabilidade”: “Pelo que vivenciei e compreendi na arte, devo responder com minha vida para que todo o vivenciado e compreendido nela não permaneçam inativos” (2006 [1919], p.XXXIII-XXXIV)5 5 Para referência, ver nota 2. .

De modo notável, Bakhtin afirma que a validade universal de um julgamento só é um “dever ser” abstrato se não estiver profundamente ligada ao momento único e historicamente datado do ato de conhecer “no contexto único da vida real única de um sujeito” (BAKHTIN, 2010 [1924?], p.46)4 4 Para referência, ver nota 2. . Alcançar a verdade não é um “dever ser”, se não vier de um ato responsável de um sujeito historicamente situado. E se entendemos corretamente, descobrir a verdade tem apenas valor universal e teórico quando não é o resultado de um ato moralmente responsável. Como aponta Bubnova (1997, p.13, nota de rodapé 3), o homem ético não é aquele que responde a um conjunto de valores préestabelecidos, mas à forma como se relaciona com eles. E vale ressaltar mais uma vez o que significava pensar um ato humano em sua realidade histórica, situando-nos em seu tempo e também no nosso, que é o objeto desta intervenção. Pensando na instância da cronotopia revolucionária russa, sua abordagem filosófica é muito comovente, pois coloca o homem fazendo história a partir de seu lugar, e com isso também dá sentido à história. Sentido que, como Bubnova (1997, p.3, nota de rodapé 5) novamente esclarece como tradutora, tem na linguagem bakhtiniana um uso inusitado em seu caráter de acontecimento, o que envolve particularmente um modo de ser e agir no mundo dos homens.

Ao longo do texto, ele incorpora a discussão sobre o conhecimento a partir da abordagem transcendental em Kant, que ele questiona, pois, em sua opinião, não resolve a passagem do ato de cognição a priori ao ato individual e irrepetível do sujeito cognoscente e, portanto, o eu kantiano é “um sujeito puramente teórico, historicamente inexistente, uma consciência científica, um sujeito gnoseológico” (BAKHTIN, 2010, p.48)5 5 Para referência, ver nota 2. . É um ser no qual “nele eu não vivo, e se fosse tal mundo o único, eu não existiria” (2010, p.52; grifo no original)6 6 Para referência, ver nota 2. .

Como vemos, há uma notável insistência em Bakhtin de recuperar o ser concreto, na medida em que se produz como um “evento real singular do existir” (2010, p.49)6 6 Para referência, ver nota 2. , do ser ontologicamente compreendido pela filosofia, porque essa abstração o separa de sua singularidade histórica e viva, de sua vocação de inacabamento, do processo incessante de escolhas e riscos. Porque o ser não se apresenta como uma coisa, como algo dado e, portanto, fechado e autossuficiente em sua imanência. Assim, o ato de cognição não conseguiu superar a cisão com o sujeito teórico, e as ciências tornaram-se especificidades singulares, “podemos dizer, (...) da época moderna, dos séculos XIX e XX em especial” (2010, p.50)8 8 Para referência, ver nota 2. .

Ao abordar o ato ético em Bakhtin, animamo-nos a propô-lo como uma vivência moral, pois não basta concordar com os termos da norma, mas torná-la viva no próprio ato:

(…) o ato é ativo no produto real único que ele criou (em uma ação real efetuada, em uma palavra dita, em um pensamento pensado, onde, além disso, a validade abstraída de si da lei jurídica real não é mais que um momento) (BAKHTIN, 2010, p.78)9 9 Para referência, ver nota 2. .

Há um apelo à internalização da lei na ação humana para vê-la como “um ato vivo no mundo real” (2010, p.78)10 10 Para referência, ver nota 2. , rejeitando todo teoricismo filosófico, toda noção abstrata do dever ser, todo universalismo que não se encarne no homem histórico real, que é quem confere sentido ao ato.

A produção de sentido na cultura, então, estaria intimamente ligada ao modo concreto como os homens agem nela. Entre o homem individual e a cultura há uma interação profunda, e somente nesse contexto os atos assumem sua singularidade, muitas vezes expressa pelo tom emocional e volitivo da linguagem. Porque é muito interessante descobrir o papel da linguagem tanto como pensamento como vivência de um evento do qual se participa por meio de uma atitude avaliativa e desejante em relação a um objeto de valor, do qual alguém se apropria ao realizar o acontecimento de ser. E essa consciência do pensamento em ato cria um vínculo essencial com o mundo da cultura, que é o pensamento dos homens objetivamente significado com “o qual a consciência viva se torna consciência cultural, e uma consciência cultural se encarna na consciência viva” (BAKHTIN, 2010, p.89)7 7 Para referência, ver nota 2. , já que o universal só ganha valor no individual, quando cada ato é vivido participativamente.

Ser é uma potencialidade - um “documento não assinado” (BAKHTIN, 2010, p.101-102)8 8 Para referência, ver nota 2. que só adquire existência quando o sujeito se assume como singularidade insubstituível a partir de um único lugar. “O não-álibi no ser” (BAKHTIN, 2010, p.96)9 9 Para referência, ver nota 2. é o fundamento da singularidade do ser no dado, e é assumido no que se propõe, o ato do dever ser, em sua participação responsável, única e singular, “um centro real de origem do ato [ético]” (BAKHTIN, 2010, p.100)10 10 Para referência, ver nota 2. . Por isso, todo gesto, sentimento ou experiência com sentido encarna em mim, o que, dentro do mundo pensado abstratamente como conteúdo semântico, tem infinitas possibilidades de realização. É o meu lugar no ser que dá sentido aos valores, aos objetos, ao outro, porque o sentido se realiza quando se aceita sua participação indesculpável, “porque ser realmente na vida significa agir, é ser não indiferente ao todo na sua singularidade” (BAKHTIN, 2010, p.99)15 15 Para referência, ver nota 2. .

Assim como o homem universal não existe a partir do meu ser centrado - eu existo concretamente e meu próximo existe (a humanidade social) -, há também o microtempo das pessoas históricas reais - “o caráter humano da história” (BAKHTIN, 2010, p.122)16 16 Para referência, ver nota 2. - dentro de um tempo que corresponde à humanidade historicamente concebida. A aparente pequenez de cada ser singular em relação à totalidade do mundo no ilimitado de suas potencialidades, não é tanta se pensarmos na participação real “do todo infinito” (BAKHTIN, 2010, p.111)17 17 Para referência, ver nota 2. de uma consciência ativamente envolvida em cada instância do evento, do simples cotidiano às grandes esferas da cultura, das quais faço parte.

No entanto, responsabilidade singular não significa individualismo, mas sim a responsabilidade de cada ser em seu próprio lugar: “viver do interior de si mesmo nas próprias ações não significa de jeito algum viver e agir por si” (BAKHTIN, 2010, p.122)11 11 Para referência, ver nota 2. . Somente eu sou eu para mim e os outros são outros para mim, porque emocional e volitivamente eu os amo como outros, e isso me obriga a me relacionar de maneira única com seus valores e acima de tudo a “reconhecê-lo” como outro, diferente de mim, que também participa pessoalmente do ser. Tão importante é essa relação recíproca e valorativa eu-outro que Bakhtin a coloca como a chave da arquitetônica da filosofia moral que propõe e a anuncia justamente como a primeira parte de sua obra (recuperada em fragmentos)12 12 Para referência, ver nota 2. . Ele considera que sua filosofia moral não é o desenvolvimento de um esquema abstrato, mas a proposta de “momentos” (em sentido iterativo, dinâmico) que, como vimos, ele chamará de “vivências” (emocionais e volitivas) de um sujeito singular que se posiciona eticamente (como consciência participativa), a partir de seu lugar, diante dos valores das grandes áreas que mobilizam e constituem a cultura:

Estes momentos fundamentais são: eu-para-mim, o outro-para-mim e eu-para-o-outro; todos os valores da vida real e da cultura se dispõem ao redor destes pontos arquitetônicos fundamentais do mundo real do ato: valores científicos, estéticos, políticos (incluídos também os éticos e sociais) e, finalmente, os religiosos. Todos os valores e as relações espaço-temporais e de conteúdo-sentido tendem a estes momentos emotivo-volitivos entrais: eu, o outro, e eu-para-o-outro (BAKHTIN, 2010, p.114-115)20 20 Para referência, ver nota 2. .

Nos parágrafos finais da introdução, Bakhtin levanta uma crítica a seu tempo, que considera estar em crise moral devido à fratura existente entre o ato humano e o produto que constrói seu próprio sistema moral, liberto de sua origem no ser, de sua motivação real, adquire uma autonomia e uma imanência. Parece-nos que, nisso, há uma certa profecia cujo apogeu hoje vivemos, em termos do próprio valor do dinheiro, separado do ato em sua motivação real. Por outro lado, ele sustenta que, quando o ato individual se separa da cultura, perde sua entidade, degenera-se e torna-se um ato puramente biológico ou técnico, um ato expresso como pura necessidade que arrasta ao sentimento de um niilismo cultural, que deixa de lado a vida como um evento aberto e arriscado.

Em suma, Bakhtin recusa uma posição essencialista em relação ao ser, pois a vida humana é sempre um projeto inacabado que se desdobra em cada ato, o ato vivido, o da experiência participativa de qualquer esfera da cultura, a da arte, a da ciência, a da política ou a da religião. Tal experiência me altera e altera o mundo. Ao se integrar em um ato participativo e responsável na totalidade da cultura, a pessoa compreende o sentido que esse ato tem para si e reconheço sua diferença em relação ao outro real. Como aponta Augusto Ponzio (1997PONZIO, A. Para una filosofía de la acción responsable. In: BAJTÍN, M. Hacia una filosofía del acto ético. De los borradores y otros escritos. Trad. Mercedes Arriaga Flórez. Barcelona: Anthropos, 1997. p.225-246., p.225-246), esse fundamento ético é levado inicialmente ao plano estético, mas deixaremos seu desenvolvimento para outra oportunidade.

II.

Assim como Bakhtin, também nós estamos em um período de profunda crise social e humana, em nosso caso agravada pela situação da peste global. Mas, longe de querer estabelecer uma comparação com a filosofia do ato ético defendida pelo mestre russo, nossa ideia para este artigo é levantar algumas reflexões sobre a relação entre o mundo da vida (que hoje inclui a natureza de forma intensa) e o mundo da cultura, responsável em boa parte pelo que acontece com a vida em nível planetário. Como sabemos, ambos os mundos habitam o signo do viral, tanto pela consciência dessa infinidade de agentes sinistros que percorrem nosso corpo ou desencadeiam epidemias inusitadas (MÜLLER, 2020MÜLLER, M. Pandemia: virus y miedo. Una historia desde la gripe española hasta el coronavirus Covid-19. Buenos Aires: Paidós, 2020.), quanto pela nossa própria produção cultural, regida pela perseguição impaciente da novidade e do registro fugaz de cada evento.

O mundo da vida e o mundo da cultura são assim afetados, um pela pandemia e o outro por uma certa pansemia, tomando este último termo como a proliferação de signos que se propagam “viralmente” e que mostram modos de ação por meio dos quais, em um momento em que a vida de nossa espécie está ameaçada, o humano se vincula de forma particular com os valores da vida, dando-lhes uma diversidade de significados. E aqui usamos a palavra pansemia como a multiplicação descontrolada de significados em diferentes suportes e linguagens que hoje brotam em ambientes midiáticos digitais, produzindo sentidos em diferentes direções: memes e vídeos-memes, selfies e TikToks, tweets e postagens virais, todos como registros fotográficos e fílmicos que globalizaram inúmeros eventos espontâneos da vida ocorridos durante o cerco do covid-19. Em outras palavras, trata-se de produções culturais que geram uma semiose ilimitada: propagação rápida e pública das interpretações que fizemos de alguns eventos da pandemia, a partir da sociedade sul-americana que habitamos e de nosso tempo irreversível histórico.

Mas é possível, como Bakhtin pretendeu, uma singularidade em nossa produção cultural de sentido, quando nas redes tudo parece transitar sem deixar rastros? Como interpretar, a partir dessa ética participativa e responsável, essa pansemia de conteúdos virais: documentos não assinados cuja autoria é incentivada a permanecer oculta? Pelo menos uma chave para pensar o ato humano nesta instância de nossa realidade histórica, de sociedades mediadas e de uma natureza que se ataca violentamente, está naquele tom emocional e volitivo que Bakhtin concebeu como a instância fundamental de todo ato ético:

Tudo o que é efetivamente experimentado o é como alguma coisa que concerne simultaneamente ao dado e ao por-fazer-se, recebe uma entonação, possui um tom emotivo-volitivo, entra em relação afetiva comigo na unidade do evento que nos abarca [entra em relação com o autor-observador - e com o herói; eu ocupo uma posição e o herói uma outra]. O tom emotivo-volitivo é um momento imprescindível do ato, inclusive do pensamento mais abstrato enquanto meu pensamento realmente pensado, isto é, na medida em que o pensamento realmente venha a existir, se incorpore no evento. Tudo isso com que tenho a ver, me é dado em certo tom emotivo-volitivo, já que tudo me é dado como momento do evento, do qual eu sou participante. Se eu penso num objeto, estabeleço com ele uma relação que tem o caráter de um evento em processo. Na sua correlação comigo o objeto é inseparável da sua função no evento (BAKHTIN, 2010, p.86)13 13 Para referência, ver nota 2. .

Para Bakhtin, essa resposta ao mundo não é uma reação psíquica passiva, mas uma necessária orientação da consciência, uma forma de se engajar em uma relação responsável e ativa com um acontecimento que deixa de ser indiferente porque dele participo e respondo emocional e volitivamente a ele. Essa valoração afetiva é um modo de comungar com a existência histórica (cf. BAKHTIN, 2010, p.86)14 14 Para referência, ver nota 2. , pois permeia tudo o que é realmente vivido, procurando expressar a verdade de um momento dado e garantir, com isso, sua irrepetibilidade.

Ora, é certo que, diante de um acontecimento como uma peste em escala global, não se pode deixar de esperar um fluxo desses tons afetivos, embora intuamos que alguns dominaram a cena cultural, principalmente em sua refração pelas redes sociais. Isso está longe de ser casual porque, como os especialistas nos ensinam (SCOLARI, 2004SCOLARI, C. Hacer clic: hacia una sociosemiótica de las interacciones digitales. Barcelona: Gedisa, 2004.), para garantir a sociossemiótica das interações digitais, o conteúdo viralizado sempre apela à afetividade, despertando uma espécie de “verdade revelada” que as interfaces chamam de insight. Justamente o que propomos a seguir é uma viagem por algumas imagens da pandemia que convergiram em certos tons emocionais: retratos que, em sua efêmera e intensa circulação, se repetiram obstinadamente, quase como versões das mesmas histórias que aqui, servindo-nos também de uma metáfora típica do mundo digital, provisoriamente chamamos de galerias15 15 Para referência, ver nota 2. .

A primeira delas retrata nosso diálogo com a natureza, sobretudo em sua maneira de provocar e evocar infinitas ideias escatológicas, aquelas que Bakhtin (1999 [1965])16 16 Para referência, ver nota 2. soube definir como esses medos cósmicos que nos acompanham desde a noite dos tempos, mas que, em nossa época, remetem ao lugar comum que a cultura de massa batizou de pós-apocalíptico. A chegada desse vírus silencioso que esvaziou cidades, confinou corpos e carregava máscaras sinistras, rapidamente reintroduziu aquele sentimento fatídico.

E enquanto mídias como a CNN anunciavam que “o coronavírus desencadeia uma perigosa praga de previsões do fim do mundo” (BLAKE, 2020BLAKE, J. El coronavirus desata una peligrosa plaga de predicciones del fin del mundo. CNN en Español, 23 de março de 2020. Disponível em: https://cnnespanol.cnn.com/2020/03/23/el-coronavirus-trae-consigo-una-peligrosaplaga-de-predicciones-del-fin-del-mundo/. Acesso em: 22 nov. 2021.
https://cnnespanol.cnn.com/2020/03/23/el...
)17 17 Para referência, ver nota 2. , a viralização das imagens pandêmicas forçou a vivência do cataclismo, contaminando até mesmo todo desastre natural vivenciado: terremotos com luzes misteriosas, incêndios florestais que consumiram tudo em seu caminho (tanto em nossa nativa Córdoba quanto na Amazônia brasileira), cidades que hoje desaparecem sob a ira da lava vulcânica e, para surpresa de muitos, inúmeras espécies que colonizaram as ruas durante a mais rigorosa quarentena.

São todas imagens em que a natureza recupera uma certa primazia apenas porque a espécie humana foi levada à beira da extinção, como pode ser visto abaixo:

Imagem 1
Incêndio na cidade de Córdoba, Argentina, durante o mês de setembro de 2021.

Imagem 2
Terremoto na cidade do México DF, em 7 de setembro de 2021.

Imagem 3
Uma pequena raposa retornando às ruas de uma cidade, em uma das imagens viralizadas cujo lugar e data não se pode precisar.

Imagem 4
Uma das imagens mais viralizadas durante a invasão de capivaras em um bairro particular de Buenos Aires, Argentina.

Uma segunda galeria de imagens também se dedica a uma avaliação da finitude da vida humana, embora opte pelo humor. Esse é o território privilegiado dos memes, uma língua que colonizou nosso cotidiano até se estabelecer como uma espécie de língua franca. No entanto, talvez nenhuma imagem viralizada tenha gerado tanto impacto como aquela que, por coincidência, começou a circular no exato momento em que a sociedade global é alertada acerca da pandemia: o vídeo de funerais em Gana18 18 Para referência, ver nota 2. , pessoas carregando e bailando com um caixão em seus ombros, e que foi replicado incansavelmente diante de qualquer situação maluca que ameaçasse terminar em tragédia. Essas imagens são caras à lógica carnavalesca e todas assumem a morte corporal como geração de nova vida, celebrando assim o anseio de que a morte não conclui nada, nem nada termina

Memes sobre a prorrogação indefinida da quarentena, as práticas absurdas que a pandemia despertou, a transferência de nossas rotinas para plataformas virtuais e até a incerteza diante de processos de inoculação apressados foram inúmeros.

Imagem 5
Meme em que se aprecia a clássica pintura de Mona Lisa, com a intervenção de uma máscara.

Imagem 6
Meme da reconhecida obra de Leonardo da Vinci, reconvertida em uma das cenas mais recorrentes durante a pandemia: as reuniões através da plataforma Zoom.

Imagem 7
Parodia da cena icônica do filme Titanic (1997), James Cameron. Numerosas intervenções similarea apareceram diante da incerteza da duração da quarantena e do período de isolação preventiva.

Imagem 8
Um dos memes (que, além disso recupera outra língua franca neste mundo digital: a série animada The Simpson) que zombam da implantação de toda uma nova linguagem que a pandemia trouxe com termos como quarentena, inoculação e isolamento, entre outros.

Uma última galeria mantém algo desse tom utópico e também foca sua atenção na experiência dos corpos, mas destacando o desejo esperançoso de seu reencontro.

Imagem 9
Vídeo das comemorações que aconteceram nas varandas argentinas durante o isolamento. Na captura, um DJ pode ser visto tocando e incentivando todos os vizinhos. Em outros momentos, também houve aplausos das varandas para celebrar os esforços dos médicos.

Celebrações espontâneas nas varandas da cidade, idosos recebendo abraços (mesmo que através de cortinas de plástico), médicos dando uns aos outros gestos de carinho diante da exaustão do trabalho incansável, a dedicação das crianças para brincar contornando qualquer restrição: uma galeria inteira expressa por meio de imagens emocionais por sua forma de demonstrar a necessidade do contato como componente do corpo social. Elas exibem a impaciência à espera do fim de uma pandemia e trazem a promessa de um retorno desejado aos espaços públicos. Mas há outra coisa: nos últimos tempos, tem-se apontado com insistência a estranheza de batizar com o eufemismo “distanciamento social” o que, em princípio, era um confinamento físico. Essas imagens viralizadas parecem oferecer alguma explicação em sua maneira de sugerir que a experiência coletiva dos corpos está ligada ao que definimos como sociedade.

Imagem 10
Capturas de alguns dos vídeos viralizados com as cortinas de plástico: uma das muitas invenções para superar a falta de contato diante do isolamento, implementada inclusive em muitas casas de repouso na América Latina.

Imagem 11
Vídeo viralizado de um avô argentino que conhece seu bisneto que nasceu dias antes da pandemia ser decretada.

Medo, humor, otimismo: três tons afetivos que tornam difícil a aceitação de que, durante a pandemia, essa intensa pansemia de conteúdo viral tenha relegado nossos eventos a uma mera vida acidental, sem encarnar pelo menos uma instância avaliativa. A virulência se instalou como um estado e regime de produção de época, mas essas imagens que difundimos em nossas redes nos convocam a pensar outras formas pelas quais também participamos ativamente da experiência histórica, relacionando-nos com determinados valores e revelando, uma vez mais, que a força do sentido como produto de um coletivo humano é sempre incessante. Talvez o viral seja hoje a nossa forma de comungar com este momento histórico, de cujo enquadramento aqui apenas partilhamos alguns sinais exemplares que esperamos suscitem alguma reflexão.

  • 1
    Este texto foi escrito a partir de uma comunicação realizada pelos autores no 22º. InPLA, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, em 2021, durante o Simpósio Pensamento bakhtiniano: recepção, teoria e prática”, e foi originalmente apresentado (e posteriormente escrito) em espanhol: Ética participativa en Bajtín. Pandemia y pansemia.
  • 2
    BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2010.
  • 3
    BAKHTIN, M. Arte e responsabilidade. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.XXXIII-XXXIV.
  • 4
    Para referência, ver nota 2.
  • 5
    Para referência, ver nota 2.
  • 6
    Para referência, ver nota 2.
  • 7
    Para referência, ver nota 2.
  • 8
    Para referência, ver nota 2.
  • 9
    Para referência, ver nota 2.
  • 10
    Para referência, ver nota 2.
  • 11
    Para referência, ver nota 2.
  • 12
    Para referência, ver nota 2.
  • 13
    Para referência, ver nota 2.
  • 14
    Para referência, ver nota 2.
  • 15
    Para referência, ver nota 2.
  • 16
    Para referência, ver nota 2.
  • 17
    Para referência, ver nota 2.
  • 18
    Para referência, ver nota 2.
  • 19
    Cabe destacar que o texto fragmentário que estamos comentando faz parte do início de um enorme projeto intelectual que, apesar de sua juventude, Bakhtin ousa propor como Filosofia Moral, cujo centro de valor é o homem em sua singularidade, que abrangeria também a ética da criação artística, a ética da política e a ética da religião (2010, p.114, [para referência, ver nota 2]). Permaneceram alguns resquícios desse projeto que condizem com o ensaio do qual estamos tratando, a saber, “Autor e personagem na atividade estética” (2006 [1921?]) e “O problema do conteúdo, material e forma na criação literária” (2006 [1924]).
  • 20
    Para referência, ver nota 2.
  • 21
    Para referência, ver nota 2.
  • 22
    Para referência, ver nota 2.
  • 23
    As imagens aqui coletadas, tanto os memes quanto as fotografias e capturas fílmicas, circulam pelas redes sem uma autoria precisa, razão pela qual especificamos como referência a fonte web mais visitada. Vale destacar também que essa ausência autoral é uma das características predominantes de nossa era digital, não só pela natureza de um meio como a web, onde os significados são reproduzidos de forma rápida e simultânea em diferentes lugares, mas também porque essas produções parecem buscar deliberadamente o anonimato, uma vez que esse efeito de origem incerta sublinharia seu caráter claramente popular (cf. RUÍZ, 2019RUÍZ, J. M. Memes y transmedia: los memes como fenómeno transmedial y la memética como factor de la expansión transmedial. In: SÁNCHEZ-MESA MARTÍNEZ, D. (ed.). Narrativas transmediales: La metamorfosis del relato en los nuevos medios digitales. Ebook. Barcelona: Gedisa, 2019.).
  • 24
    BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução Iara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 1987.
  • 25
    Tradução nossa. No original, em espanhol: “el coronavirus desata una peligrosa plaga de predicciones del fin del mundo”.
  • 26
  • Traduzido por Maria Helena Cruz Pistori - mhcpist@uol.com.br; https://orcid.org/0000-0003-0751-3178
  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido pela Bakhtinina. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.

Disponibilidade de dados de pesquisa e outros materiais

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. La cultura popular en la Edad Media y el Renacimiento. El contexto de François Rabelais Traducción César Forcat y César Conroy. Madrid: Alianza, 1984.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Fev 2022
  • Aceito
    06 Set 2022
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