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Posturas enunciativas em Deus caritas est (2005): uma análise da primeira encíclica de Bento XVI segundo formulações teóricas de Alain Rabatel

RESUMO

Recorrendo a reflexões de Alain Rabatel sobre pontos de vista e responsabilidade enunciativa, principalmente aquelas contidas em Homo narrans (2016; 2021), buscamos descrever e interpretar a gestão dos dialogismos interno e interdiscursivo na introdução da encíclica Deus caritas est (2005), assinada pelo então papa Bento XVI, por meio da análise de posturas enunciativas. Nossa principal conclusão é a de que o locutor primário (L1) gere o dialogismo do texto, primeiramente, a partir da subenunciação e, posteriormente, por meio da coenunciação e mesmo da sobre-enunciação. L1 convoca parte da responsabilidade enunciativa e se associa ao ponto de vista do Novo Testamento enquanto sugere uma atualização do Velho Testamento. Nos nossos termos, o Velho que manda é destituído a favor do Novo que ama - isto é, o amor cristão-católico. Esta investigação se afilia a uma agenda de pesquisa ampla, e em curso, de análise do discurso pontifício moderno.

PALAVRAS-CHAVE:
Encíclica; Discurso religioso; Posturas enunciativas; Responsabilidade enunciativa

ABSTRACT

Using Alain Rabatel’s reflections on points of view and enunciative responsibility, especially those founded in his work Homo narrans (2016; 2021), we sought to describe and interpret the operation of internal - enunciative - and interdiscursive - external - in the introduction to the encyclical letter Deus Caritas Est (2005), signed by the Emeritus Pope Benedict XVI, through the description and analysis of enunciative postures. Our main conclusion is that the primary speaker (S1), operates the dialogism of the text, first, from under-utterance and, later, through co-utterance and even over-utterance. S1 assumes part of the enunciative responsibility and associates itself with the New Testament point of view while suggesting an update of the Old Testament. In our terms, the Old one that rules is overthrown in favor of the New one that loves - that is, Christian-Catholic love. This investigation is affiliated with a broad and ongoing research agenda of analysis of modern pontifical discourse.

KEYWORDS:
Encyclical; Religious discourse; Enunciative postures; Enunciative responsibility

Introdução

Nosso objetivo neste artigo é descrever e analisar a gestão dos dialogismos enunciativo e interdiscursivo na introdução da encíclica Deus caritas est (2005), assinada pelo papa emérito Bento XVI, sob a perspectiva rabateliana dos posicionamentos enunciativos. Dessa forma, mobilizamos aparato teórico de Alain Rabatel sobre ponto de vista e responsabilidade enunciativa, convocando, sobretudo, aquelas reflexões contidas na sua obra Homo narrans (2016; 2021). Este estudo sucede uma análise publicada na Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação sobre a encíclica Fratelli tutti (FERNANDINO; LIMA, 2021FERNANDINO, G.; LIMA, H. Uma análise da encíclica papal Fratelli tutti sob a perspectiva teórico-metodológica da argumentação no discurso de Amossy. Revista EID&A. v. 2, n. 21, p.161-180, 2021. Disponível em: http://periodicos.uesc.br/index.php/eidea/article/view/3139/2140. Acesso em: 9 out. 2021.
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) e integra uma agenda de pesquisa mais ampla sobre discurso pontifício - a qual se filia uma tese, em curso, no Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos da UFMG1 1 Nesta pesquisa doutoral, analisamos os valores que fundamentam posicionamentos internos da Igreja Católica relacionados aos temas da homoafetividade e do amor ao próximo em textos publicados entre 1995 e 2021 pela Santa Sé, assinados ou ostensivamente autorizados pelo papa. .

Em termos da organização do presente trabalho, primeiramente, diferenciamos papa, Santa Sé e Vaticano; abordamos, brevemente, os temas do discurso religioso e do discurso constituinte, revisitando também o nosso conceito de Vaticano-eclésia; apresentamos a definição de carta encíclica, assim como a contextualização e o conteúdo programático da Deus caritas est. Na seção seguinte, versamos sobre o dialogismo enunciativo e aquele interdiscursivo, apresentando nuanças da perspectiva de Alain Rabatel (2006RABATEL, A.; CHAUVIN-VILENO, A. La question de la responsabilité dans l’écriture de presse. Semen - Revue de sémio-linguistique des textes et discours, n. 22. 2006. Disponível em: https://journals.openedition.org/semen/2792. Acesso em: 31 jan. 2022.
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, 2016aRABATEL, A. Os desafios das posturas enunciativas e de sua utilização em didática. Revista EID&A. n. 12, p.191-233, 2016. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/314979051_Os_desafios_das_posturas_enunciativas_e_de_sua_utilizacao_em_didatica . Acesso em: 12 fev. 2022.
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, 2016b, 2021)RABATEL, A. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa: pontos de vista e lógica da narração, metodologia e interpretação. Trad. Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. V.2. Natal: EDUFRN. 2021. sobre ponto de vista, posturas enunciativas e responsabilidade enunciativa. Valendonos do marco teórico e do corpus apresentados, na terceira seção procedemos à análise da integralidade da introdução da Deus caritas est. Adotamos como referência dos fragmentos que citamos a notação numeral, entre parênteses, da referida linha na introdução, esta composta de um total de 33 linhas na versão em português. Não adicionamos à frente de cada excerto o ano de publicação, 2005, assim como não mencionamos itálico nosso, evitando desnecessária repetição.

Neste artigo, consideramos a encíclica como um subgênero do discurso pontifício, este localizado no tipo discurso religioso. Detemo-nos especificamente sobre a introdução da Deus caritas est, baseando nossa escolha metodológica no entendimento de que o trecho selecionado para compor o corpus de pesquisa: justifica enunciativamente o tema, o objetivo e o nome da encíclica; apresenta o enunciador-locutor principal e demais enunciadores e locutores secundários; explicita a tese da argumentação e a programação do conteúdo do documento; fornece um encadeamento argumentativo-enunciativo suficientemente representativo para engendrar uma análise da gestão dialogismo, simultaneamente, atendendo ao limite de extensão convencionado para artigos acadêmicos publicados em periódicos brasileiros com relevância internacional.

Ademais, no tocante às conclusões, acreditamos que, ainda que nosso corpus se restrinja à introdução da carta, interpretamos satisfatoriamente a gestão do dialogismo interlocutivo e das posturas enunciativas que parecem se prolongar em toda extensão do material. A escolha da encíclica Deus é amor se deve à sua relevância documental, primeira de Bento XVI que, teoricamente, estabelece o tom do seu pontificado, mas não somente; consideramos a atualidade e a acessibilidade do documento, bem como a sua pertinência na cena da enunciação2 2 Maingueneau (2014) usa o termo cena da enunciação para indicar, simultaneamente, um quadro e um processo, bem como para evitar situação de enunciação e situação de comunicação que, respectivamente, indicariam usos de ordem estritamente linguística e sociológica. A cena de enunciação, segundo o autor, é composta das cenas englobante (grosso modo, o tipo de discurso), genérica (gêneros discursivos, no sentido de normas que suscitam expectativas) e cenografia, que é “uma encenação singular da enunciação” (MAINGUENEAU, 2014, p.122) que legitima o discurso. contemporânea da Santa Sé.

Os conceitos visitados na seção teórica que antecede a nossa descrição e análise de corpus, como prise en charge e responsabilidade enunciativa, retomam, especificamente, a perspectiva rabateliana. Não desconsideramos a tradição linguística da qual procede Rabatel e tampouco negligenciamos entendimentos concorrentes ou ligeiramente diferentes dos mesmos conceitos abordados neste artigo, tais como aqueles presentes em Culioli (1999), Desclés (2009), Haillet (2004) e Laurendau (2009). Dado o nosso objetivo de aplicação de conceitos e realização de análise - com potencial desenvolvimento, em trabalhos posteriores, do estado da arte do discurso pontifício -, realizamos uma escolha teórico-metodológica retomando trabalhos de um intelectual específico, sem a pretensão de esgotar todas as facetas sobre as quais Rabatel se debruçou ao longo da sua carreira.

Além das conclusões que interpretamos a partir de um referencial e de uma descrição específicos, nosso estudo contribui com a literatura ao indicar nichos de pesquisa a serem aprofundados no estudo de encíclicas e ao demonstrar como a análise das posturas enunciativas e do dialogismo interdiscursivo pode ser satisfatoriamente aplicada a corpora inscritos no gênero discurso pontifício.

1 Quando a tríplice coroa fala: o bispo de Roma, o chefe de Estado e o líder da Igreja

Nesta seção, revisitamos e atualizamos considerações que organizamos em Fernandino e Lima (2021)FERNANDINO, G.; LIMA, H. Uma análise da encíclica papal Fratelli tutti sob a perspectiva teórico-metodológica da argumentação no discurso de Amossy. Revista EID&A. v. 2, n. 21, p.161-180, 2021. Disponível em: http://periodicos.uesc.br/index.php/eidea/article/view/3139/2140. Acesso em: 9 out. 2021.
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. O papa é um religioso católico, necessariamente homem, eleito de modo vitalício por um colégio de cardeais para desempenhar a tríplice função de bispo da Diocese de Roma, chefe do Estado da Cidade do Vaticano e, destacadamente, líder supremo da Igreja Católica. Desse modo, a jurisdição do papa se irradia desde a Diocese de Roma, o distrito eclesial em que exerce a atribuição de bispo, para toda a estrutura eclesiástica dessa instituição religiosa capilarizada pelo globo. Assim, além da autoridade máxima oriunda da posição de bispo dos bispos, ao papa são atribuídas prerrogativas de mandatário de Estado3 3 Enquanto estadista, o papa goza da plenitude dos poderes. Segundo artigo nº 1 da Lei Fundamental do Estado da Cidade do Vaticano - disponível em: https://www.vatican.va/news_services/press/documentazione/documents/sp_ss_scv/informazione_generale/legge-fondamentale_po.html, acessado em 04 fev. 2022. - o bispo de Roma goza plenamente dos poderes legislativo, executivo e judiciário. Os documentos oficiais da Santa Sé utilizam a designação de Monarquia Absoluta, embora haja na literatura classificações da forma de governo vaticana como Estado teocráticomonárquico ou Estado Eclesiástico. Além do seu próprio território intramuros, a jurisdição vaticana se estende ainda extraterritorialmente a certas microzonas e propriedades em Roma e fora de Roma. , afiançadas pela soberania, internacionalmente reconhecida, do território do Vaticano. Portanto, as funções de chefe de Estado, materialmente relacionadas ao Vaticano, e de autoridade máxima na estrutura Igreja Católica, imaterialmente relacionadas à presença católica propagada pelo mundo, coincidem na posição jurídica e simbólica do papa.

Se por um lado o papado diz respeito tanto ao cargo eclesiástico quanto à instituição ou sistema governamental do sumo pontífice, por outro, a jurisdição do papa se refere à chamada Santa Sé Apostólica Romana. Trata-se de uma entidade, dotada de autoridade jurídica no âmbito internacional, que representa o Estado do Vaticano e a Igreja Católica. A Santa Sé é administrada pela Cúria Romana, corpo de instituições que auxilia o papa no desempenho do papado, agindo em nome deste. Pormenorizando, a Cúria é um complexo de institutos e dicastérios4 4 Segundo Constituição Apostólica, “Art. 2, § 1 - com o nome de Dicastérios entendem-se: a Secretaria de Estado, as Congregações, os Tribunais, os Conselhos e os Ofícios, isto é, a Câmara Apostólica, a Administração do Património da Sé Apostólica, a Prefeitura dos Assuntos Económicos da Santa Sé” (Disponível em http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_constitutions/documents/hf_jp-ii_apc_19880628_pastorbonus.html. Acesso em: 4 fev. 2022). , grosso modo, ministérios aos quais o papa delega funções. Dentre esses órgãos, destaca-se a Secretaria de Estado da Santa Sé, o dicastério mais antigo, ao qual são atribuídas as funções diplomática e política.

Com frequência, o ente Santa Sé é metonimicamente tratado pelo local onde está sediado, o Vaticano, enclave independente, localizado na cidade de Roma. Dessarte, é a Santa Sé, e não o Vaticano, a autoridade que atua em âmbito externo ao manter relações diplomáticas com Estados e com instituições internacionais. A criação do Vaticano, o menor Estado independente do mundo, remete ao passado recente, o Tratado de Latrão (1929), firmado entre a Santa Sé e a Itália. A existência da Santa Sé, ente bastante mais longevo se comparado ao Vaticano, remonta ao Império Romano. Segundo a mística católica, a Santa Sé foi fundada por São Paulo e São Pedro no começo da Era Comum como Comunidade de Roma, o primórdio do que viria a se tornar a contemporânea Diocese de Roma.

O próprio substantivo Santa Sé é uma derivação latina de Cadeira Santa que recorre ao símbolo da cadeira de Pedro, o primeiro dos papas e sobre o qual se funda a cosmogonia da Santa Sé. A cadeira simboliza o centro figurativo do qual emana a fonte da legitimidade e do poder monolítico do sumo líder da Igreja. Por esta razão, o papa é o único religioso autorizado a celebrar sob o baldacchino no interior da Basílica de São Pedro, no Vaticano. Trata-se de uma estrutura monumental, feita de bronze e de mármore, erguida sobre a cripta na qual os fiéis acreditam repousar os restos mortais de Pedro.

Segundo a doutrina católica, aquele que herda a cadeira de São Pedro, ao se sagrar papa, recebe o carisma do primeiro dos bispos de Roma. Portanto, cada papa, exercendo o ministério de bispo, inscrever-se-ia à continuidade da conspiração divina que vocacionou Pedro a ser a pedra angular da Igreja. De acordo com a interpretação católica, Jesus rebatizou o apóstolo Simão como Pedro, concedendo-lhe o papel de líder da Igreja que se estabeleceria: “Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja; e as portas do Hades não prevalecerão contra ela” (Mt. 16, 18). A preponderância de Pedro dentre os apóstolos é conhecida por primazia de Pedro ou primazia petrina.

Ainda no tocante à Igreja Católica, embora sejam consideradas as distinções entre Vaticano e Santa Sé, esta se confunde tanto com sua sede física, conforme explicitamos, quanto com a própria figura do papa do ponto de vista simbólico. Ao nosso entendimento, a maneira como a comunicação pontifícia é realizada, seja em termos imagéticos ou verbais, nutre a interpenetração simbólica. Um exemplo elucidativo, ainda que não conclusivo, é aquele da página oficial do Vaticano5 5 Disponível em: https://www.vatican.va/content/vatican/it.html. Acesso em: 7 abr. 2022. . Nesta, percebemos os nomes Vaticano, no endereço do navegador, Santa Sé, no cabeçalho da página, seguido abaixo pela foto e nome do atual pontífice. Nesse sentido, as três instâncias parecem compor um todo simbólico integrado que avulta a autoridade confessional da Igreja, que se vale do peso especulado de mais de um bilhão de fiéis dispersos no planeta. Parte substancial desses fiéis, religiosos e laicos, alocutários desta religião com Estado, está localizada na América Latina, específica e massivamente no Brasil.

2 O Vaticano-eclésia: sucinta articulação entre infalibilidade papal, discurso constituinte e discurso religioso

Partindo da noção de Estado-nação, propomos pensar esse caso sui generis por meio do binômio Vaticano-eclésia. Dessa forma, articulamos no nosso conceito a dimensão da entidade religiosa e estatal, o Vaticano, àquela da população de fiéis e de religiosos espalhada no globo, isto é, a eclésia. O binômio engendrado, e que vem sendo usado nos trabalhos inseridos na nossa agenda de pesquisa, intenciona ser mais que a soma das suas duas partes. Trata-se de um sinônimo do substantivo próprio Santa Sé que nos parece permitir ganho epistemológico ao (i.) explicitar a singularidade transcendente e imanente do ente, (ii.) bem como ao evidenciar a dimensão alocutária do ponto de vista enunciativo.

Se no Vaticano-eclésia o primado da autoridade papal é evidente, no plano da enunciação a distinção entre este locutor e a própria Santa Sé não é dada de antemão. Em diferentes textos, ou no interior do mesmo texto, as elocuções papais podem tanto se equivaler às da Santa Sé quanto se desarticular e se afastar dessas. Por exemplo, também em Fernandino e Lima (2021)FERNANDINO, G.; LIMA, H. Uma análise da encíclica papal Fratelli tutti sob a perspectiva teórico-metodológica da argumentação no discurso de Amossy. Revista EID&A. v. 2, n. 21, p.161-180, 2021. Disponível em: http://periodicos.uesc.br/index.php/eidea/article/view/3139/2140. Acesso em: 9 out. 2021.
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, descrevemos e analisamos o processo de sobreposição e distanciamento da responsabilidade enunciativa na encíclica Fratelli tutti (2020), assinada pelo locutor papa Francisco, a partir da Argumentação no Discurso de Ruth Amossy. De toda maneira, seja a responsabilidade enunciativa coincidente ou divergente - conforme explanado na seção seguinte -, a autoridade máxima do papa é dogmaticamente assegurada.

A denominada infalibilidade papal é um dogma ex cathedra que atesta que, sendo herdeiro de Pedro, o papa é imune ao erro no tocante à definição de doutrina sobre a fé e os costumes. Segundo o capítulo IV da constituição dogmática Pastor æternus,

em razão da assistência divina prometida a ele na pessoa do bemaventurado Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual o divino Redentor quis que estivesse munida a sua Igreja quando da definição de doutrina referente à fé e aos costumes; portanto, tais declarações do Romano Pontífice são imutáveis por si mesmas e não em virtude do consenso da Igreja (PIO XII, 1870, s.p.; grifos nossos)6 6 Tradução nossa. No original, em italiano: “(...) per la divina assistenza a lui promessa nella persona del beato Pietro, gode di quell’infallibilità con cui il divino Redentore volle fosse corredata la sua Chiesa nel definire la dottrina intorno alla fede e ai costumi: pertanto tali definizioni del Romano Pontefice sono immutabili per se stesse, e non per il consenso della Chiesa” (Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ivatican-council/documents/vat-i_const_18700718_pastor-aeternus_it.html. Acesso em: 5 out. 2021). .

Dessa forma, consideramos que a infalibilidade pode atribuir pujança argumentativa aos discursos papais diante de segmentos do seu alocutário, a eclésia. Pressupondo a naturalidade com a qual o discurso religioso recorre aos dogmas fundacionais da sua mística, o grau de argumentatividade parece ser também ampliado sob o efeito do que Maingueneau e Cossutta (1995)MAINGUENEAU, D.; COSSUTTA, F. L’analyse des discours constituants. Langages, ano 29, n. 117, p.112-125, 1995. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/lgge_0458726x_1995_num_29_117_1709. Acesso em: 12 out. 2021.
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denominaram discurso constituinte. Como precisa Maingueneau (2015)MAINGUENEAU, D. Discurso e análise do discurso. Trad. Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2015., esse tipo de discurso denota as falas de autoridade que dão sentido aos atos de uma coletividade, além das quais somente há o indizível. Além de legitimarem temas, discursos constituintes constituem a sua própria existência como se a sua legitimidade proviesse do Absoluto.

A ideia de discurso constituinte (MAINGUENEAU; COSSUTTA, 1995MAINGUENEAU, D.; COSSUTTA, F. L’analyse des discours constituants. Langages, ano 29, n. 117, p.112-125, 1995. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/lgge_0458726x_1995_num_29_117_1709. Acesso em: 12 out. 2021.
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; MAINGUENEAU, 2015MAINGUENEAU, D. Discurso e análise do discurso. Trad. Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.), ainda que nos pareça carecer de certo grau de precisão no que diz respeito à operacionalização do conceito, provoca reflexões que julgamos pertinentes ao estudo do discurso religioso. Pelo seu status autofundado, os discursos constituintes podem afiançar dialogicamente outros discursos - como é o caso dos discursos constituintes filosófico, científico e o próprio discurso religioso católico. Neste último caso, destacamos como textos expoentes o Antigo e o Novo Testamentos da Bíblia. Em seu estudo do Livro do Êxodo, Rabatel (2021)RABATEL, A. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa: pontos de vista e lógica da narração, metodologia e interpretação. Trad. Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. V.2. Natal: EDUFRN. 2021. defende que o texto bíblico é atravessado de movimentos dialógicos pelos quais o locutor dialoga com a tradição e consigo mesmo em relação a objetos de discurso bastante complexos.

De modo geral, enunciações dessa natureza constituinte atribuem autoridade à instituição que as emite, visto que são ontologicamente compartilhadas em uma coletividade e são fiadoras de múltiplos gêneros do discurso. O discurso constituinte, assim, em razão dos seus atributos enunciativos e das suas funções sociais, ocupa um lugar incomum no interdiscurso ao operar a produção simbólica de uma sociedade sob a função de archeion (MAINGUENEAU, 1995MAINGUENEAU, D.; COSSUTTA, F. L’analyse des discours constituants. Langages, ano 29, n. 117, p.112-125, 1995. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/lgge_0458726x_1995_num_29_117_1709. Acesso em: 12 out. 2021.
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) - do grego arché, incorporado no latim como archiva, equivalente às entradas governo e fonte - isto é, a fonte do princípio, do poder, a sede da autoridade. Como exemplo de archeion, podemos considerar os corpos de magistrados e as catedrais - , no português, Sedes, no latim, a qual equivale em significado tanto a cátedra episcopal quanto a assento -, ambos vinculados a locutores legitimados e a uma memória social institucionalizada. Ao espaço paradoxal que essas enunciações detêm na sociedade, os autores dão o nome de paratopia. Afinal, discursos constituintes não estariam no interior, nem tampouco no exterior da coletividade.

Dentre as diversas definições que a literatura nos oferece, Orlandi (1987, p.242)ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2. ed. São Paulo: Pontes, 1987. define discurso religioso como “aquele em que fala a voz de Deus: a voz do padre - ou do pregador, ou, em geral, de qualquer representante seu - é a voz de Deus”. Ao falar dos traços definidores desse tipo de discurso, Orlandi destaca: a intertextualidade, a antítese, o uso do imperativo e do vocativo, bem como o de metáforas, explicadas por paráfrases, marcadamente nos sermões. Da mesma forma, há o uso de citações em latim, traduzidas por perífrases explanatórias, de performativos e de sintagmas cristalizados, este último caso exemplificado pelas orações religiosas.

Para a pesquisadora brasileira (ORLANDI, 1987ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2. ed. São Paulo: Pontes, 1987.), o discurso religioso estabelece uma relação espontânea com o sagrado, de modo mais informal se comparado com o discurso teológico. Este, por sua vez, formaliza e organiza os dogmas. Orlandi resume que, a despeito dessa distinção, a não-reversibilidade entre locutor e alocutário se mantém em ambos os casos. Assim, tal distinção pode ser desconsiderada a depender dos objetivos da pesquisa. Preferimos adotar na nossa pesquisa apenas o termo discurso religioso, embora levemos em consideração o princípio da não-reversibilidade no Vaticano-eclésia.

De acordo com a autora, se se trata da voz de Deus, haveria um desnivelamento hierarquizado onde o locutor se encontra em plano espiritual, o divino, e se dirige ao alocutário assujeitado em plano temporal, o ser humano, de modo que, “na desigualdade, Deus domina os homens” (ORLANDI, 1987ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2. ed. São Paulo: Pontes, 1987., p.243). Assim, se tomarmos a Santa Sé como a voz (representante) de Deus, reforçamos que haveria uma tendência a não-reversibilidade entre os papéis de locutor e alocutário, posta tal assimetria estrutural em relação à eclésia.

Essa representação do divino na agentividade da Santa Sé configura aquilo que Orlandi (1987)ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2. ed. São Paulo: Pontes, 1987. denomina mistificação, isto é, o apagamento da maneira pela qual o representante assume essa voz divina sem explicitar o mecanismo ou o processo de apropriação/representação. Na mistificação do discurso religioso, o sujeito que representa a voz de Deus não goza de autonomia perante esta. Dessa forma, o discurso religioso tenderia à monossemia, já que a interpretação da palavra de Deus é intensamente regulada. Quando certos limites dessa regulação estrita são excedidos, considera-se o ato como transgressão. Para Orlandi, o poder imbuído à palavra na religião é evidente, dado que a linguagem é vista como uma ação, em exemplo nosso, como ocorre na fórmula performativa eu vos declaro marido e mulher, relacionada ao sacramento do matrimônio.

3 A circular da tríplice coroa: Deus caritas est (2005)

No que tange especificamente à definição do nosso corpus de pesquisa, uma carta encíclica é um dispositivo de comunicação da Santa Sé que funciona como carta aberta. Original e etimologicamente, trata-se de uma circular assinada pelo papa - o que, inclusive, motiva o título desta seção. Desse modo, uma encíclica se dirige a uma audiência ampla e compósita que se estende de cardeais e bispos a fiéis sem cargo eclesial. Em termos da programação do conteúdo, as encíclicas tratam de temas relacionados à doutrina da Igreja e indicam as prioridades no momento da publicação. Ressalvamos que este entendimento concebe apenas o sentido moderno do termo “carta encíclica”. Na atualidade, o substantivo “encíclica” é também usado por anglicanos e pela igreja ortodoxa.

Comparativamente a outros documentos pontifícios, uma encíclica goza de maior grau de informalidade, ainda que seja considerada o segundo em ordem de importância. Assim, uma carta encíclica detém menos autoridade somente em relação a uma constituição apostólica. Isto se deve ao fato de que, diferentemente da constituição, a circular não modifica dogmas, mas simplesmente atualiza a doutrina da Igreja Católica e indica as urgências que a Igreja deve endereçar segundo o que nos diz o papa. Nesse sentido, o Sumo Sacerdote dá a sua assinatura e usa de modalizadores e figuras de efeito e de estilo que fazem perceber sua autoria pessoal e que parecem visar difundir uma boa imagem do locutor frente à eclésia. Desse modo, consubstanciado na Santa Sé, de maneira geral, neste subgênero do discurso pontifício, o papa tende a convocar a responsabilidade enunciativa para si.

Neste artigo, escolhemos analisar a integralidade da introdução da Deus caritas est (2005) segundo formulações de Alain Rabatel. Esta encíclica, cuja metade inicial foi originalmente escrita em alemão, é a primeira do subgênero firmada pelo papa Bento XVI. Assinada no Natal de 2005, isto é, o ano inaugural do papado de Bento, a encíclica contém 31 páginas de extensão na versão oficial em português. Deus caritas est foi promulgada no princípio de 2006, em latim, conforme a tradição, e traduzida para sete idiomas, dentre esses o português. Trata-se da primeira encíclica publicada com proteções autorais, prática que, desde então, passou a ser usual no tocante aos escritos papais.

Como explicitam o título e o subtítulo do texto - Deus é amor: sobre o amor cristão -, o amor, pensado desde o ponto de vista católico, é o eixo temático do texto. Este foi formulado a partir de escritos incompletos do predecessor papa João Paulo II, os quais resultaram na segunda parte do texto, e de elaborações autorais de Bento XVI. Na parte supostamente mais autoral de Bento, percebemos o refinamento tanto informacional quanto retórico-argumentativo de Joseph Ratzinger, famigerado pela sua erudição em estudos clássicos e teológicos.

No que diz respeito aos subtemas do eixo temático do amor na primeira metade, o locutor da encíclica pondera acerca dos conceitos de eros, ágape e philia. O conteúdo desta parte volta-se sobretudo à filosofia, convidando pensadores como Nietzsche e Virgílio, sob o verniz da perspectiva cristã católica. Para o locutor, eros e ágape não são formas distintas de amor - respectivamente, amor generoso e amor possessivo -, mas metades do mesmo movimento que dá e recebe. Já na segunda metade, a carta trata de modo mais objetivo das atividades litúrgicas e da promoção da justiça social e da caridade frente à cosmogonia do amor (cristão) contemplativo.

Em um estudo sobre estilo, poder-se-ia investigar a abordagem notadamente mais teórica da primeira metade da carta encíclica, atribuída a Bento XVI, confrontada com a segunda metade, em tese, realizada a partir de uma atualização de escritos de João Paulo II. Contudo, na perspectiva enunciativa aqui adotada, em Deus caritas est, ambos os papas são o mesmo locutor (L1). Nesse sentido, importaria menos à análise a existência da pessoa no dito mundo real ou ainda a problematização da sua existência. O estudo enunciativo não está nem no nível da ontologia, filosófico, tampouco naquele da matéria, sócio-físico. Metaforicamente, a análise enunciativa estaria, assim, no meio do caminho, isto é, no nível (inter)discursivo.

4 Dialogismos enunciativo e interdiscursivo: ponto de vista, posturas enunciativas e responsabilidade enunciativa segundo Alain Rabatel

Ao adotar a nomenclatura dialogismo interlocutivo, preterindo a qualificação intersubjetivo - a qual ressaltaria a interação entre sujeitos no dito mundo real -, enfatizamos a troca entre locuções localizada no âmbito dos estudos da enunciação. Portanto, a princípio, o termo dialogismo intersubjetivo estaria relacionado aos objetos de estudos sociológicos e de demais campos do saber voltados eminentemente à categoria de base do sujeito inserido em sociedade.

O dialogismo interlocutivo está dividido em pelo menos dois tipos principais, intimamente relacionados ao marco teórico que abordamos nesta seção. Trata-se do dialogismo enunciativo, ou interno, e do dialogismo interdiscursivo, o qual, em paralelismo, poderia ser referido como dialogismo externo. O dialogismo enunciativo está localizado na esfera da modalização do texto e das figuras do locutor e do enunciador, inseridas na dinâmica interacional intrínseca à enunciação. No dialogismo interno, destacam-se contribuições de autores como Jakobson e Benveniste, no eixo da dêixis, e Bally e Ducrot, no eixo modal7 7 Deliberadamente, não especificamos as obras dos autores que influenciaram o projeto de Rabatel e tampouco explicitamos discussões detalhadas sobre a proposta de cada intelectual - e como Rabatel dessas se vale. Por exemplo, em Bakhtin ressaltaríamos a promoção da ideia de polifonia, a partir dos seus estudos literários; em Revuz, a heterogeneidade enunciativa; em Charaudeau, a instância do Tiers etc. Consideramos as limitações espaciais e objetivo desta seção, isto é, aquele da realização de um sucinto panorama de certos conceitos de Rabatel. Para mais informação sobre o dialogismo interdiscursivo que atravessa a teoria rabateliana, vide introdução e cap.I da obra Homo Narrans, vol. 1. . Por outra parte, o dialogismo interdiscursivo se manifesta no âmbito mais amplo do interdiscurso, articulando o funcionamento interno do texto, por exemplo, às representações de sistema de valor e de ideologias, conforme trabalhado por autoras e autores como Bakhtin, Authier-Revuz e Charaudeau.

Os conceitos apresentados a seguir, elaborados pelo linguista Alain Rabatel no bojo do interdiscurso em que se inserem os autores acima mencionados, estão estruturalmente articulados ao dialogismo interlocutivo. Afinal, Rabatel desenvolve seus trabalhos a partir da pressuposição de que a enunciação é um fenômeno linguístico que ocorre em um espaço saturado de interações dialógicas internas e externas.

Na obra traduzida para o português brasileiro como Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa: pontos de vista e lógica da narração, teoria e análise (2016)8 8 Publicada em dois volumes no original sob o título Homo narrans: pour une analyse énonciative et interactionnelle du récit, a obra será traduzida ao português brasileiro em quatro volumes, a saber, o v. 1, Teoria e análise; o v. 2, Metodologia e interpretação, publicado em 2021 pela UFRN; o v. 3, Dialogismo e polifonia na narrativa, pontos de vista e discursos representados; e o v. 4, Dialogismo e polifonia na narrativa, posturas, apagamento enunciativo e argumentação indireta. Os volumes 3 e 4 serão publicados pela EDUFRN (biênio 2022/2023). , conforme nos apresenta o autor, o homo narrans é aquilo que narra/enuncia no e pelo discurso por meio de interações dialógicas. O entendimento de Rabatel parte de uma tradição que vem repensando a relevante contribuição do corte saussuriano da língua/fala - que funda uma ciência da linguagem, esta a princípio calcada no sujeito ideal e descolado da língua -, cujos expoentes, alguns já mencionados, seriam Bally, e subjetividade indicial do seu sujeito falante; autoras e autores que trazem de Bakhtin a problemática do interdiscurso e da interlocução; Cuoli e sua noção de coenunciação; Goffman, que destaca o papel do alocutário no processo de significação resultante de um interacionismo simbólico; Authier-Revuz com as suas difundidas concepções de sujeito heterogêneo e das heterogeneidades constitutiva e mostrada da linguagem; e, marcadamente, Ducrot com o seu sujeito polifônico.

Assim, nesta obra, Rabatel quer organizar a teoria do (dialogismo do) ponto de vista, com a qual já vinha trabalhando em artigos, ao trazer à baila os efeitos argumentativos indiretos na lógica da argumentação. A argumentação indireta (AMOSSY, 2020AMOSSY, R. A argumentação no discurso. Coordenação da equipe de tradução: Eduardo Lopes Piris e Moisés Olímpio-Ferreira. São Paulo: Editora Contexto, 2020.) é aquela que, em bases inferenciais, apoia-se em representações dóxicas e topoï, e não no aparelho lógico da demonstração ou na lógica natural - como no caso da argumentação explícita, isto é, direta. Rabatel acrescenta que, por não ser evidente, a argumentação indireta não engendra, em princípio, uma contra-argumentação.

Desse modo, pressupondo a existência da argumentação indireta, Rabatel entende o ponto de vista (PDV) como um conteúdo proposicional cujo modo de atribuição dos referentes remete, direta ou indiretamente, a um enunciador na origem desse conteúdo. Nesse sentido, o PDV pode corresponder a definições semânticas restritas ou a uma abordagem global indiferente ao conteúdo semântico. Em outros termos, o ponto de vista não passa necessariamente por palavras específicas. Trata-se de uma organização proposicional que pode ou não conter um subjetivema, ou seja, uma palavra que carrega traços (afetivos, axiológicos etc.) da instância enunciativa.

Na sequência dessa primeira noção ampla e compreensiva de ponto de vista, delimitando o seu objeto também a partir da definição ducrotiana, Rabatel (2016, p.30)RABATEL, A. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa: pontos de vista e lógica da narração, teoria e análise. Trad. Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. V.1. São Paulo: Cortez. 2016. afirma que um PDV se estabelece “pelos meios linguísticos pelos quais um sujeito considera um objeto, em todos os sentidos do termo considerar, quer o sujeito seja singular ou coletivo”. Neste entendimento, o PDV não é necessariamente expresso pelas palavras do locutor, tampouco explicita uma evidente separação ballyana entre dictum e modus, grosso modo, entre objetivo e subjetivo, já que o chamado dictum também encerraria uma tomada de posição/percepção sobre o mundo.

Em uma abordagem ducrotiana, o locutor (L) é a instância subjetiva que emite o enunciado, fonética ou escrituralmente, e assume um PDV, podendo ou não manifestar marcas dêiticas; o enunciador (E), por sua parte, é a instância que engendra um PDV, manifestando marcas modais. Similarmente, Rabatel atribui ao locutor os mecanismos de ação dêitica e, ao enunciador, aqueles de ação modal. Contudo, enquanto Ducrot trabalha marcadamente no nível da frase, o autor de homo narrans se volta ao nível do texto.

Destacamos que Alain Rabatel se concentra no âmbito do texto sem ser estruturalista. Dito de outro modo, para ele, não haveria uma estrutura subjacente ao texto que condicionaria as instâncias subjetivas. Diferentemente do sujeito assujeitado que encontramos, por exemplo, na primeira fase de Pêcheux, Rabatel defende a existência de uma autonomia relativa do enunciador na gestão do dialogismo. Por conseguinte, podemos afirmar que o autor adota uma perspectiva enunciativa-pragmática.

Nessa abordagem enunciativa-pragmática, Rabatel não se limita ao aparelho formal da enunciação, apenas no eixo da dêixis, tampouco considera somente o eixo da modalização. Dessa forma, as esferas da modalização e da dêixis podem se combinar e mesmo se desarticular, dado que é possível haver marcas modais mesmo na ausência de marcas dêiticas. Nesse sentido, enfatizamos que, embora enunciador e locutor possam se associar na enunciação, na instância enunciador-locutor (E/L), o enunciador não é o locutor. Este é o autor fático do enunciado.

Por exemplo, na fórmula do provérbio há um enunciador, mas não um locutor a priori. No ditado De grão em grão, a galinha enche o papo, até que um locutor assuma o enunciado - seja tal assunção feita diretamente, de modo dêitico, ou indiretamente, sem marcas do ego, hic, nunc -, tratar-se-ia de uma asserção sem locutor. Esta, enquanto não for assumida por um autor fático, o locutor, existiria apenas enquanto um enunciado coletivamente compartilhado no repertório cultural de determinada época e espaço.

No nosso exemplo, mesmo se tratando de um provérbio em que o ego está, em tese, ausente, há um PDV, afinal, segundo Ducrot e Rabatel, não há enunciador sem ponto de vista, da mesma forma que não há ponto de vista sem enunciador. Aprofundando o entendimento de modo metalinguístico, poderíamos afirmar que o ditado que mobilizamos no presente artigo com finalidade exemplificativa (i.) é oriundo de um enunciador primário (a doxa/o imaginário coletivo), (ii.) passou a ter um locutor (quem assina este artigo) ao ser trazido para a encenação enunciativa do presente texto, a princípio, sem marcas dêiticas, e (iii.) é parte da argumentação indireta do artigo que, sendo implicitamente realizada pelo locutor, não necessariamente ocasiona uma contra-argumentação.

Enquanto há apenas duas instâncias enunciativas, locutor e enunciador, as quais podem ser ilimitadamente numeradas, em princípio, a depender da enunciação ou do corpus analisados - locutor primário (L1), locutor segundo (l2), enunciador primário (E1), enunciador segundo (e2), etc - existem três posturas enunciativas, a saber, sobre-enunciador, coenunciador e subenunciador.

Dessa forma, ao considerar que enunciadores não se equivalem em grau de importância, a certo modo, Rabatel avança os trabalhos de Ducrot, promovendo a ideia de posturas, ou seja, de hierarquização de vozes no texto. Estas se agrupam segundo sua origem enunciativa, seus conteúdos postos e implícitos e sua função argumentativa. Tal desnivelamento em relação à importância dos enunciadores poderia também ser pensado com relação ao grau de autorização, como no atual fenômeno da (des)autorização de vozes específicas nas redes sociais.

O sistema de hierarquização proposto classifica as posturas enunciativas como estabelecidas em uma relação de simetria, a coenunciação, ou de dessimetria de pontos de vista na encenação enunciativa, a sobre-enunciação e a subenunciação. Trata-se de posturas graduais, ou seja, posicionamentos que implicam uma progressão de responsabilidade enunciativa, relativamente à assunção que um locutor faz de um ponto de vista.

O sobre-enunciador é aquela instância cujo PDV é apresentado como dominante e que, portanto, goza de certo grau de autoridade sobre os demais pontos de vista subenunciados. Não necessariamente a sobre-enunciação implica uma submissão forçosa da instância subenunciada. A sobre-enunciação pode ser deliberadamente adotada como uma estratégia enunciativo-argumentativa de docilidade voluntária ou de apagamento enunciativo. Nesse sentido, a dominação sobre o subenunciador pode ser imposta, como nos casos em que se envolve respeito ou constrangimento de alguma natureza, ou escolhida, por adesão livre ou uso estratégico. À guisa de exemplo, ao orientarem suas decisões pelo conteúdo da Constituição Federal, os Ministros do Supremo Tribunal Federal (locutores) legislam/enunciam mobilizando a própria CF como uma fonte evidencial de sobreenunciação.

Já o coenunciador é o enunciador junto ao qual o locutor assume e partilha um PDV co-construído. Afinal, trata-se de uma relação de simetria de pontos de vista na encenação enunciativa. Para Rabatel, a coenunciação diz respeito ao nível (do dialogismo interno) da construção de um ponto de vista, portanto, o consentimento do alocutário na produção do enunciado não está considerado. Retornando ao exemplo da Suprema Corte, um Ministro que evoca a decisão prévia de um colega para co-construção e enunciação do seu ponto de vista sobre um contencioso a ser julgado, realiza uma coenunciação. Segundo Rabatel, como o acordo entre PDV tende a ser limitado, a coenunciação é geralmente seguida por uma sub ou sobre-enunciação, dada a frequência dos desacordos inerentes à dinâmica enunciativa.

Essencialmente relacionada à postura do sobre-enunciador, o subenunciador é a instância que, em rigor, passa a existir ao se enunciar uma relação dissimétrica de PDV. Trata-se da instância cujo ponto de vista é apresentado como dominado. Um Ministro do Supremo que faça valer sua autoridade, enunciando a partir daquilo que apregoa o estatuto da Casa, colocar-se-ia como subenunciador em relação ao estatuto - este último o sobreenunciador.

Na teoria das falácias, a estratégia de subenunciação exemplificada poderia ser normativamente classificada como argumento de autoridade. Contudo, na esfera da teoria da enunciação, interpretaríamos o exemplo como jogo enunciativo de (des)inscrição enunciativa e gestão de PDV entre locutores. Como veremos na análise do corpus, em certas passagens do texto, a subenunciação do locutor, Bento XVI, em relação ao sobre-enunciador, o Novo Testamento, pode ser interpretada no âmbito da relação dissimétrica deliberada. As Sagradas Escrituras são apresentadas como fiadoras da verdade em um movimento concomitante de apagamento da subjetividade aparente do locutor da encíclica.

Para Rabatel e Chauvin-Vileno (2006)RABATEL, A.; CHAUVIN-VILENO, A. La question de la responsabilité dans l’écriture de presse. Semen - Revue de sémio-linguistique des textes et discours, n. 22. 2006. Disponível em: https://journals.openedition.org/semen/2792. Acesso em: 31 jan. 2022.
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, no âmbito da chamada encenação enunciativa, a responsabilidade enunciativa (RE) se relaciona diretamente com a gestão das fontes enunciativas de um dado texto. Entretanto, como já mencionado, não há necessariamente marcas linguísticas específicas nessa gestão. Em origem, a RE está ligada à imputação proposicional de um conteúdo a uma instância enunciativa. Esta assume, ou não, a atribuição na etapa chamada de pris en charge (PEC), isto é, o processo de assunção que resultará na RE. Assim, toda pris en charge implica imputação precedente, de sorte que a responsabilidade enunciativa é a resultante desse processo de imputação/assunção. Reciprocamente, a PEC pode prescindir de marcas específicas, como modalizadores epistêmicos e dimensões lexicais e axiológicas (RABATEL e CHAUVIN-VILENO, 2006RABATEL, A.; CHAUVIN-VILENO, A. La question de la responsabilité dans l’écriture de presse. Semen - Revue de sémio-linguistique des textes et discours, n. 22. 2006. Disponível em: https://journals.openedition.org/semen/2792. Acesso em: 31 jan. 2022.
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).

Dessa forma, Rabatel quer entender qual instância realiza a PEC de uma percepção, ou seja, a assunção de uma representação (enunciativa) de pensamentos - considerando que essa representação ocupa um lugar no dialogismo interno e no interdiscurso. Dessarte, a RE “se relaciona com o ponto de vista através da intervenção que se faz naquilo que se dá a ver nas interações, em outras palavras, de como L1/E1 se posiciona em relação ao discurso de outro” (FARIA, 2015FARIA, V. Minha voz, tua voz, nossas vozes: uma análise da responsabilidade enunciativa em artigos acadêmicos/científicos. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) - Departamento de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Rio Grande do Norte. 2015., p.74).

A autora acrescenta que o termo prise en charge e sua versão conjugada prend en charge impõem certa dificuldade quanto à sua tradução em língua portuguesa. A complexidade do vocábulo, presente em distintos arcabouços teóricos, e não apenas naquele rabateliano, manifesta-se associada às questões sobre modalização, dialogismo, polifonia e mesmo responsabilidade enunciativa - bem como às teorias das operações enunciativas e dos blocos semânticos. Na nossa agenda de pesquisa sobre o discurso pontifício moderno, adotamos de modo intercambiável as formas assunção e prise en charge.

Nos casos das encenações enunciativas que dispensam a fórmula eu digo X, sendo eu o locutor primeiro, certamente haverá uma fonte enunciativa, embora esta não precise ser evidente. Para a singular configuração da enunciação em que o E1/L1 afirma que de acordo com Y, sendo Y outro locutor que não L1, Rabatel (2009) nos brinda com a noção de quasePEC.

Não há PEC, pois aqui ela não é atualizada por um “eu digo X”, pressupõese tenha ocorrido anteriormente [sic]. A imputação é, portanto, uma PEC com responsabilidade limitada, porque foi construída pelo enunciador, atribuído por ele a um locutor/enunciador segundo que sempre se pode argumentar que ele não é responsável pelo L1/E1 tem indevidamente cobrada [sic] (RABATEL, 2009 apudFARIA, 2015FARIA, V. Minha voz, tua voz, nossas vozes: uma análise da responsabilidade enunciativa em artigos acadêmicos/científicos. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) - Departamento de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Rio Grande do Norte. 2015., p.78).

Nesse sentido, a prise en charge define uma responsabilidade plena em relação ao PDV de L1/E1 e parcial na expressão de um ponto de vista alheio, quase-prise en charge. Neste último caso, em um processo de imputação indireto, há uma responsabilidade limitada e uma PEC pressuposta. Afinal, e2/l2 pode não assumir o PDV sobre o qual ele detinha a quase-responsabilidade enunciativa. Dito de modo mais elucidativo, potencialmente, e2/l2 pode a qualquer momento enunciar eu não disse isso, desqualificando o processo de imputação.

Outro conceito rabateliano que joga luz sobre o processo de prise en charge é o seu parônimo prise en compte. Este é o nome dado ao processo em que L1/E1 assume a imputação, mas não o conteúdo imputado. Ou seja, trata-se da encenação enunciativa em que o locutor primeiro não asserta acordo ou desacordo com relação ao PDV que apresenta, colocando-se como uma instância descolada da enunciação.

Neste artigo, o uso que fazemos da estrutura segundo Rabatel e suas variações pode ser entendido como uma prise en compte. Esta, reforçamos, não deve se confundir com prise en charge (PEC), que é a assunção de uma representação enunciativa no nível mais restrito do enunciado. Na prise en compte, os PDV são retomados no modo da subenunciação, sem que o locutor principal se manifeste, a priori, com relação à validade do PDV convocado. Na prise en compte, L1 não deixa evidente se concorda ou discorda do ponto de vista.

Por fim, dentre a gama de conceitos de Rabatel, escolhemos trazer uma derradeira reflexão que se revela útil aos propósitos da nossa análise. Nos casos em que E1/L1 opera um distanciamento em relação a um PDV imputado ao outro, seria possível falar em uma não-responsabilidade enunciativa. Esta não-RE poderia ocorrer mesmo nas situações de diálogo consigo, ou seja, no caso de uma enunciação de um locutor sobre si próprio. Isto acontece no exemplo não foi uma boa ideia você ter começado a editar este artigo tão próximo à data-limite. De todo modo, o locutor tem responsabilidade enunciativa por todos os pontos de vista que traz e, inclusive, por aqueles PDV relevantes à encenação enunciativa em questão que não traz. Nesse sentido, uma análise das formas do silêncio poderia também ter lugar na teoria de Rabatel, mas isto é assunto para outra encenação enunciativa...

3 Uma breve análise rabateliana da introdução da encíclica Deus caritas est (2005)

Como atestado por Rabatel (2016RABATEL, A. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa: pontos de vista e lógica da narração, teoria e análise. Trad. Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. V.1. São Paulo: Cortez. 2016.a; 2021)RABATEL, A. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa: pontos de vista e lógica da narração, metodologia e interpretação. Trad. Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. V.2. Natal: EDUFRN. 2021., analisar um ponto de vista é recuperar os contornos do conteúdo proposicional, bem como sua fonte enunciativa, implícita ou não, por meio da atribuição dos referentes e dos agenciamentos das frases. Para tanto, a fim de descrever e interpretar a gestão dos PDV e do dialogismo interlocutivo por meio do estudo de posturas enunciativas - dadas as limitações espaciais do artigo e o objetivo desta pesquisa -, voltamo-nos especificamente para a introdução da Deus caritas est (2005).

Tradicionalmente, o título de uma encíclica reproduz as primeiras palavras, em latim, de uma citação que sinaliza o tema da circular. Trata-se de uma prática canônica acerca da forma do documento. Por exemplo, as encíclicas Ut unum sint (1995), assinada por João Paulo II, a qual resgata dialogicamente o Concílio Ecumênico do Vaticano II no seu título, e Fratelli tutti (2020), firmada pelo papa Francisco, a qual convida a instância enunciadora das Admoestações Franciscanas.

Portanto, em se tratando de um ato deliberado, a abertura de um documento classificado neste subgênero do discurso pontifício é um elemento expressivo para análises enunciativo-argumentativas. No caso da Deus caritas est, trata-se de uma citação direta da Vulgata, Epístola de João, capítulo 4, versículo 16, que pode ser traduzida do original em grego como Deus é caridade ou Deus é amor9 9 No original grego, pela transliteração em latim realizada na Vulgata: “Ho Theos agape estin”. . Se toda citação invoca uma nova instância enunciativa, no subgênero encíclica, a frase inicial do corpo do texto estabelece necessariamente um jogo dialógico que tematiza e afiança a credibilidade do conteúdo, enredando-o em uma trama interdiscursiva, a princípio, a partir da adoção da subenunciação.

Na versão do título em português, a Santa Sé optou pela tradução Deus é amor seguida do subtítulo explanatório sobre o amor cristão. Em argumentação indireta, delimita-se o título e o tema da carta ao endereçar qual tipo de amor Deus est, ou seja, o amor cristãocatólico. Como mencionado na seção teórica, a argumentação indireta (AMOSSY, 2020AMOSSY, R. A argumentação no discurso. Coordenação da equipe de tradução: Eduardo Lopes Piris e Moisés Olímpio-Ferreira. São Paulo: Editora Contexto, 2020.; RABATEL, 2016RABATEL, A. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa: pontos de vista e lógica da narração, teoria e análise. Trad. Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. V.1. São Paulo: Cortez. 2016.b), por não se sustentar pelo aparelho lógico da demonstração nem ser necessariamente evidente, não ocasiona, a priori, uma contra-argumentação.

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Cabeçalho da Deus caritas est (2005)

No cabeçalho do documento, o título Deus caritas est é antecedido pelo brasão da Santa Sé, o qual, embora não seja uma enunciação per se, gera um efeito de sentido que pode ser argumentativo a partir do seu conteúdo icônico e da autoridade que convoca. O título negritado é sucedido pela nomeação do alocutário aos presbíteros e diáconos, às pessoas consagradas e a todos os fiéis leigos, isto é, nos termos desta pesquisa, a eclésia.

A introdução propriamente dita se inicia em discurso constituinte, entre aspas, com a citação bíblica que resulta no título “‘Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele’ (1 Jo 4, 16)” (l.1). Assim, o corpo do texto é iniciado em um processo de prise en compte ao não expor ostensivamente o PDV do autor da carta. Ou seja, aquele que dá sua assinatura ao documento, o papa Bento XVI, não apresenta neste momento um juízo sobre o ponto de vista que convoca.

Como nosso estudo se volta a uma análise localizada no plano enunciativo, âmbito da instância enunciativa locutor/enunciador, e não àquele do dito mundo real - das volições e dos comportamentos de atores sociais -, evitaremos deliberadamente problematizações relacionadas à pessoa do papa. Este, doravante, será tratado como locutor principal/primeiro, com o respectivo acrônimo L1.

Embora a referenciação jamais seja um ato enunciativo neutro, o locutor principal não se mostra abertamente em prol da valorização do ponto de vista de um sobre-enunciador bíblico. Este enunciador interdiscursivo, a princípio, não seria João, posto que o autor humano da epístola não expressaria um PDV próprio, mas apenas veicularia a inspiração divina, segundo a mística católica. É nessa composição sui generis que nos aproximamos tanto da noção de discurso constituinte como fonte evidencial, quanto daquela de um hiperenunciador que fundamenta a encenação enunciativa.

Já na linha subsequente, em “Estas palavras da I Carta de João exprimem, com singular clareza, o centro da fé cristã” (l.2), anula-se, de certo modo, a prise en compte. Especificamente na qualificação destacada, percebemos a primeira elocução que expõe o PDV de L1, o qual continua a se elidir no apagamento enunciativo da subenunciação. Nesta desinscrição enunciativa com dimensão argumentativa (AMOSSY, 2020AMOSSY, R. A argumentação no discurso. Coordenação da equipe de tradução: Eduardo Lopes Piris e Moisés Olímpio-Ferreira. São Paulo: Editora Contexto, 2020.), L1 atribui seu PDV a um sobre-enunciador e imputa a esta instância uma quase-PEC, adotando a postura de subenunciador dominado. Faria (2015)FARIA, V. Minha voz, tua voz, nossas vozes: uma análise da responsabilidade enunciativa em artigos acadêmicos/científicos. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) - Departamento de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Rio Grande do Norte. 2015. nos lembra que a prise en charge está no nível do enunciado, enquanto a responsabilidade enunciativa, sendo um comportamento discursivo, está em nível mais abrangente.

Da mesma forma, no excerto a seguir, observamos a escolha de denominação qualificadora no sintagma que destacamos em itálico “no mesmo versículo, João oferecenos, por assim dizer, uma fórmula sintética da existência cristã: ‘Nós conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem’” (l.4-5). Ademais, há, nesse trecho, uma continuidade da gestão dialógica que convoca João à instância de l2 - e não apenas de veículo do discurso constituinte - o que se mantém no correr de toda a introdução. Assim, o encadeamento semântico fórmula sintética qualifica o PDV imputado ao centro de perspectiva l2.

Ressaltamos no mesmo fragmento o uso do dêitico nós, tanto na citação do versículo como na forma pronominal oferece-nos, que parece remeter a um eu-tu específico e não ao todo da sociedade. Trata-se do alocutário endereçado no cabeçalho, cuja existência é configurada em relação ao locutor, isto é, o eu-tu Vaticano-eclésia. Por conseguinte, ao engendrar essa delimitação dêitica, gera-se problematologicamente um eles. Esta nova instância, em relação à qual o Vaticano-eclésia se diferencia, seria composta pelos nãocristãos.

Destacando-se na opacidade do texto, a partir da linha 6, notamos que L1 começa a se apresentar de modo mais evidente como coenunciador ao longo do processo de imputação da responsabilidade enunciativa a e2/l2. Destacamos os sintagmas opção fundamental (l.6), novo horizonte (l.8), rumo decisivo (l.8-9) e a passagem “a fé cristã acolheu o núcleo da fé de Israel” (l.11-12), cujo efeito de sentido gerado transmite convicção e autoridade.

Na continuidade, um novo enunciador é mobilizado em “com as palavras do Livro do Deuteronómio, nas quais sabe que está contido o centro da sua existência: ‘Escuta, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor! Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças’ (6, 4-5)” (l.13-16). Doravante, trataremos esta instância enunciadora como e3.

É pertinente à nossa análise o fato de que, enquanto a Epístola de João dialoga com o e2 do Novo Testamento, a citação de Deuteronômio traz o e3 do Antigo Testamento para a encenação enunciativa. Em paralelismo à figura de João como l2, o l3 é representado por Moisés, o veículo que profere os sermões contidos no Deuteronômio. Esta citação trazida por L1 é convencionalmente tida como uma das mais importantes do Livro do Deuteronômio, a qual, interdiscursivamente, aparece também no Novo Testamento, em Marcos 12:28-34, nesta passagem locucionada por Jesus.

Desse modo, na condição de novo enunciador independente, isto é, na qualidade de uma instância que está na origem de um PDV sem ser o locutor, o Deuteronômio é trazido à cenografia (MAINGUENEAU, 2014), engendrando uma tensão constitutiva na heterogeneidade do texto. Afinal, este enunciador remete à mesma fonte evidencial constituinte, a Bíblia - fonte da qual também procede João, representando o Novo Testamento - enquanto, simultaneamente, convoca o PDV, por vezes conflitante, do Velho Testamento. O paroxismo da tensão Novo-Antigo que interpretamos na introdução da encíclica parece ser atingido e, ato contínuo, atenuado na seguinte passagem:

[l.16] Jesus uniu - fazendo deles um único [l.17] preceito - o mandamento do amor a Deus com o do amor ao próximo, contido no Livro do [l.18] Levítico: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’ (19, 18; cf. Mc 12, 29-31). Dado que Deus foi [l.19] o primeiro a amar-nos (cf. 1 Jo 4, 10), agora o amor já não é apenas um ‘mandamento’, mas [l.20] é a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro (l.16-20; a numeração das linhas é nossa).

Primeiramente, destacamos a enunciação de uma nova instância, Jesus - que classificamos como um e4/l4 ou enunciador-locutor atípico10 10 A noção que lançamos de enunciador ou locutor atípico, Ea1 ou La1, conforme começamos a esboçar neste trabalho, parece-nos um pertinente nicho de aprofundamento da pesquisa em análise do discurso pontifício. , posto que este, na cosmogonia cristã, confunde-se à própria fonte do discurso constituinte bíblico. Esse enunciador atípico tende, portanto, a ser trazido no discurso cristão-católico como um sobre-enunciador que enuncia uma reformulação do Velho Testamento (Deuteronômio) por meio do Novo Testamento (Livro de Marcos). Ademais, como mencionado, o uso das aspas no fragmento acentua o caráter de volitividade do enunciador11 11 Os estudos de Authier-Revuz sobre o uso das aspas como marca de alteridade que não representa a posição do locutor, negando parcialmente uma enunciação para ampliar a visada, ao nosso ver, é também um campo a ser explorado no estudo do discurso pontifício. .

Nesta altura do encadeamento discursivo, a enunciação “19, 18; cf. Mc 12, 29-31” (grifo nosso), ou seja, confronte/conforme Levítico com Marcos, estabelece, segundo nossa análise, a mais relevante gestão do dialogismo interlocutivo realizada na introdução da Encíclica. Essa passagem pode ser interpretada como uma sobre-enunciação que L1 articula do Novo Testamento sobre o Antigo Testamento.

O PDV do amor (cristão-católico) que E1/L1 elabora ao longo da introdução da carta é destacadamente afim àquele do Novo Testamento, cujo conteúdo é marcado por estruturas que geram efeitos de sentido relacionados a valores como pautados na concórdia. Tal promoção ecumênica da união é realizada em detrimento de uma argumentatividade marcada, por exemplo, pela punição e/ou temor da ira divina. Portanto, segundo esta interpretação, E1/L1 legitima sua tese a partir de uma sobre-enunciação interdiscursiva que desloca a responsabilidade enunciativa às Sagradas Escrituras e ao enunciador atípico.

Dessa forma, em “(cf. 1 Jo 4, 10)”, concluímos que L1 imputa uma PEC com responsabilidade limitada ao locutor João, dessa vez, sem recorrer às aspas. Ou seja, trata-se de uma quase-PEC da enunciação “Deus foi o primeiro a amar-nos” que pode promover a dimensão argumentativa do texto frente à eclésia. Na hagiografia católica, João é um ponto de ruptura hermenêutica por ser aquele a quem se atribui uma ampliação da visão do amor de Deus ao evocar uma nova e mais compreensiva concepção do ágape.

Nas linhas 19 e 20, L1 legitima seu principal PDV a partir de valores e itens léxicos reconhecidos pela comunidade linguística da eclésia. O locutor principal coenuncia o Novo Testamento (juntos aos locutores segundos Marcos e João) como uma superação ou atualização do Velho Testamento em agora o amor já não é apenas um ‘mandamento’, mas é a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro.

No excerto, apresenta-se abertamente a tese da encíclica e a autoridade de L1, qual seja, a de locutor infalível, se considerada a especificidade do locutor papa em sua infalibilidade papal. Nesse sentido, na nomenclatura que começamos a esboçar, o Sumo Sacerdote poderia também ser considerado um locutor atípico.

Ainda analisando o mesmo fragmento, o dêitico agora salienta o tempo presente da locução como aquele de um ponto de inflexão, ao passo que o qualificador apenas retira argumentatividade do Velho Testamento em prol do Novo. Dito de outro modo, o Velho que manda é destituído a favor do Novo que ama. Entendemos que há neste trecho uma nãoresponsabilidade enunciativa amparada por uma argumentação indireta, já que E1/L1 parece operar certo distanciamento em relação ao PDV imputado ao Antigo Testamento.

Ademais, o item léxico mandamento, apresentado entre aspas, estabelece uma marca de distanciamento. Os ditos Dez Mandamentos são registrados no Antigo Testamento e apenas parcialmente mencionados no Novo Testamento, em Mateus e na Epístola aos Romanos. Segundo Rabatel (2016RABATEL, A. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa: pontos de vista e lógica da narração, teoria e análise. Trad. Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. V.1. São Paulo: Cortez. 2016.a, p.101), “uma palavra, em certas condições, pode ser suficiente para remeter a um PDV”, dado que essa remete a um enunciador e a um PDV que são identificados por uma dada comunidade linguística.

Por outra parte, o modalizador mas enfatiza na sua sequência a parte mais importante do encadeamento, ou seja, a resposta ao dom do amor. Nesse momento, reforça-se o eixo temático da encíclica, o amor, e notadamente uma forma específica de amor, aquele cristãocatólico. Assim, a carta atualiza e adapta o conceito dessa emoção diante das prioridades da Igreja em determinada época, endereçando-as à Eclésia. Afinal, essas são as razões de ser do gênero discursivo encíclica, conforme registrado pela Santa Sé nos códigos canônicos.

Na sequência do conteúdo da introdução, a tese do amor, conforme argumentada por E1/L1, é valorizada no processo de construção de um subenunciador indeterminado. Este está antiorientado em relação ao locutor principal: “Num mundo em que ao nome de Deus se associa às vezes a vingança ou mesmo o dever do ódio e da violência, esta é uma mensagem de grande actualidade e de significado muito concreto” (l.21-22).

O agente da vingança, do ódio e da violência, não é nomeado, mas é trazido com fins de respaldar a dimensão argumentativa da encíclica, amparada na coenunciação do Novo Testamento. Segundo a interpretação, tal agente incógnito poderia se tratar de fiéis de outras religiões ou de instâncias da própria religião católica que justificam atos a partir dos ensinamentos do deus do Antigo Testamento.

Além disso, no excerto que trazemos acima, a sobre-enunciação de L1 é enfatizada pelo uso de qualificadores como grande e muito e confirmada pela enunciação consecutiva: “Por isso, na minha primeira Encíclica, desejo falar do amor com que Deus nos cumula e que deve ser comunicado aos outros por nós.” (l.23-24). Neste extrato, L1 convoca a RE para si, evidenciando-se e sobre-enunciado-se.

Há diversas marcas dêiticas e modalizações do locutor principal, como minha e desejo, o qual é inegavelmente responsável pela gestão de todos os pontos de vista do texto - tais como aqueles contidos na Bíblia e os demais PDV provenientes de instâncias indeterminadas. Evidenciamos ainda o movimento heterodialógico realizado em nos cumula, à maneira de uma assunção empática do PDV do outro.

Na continuação do texto, temos: “desejo - ao início do meu Pontificado - especificar nela (a primeira parte da encíclica) alguns dados essenciais sobre o amor que Deus oferece de modo misterioso e gratuito ao homem, juntamente ao nexo intrínseco daquele Amor com a realidade do amor humano” (l.26-28). Neste fragmento, o locutor começa a apresentar e estabilizar a sua tese contida na primeira parte da encíclica, nomeadamente, aquela da confluência do amor de deus, ágape, e do amor humano, eros. Entendemos ainda que L1 reforça tanto a sua responsabilidade enunciativa quanto a sua posição argumentativa global. Nesta se acomodam os vários PDV mobilizados ao longo da introdução.

Por fim, já no fechamento da introdução, o locutor principal asserta que: “O meu desejo é insistir sobre alguns elementos fundamentais, para deste modo suscitar no mundo um renovado dinamismo de empenhamento na resposta humana ao amor divino” (l.31-33). Ressaltando a sua dimensão argumentativa, sobretudo nos trechos destacados em itálico, L1 conclui o encadeamento enunciativo da introdução. Esta, retomando nossa análise, iniciouse com a subenunciação de L1 e foi seguida por coenunciação - e mesmo por sobreenunciação em certas passagens - em relação aos enunciadores e locutores segundos convocados da fonte evidencial bíblica.

Trazendo à baila a cena da enunciação na qual se insere o subgênero encíclica, podemos resumir que (i) em plano simbólico sincrético, interdiscursivamente, o PDV de L1 - o Sumo Sacerdote que assina o documento - representa aquele da institucionalidade que o legitima enquanto tal, o Vaticano-eclésia; (ii) o locutor principal papa é afiançado pela Santa Sé, instância à qual se atribui a responsabilidade enunciativa e o poder simbólico representado pelo seu brasão no cabeçalho do documento; (iii) nos termos de Orlandi (1987)ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2. ed. São Paulo: Pontes, 1987. a mistificação do discurso religioso (da voz de deus), ou seja, o apagamento da maneira pela qual o L1 assume essa voz divina sem explicitar o mecanismo de representação, ocorre em bases argumentativo-enunciativas; e (iv) a tese de L1 é avalizada pelo sobre-enunciador que o legitima, a Sagrada Escritura, para o seu alocutário específico, a eclésia.

Considerações finais

Por meio da nossa própria encenação enunciativa acadêmica, buscamos realizar nossa análise a partir de um posicionamento descritivo-interpretativo. Dito de outro modo, partindo de categorias específicas, inicialmente, aspiramos proceder à exposição do corpus de maneira não-normativa/não-militante12 12 Vide o texto de Doury (2013). (descrição). Na sequência, avançamos conclusões à luz da descrição engendrada (interpretação). Ao tratar da primeira etapa de descrição minuciosa do material linguístico, Possenti (2006, p.19)POSSENTI, S. Explicar piadas, Freud explica: matar a cobra e mostrar o pau. Revista Polifonia. EduFMT v. 12, n. 1, p.1-20, 2006. Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br›article›view. Acesso em: 11 jan. 2022.
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afirma que “no fundo, essa é a diferença entre analisar (ser analista de discurso) e comentar”.

Naturalmente, nosso artigo também possui uma dimensão argumentativa relacionada às nossas escolhas metodológicas discricionárias. Portanto, a análise da encenação enunciativa que realizamos na introdução da Deus caritas est (2005) é apenas uma possibilidade de investigação que não esgota todo o conteúdo do documento, tampouco a integralidade do potencial heurístico que a teoria rabateliana nos permitiria extrair deste objeto discursivo. Ou seja, não se trata de uma avaliação exaustiva, mas de uma nova contribuição para uma agenda de pesquisa em desenvolvimento sobre o discurso pontifício moderno.

Nesse sentido, sendo o locutor responsável por todos PDV convocados, e inclusive por aqueles relevantes à encenação enunciativa que não se encontram no texto, poderíamos examinar as formas do silêncio ao longo do conteúdo programado na encíclica. Ainda no que diz respeito aos potenciais desdobramentos da pesquisa, ressaltamos a denominação original que atribuímos à instância Jesus, neste trabalho, qual seja, enunciador-locutor atípico. Esta também poderia servir no estudo do locutor papa, o qual é amparado por sua dogmática infalibilidade.

Na presente análise, nossa principal conclusão é a de que o locutor primário se vale tanto da subenunciação como da coenunciação em relação à fonte evidencial bíblica. L1 se aproxima do (e mesmo sobre-enuncia o) enunciador do Novo Testamento, enquanto se desassocia do (e atualiza o) enunciador do Velho Testamento. Nessa gestão de pontos de vista, marcada pelo dialogismo interlocutivo, o enunciador/locutor primeiro assume responsabilidades enunciativas e imputa conteúdos proposicionais a enunciadores e locutores segundos. Em tal dinâmica dialógica, o componente interdiscursivo é essencial à organização das posturas que operam o texto argumentativa e enunciativamente.

  • 1
    Nesta pesquisa doutoral, analisamos os valores que fundamentam posicionamentos internos da Igreja Católica relacionados aos temas da homoafetividade e do amor ao próximo em textos publicados entre 1995 e 2021 pela Santa Sé, assinados ou ostensivamente autorizados pelo papa.
  • 2
    Maingueneau (2014) usa o termo cena da enunciação para indicar, simultaneamente, um quadro e um processo, bem como para evitar situação de enunciação e situação de comunicação que, respectivamente, indicariam usos de ordem estritamente linguística e sociológica. A cena de enunciação, segundo o autor, é composta das cenas englobante (grosso modo, o tipo de discurso), genérica (gêneros discursivos, no sentido de normas que suscitam expectativas) e cenografia, que é “uma encenação singular da enunciação” (MAINGUENEAU, 2014, p.122) que legitima o discurso.
  • 3
    Enquanto estadista, o papa goza da plenitude dos poderes. Segundo artigo nº 1 da Lei Fundamental do Estado da Cidade do Vaticano - disponível em: https://www.vatican.va/news_services/press/documentazione/documents/sp_ss_scv/informazione_generale/legge-fondamentale_po.html, acessado em 04 fev. 2022. - o bispo de Roma goza plenamente dos poderes legislativo, executivo e judiciário. Os documentos oficiais da Santa Sé utilizam a designação de Monarquia Absoluta, embora haja na literatura classificações da forma de governo vaticana como Estado teocráticomonárquico ou Estado Eclesiástico. Além do seu próprio território intramuros, a jurisdição vaticana se estende ainda extraterritorialmente a certas microzonas e propriedades em Roma e fora de Roma.
  • 4
    Segundo Constituição Apostólica, “Art. 2, § 1 - com o nome de Dicastérios entendem-se: a Secretaria de Estado, as Congregações, os Tribunais, os Conselhos e os Ofícios, isto é, a Câmara Apostólica, a Administração do Património da Sé Apostólica, a Prefeitura dos Assuntos Económicos da Santa Sé” (Disponível em http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_constitutions/documents/hf_jp-ii_apc_19880628_pastorbonus.html. Acesso em: 4 fev. 2022).
  • 5
    Disponível em: https://www.vatican.va/content/vatican/it.html. Acesso em: 7 abr. 2022.
  • 6
    Tradução nossa. No original, em italiano: “(...) per la divina assistenza a lui promessa nella persona del beato Pietro, gode di quell’infallibilità con cui il divino Redentore volle fosse corredata la sua Chiesa nel definire la dottrina intorno alla fede e ai costumi: pertanto tali definizioni del Romano Pontefice sono immutabili per se stesse, e non per il consenso della Chiesa” (Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ivatican-council/documents/vat-i_const_18700718_pastor-aeternus_it.html. Acesso em: 5 out. 2021).
  • 7
    Deliberadamente, não especificamos as obras dos autores que influenciaram o projeto de Rabatel e tampouco explicitamos discussões detalhadas sobre a proposta de cada intelectual - e como Rabatel dessas se vale. Por exemplo, em Bakhtin ressaltaríamos a promoção da ideia de polifonia, a partir dos seus estudos literários; em Revuz, a heterogeneidade enunciativa; em Charaudeau, a instância do Tiers etc. Consideramos as limitações espaciais e objetivo desta seção, isto é, aquele da realização de um sucinto panorama de certos conceitos de Rabatel. Para mais informação sobre o dialogismo interdiscursivo que atravessa a teoria rabateliana, vide introdução e cap.I da obra Homo Narrans, vol. 1.
  • 8
    Publicada em dois volumes no original sob o título Homo narrans: pour une analyse énonciative et interactionnelle du récit, a obra será traduzida ao português brasileiro em quatro volumes, a saber, o v. 1, Teoria e análise; o v. 2, Metodologia e interpretação, publicado em 2021 pela UFRN; o v. 3, Dialogismo e polifonia na narrativa, pontos de vista e discursos representados; e o v. 4, Dialogismo e polifonia na narrativa, posturas, apagamento enunciativo e argumentação indireta. Os volumes 3 e 4 serão publicados pela EDUFRN (biênio 2022/2023).
  • 9
    No original grego, pela transliteração em latim realizada na Vulgata: “Ho Theos agape estin”.
  • 10
    A noção que lançamos de enunciador ou locutor atípico, Ea1 ou La1, conforme começamos a esboçar neste trabalho, parece-nos um pertinente nicho de aprofundamento da pesquisa em análise do discurso pontifício.
  • 11
    Os estudos de Authier-Revuz sobre o uso das aspas como marca de alteridade que não representa a posição do locutor, negando parcialmente uma enunciação para ampliar a visada, ao nosso ver, é também um campo a ser explorado no estudo do discurso pontifício.
  • 12
    Vide o texto de Doury (2013)DOURY, M. Positionnement descriptif, positionnement normatif, positionnement militant. Argumentation et Analyse du Discours. n. 11, p.1-17. 2013. Disponível em: http://aad.revues.org/1540. Acesso em: 28 ago. 2022.
    http://aad.revues.org/1540...
    .
  • Pareceres
    Tendo em vista o compromisso assumido pela Bakhtinina. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.
  • Parecer I
    Por sua significativa importância para os estudos do discurso religioso moderno, o artigo apresenta adequada e clara exploração dos fundamentos teóricos da perspectiva rabateliana. O texto está escrito e organizado segundo os critérios exigidos do gênero textual artigo acadêmico-científico; alguns deslizes de digitação (acentuação - sobretudo, casos de crase, pluralização, pontuação, numeração dos subtópicos...; na nota 22, a forma identificada como sendo “em latim”, não passa de uma transcrição do grego e não em latim) necessitam ser corrigidos rigorosamente em posterior releitura. Os itens 2, 3 e 4 apresentam o corpus, em seu gênero, em contexto de produção relevante para os estudos do discurso. A bibliografia é atualizada e adequada aos objetos propostos. Por esses motivos, considero o artigo apto para publicação. APROVADO
    Moisés Olímpio-Ferreira - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, São Paulo, Brasil; https://orcid.org/0000-0003-2965-2734; moisesolim@gmail.com
  • Parecer II
    Considero que o artigo foi construído de modo primoroso, por isso meu parecer é favorável à sua publicação sem sugestões. Apenas gostaria de fazer uma consideração para as próximas publicações que o autor realizará neste ou em outros periódicos acadêmicos, a qual diz respeito ao uso excessivo de notas de rodapé, que ocorreu no artigo sobre qual dei meu parecer. Conforme expressei, o artigo é muito bem construído em todos os sentidos, por isso não me sinto à vontade para aprová-lo com sugestões, mesmo assim, devo dizer que no geral os periódicos têm solicitado que os autores evitem notas de rodapé e optem por fazer as explicações necessárias no corpo do texto, isso ajudará a leitura a ser realizada de modo contínuo e esteticamente o artigo ficará melhor. Considero, contudo, muito importante, que o artigo passe por uma revisão gramatical cuidadosa. APROVADO
    Francisco Benedito Leite - Universidade Metodista de São Paulo, São Paulo, Brasil; https://orcid.org/0000-0002-7295-6285; ethnosfran@hotmail.com
  • Disponibilidade de dados de pesquisa e outros materiais
    Os conteúdos já estão disponíveis.

REFERÊNCIAS

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  • RABATEL, A. Homo narrans: por uma abordagem enunciativa e interacionista da narrativa: pontos de vista e lógica da narração, teoria e análise. Trad. Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi e João Gomes da Silva Neto. V.1. São Paulo: Cortez. 2016.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    18 Abr 2022
  • Aceito
    29 Ago 2022
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