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Problematizando lugar como conceito e categoria da geografia humanista

Resumo

Este artigo procura problematizar o conceito/a categoria de lugar na Geografia e, em particular, na Geografia Humanista, enfatizando as transformações ocorridas com o conceito/a categoria a partir de uma abordagem ontológica/fenomenológica de lugar. Nesse contexto, discute-se o lugar como aberto ao exterior, como processual/multiescalar e como criação/produção espacial, atualizando e aprofundando a reflexão nessas direções, de modo a retomar o uso do conceito/da categoria lugar operacionalizado em estudos e pesquisas anteriores do autor.

Palavras-chave:
Lugar; Geografia; Geografia humanista; Criação/produção espacial

Abstract

This article discusses place as a concept/category in Geography, particularly, in Humanist Geography, emphasizing its transformations through an ontologic/phenomenologic approach. In this context, I explore place as an openness to the outside, as a processual/multiscale phenomenon, and as a spatial creation/production. Therefore, my reflections on the concept of the place were updated and deepened in this article as a return to my previous studies and research on this topic and its operationalization as a concept/category.

Keywords:
Place; Geography; Humanist geography; Spatial creation/production

Resumen

Con este artículo se busca problematizar el concepto y/o categoría de lugar en la Geografía y, en particular, en la Geografía Humanista, enfatizándose las transformaciones ocurridas con el concepto y/o categoría a partir de un abordaje ontológico/fenomenológico de lugar. En ese contexto, se discute al lugar como abierto al exterior, como procesual/multiescalar y como creación/producción espacial, actualizando y profundizando la reflexión en esas direcciones, de modo a retomar el uso del concepto y/o de la categoría lugar, operacionalizado en estudios e investigaciones anteriores por parte del autor del presente artículo.

Palabras-clave:
Lugar; Geografía; Geografía humanista; Creación/producción espacial

Introdução

Pretendo, com esse artigo, retomar uma reflexão importante em nossas pesquisas, desenvolvidas no âmbito das atividades do Grupo Espaço Livre de Pesquisa-Ação da Universidade Federal da Bahia: a discussão sobre a noção de lugar e como ela vem sendo trabalhada como conceito e categoria norteadores de nossos estudos.

Fruto de pesquisas conduzidas num pós-doutorado na Humboldt Universität em 2009, o livro Lugar e mídia (Serpa, 2011SERPA, A. Lugar e mídia. São Paulo: Contexto,2011.) apresenta algumas dessas acepções atribuídas ao conceito/à categoria lugar e é a partir dos pressupostos e premissas desenvolvidos nessa obra que procuramos avançar na discussão pensando o lugar como espaço vivido e de representação e apontando as perspectivas que se abrem numa ótica existencialista e ontológica/fenomenológica para a abordagem de lugar no mundo contemporâneo.

No livro em questão, queríamos sublinhar a relação entre lugar e mídia debruçando-nos sobre grupos e iniciativas que, na época de nossos levantamentos de campo, estavam em Salvador e Berlim, se apropriando de meios de comunicação como o rádio, a internet e a televisão, para produzir e veicular conteúdos estreitamente relacionados com seu lugar de ocorrência. O pressuposto de partida era o de que a relação entre lugar e mídia cria/produz o espaço urbano na contemporaneidade a partir de táticas e discursos próprios de agentes e grupos que compõem as diferentes iniciativas analisadas no livro (Serpa, 2011SERPA, A. Lugar e mídia. São Paulo: Contexto,2011.).

Nesse momento de nossas reflexões e pesquisas, era importante enfatizar que, relacionando-se, lugar e mídia refletiam e condicionavam as práticas espaciais, as representações do espaço e os espaços de representação (Lefebvre, 2000LEFEBVRE, H. La production de l´espace. 4e éd. Paris: Anthropos, 2000.), produzindo “lugares” na cidade contemporânea e envolvendo diferentes dimensões escalares nesse processo. Para problematizar essa relação, tínhamos como premissa a ideia de que a ação e o discurso desses grupos e iniciativas produzem/criam “lugares” a partir da apropriação dos meios de comunicação em contextos espaço-temporais específicos, por meio de táticas que podem ou não se consolidar em estratégias de espacialização (Certeau, 1994CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. 2a ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.).

Nesse contexto, os espaços de representação ganharam, nas análises desenvolvidas no livro, status de lugares da enunciação, de lugares que podem emergir da superestrutura institucional, a partir da confrontação com as ideias hegemônicas de cultura, com as estratégias dos meios de comunicação de massa. E essa confrontação se dava, a nosso ver, basicamente pela produção/criação de lugares enunciados, de lugares percebidos e concebidos por meio dos conteúdos produzidos, em geral, por grupos pouco numerosos, mas articulados em rede, como uma teia, que costura as táticas de enunciação dos/nos diferentes lugares, uma teia “mundo”, que também abre os lugares para o exterior (Serpa, 2011SERPA, A. Lugar e mídia. São Paulo: Contexto,2011.).

A ideia de lugares abertos ao exterior e articuladores de escalas, do local ao global, foi, portanto, a base da reflexão, neste momento de nossas pesquisas. Ao analisar as táticas de apropriação socioespacial dos meios de comunicação, protagonizadas por grupos e iniciativas que compunham o tecido sociocultural dos bairros e distritos pesquisados nas duas cidades, percebemos que essas representações são construídas no cotidiano a partir de elementos sociais, históricos, econômicos e culturais de seus respectivos espaços de atuação e são também influenciadas pelo acesso destes grupos e iniciativas aos meios de comunicação, condição primeira para a produção de conteúdos sobre o “lugar” (Serpa, 2011SERPA, A. Lugar e mídia. São Paulo: Contexto,2011.).

Quanto maiores eram a disponibilidade e o acesso aos meios de comunicação nos bairros e distritos das duas cidades analisadas, mais consolidadas eram as representações espaciais de grupos e iniciativas não alinhados ao mainstream. As representações precisavam ser “comunicadas”, para que os lugares fossem enunciados de modo eficaz, ainda que, na maior parte das vezes, essas representações fossem ignoradas pelos meios de comunicação de massa. Isso nos mostrou também que o discurso dos grupos e iniciativas analisados no livro não estava nunca isolado dos respectivos contextos de enunciação, revelando ainda que os lugares são sempre processuais e articulam diferentes espaços de conceituação (Serpa, 2011SERPA, A. Lugar e mídia. São Paulo: Contexto,2011.).

Essa articulação de recortes/escalas geográficas (do local ao global) era tanto mais ampla como mais complexa conforme a capacidade de articulação dos grupos envolvidos, assim como sua acessibilidade ao meio técnico disponível em cada lugar concreto. Isso era condicionado também pela qualidade dos meios de comunicação disponíveis e por seu raio de abrangência. Constatou-se que os lugares enunciados/comunicados por estes grupos eram sempre multiescalares, mas os recortes espaciais envolvidos no discurso e na ação dos grupos e iniciativas eram mais complexos e mais diversos de acordo com a acessibilidade/a disponibilidade de recursos técnicos em suas respectivas áreas de atuação.

E são essas qualidades, lugar como aberto ao exterior, como processual/ multiescalar e como criação/produção espacial que pretendemos aprofundar nas próximas seções deste artigo, atualizando a reflexão nessas direções (Serpa, 2011SERPA, A. Lugar e mídia. São Paulo: Contexto,2011.).

Lugar fechado e reduzido a uma única escala ou aberto e multiescalar?

Ainda é comum em Geografia a associação da categoria/do conceito de lugar a uma única escala de abordagem: a escala local. Isso empobrece sobremaneira o uso do conceito/da categoria lugar na disciplina, já que não se pode reduzir lugar a uma única escala de abordagem. Enfatizo, no entanto, que essa concepção de “lugar” não é exatamente algo novo, porque a ideia de lugar como multiescalar já havia sido proposta por Yi-Fu Tuan, em seu livro Espaço e lugar, traduzido para o português por Lívia de Oliveira e publicado no Brasil em 1983 (Tuan, 1983TUAN, Y.-F. Espaço e lugar. São Paulo: Difel, 1983.).

No entanto, essa confusão entre lugar e local alimentou e ainda alimenta outras concepções limitadoras do conceito/da categoria no âmbito da Geografia, quando, por exemplo, se associa lugar a fragmentos espaciais fechados em relação ao exterior, bem como a uma identidade espacial fixa, conservadora e paroquial. Embora isso possa ser verdadeiro em alguns contextos e situações, são esses preconceitos e confusões teórico-metodológicas que vão subsidiar algumas críticas à abordagem fenomenológica/ontológica de lugar em geografia humanista, por geógrafos ligados à economia política como, por exemplo, Doreen Massey (2000MASSEY, D. Um sentido global do lugar. In: ARANTES, A. A. O espaço da diferença. Campinas, SP: Papirus, 2000. p. 176-185., p. 177):

Um dos resultados dessa situação é a crescente incerteza sobre o que queremos dizer com “lugares” e como nos relacionamos com eles [...] como, diante de todo [...] movimento e de toda [...] mistura, podemos manter algum sentido de lugar local e de sua particularidade?

Numa acepção localista e fechada, os lugares e a busca de sentido de lugar seriam necessariamente considerados “reacionários”. Massey vai se contrapor a esse tipo de abordagem propondo que se pensem outros sentidos de lugar, de cunho mais progressista, de lugares abertos ao mundo (Massey, 2000MASSEY, D. Um sentido global do lugar. In: ARANTES, A. A. O espaço da diferença. Campinas, SP: Papirus, 2000. p. 176-185., p. 178). Embora as críticas de Massey se remetam, a nosso ver, de modo geral à geografia humanista e à abordagem fenomenológica de lugar, sem levar em conta as novas compreensões do conceito/a categoria nesse subcampo da Geografia, nos parece oportuno considerar seus questionamentos para sublinhar como uma abordagem fenomenológica/ontológica de lugar abre justamente para as perspectivas que ela aponta em suas formulações. Ou seja, a crítica de Massey é datada e remete a uma visão de lugar superada pelos geógrafos humanistas.

Ao abordar a questão da compressão espaço-tempo na contemporaneidade e a forma como os diferentes grupos e classes sociais vão experienciá-la, Massey volta a se questionar como pensamos sobre lugares num mundo “de mudanças tempo-espaciais socialmente variadas”, quando as “‘comunidades locais’ aparecem cada vez mais rompidas”. Num contexto assim, como se pode ainda pensar lugar como “localidade”? Para ela, “precisamos [...] pensar no que possa ser um sentido adequadamente progressista do lugar, aquele que seria adequado aos tempos globais-locais atuais e aos sentimentos e relações que esses tempos fazem emergir” (Massey, 2000MASSEY, D. Um sentido global do lugar. In: ARANTES, A. A. O espaço da diferença. Campinas, SP: Papirus, 2000. p. 176-185., p. 181). Massey quer frisar, finalmente, com suas críticas e formulações, que os “sentidos de lugar” são sempre disputados politicamente.

Essa é precisamente a direção apontada no livro Lugar e mídia, citado na introdução deste artigo. No livro, os grupos e iniciativas foram analisados como ativismos socioculturais (Serpa, 2009SERPA, A. Ativismos socioculturais nos bairros populares de Salvador: relações entre cultura e política na articulação de novos conteúdos para a esfera pública urbana. Revista Cidades, v. 6, n. 9, p. 155-191, 2009. Avaliable in: https://periodicos.uffs.edu.br/index.php/cidades/article/view/12553 . Access in: May, 13, 2022.
https://periodicos.uffs.edu.br/index.php...
), como sujeitos de uma ação política renovada, em uma esfera pública urbana mais plural e menos fechada aos grupos populares e/ou alternativos de nossas cidades. Essa reflexão colocou também em nova perspectiva a discussão sobre o direito à cidade, os lugares urbanos aparecendo em toda sua plenitude como “obras”, por meio de práticas espaciais desviantes dos “modelos” (Lefebvre, 2006LEFEBVRE, H. La presencia y la ausencia: contribución a la teoría de las representaciones. México: Fundo de Cultura Econômica, 2006.): como “obras” enunciadas e comunicadas, que, em nossa opinião, expressa na conclusão do referido livro, poderiam/deveriam ser consideradas nas reflexões sobre “e-governos” e participação política via meios de comunicação, abrindo espaços institucionais para a emergência de representações espaciais não hegemônicas, para renovar as estratégias de planejamento e gestão na/da cidade contemporânea. Os exemplos analisados no livro Lugar e mídia evidenciaram que práticas contraculturais encontram-se entrincheiradas nas brechas e nos interstícios da cidade contemporânea e se revelam nas práticas de apropriação dos meios de comunicação por grupos e iniciativas específicos em seus respectivos lugares de ocorrência.

Então, na próxima seção deste artigo, discutimos como reflexões mais recentes no campo da geografia humanista, especialmente aquelas de Edward Relph, vêm caminhando justamente na direção do que apontava Massey há duas décadas, de “re-imaginar” o lugar, isto é, “re-imaginar” a especificidade geográfica e as diferenças locais, reposicionando o conceito/a categoria na disciplina, de modo que o “lugar” seja compreendido como: “(i) não delimitado, (ii) não definido em termos de exclusividade, (iii) não definido em termos de contraposição entre um dentro [inside] e um fora [outside] e (iv) não dependente de falsas noções de uma autenticidade internamente gerada” (Massey, 2004MASSEY, D. Filosofia e política da espacialidade: algumas considerações. Geographia, v. 6, n. 12, p. 7-23, 2004. doi: https://doi.org/10.22409/GEOgraphia2004.v6i12.a13477.
https://doi.org/10.22409/GEOgraphia2004....
, p. 20).

Lugar sem limites: um reposicionamento do lugar como “confluência”

Em capítulo escrito especialmente para o livro Qual o espaço do lugar?, organizado por Marandola Jr., Holzer e Oliveira (2012MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W.; OLIVEIRA, L. (Org.). Qual o espaço do lugar? São Paulo: Perspectiva , 2012.), Relph vai discutir novas abordagens do conceito/da categoria lugar, afirmando o lugar como foco e confluência de experiências vividas no cotidiano; um lugar de um “eu sem limites”, base para que essas experiências cotidianas se abram para o mundo.

Refletindo sobre as tecnologias modernas, o autor vai afirmar que estas, ao contrário do que muitos pensam, não diminuem, mas aumentam nossa experiência de lugar, a partir de seu próprio exemplo, no momento em que escrevia o capítulo para o referido livro: “estou em um café numa rua de Seattle, longe de minha casa em Toronto, bebendo um café de El Salvador feito em uma máquina italiana, escrevendo um artigo para ser publicado no Brasil e ocasionalmente lendo e-mails de amigos de cidades distantes” (Relph, 2012RELPH, E. Reflexões sobre a emergência, aspectos e essência do lugar. In: MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W .; OLIVEIRA, L. (Org.). Qual o espaço do lugar? São Paulo: Perspectiva , 2012. p. 17-32., p. 31).

Nesse contexto, Relph vai observar também que lugar e sentido de lugar não são constantes, abordando as diferenças de sentido de lugar para ele e para seus avós, os quais viveram a maior parte de sua vida numa aldeia, viajando raramente a mais de vinte quilômetros dali. Assim, a experiência de lugar de seus avós foi fortemente influenciada pelas condições econômicas e tecnológicas em que viveram; e seu sentido de lugar era estreitamente limitado e profundamente enraizado. Já o de Relph é afetado por sua mobilidade “e meios incomuns e cosmopolitas deste início de século XXI” (Relph, 2012RELPH, E. Reflexões sobre a emergência, aspectos e essência do lugar. In: MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W .; OLIVEIRA, L. (Org.). Qual o espaço do lugar? São Paulo: Perspectiva , 2012. p. 17-32., p. 28).

Em uma abordagem fenomenológica/ontológica, ser e lugar estão sempre intrinsecamente ligados. Apoiado nas reflexões de Jeff Malpas, Relph vai refletir sobre o lugar como particularidade e conectividade com as quais sempre experienciamos o mundo. Lugar é proximidade do ser, porque “ser é a existência de todas as coisas”, mas proximidade aqui não tem a ver com métrica cartesiana, significando, de fato, a consciência de “abertura, totalidade e conectividade do mundo” (Relph, 2012RELPH, E. Reflexões sobre a emergência, aspectos e essência do lugar. In: MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W .; OLIVEIRA, L. (Org.). Qual o espaço do lugar? São Paulo: Perspectiva , 2012. p. 17-32., p. 28). Ao relacionar “lar” e “lugar” e ainda apoiado nas reflexões de Malpas, Relph (2012RELPH, E. Reflexões sobre a emergência, aspectos e essência do lugar. In: MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W .; OLIVEIRA, L. (Org.). Qual o espaço do lugar? São Paulo: Perspectiva , 2012. p. 17-32., p. 29) sublinha que “o lar, e na verdade todo lugar, não é delimitado por limites precisamente definidos, mas, no sentido de ser o foco de intensas experiências, é ao mesmo tempo sem limites”.

Tanto nas reflexões de Relph como nas de Malpas sobre lar e lugar, é evidente a influência do pensamento de Martin Heidegger e de sua noção de “habitar”, “atualizada” pelos dois primeiros nas direções apontadas até aqui. Para Heidegger (2008HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5a ed. Petrópolis, RJ: Vozes /Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco , 2008., p. 137), “a referência do homem aos lugares e através dos lugares [...] repousa no habitar. A relação entre homem e espaço nada mais é do que um habitar pensado de forma essencial”. Relph, no entanto, se posiciona criticamente quanto ao aspecto romântico de parte do pensamento de Heidegger, discordando do ponto de vista heideggeriano de que a tecnologia moderna nos distanciaria do habitar e do ser - “nisso penso que ele estava apenas parcialmente correto” (Relph, 2012RELPH, E. Reflexões sobre a emergência, aspectos e essência do lugar. In: MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W .; OLIVEIRA, L. (Org.). Qual o espaço do lugar? São Paulo: Perspectiva , 2012. p. 17-32., p. 30). Esse ponto de vista, de lugares estritamente delimitados e enraizados na experiência geográfica, conduziria, segundo Relph, a atitudes de exclusão e “a um senso contaminado de lugar”, “ao qual o próprio Heidegger sucumbiu quando se associou ao nazismo” (Relph, 2012RELPH, E. Reflexões sobre a emergência, aspectos e essência do lugar. In: MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W .; OLIVEIRA, L. (Org.). Qual o espaço do lugar? São Paulo: Perspectiva , 2012. p. 17-32., p. 30).

A posição de Relph, de que a tecnologia não distanciaria o habitar do ser, encontra respaldo em nossas próprias pesquisas realizadas no Brasil e na Alemanha na primeira década dos anos 2000, cujos resultados estão no já mencionado Lugar e mídia. Defendíamos ali o pressuposto de que a investigação sobre as relações entre mídia e lugar, entre tecnologia e lugar, deveria também partir de uma avaliação do espaço como meio operacional e como meio percebido/concebido, de acordo com as ideias de Milton Santos (1996SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996.). E que seria dos resultados de uma investigação assim que se poderia inferir o papel e a importância dos lugares para a apropriação da técnica e sua transformação, pelo uso e pela apropriação, em tecnologia, o que também emprestaria um sentido processual ao conceito/à categoria “lugar”. Esse “novo meio técnico” (composto por comunicação e informática, por linguagens e equipamentos) desempenha um papel que vai além da função de sustentáculo da ação humana, já que é, ele próprio, segundo Ana Clara Torres Ribeiro, “intrinsecamente ação”: “Por esse motivo, a sua natureza é estratégica e, virtualmente, instituinte” (Ribeiro, 2008RIBEIRO, A. C. T. A atualização técnica do urbano. Cidades, v. 5, n. 8, p. 189-213, 2008. Avaliable in: https://periodicos.uffs.edu.br/index.php/cidades/article/view/12295 . Access in: May, 13, 2022.
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, p. 191, grifos do original).

Assim, a ideia de que lugar é particularidade, mas também conectividade, se coaduna bem com a premissa de que a apropriação da técnica e sua transformação em tecnologia podem aumentar e potencializar nossas experiências de lugar, como sublinhado por Relph. E isso ganha ainda mais verdade, se pensarmos com Relph (2012RELPH, E. Reflexões sobre a emergência, aspectos e essência do lugar. In: MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W .; OLIVEIRA, L. (Org.). Qual o espaço do lugar? São Paulo: Perspectiva , 2012. p. 17-32., p. 31) que lugar é um “microcosmo [...] onde cada um de nós se relaciona com o mundo e onde o mundo se relaciona conosco”. Na próxima seção, discutimos brevemente a relação entre mundo e lugar de uma perspectiva fenomenológica, atentando também ao problema da espacialidade do ser-no-mundo e de suas manifestações como espaço vivido.

Mundo e lugar e a espacialidade do ser-no-mundo

Partimos nesta seção da discussão estabelecida por Werther Holzer em capítulo do livro já mencionado aqui, Qual o espaço do lugar?, publicado em 2012. Nesse texto, Holzer (2012HOLZER, W. Mundo e lugar: ensaio de geografia fenomenológica. In: MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W.; OLIVEIRA, L. (Org.). Qual o espaço do lugar? São Paulo: Perspectiva, 2012. p. 281-304., p. 290) afirma que “’mundo’, para uma ciência fenomenológica, está na essência do significado de todas as coisas, ele se remete ao ser que se dirige às coisas e se interroga sobre seu sentido”, defendendo a premissa de que também para a ciência geográfica “mundo” deveria ter esse sentido essencial. Ao mesmo tempo, se pergunta então por que, na Geografia, “mundo” tem sido recorrentemente substituído por “espaço”.

O autor vai encontrar a resposta na afirmação do paradigma positivista na disciplina, com o intuito de “dar um status de ciência [...] para um conhecimento que muitos geógrafos, já no início de sua constituição como disciplina acadêmica, sabiam estar ‘além da ciência’” (Holzer, 2012HOLZER, W. Mundo e lugar: ensaio de geografia fenomenológica. In: MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W.; OLIVEIRA, L. (Org.). Qual o espaço do lugar? São Paulo: Perspectiva, 2012. p. 281-304., p. 290). E explica: “além da ciência, porque, ao referir-se obrigatoriamente ao mundo vivido do homem, ela promovia uma síntese entre muitos conhecimentos”. E é claro que está se falando aqui de um “mundo da vida”, nos moldes como pensado por Edmund Husserl, como “um mundo anterior ao mundo científico”; por outro lado, isso significa também “que não temos o mundo como apenas um fenômeno constituído pela consciência (pelo sujeito), mas também constituinte na consciência” (Goto, 2008GOTO, T. A. Introdução à psicologia fenomenológica. São Paulo: Paulus, 2008., p. 97-98).

Segundo Holzer, para compreender o conceito (adjetivado) de espaço geográfico, é necessário aprofundar a compreensão da relação entre mundo e lugar. Ao mesmo tempo, reconhece que “mundo” precisaria ser mais bem estudado pela Geografia, “ultrapassando o sentido coloquial que o coloca como ‘globo terrestre’, sentido esse apropriado recentemente pela Geografia a partir da temática da ‘globalização’ ou ‘mundialização’” (Holzer, 2012HOLZER, W. Mundo e lugar: ensaio de geografia fenomenológica. In: MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W.; OLIVEIRA, L. (Org.). Qual o espaço do lugar? São Paulo: Perspectiva, 2012. p. 281-304., p. 293). Dessa ótica, Holzer enfatiza que “o objeto da Geografia clama pela análise a partir de um aporte fenomenológico que se dirija à ‘experiência cotidiana do mundo’, ou seja, que a explore como ‘experiência geográfica’” (Holzer, 2012HOLZER, W. Mundo e lugar: ensaio de geografia fenomenológica. In: MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W.; OLIVEIRA, L. (Org.). Qual o espaço do lugar? São Paulo: Perspectiva, 2012. p. 281-304., p. 299).

Pensando em moldes semelhantes, Relph aprofunda a relação entre mundo e lugar, ao sublinhar que o mundo inteiro está implicado em cada lugar, dando a essa constatação um sentido profundamente existencial e ontológico, mas, ao mesmo tempo, reconhecendo os aspectos econômicos e sociais implicados nessa relação, já que “em toda parte estamos presos em maior ou menor grau nas forças neoliberais e da globalização” (Relph, 2012RELPH, E. Reflexões sobre a emergência, aspectos e essência do lugar. In: MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W .; OLIVEIRA, L. (Org.). Qual o espaço do lugar? São Paulo: Perspectiva , 2012. p. 17-32., p. 31). Esse é precisamente o caso das comunicações eletrônicas, como vimos enfatizando até aqui, que não conhecem fronteiras, o que, a nosso ver, sublinha o caráter de abertura para o mundo e de multescalaridade do “lugar” na contemporaneidade.

Então, ao buscar na fenomenologia/na ontologia o sentido da relação entre mundo e lugar, tanto Relph como Holzer chegam a considerações semelhantes, o primeiro afirmando o valor pragmático das interpretações fenomenológicas do lugar e do ser, “a fim de encontrar caminhos para lidar com os enormes temas global/local que surgiram no início do século XXI” (Relph, 2012RELPH, E. Reflexões sobre a emergência, aspectos e essência do lugar. In: MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W .; OLIVEIRA, L. (Org.). Qual o espaço do lugar? São Paulo: Perspectiva , 2012. p. 17-32., p. 31-32); e o segundo clamando aos “geógrafos de todos os credos e nações”, se quiserem “adequar a Geografia às demandas de um mundo de pessoas imersas na ‘mundialização’”, a “falar do ‘mundo’ e deixar o ‘espaço’ para os astrônomos, os físicos e os matemáticos” (Holzer, 2012HOLZER, W. Mundo e lugar: ensaio de geografia fenomenológica. In: MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W.; OLIVEIRA, L. (Org.). Qual o espaço do lugar? São Paulo: Perspectiva, 2012. p. 281-304., p. 302).

Embora muitos provavelmente discordem dele, o apelo de Holzer pode indicar uma mudança de foco teórico-conceitual, metodológico e ontológico nos estudos e reflexões geográficos, do conceito/da categoria espaço para o conceito/a categoria mundo; para sublinhar e revelar a espacialidade do ser-no-mundo que se manifesta por meio de diferentes modos geográficos de existência, como paisagem, lugar, região e/ou território: modos geográficos de existência que também se traduzem em conceitos e categorias da ciência geográfica (Serpa, 2019SERPA, A. Por uma geografia dos espaços vividos: geografia e fenomenologia. São Paulo: Contexto, 2019., 2020aSERPA, A. Uma geografia que se pratica no dia a dia. Geosaberes, v. 11, p. 437-449, 2020a. doi: https://doi.org/10.26895/geosaberes.v11i0.1019.
https://doi.org/10.26895/geosaberes.v11i...
, 2020bSERPA, A. Lugar, paisagem e experiência. Geograficidade, v. 10, n. Especial, p. 99-105, 2020b. doi: https://doi.org/10.22409/geograficidade2020.100.a38410.
https://doi.org/10.22409/geograficidade2...
; Marandola Jr., 2012MARANDOLA JR., E. Heidegger e o pensamento fenomenológico em geografia. Geografia, v. 37, n. 1, p. 81-94, 2012. Disponível em: https://www.periodicos.rc.biblioteca.unesp.br/index.php/ageteo/article/download/7733/5448/ . Access in: may, 13, 2022.
https://www.periodicos.rc.biblioteca.une...
).

Ao atribuir “espacialidade” ao ser-no-mundo, à presença, Heidegger (2012HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Trad. rev. Marcia Sá Cavalcante Schuback. 6a ed. Petrópolis, RJ: Vozes/Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2012.) busca conceber o “ser-no-espaço” a partir de seu modo de ser, que descobre “a cada passo um ‘mundo’” (Heidegger, 2012HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Trad. rev. Marcia Sá Cavalcante Schuback. 6a ed. Petrópolis, RJ: Vozes/Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2012., p. 164). Em Ser e tempo, Heidegger (2012HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Trad. rev. Marcia Sá Cavalcante Schuback. 6a ed. Petrópolis, RJ: Vozes/Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2012., p. 166) enfatiza o caráter originário do “mundo” em relação ao “espaço”, porque “o espaço nem está no sujeito nem o mundo está no espaço”, porque “é o ‘sujeito’, entendido ontologicamente, [...] que é espacial em sentido originário”. O espaço, por “mostrar-se essencialmente num mundo”, não condiciona sua modalidade de ser, porque depende do mundo como a priori da presença.

Ou seja, “o espaço só pode ser concebido recorrendo-se ao mundo”, já que “não se tem acesso ao espaço de modo exclusivo ou primordial”; porque o espaço é um constitutivo do mundo, “de acordo com a espacialidade essencial da presença”, no que se refere “à sua constituição fundamental de ser-no-mundo” (Heidegger, 2012HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Trad. rev. Marcia Sá Cavalcante Schuback. 6a ed. Petrópolis, RJ: Vozes/Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2012., p. 168). Nesse contexto, “deve-se tornar visível o ser-no-mundo no tocante ao momento estrutural ‘mundo’” (Heidegger, 2012HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Trad. rev. Marcia Sá Cavalcante Schuback. 6a ed. Petrópolis, RJ: Vozes/Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2012., p. 110), “mundo” que é “o contexto ‘em que’ uma presença fática ‘vive’ como presença”, “mundo” que tem “um significado pré-ontologicamente existenciário” e que “ora indica o mundo ‘público’ do nós, ora o mundo circundante mais próximo (doméstico) e ‘próprio’” (Heidegger, 2012HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Trad. rev. Marcia Sá Cavalcante Schuback. 6a ed. Petrópolis, RJ: Vozes/Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2012., p. 112).

Esse deslocamento de foco da reflexão geográfica, de “espaço” para “mundo”, mundo que antecede o espaço e revela a espacialidade da presença, nos parece fundamental para compreender que o espaço vivido é vivido enquanto se cria e produz, como espacialidade do ser (isto é, como “qualidade”), desconstruindo a ideia de espaço como externalidade ou como materialidade “mensurável”.

Há uma grande potencialidade no refletir sobre a espacialidade do ser-no-mundo, porque esta espacialidade se revela como modos geográficos de existência, com suas qualidades e em seus contextos/conjunturas específicos. E essa espacialidade ora se revela como territorialidade, ora como regionalidade, ora como lugaridade. Concentremo-nos então nessa última.

Uma espacialidade que se traduz em lugaridade

Se partirmos do ponto de vista de que o espaço se cria e produz como espaço vivido e como espacialidade do ser-no-mundo, devemos admitir que essa espacialidade pode se traduzir em lugaridade, criando e produzindo lugares particulares e abertos ao mundo: Lugaridade como qualidade dos lugares e uma forma específica de manifestação da espacialidade da presença. A lugaridade se exprime por uma gradação, sendo mais forte ou mais fraca a depender dos diferentes contextos e situações espaço-temporais.

Com base em Relph, é possível enunciar alguns dos aspectos que podem se manifestar em mais ou menos lugaridade em termos de espacialidade do ser-no-mundo: reunião, porque o lugar demonstra sua especificidade e sua abertura em virtude de sua qualidade de “reunir”; fisionomia, o aspecto mais evidente do lugar, sua morfologia; enraizamento e conectividade, “porque podemos ter raízes simultaneamente em vários locais diferentes, mantendo todos conectados” (Relph, 2012RELPH, E. Reflexões sobre a emergência, aspectos e essência do lugar. In: MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W .; OLIVEIRA, L. (Org.). Qual o espaço do lugar? São Paulo: Perspectiva , 2012. p. 17-32., p. 24); articulação, uma vez que lugares são nós que articulam redes socioespaciais em diferentes escalas; construção/criação, ou seja, as diferentes maneiras como sujeitos diversos criam e produzem espaço como “lugar”; sentido, isto é, a capacidade de cada sujeito, individual ou coletivo, de avaliar e apreciar lugares.

De todos os aspectos levantados por Relph, o “sentido de lugar” parece ser o mais importante, pois remete ao sujeito (o ser-no-mundo fático/empírico), individual ou coletivo, “a capacidade de apreciar lugares e apreender suas qualidades”, capacidade que pode se apresentar como inata ou ser aprendida e melhorada. Dessa ótica, “pessoas têm sentidos e lugares não” (Relph, 2012RELPH, E. Reflexões sobre a emergência, aspectos e essência do lugar. In: MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W .; OLIVEIRA, L. (Org.). Qual o espaço do lugar? São Paulo: Perspectiva , 2012. p. 17-32., p. 24). Relph observa inclusive que a Geografia, como disciplina, “parece atrair aqueles que têm um forte sentido de lugar e também promove a melhora desse sentido”.

A atuação dos grupos e iniciativas analisados em nossas pesquisas em Berlim pode ser interpretada nos termos propostos por Relph, porque sua ação está vinculada, muitas vezes, a discursos (e sentidos) específicos sobre (de) “lugar”. Embora apareça com frequência na fala destes sujeitos, o recorte espacial do “distrito” (Bezirk) é muitas vezes substituído pelo recorte de “bairro” (Viertel) ou mesmo “quarteirão” (Kiez). O recorte de “cidade” revela uma contradição no discurso desses grupos e iniciativas sobre Berlim: de um lado, a capital alemã como um conjunto de vilas e “aldeias”, de outro lado, a cidade como lugar da multiculturalidade e do “encontro de culturas” (Serpa, 2011SERPA, A. Lugar e mídia. São Paulo: Contexto,2011.).

O recorte regional (Berlim-Brandemburgo) também está presente no discurso sobre “lugar” dos diferentes grupos e iniciativas, já que, entre outras razões, para a obtenção de uma frequência para uma rádio não comercial na cidade, é necessário negociar com os parlamentos de Berlim e Brandemburgo uma mudança da legislação em ambos os estados alemães. O objetivo é contemplar a possibilidade de existência de uma emissora de rádio sem fins comerciais com uma frequência própria, que transmita sua programação tanto para Berlim, como para Brandemburgo. E é comum na Alemanha que cada estado tenha suas próprias leis de comunicação e emissoras de rádio com características muito diferentes (Serpa, 2011SERPA, A. Lugar e mídia. São Paulo: Contexto,2011.).

Os grupos atuantes em Berlim têm em comum com iniciativas similares de outras cidades alemãs a língua falada e escrita, fazendo surgir também o recorte nacional em seu discurso sobre “lugar”. Uma rede/associação de rádios independentes de língua alemã viabiliza, por exemplo, o intercâmbio de programas e conteúdos pela internet, inclusive extrapolando fronteiras nacionais para atingir grupos e iniciativas de países com o mesmo idioma, como a Suíça e a Áustria. A Associação Nacional de Rádios Livres reúne emissoras do gênero de toda a Alemanha, por conta de seus princípios norteadores comuns, como o fato de não terem interesses comerciais, de terem forte ligação com o local, com abertura e acesso a todos aqueles que queiram, em tese, participar de sua programação (Serpa, 2011SERPA, A. Lugar e mídia. São Paulo: Contexto,2011.).

Por outro lado, as táticas de apropriação dos meios de comunicação em Salvador e as escalas envolvidas eram muito mais restritas quando da realização de nossas pesquisas e demonstraram claramente que os “bairros” compunham o repertório da vida cotidiana nas áreas populares da capital baiana, “repertório” aqui mencionado na acepção de Michel de Certeau (1994CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. 2a ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.) em A invenção do cotidiano. No discurso dos porta-vozes das rádios comunitárias pesquisadas, nos bairros populares de Salvador, o “bairro” era sempre valorizado como recorte espacial: ora fazendo referência à penetração das emissoras nessas áreas, refletida nos conteúdos locais veiculados em sua programação, ora enfatizando o caráter de “interesse público” dessas emissoras para a população, para levantar a autoestima dos moradores ou ainda para prestar-lhes serviços de utilidade pública (Serpa, 2011SERPA, A. Lugar e mídia. São Paulo: Contexto,2011.).

O jogo de escalas que se opera na criação/na produção de lugares na contemporaneidade - nas nossas pesquisas, muito mais abrangente para os grupos e iniciativas presentes em Berlim do que em Salvador - relativiza também a ideia de “dentro” e “fora”, de “insiders” e “outsiders”, presente numa concepção fechada de “lugar”, algo que, a nosso ver, é uma compreensão superada em geografia humanista. O jogo de escalas mostra claramente que o ser-no-mundo é um ser sem limites que se revela como espacialidade/lugaridade ao criar/produzir “lugar” no cotidiano, “lugar” como o “aqui” e o “lá” simultâneos que se descobrem na ocupação e que se traduzem em “multiplicidade” para a presença, como afirma Heidegger (2012HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Trad. rev. Marcia Sá Cavalcante Schuback. 6a ed. Petrópolis, RJ: Vozes/Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2012., p. 156-157).

Frente a esse contexto, a oposição entre exterior e interior já não pode ser “medida” por sua evidência geométrica, posto que é necessário “colocar o espaço entre parênteses”, fazê-lo recuar, “para que sejamos livres no pensamento”, numa atitude radicalmente dialética (Bachelard, 1998BACHELARD, G. A poética do espaço. Trad. Pádua Danesi. 3a tir. São Paulo: Martins Fontes, 1998., p. 233). Ou seja, todos os lugares, em uma concepção existencialista/ontológica são ao mesmo tempo vastos e íntimos porque a relação dialética entre interior e exterior se diversifica e multiplica em inúmeras nuances e matizes. Ambos, interior e exterior, são “íntimos” e estão sempre prontos a “inverter-se” (Bachelard, 1998BACHELARD, G. A poética do espaço. Trad. Pádua Danesi. 3a tir. São Paulo: Martins Fontes, 1998., p. 221).

Ao criar/produzir espaço como lugar e manifestar a espacialidade como lugaridade, o ser-no-mundo também revela sua corporeidade. Para Merleau-Ponty (2006MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 3a ed. São Paulo: Martins Fontes , 2006., p. 205), o ser corpo “é estar atado a um certo mundo, e nosso corpo não está primeiramente no espaço: ele é no espaço”. E se o corpo só “é” no espaço, se o “ser corpo” é sempre “ser corpo no mundo”, precisamos também admitir que lugar, mundo e espaço são construções humanas e não externalidades objetivas e estritamente “materiais”. Lugar, mundo e espaço se constituem dialeticamente como produto e processo, como experiência humana corporificada.

Lugar, mundo e espaço são experiências/conceitos que só se realizam em processos relacionados ao ser-no-mundo, como, no caso específico da criação/produção de lugares, de processos de “lugarização”, de acordo com o que nos propomos a discutir neste artigo; portanto, os processos de “lugarização” produzem/criam concomitantemente mundo e espaço, este último como espacialidade intrínseca ao ser-no-mundo, como “lugaridade”. A relação entre espaço e mundo, por sua vez, encontra sua realização justamente nos processos de “lugarização”: ao se “lugarizar”, se apropriando e criando espaço, o ser-no-mundo também cria “mundos” existenciais próprios e corporificados no espaço e no tempo. Isso significa também relacionar-se com o lugar de maneira sensível por meio da existência, significa falar e interagir com os outros e encontrar-se com coisas não humanas, sublinhando a responsabilidade de cuidado com o ser que está relacionada ao habitar em lugares, como ressalta Relph baseando-se em Heidegger (Relph, 2012RELPH, E. Reflexões sobre a emergência, aspectos e essência do lugar. In: MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W .; OLIVEIRA, L. (Org.). Qual o espaço do lugar? São Paulo: Perspectiva , 2012. p. 17-32., p. 30).

E, se o habitar tem que ver com o construir, como lembra Heidegger (2008HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5a ed. Petrópolis, RJ: Vozes /Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco , 2008., p. 126/127), e se construir “já é em si mesmo habitar” e “diz edificar”, então, “no sentido de habitar, ou seja, no sentido de ser e estar sobre a terra, construir permanece, para a experiência cotidiana do homem, aquilo que desde sempre é, como a linguagem diz de forma tão bela, ‘habitual’” (Heidegger, 2008HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5a ed. Petrópolis, RJ: Vozes /Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco , 2008., p. 127). Assim, ao habitar e construir o ser-no-mundo cria lugar, em escalas as mais diversas, “lugarizando” a terra, por meio da ação e do discurso, como mostram nossas pesquisas com os grupos e iniciativas que criam lugar em Berlim e Salvador pela apropriação dos meios de comunicação disponíveis para sua atuação como meio operacional (Santos, 1996SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996.).

Esses grupos e iniciativas demonstram também que ação e discurso são “linguagem” e, seguindo a trilha de Heidegger (2008HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5a ed. Petrópolis, RJ: Vozes /Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco , 2008., p. 126), “o acesso à essência de uma coisa nos advém da linguagem”, mas, para que isso aconteça, devemos dedicar atenção ao vigor da linguagem, que, “dentre todos os apelos que nos falam e que nós homens podemos a partir de nós mesmos contribuir para se deixar dizer [...] é o mais elevado e sempre o primeiro”.

Então, deixemos a linguagem falar da essência e da aparência desse lugar contemporâneo, que é a um só tempo complexo, multiescalar e multifacetado, desse lugar de um ser sem limites e aberto ao mundo pela ação e pelo discurso.

References

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Editado por

Editor do artigo:

Ricardo Mendes Antas Jr.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2022
  • Aceito
    04 Jul 2022
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