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(Sobre)vivências negras: desafios da cidadania diante da violência

Black survivance: the challenges of citizenship when dealing with violence

Resumo

O presente artigo busca, de um lado, analisar discursos e práticas racistas na agenda do governo brasileiro - sobretudo dos últimos anos e a partir das ADPF 635 e 742 - e, de outro, refletir sobre as respostas que os estudos sobre violência têm sido capazes de articular. Para isso, acionamos a ideia de cidadania negra para observar as mediações que o negro elabora sobre si para ser sujeito de direito, e, consequentemente, para sobreviver.

Palavras-chave:
Cidadania negra; Crítica afrodiaspórica; Discursos e prática de violência

Abstract

On one hand, this work aims to analyse racist discourses and practices present in the agenda of the Brazilian government - particularly in these last two years and taking the ADPF 635 and 742 as parameters. On the other, it aims to reflect about the responses articulated by the studies on Violence. To do so, we explore the idea of black citizenship to observe the mediations Black people elaborate about themselves to become a Subject of Rights and, as a consequence, to survive.

Keywords:
Black citizenship; Afrodiasporic critique; Discourses and practices on violence

Introdução1 1 Este artigo sistematiza reflexões empreendidas coletivamente no Maré - Núcleo de Estudos em Cultura Jurídica e Atlântico Negro (FD/UnB), grupo de pesquisas integrado pelos autores.

No dia 4 de dezembro de 2020, as primas Emily Victoria da Silva, de 4 anos, e Rebecca Beatriz Rodrigues Santos, de 7, foram mortas a tiros em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Moradores relataram que não havia tiroteio ou operações policiais na região, porém, que viram o carro da polícia passando no bairro2 2 SATRIANO, Nicolás. Emily e Rebecca: laudos indicam que tiros atingiram fígado, coração e cabeça. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/12/10/emily-e-rebecca-laudos-indicam-que-tiros-atingiram-figado-coracao-e-cabeca.ghtml. Acesso em: 14 dez. 2020. . Alguns meses antes, no dia 8 de maio, Antônio Correia dos Santos foi assassinado em sua casa, no Quilombo do Barroso, no município de Camumu, Baixo Sul da Bahia. Liderança quilombola e diretor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Camumu, seu Antônio, como era conhecido, estava sob medida protetiva em razão das ameaças sofridas durante acirramento de conflito agrário3 3 CONAQ. Nota de Pesar. Disponível em: http://conaq.org.br/noticias/nota-de-pesar/. Acesso em: 14 dez. 2020. .

Longe de serem pontuais ou excepcionais, as mortes de Emily, Rebeca e seu Antônio jogam luz sobre a perversidade do racismo no Brasil. Suas mortes dão conta, ainda, das continuidades entre campo e cidade em uma geografia do extermínio (JAMES; AMPARO-ALVES, 2017JAMES, Joy; AMPARO-ALVES, Jaime. Terror e securitização doméstica: geografia imperial da violência policial antinegra. In: FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; VARGAS, João Costa Helion (orgs.). Motim: horizontes do genocídio negro. Brasília: Brado Negro, 2017, pp. 125-150.), na qual agentes do Estado, milícias e forças constituídas pelo agronegócio e pela mineração disputam o controle e a gestão dos territórios. Nesse fazer, sem cerimônias, a máquina racista amplia seus alvos e insere crianças e idosos negros em trágicas estatísticas.

Esse texto é motivado, então, pela interpelação dos estudos sobre violência quanto às formas como têm - ou não têm - sido abordada a violência racial. Analisamos, a partir de experiências dos territórios de favelas e quilombos, as possibilidades de compreensão da produção da violência, no continuum campo-cidade, mas também do protesto negro e suas demandas frente ao Estado. O que esses atores, em geral invisibilizados até mesmo pelos estudos autointitulados críticos, nos informam sobre a violência no Brasil e sobre os modos de lhe fazer frente?

Inicialmente tecemos algumas considerações sobre os estudos sobre violência, no intuito de interpelação e diálogo com o campo. Em seguida, a partir das experiências de favelas e quilombos, particularmente no contexto da pandemia de Covid-19, realizamos uma análise das Ações de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635 e 742. Por fim, apresentamos contribuições para a reflexão sobre as possibilidades de uma cidadania radical no Brasil, que dê conta do enfrentamento da violência racial.

1. Interpelando os estudos sobre violência e controle social no Brasil

Não há novidade no apontamento de que os estudos sobre violência e controle social no Brasil ou têm sistematicamente ignorado raça e racismo como elementos analíticos importantes, ou têm reduzido, em termos teóricos e metodológicos, as possibilidades de alcance de uma crítica racial (FREITAS, 2016FREITAS, Felipe da Silva. Novas perguntas para criminologia brasileira: Poder, Racismo e Direito no centro da roda. Cadernos do CEAS, v. 1, 2016, pp. 489-499.; PRANDO, 2017; PIRES, 2017PIRES, Thula. Criminologia crítica e pacto narcísico: por uma crítica criminológica apreensível em pretuguês. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 25, n. 135, 2017, pp. 541-562.; CASSERES; SANTOS, 2018SANTOS, Isaac Porto; CASSERES, Lívia Miranda M. D. Direito Penal e Decolonialidade: repensando a criminologia crítica e o abolicionismo penal. In: Seminário Internacional de Ciências Criminais, 2018, São Paulo. Anais do II CPCRIM - II Congresso de Pesquisa em Ciências Criminais, 2018, pp. 968-988. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/publicacoes/edicoes/7/8237. Acesso em: 13 dez. 2020.
https://www.ibccrim.org.br/publicacoes/e...
; SILVA, 2018). Em razão disso, suas produções não alcançam a dimensão do terror historicamente vivido no país.

É verdade que nos últimos anos experimentamos um avanço na abertura de espaços de discussão sobre os pressupostos do campo4 4 Exemplo disso foram os últimos encontros do Grupo Brasileiro de Criminologia Crítica e a última edição do Grupo de Mulheres das Ciências Criminais. Mais do que encontros pontuais, é importante mencionar também a ampliação da discussão dentro das próprias universidades, especialmente após a implementação de cotas raciais nos cursos de graduação e, mais recentemente, em alguns cursos de pós-graduação. , mas ainda é questionável o quanto essas discussões têm reverberado na produção de seus autores de maior destaque. Em geral, parte-se de uma análise social focada na desigualdade de classe, compreendendo a dimensão da economia como principal fator estruturante do poder. Discussões sobre raça, gênero e sexualidade, por exemplo, tendem a aparecer de modo “anexo” ou adjetivo. Vale destacar que, mesmo em termos de crítica à dominação capitalista e imperialista, há pouco diálogo com as produções de teóricos negros que discutem como o racismo é um elemento central para a produção e distribuição de poder no capitalismo. O problema, nesse sentido, é menos a análise marxista em si do que as articulações feitas em seu bojo (HALL, 1996HALL, Stuart. Race, Articulation, and Societies Structured in Dominance. In: HOUSTON, A. Baker Jr.; DIAWARA, Manthia; LINDEBORG, Ruth H.. Black British Cultural Studies: A Reader. Chicago: University of Chicago Press, 1996, pp. 16-46.).

Em termos de Brasil, o campo ainda precisa enfrentar os pressupostos epistemológicos e teóricos mobilizados para a compreensão de nossa formação social. Em que medida os repertórios utilizados se aproximam ou se afastam do pensamento racista? Qual o lugar, por exemplo, do positivismo e do mito da democracia racial em suas análises?

No Brasil, a ideia de criticidade, sobretudo para a criminologia, faz oposição, dentre outras questões, às leituras positivistas sobre crime e sujeito criminoso. De fato, essas teorias tiveram - e ainda hoje têm - um enorme impacto na estruturação do nosso sistema de justiça criminal e na formação de seus atores. Sua articulação, sabemos também, está profundamente imbricada ao racismo científico (FRANKLIN, 2017FRANKLIN, Naila Ingrid Chaves. Raça, gênero e criminologia: reflexões sobre o controle social das mulheres negras a partir da criminologia positivista de Nina Rodrigues. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Brasília, 2017.; GÓES, 2016GÓES, Luciano. A tradução de Lombroso na obra de Nina Rodrigues - O racismo como base estruturante da criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2016.). A despeito da crítica, porém, o campo ainda investiga pouco como essas matrizes têm sido acionadas contemporaneamente a partir do dispositivo de racialidade (CARNEIRO, 2005CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese (Doutorado). Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.).

Algumas leituras de Brasil opõem-se, a nível discursivo, à herança positivista e também, de outro lado, ao pensamento freyreano e à articulação por ele proposta do mito (como o qualificamos) da democracia racial. Apesar disso sabemos que, ao longo dos anos, o mito tem passado por reformulações - observáveis inclusive em expoentes do pensamento crítico - e tido sucesso em acompanhar as mudanças do país e perpetuar uma matriz de pensamento mantenedora de assimetrias raciais (FREITAS, 2020FREITAS, Felipe da Silva. Polícia e Racismo : uma discussão sobre mandato policial. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Brasília, 2020.: 115-120).

Outras interpretações sociais, formuladas por diversos teóricos negros, responsáveis inclusive por interpelar o pensamento crítico brasileiro, ainda não são sistematicamente analisadas e tomadas como referência para os diálogos do campo (GONZALEZ, 2018GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa. In: União do Coletivos Pan-Africanistas - UCP (org.). Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.; NASCIMENTO, 2018NASCIMENTO, Beatriz. Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual: possibilidades nos dias de destruição. In: União do Coletivos Pan-Africanistas - UCP (org.). Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.; RAMOS, 1995RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.; CARNEIRO, 2005CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese (Doutorado). Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.). A contribuição desses teóricos é destacada aqui como possibilidade de desestabilização de valores racistas acionados por algumas matrizes teóricas tidas como canônicas. Sua compreensão sobre poder, saber e ser, ainda, modifica o regime de verdade implícito nas interpretações consagradas de Brasil, de modo a não reforçar imagens e representações racistas sobre o papel social da população negra no pacto político.

Entendemos que é relevante destacar, ainda, que os estudos sobre violência se estruturaram historicamente em torno de análises focadas no espaço urbano, dirigindo pouca ou nenhuma atenção à violência no campo. Isso nos induz a conceber uma ruptura entre campo e cidade que não é necessariamente verdadeira. Considerando a formação do Brasil, movimentos campo-cidade estão nas origens de instituições e práticas de controle (ALENCASTRO, 2000ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.), e têm se atualizado ao longo dos anos. Momentos de escalada de violência urbana tendem a corresponder também ao acirramento de conflitos no campo, com ambas as dinâmicas obedecendo a um regime marcadamente racializado, que produz impactos desiguais sobre negros e também indígenas. A reflexão sobre as possibilidades de um continuum campo-cidade, portanto, pode nos informar sobre as condições de produção de desigualdades, a estruturação do controle social e o avanço do genocídio no país.

Vale ainda observar que, embora seja imprescindível destacar a relação entre o processo de colonização, o sistema escravista e a violência no país, reduzir as análises ao apontamento da gênese do sistema penal é limitado e pouco producente. Se, em termos teóricos e metodológicos, utilizamos essa estrutura de pensamento para nos esquivar de análises sobre as formas de produção da violência hoje, esvaziamos uma agenda de pesquisa e de interpelação das agências de controle.

Nesses termos, é paradoxal conceber uma crítica ao sistema penal, enquanto abolicionismo, minimalismo ou garantismo, que não se dirija à compreensão de que nosso sistema se sustenta na produção de violência racial, sobretudo antinegra. Qualquer crítica que não consiga enxergar nos discursos negros, sejam eles acadêmicos ou militantes, muito mais que sectarismo ou punitivismo, provavelmente se lastreia numa noção de horizonte político utópico que, por sua fragilidade, se constitui como um olhar vagamente sonhador e pouco comprometido com um amanhã - que não virá porque não pode ser.

Nesse ponto é importante destacar os problemas da noção de punitivismo. Não pretendemos, nesse texto, discutir a categoria - ou mesmo discutir se realmente se trata de uma categoria - mas destacar como sua denúncia, via de regra, está associada a uma leitura diminuidora do protesto negro. Quando militantes e acadêmicos pedem a responsabilização - inclusive, mas não só, criminal - de indivíduos ou instituições pela prática de racismo, há mais do que simplesmente o pronto acionamento da violência de Estado. Há, isso sim, a compreensão de que o Estado tem se colocado como um dos principais violadores de direitos e que seu silêncio diante de violações chancela mais uma vez a subcidadania negra, passível de violências várias e diárias.

[...] Pessoas negras, inseridas em contextos de morte social são descartáveis e são objetos de violência gratuita independentemente do que fazem. O mundo da política, da sociedade civil, do estado-império, é um mundo cuja lógica depende da morte negra, social e física. A pessoa negra, por definição, morre violentamente sem causa. “Amarildo desapareceu a caminho de casa.” Ou “Cláudia estava indo comprar pão e foi morta pela polícia.” E outros tantos casos. Previsíveis em sua imprevisibilidade. Imprevisíveis em sua previsibilidade. Todos paradigmáticos: emblemáticos da lógica social antinegra, do mundo antinegro (VARGAS, 2017VARGAS, João Helion Costa. Por uma mudança de paradigma: antinegritude e antagonismo estrutural. In: FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; VARGAS, João Helion Costa (orgs.). Motim: horizontes do genocídio negro. Brasília: Brado Negro, 2017, pp. 91-105.: 99).

Talvez seja elementar observar que este abandono simbólico tem efeitos concretos no cotidiano dos negros. Como destacado por Ana Flauzina e Felipe Freitas (2017FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; FREITAS, Felipe da Silva. Do paradoxal privilégio de ser vítima: terror de estado e a negação do sofrimento negro no Brasil. Revista brasileira de ciências criminais, n. 135, 2017, pp. 49-71.: 65), mesmo a condição de vítima no Brasil obedece a um regime de poder e branquitude. Largados ao terror, sem que sua dor gere sensibilização nem acione mecanismos de reparação, os negros vivem o aprofundamento do genocídio no âmbito penal, assim como o reforço de representações sociais racistas que os aprisionam na imagem do mal e da brutalidade. Imagens estas que, ao fim e ao cabo, serão acionadas para a produção de mais violência e invisibilidade social.

Limitar, portanto, a compreensão do protesto negro ao reforço do sistema penal implica ignorar a crítica mais profunda que se faz à violência produzida pelo próprio Estado ou legitimada por ele. Conforme abordaremos no próximo tópico, o movimento negro não tem centrado suas lutas numa demanda simplista por mais criminalização, como se, nessa panaceia, fosse possível barrar o avanço do genocídio. Tem, na verdade, destacado como o enfrentamento à violência passa pela mudança na distribuição do poder e pela defesa de outras formas de vida. Interpela-se o Estado criticamente, compreendendo que não nos é dado viver “fora” dele e que seu silêncio, tanto quanto sua ação, impactam diretamente nossas vidas. O diálogo com o sistema penal, nesse sentido, é muito mais complexo.

2. Enfrentamentos à violência racial desde os territórios negros

Neste texto, escolhemos discutir a partir de duas recentes Ações de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), a ADPF das Favelas (ADPF 635) e a ADPF Quilombola (ADPF 742). Outros substratos analíticos seriam possíveis, mas entendemos, seja pela capacidade de mobilização em um contexto particularmente desafiador, como é o atual período de pandemia da Covid-19, seja pela articulação de demandas frente ao Estado, que as ações permitem a apreciação dos discursos e práticas de violência racial.

Não acreditamos que o momento presente seja excepcional em termos de produção de violência racial - não apenas dirigida aos negros, mas também aos indígenas - mas certamente se trata de um momento de aceleração e aprofundamento do genocídio. No que diz respeito à presidência, desde sua campanha eleitoral, Jair Bolsonaro apresenta discursos e práticas simultâneas de negação à existência de racismo no país e de reforço a representações degradantes sobre a população negra. Eleito, tem sido responsável também pelo desmonte de estruturas de Estado que impactam diretamente a vida desta população. Ao lado disso, vemos disseminar-se no país a legitimação da violência policial5 5 VEJA. Wilson Witzel: ‘A polícia vai mirar na cabecinha e… fogo’. Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/wilson-witzel-a-policia-vai-mirar-na-cabecinha-e-fogo/. Acesso em: 14 dez. 2020. e do poder miliciano, associado também à figura do presidente.

Obedecendo a uma geografia do exterminío (JAMES; AMPARO-ALVES, 2017JAMES, Joy; AMPARO-ALVES, Jaime. Terror e securitização doméstica: geografia imperial da violência policial antinegra. In: FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; VARGAS, João Costa Helion (orgs.). Motim: horizontes do genocídio negro. Brasília: Brado Negro, 2017, pp. 125-150.) há muito estabelecida nas cidades brasileiras, tem-se uma escalada da violência nas favelas, territórios negros urbanos. Fora do perímetro do espaço urbano, a escalada do terror racial se faz presente sobre territórios indígenas e quilombolas, alvos de investidas de empreendimentos ligados ao agronegócio e à mineração, sobretudo. Com a chegada da Covid-19, a vulnerabilidade desses territórios e o descompromisso do governo federal com a população foram novamente postos a nu.

Enquanto a doença exige distanciamento social e condições sanitárias adequadas para seu enfrentamento, 6,35 milhões de famílias (mais de 30 milhões de pessoas) no Brasil não têm uma casa para morar6 6 HABITAT. Tanta gente sem casa, tanta casa sem gente. Disponível em: https://habitatbrasil.org.br/impacto/nossa-causa/. Acesso em: 16 dez. 2020. , outra parcela significativa, moradora das periferias urbanas, precisa dividir um espaço de pequenas dimensões com muitas pessoas7 7 RAMALHOSO, Wellington. Alicerce: Pandemia escancara crise de moradia no Brasil, mas produzir casa adequada para todos é possível e urgente. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/moradia-digna-e-prioridade-para-refazer-cidades-pos-covid/. Acesso em: 16 dez. 2020. . Problemas de acesso à água e atendimento médico, além da drástica redução de renda, colocaram a população negra e indígena como a maior vítima da crise sanitária. Sabemos que pretos e pardos são os que mais morrem em decorrência da doença8 8 FREITAS, Sueli de. Pesquisa revela que pardos e negros morrem mais por COVID-19. Disponível em: https://coronavirus.ufes.br/conteudo/pesquisa-revela-que-pardos-e-negros-morrem-mais-por-covid-19. Acesso em: 16 dez. 2020. ; entre os quilombolas, foram confirmados 4.703 casos (até 5 de dezembro) e 170 mortos9 9 QUILOMBOS SEM COVID. Observatório da Covid-19 nos Quilombos. Disponível em: https://quilombosemcovid19.org/. Acesso em: 16 dez. 2020. .

A postura do governo federal diante deste cenário foi um somatório de negacionismo das dimensões da crise sanitária e da ameaça representada pelo coronavírus com empenho em sabotar ações contingenciais nas esferas municipais e estaduais - o que ficou expresso, por exemplo, na campanha “O Brasil não pode parar”10 10 TRINDADE, Naira; GULLINO, Daniel. Governo prepara campanha com slogan 'O Brasil Não Pode Parar' Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/governo-prepara-campanha-com-slogan-brasil-nao-pode-parar-1-24332284. Acesso em: 09 dez. 2020. . Alinhado a isso, identificamos a ausência de um plano de emergência federal, conduzido pela União, para reduzir as vulnerabilidades socioeconômicas que potencializam a disseminação do vírus e gerenciar a crise econômica, sanitária e de saúde a partir das demandas regionais. Assim tem sido inviabilizada a proteção à saúde da maioria da população que depende do sistema gratuito e universal, a população negra.

A construção desse enredo projetou um evento biológico e imprevisível como instrumento do projeto da morte negra. A partir do momento que o governo opta por fragilizar as intervenções sanitárias, opor proteção social às políticas de austeridade, enquanto simultaneamente endossa a investida contra territórios negros urbanos e rurais, observamos o acoplamento ideal de peças que integram o regime de verdade do atual contexto de violência: instabilidade econômico-política, redução de direitos e discursos negacionistas. Numa sociedade de historicidade colonial e racialmente desigual, o desdobramento dessa conjuntura é a fragilização dos pactos democráticos e constitucionais, com a desconstituição dos fragilizados estatutos jurídicos e políticos da população negra.

Como mencionado no início, para compreender a atualidade deste projeto genocida e contribuir analiticamente com apontamentos para enfrentá-lo, optamos pelo enfoque sobre duas realidades. Apesar das territorialidades muitas vezes distintas, o mundo antinegro a partir das favelas e quilombos (VARGAS, 2017VARGAS, João Helion Costa. Por uma mudança de paradigma: antinegritude e antagonismo estrutural. In: FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; VARGAS, João Helion Costa (orgs.). Motim: horizontes do genocídio negro. Brasília: Brado Negro, 2017, pp. 91-105.: 95) compartilha a experiência moderna. Acionar elementos das ADPF 635 e 742 possibilitou o acesso sistemático a práticas e discursos que investem contra a vida nos territórios negros. Possibilitou, ainda, tematizar a violência no Brasil, sob o ponto de vista diaspórico, qual seja, evidenciar o projeto de sociedade que estes territórios têm desenvolvido para garantir a (sobre)vivência negra.

2.1. O agenciamento das favelas frente à violência policial a partir da ADPF 635

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, conhecida como ADPF das Favelas, é resultado das lutas do movimento negro, com destaque para os movimentos de moradores de favelas do Rio de Janeiro e os movimentos de mães, em parceria com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPE-RJ) e o Partido Socialista Brasileiro (PSB). Por meio dela, busca-se o fim das ações policiais violentas e violadoras de direitos, bem como o estabelecimento de mecanismos de controle, a médio e longo prazo, da atividade policial nas favelas do Rio de Janeiro.

Diferentemente da ADPF Quilombola, a ADPF das Favelas não se origina propriamente no contexto de pandemia. Protocolada no fim de 2019, a ação se dirige diretamente à escalada da letalidade policial na cidade do Rio. O cenário de agudização da violência nas favelas, do qual foram vítimas Ágatha Felix, Kauan Peixoto e Kelvin Gomes, para citar apenas alguns nomes, pode ser pensado, a nível estadual, a partir da gestão do governador Wilson Witzel, e, a nível federal, do governo do presidente Jair Bolsonaro. Adversários políticos após a dissolução de sua aliança, ambos, não obstante, se colocam na esfera pública como apoiadores da violência policial e defensores da máxima “bandido bom é bandido morto”.

Sob esse discurso, tem sido endossado o uso de tecnologias de morte - como helicópteros, a partir dos quais se atira, e snipers - de par com instrumentos jurídicos que também têm se provado letais, como mandados de busca e apreensão coletivos, a partir dos quais se produz uma legalidade que acolhe a gestão letal do território. É contra o uso desse instrumental e, mais que isso, desta forma de gerir a atividade policial que a ação é construída.

Os seguintes pedidos resumem a discussão por ela proposta: i) elaboração, pelo Estado do Rio de Janeiro, de plano de redução da letalidade policial; ii) fim do uso helicópteros como plataformas de tiro ou instrumentos de terror, com a declaração de inconstitucionalidade de sua previsão em lei; iii) fim da expedição de mandados coletivos e genéricos de busca e apreensão domiciliar; iv) respeito a direitos e garantias previstos na Constituição e na lei quando do cumprimento de mandados; v) presença obrigatória de ambulâncias e de equipes de saúde em operações policiais; vi) preservação das cenas de crime; vii) excepcionalidade das ações policial no perímetro de escolas, creches, hospitais e postos de saúde, com a proibição do uso de suas dependências e a observância de protocolo especial para essas áreas; viii) fim do sigilo nos protocolos de atuação policial; ix) produção obrigatória de relatório sobre as ações; x) instalação de GPS e câmeras nas viaturas e nas fardas policiais; x) documentação, por meio de fotografias, das perícias realizadas em cenas de crimes contra a vida; xi) investigação, pelo Ministério Público, das violações cometidas pelos policiais; xii) escuta das vítimas e de seus familiares durante os procedimentos investigatórios; xiii) investigação prioritária de casos que envolvam crianças e adolescentes; xiv) designação, pelo Ministério Público, de promotor específico para o acompanhamento dessas demandas; xv) declaração de inconstitucionalidade do art. 1º do Decreto Estadual 46.775/2019, que exclui, do cálculo das gratificações policiais, os indicadores de redução de homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial; xvi) determinação de que governador, órgãos e agentes públicos estaduais se abstenham de qualquer manifestação de incentivo à violência policial.

Como se nota, o cerne da ação está no controle da atividade policial. Já por este motivo, representa um marco na interpelação das agências do Estado e no processo de tensionamento para a produção do direito. Vai-se além do diagnóstico da violência para a propositura e análise de mecanismos para contê-la. Foge às possibilidades deste texto uma análise completa e esmiuçada da ação e seus significados, cabe, no entanto, chamar a atenção para alguns pontos. O primeiro deles é como são questionados os contornos do mandato policial (FREITAS, 2020FREITAS, Felipe da Silva. Polícia e Racismo : uma discussão sobre mandato policial. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Brasília, 2020.). A polícia aparentemente descontrolada é situada numa estrutura jurídica que chancela seu funcionamento - seja criando leis que favorecem a produção da violência, expedindo mandados de busca e apreensão coletivos que, por esta natureza, ampliam o mandato policial, ou eximindo-se do dever de investigação das violações produzidas.

Esta ampliação do mandato policial nos territórios das favelas, endossada pelos Poderes do Estado, se sustenta da produção de uma subcidadania negra, ao mesmo tempo em que a reforça. É possível, e aceitável, a policialização opressiva da vida nas favelas porque negras e negros não são tomados como vidas dignas de proteção. A recusa do Estado a se manifestar sobre essas violações, investigando e responsabilizando seus agentes, criando mecanismos de escuta e reparação para as vítimas, garante, ironicamente, a manutenção desse “estado de coisas inconstitucional”.

Uma outra face dessa recusa, como se nota pela análise da ADPF e de sua discursividade, está na inexistência - ou na ocultação, pois em muitos casos há alguns parâmetros - de mecanismos de controle administrativo que disponham regras sobre o transcurso da ação policial. O silêncio, no plano simbólico, sobre racismo e violência policial, se desdobra para um afrouxamento do controle da própria instituição, inclusive com o achatamento de um debate no âmbito da dogmática sobre o tema.

No entanto, se atores do campo político e jurídico, colocados na condição de técnicos e sujeitos autorizados a pensar e planejar políticas de segurança pública, se esquivam do dever de controle e reforçam a produção de violência, os movimentos negros têm propostas sistematizadas de interpelação ao direito e ao Estado. Nos acúmulos do cotidiano de enfrentamento da ação policial, potencializados pelas formas de associação e, recentemente, pelas experiências de midiativismo11 11 Experiências de midiativismo têm se multiplicado pelas favelas do país, como se vê nas seguintes notícias: VADAKATTU, Sharonya. Midiativismo de Favela: Contrapúblicos para Direitos Humanos no Brasil. Disponível em: https://rioonwatch.org.br/?p=35418. Acesso em: 15 dez. 2020. CISCATI, Rafael; ALBINO, Airan. Papo reto quer criar uma "nova narrativa sobre a favela". Disponível em: https://www.brasildedireitos.org.br/noticias/506-papo-reto-quer-criar-uma-nova-narrativa-sobre-a-favela. Acesso em: 15 dez. 2020. COMUNICAÇÃO COMUNITÁRIA. Coletivo Força Tururu fortalece vozes comunitária e popular em Recife. Disponível em: http://www.midiacidada2012.unb.br/referencias/estudo-de-caso/140-coletivo-forca-tururu-fortalece-vozes-comunitaria-e-popular-em-recife.html. Acesso em: 15 dez. 2020. , as comunidades constroem saberes e práticas de controle da ação policial.

Nesse sentido, a demanda por instalação de GPS e câmeras nas viaturas e nas fardas, a identificação dos agentes e a publicização dos protocolos pode ser compreendida também a partir do relativo sucesso, ao menos para fins de denúncia e publicização das violações, da prática de filmagem das ações e troca dessas mídias entre os membros da comunidade como forma de preservação dos dados e proteção dos indivíduos.

Importa destacar, ainda, como a ação contrapõe às abstrações generalistas do direito, inclusive no que diz respeito à proteção de direitos humanos, a materialidade da vida. As favelas são apresentadas como territórios vivos, nos quais encontramos crianças em idade escolar, como Ágatha e Kauan, trabalhadores ocupados das atividades diárias de cuidado e manutenção da vida, como Cláudia Silva Ferreira, e tantos outros. Seres humanos com projetos de vida palpáveis, que transitam pelas ruas, por creches, comércios, hospitais, que brincam e conversam à noite nas calçadas. O que fundamenta a demanda por abstenção do uso de tecnologias massificadas de morte, como snipers, mas também por proibição de discursos que incentivem a violência policial é a dignidade de formas de vida ameaçadas, é a recusa à ocupação da zona do não-ser (FANON,1968FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1968.).

Com a chegada da pandemia, o cenário de dupla tensão expôs, sem qualquer mediação, o projeto de morte em curso nas favelas. Enquanto muitos brasileiros se isolavam como forma de resguardo da ameaça sanitária, moradores de favelas se viam expostos ao vírus pela falta de infraestrutura, enquanto ainda conviviam com a ameaça policial, não raro a lhes invadir as casas. As ruas dos bairros nobres se esvaziavam, enquanto os tiros se multiplicavam nos morros. Os movimentos sociais, particularmente os movimentos de moradores de favela, pediam o fim das operações. No dia cinco de junho de 2020, o ministro Edson Fachin decidiu, em sede de liminar, pela proibição das ações policiais enquanto perdurar a pandemia. A decisão foi confirmada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal no dia quatro de agosto.

Diante desta decisão, o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos - GENI, da Universidade Federal Fluminense, produziu o importante estudo “Operações policiais e ocorrências criminais: Por um debate público qualificado” (HIRATA, GRILLO, DIRK, 2020HIRATA, Daniel; GRILLO, Carolina Christoph; DIRK, Renato. Operações Policiais e Ocorrências Criminais: Por um Debate Público Qualificado. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Reflexões na Pandemia (seção excepcional), 2020, p. 1-19. Disponível em: https://www.reflexpandemia.org/texto-57. Acesso em: 13 dez. 2020.
https://www.reflexpandemia.org/texto-57...
). De modo sucinto, o estudo observou que a interrupção das ações policiais não apenas não produziu o aumento da criminalidade - como atores da segurança pública insistiam em afirmar - como também reduziu significativamente os números de mortes e lesões corporais. Em relação ao número de feridos, entre 5 junho e 5 de julho de 2020 a redução foi de 49,6% em relação à média de feridos do mesmo período de 2007 a 2019; em relação ao número de mortes, a redução foi de 72,5% (HIRATA, GRILLO, DIRK, 2020: 9).

Este estudo demonstra, numericamente, aquilo que tantos militantes e acadêmicos negros têm denunciado há anos: nosso sistema penal e nosso modelo de segurança pública estão dirigidos para a produção do genocídio. É discutível até mesmo o nível de mediação de controle à criminalidade. Sua finalidade é a produção da morte do corpo e da morte de formas de vida. Como é possível, então, produzir qualquer análise robusta que não se enderece e faça frente aos desumanos efeitos do racismo?

2.2. O enfrentamento da violência de Estado nos quilombos: entre a ADPF 742 e a luta pelos territórios

A ação foi articulada pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) com o apoio de partidos políticos e organizações da sociedade civil em defesa dos direitos humanos. A ADPF 742 objetiva suspender as violações dos preceitos fundamentais à vida e saúde nos territórios quilombolas, tendo em vista a inércia dos órgãos federais para implementação de um “Plano Nacional de Combate aos Efeitos da Pandemia de Covid-19 nas Comunidades Quilombolas”12 12 Petição Inicial da ADPF 742. Disponível em: http://conaq.org.br/noticias/racismo-tambem-se-combate-no-stf/. Acesso em: 13 dez. 2020. .

O projeto das mortes nos territórios quilombolas, agudizado na pandemia, não foi interrompido: eis o retrato indicado no boletim epidemiológico, atualizado até o dia 05 de dezembro, constante do “Observatório da Covid-19 nos Quilombos”13 13 Iniciativa autônoma do movimento quilombola desenvolvida pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA). QUILOMBOS SEM COVID. Observatório da Covid-19 nos Quilombos. Disponível em: https://quilombosemcovid19.org/. Acesso em: 13 dez. 2020. . O monitoramento registra 170 óbitos entre quilombolas. A situação se agrava, pois até o momento a ação não foi julgada14 14 Por decisão do relator Min. Marco Aurélio, proferida em 17 de setembro, a ADPF foi submetida para decisão do colegiado, mas sem qualquer deliberação sobre as medidas cautelares incluídas dentre os pedidos da ação. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6001379. Acesso em: 13 dez. 2020. e não há, por parte do governo federal, tomada de medidas de contingenciamento da Covid-19 nos territórios quilombolas. Na ação foram destacadas como cruciais para o estado de precariedade dos quilombos as ações e omissões do governo federal. Por isso, no corpo da ação foram apresentados estudos sobre as vulnerabilidades quilombolas no âmbito territorial, socioeconômico, sanitário e de saúde, decorrentes da postura institucional de abandono.

Para compreender o cenário das mortes nos quilombos, destacamos os dados sistematizados pelo Centro de Documentação Quilombola Ivo Fonseca (Universidade de Brasília) no documento “Vulnerabilidade Quilombola na Covid-19 - um estudo na base de informações do IBGE” (CDIF, 2020). O estudo mobiliza insumos de órgãos da administração federal, que evidenciam o seguinte cenário: i) apenas 5,34% das localidades quilombolas identificadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) têm assegurado o direito territorial nos termos do art. 68 do ADCT (CDIF, 2020: 46); ii) o rendimento médio mensal per capita nos municípios com localidades quilombolas é 23% inferior ao dos municípios sem localidades quilombolas - a diferença é ampliada para 44% quando considerada a média mensal per capita dos municípios com 30 ou mais localidades quilombolas, conforme do IBGE de 2010 (CDIF, 2020: 51); iii) no quesito saneamento básico, os municípios com localidades quilombolas têm 23,6% dos domicílios em condições inadequadas e 44,4% semiadequadas - a situação é aprofundada nos municípios com 30 ou mais localidades quilombolas, contando com 32,8% dos domicílios inadequados e 56,3% semiadequadas, a partir de dados do demográficos de 2010 do IBGE (CDIF, 2020: 57); iv) dados do DataSUS a respeito da estrutura de saúde (verificada em agosto deste ano) indicam que, entre os 1.672 municípios com localidades quilombolas, 46 não possuem médicos do SUS, 1.465 não possuem leitos de UTI do SUS e 948 não dispõem de respiradores do SUS (CDIF, 2020: 58-63).

O contexto acima, apresentado na ADPF 742, por meio de outras pesquisas, notas técnicas e informações oficiais, denota que as vulnerabilidades quilombolas decorrem de práticas institucionais protagonizadas pelo Estado brasileiro, violador de direitos e garantias fundamentais dos quilombos. O ponto central da inviabilização da vida quilombola é a política pública territorial, pois como medida transversal garante o acesso aos programas públicos de saúde, educação e crédito fundiário, assim como protege o patrimônio cultural, ambiental e memorial dos territórios.

Partindo da centralidade do território para vida negra, integra o estado de genocídio sobre os quilombos o controle social a partir da gestão territorial. O crescimento da violência no campo é revelador também dessa interdição sobre os direitos quilombolas, especialmente as garantias constitucionais para concretizar os modos de fazer, criar e viver do quilombo. Assim, além das práticas omissivas quanto à implementação de políticas públicas, temos na agenda institucional do governo a promoção de conflitos socioambientais15 15 No ano de 2019 o Presidente Jair Bolsonaro institucionalizou o imperativo de violência no campo: “não pode continuar assim. 61% do Brasil você não pode fazer nada. Tem locais aqui que você, para produzir uma coisa, você não vai produzir porque você não pode em uma linha reta para exportar, tem que fazer uma curva enorme para desviar de um quilombola, uma terra indígena, uma área de preservação ambiental. Estão acabando com o Brasil. Se eu fosse fazendeiro, eu não vou falar o que eu faria, não, mas eu deixaria de ter dor de cabeça”. GULLINO, Daniel. 'Estão acabando com o Brasil', diz Bolsonaro sobre restrições da preservação ambientalDisponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/estao-acabando-com-brasil-diz-bolsonaro-sobre-restricoes-da-preservacao-ambiental-23881657. Acesso em: 14 dez. 2020. .

Não há informações precisas sobre a violência nos quilombos nos anos de 2019 e 2020, mas duas produções recentes indicam o aumento do número de conflitos no campo e assassinatos de quilombolas. Assim, antes mesmo de uma agenda contra os quilombos institucionalizada pelo governo Bolsonaro, já temos um contexto de aprofundamento da violência, controle social e morte nestes territórios. Os dados sobre violência no campo no ano de 2019, apresentado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), através do Centro de Documentação Dom Tomás Balduino, indicam um pico de 1.254 ocorrências de conflitos, o maior índice em toda a série registrada pelo (2020: 101) desde 1985. Surpreende que o aumento de 12% das ocorrências do ano de 2019 na comparação com o ano de 2018, foi observado no período de menor índice de retomadas, ocupações e acampamentos que a série histórica já registrou (CDDTB, 2020: 101).

Em muitas ocorrências, o território quilombola foi cerne do conflito. Nos auxiliando nesta análise, acionamos um segundo estudo, o dossiê “Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil”16 16 Estudo realizado pela CONAQ e Terra de Direitos (2018) com o apoio de organizações da sociedade civil, contribuindo com o levantamento de dados sobre a violência nos territórios quilombolas foram caracterizadas as principais formas de violência; a intersecção entre violência raça e gênero no contexto dos territórios quilombolas; as situações de agravamento da violência contra quilombolas (CONAQ, Terra de Direitos, 2018: 35). que apresenta as ocorrências de assassinatos de quilombolas entre 2008 e 2017 (CONAQ, Terra de Direitos, 2018: 29). Enquanto no ano de 2016 foram registrados pela CONAQ 4 assassinatos, a maior taxa do período mapeado, no ano seguinte o Brasil registrou o assassinato de 18 quilombolas, um aumento de 350% que equivale quase à metade de todo o período sistematizado.

Constitui-se, assim, um cenário favorável para violência gratuita (VARGAS, 2017VARGAS, João Helion Costa. Por uma mudança de paradigma: antinegritude e antagonismo estrutural. In: FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; VARGAS, João Helion Costa (orgs.). Motim: horizontes do genocídio negro. Brasília: Brado Negro, 2017, pp. 91-105.: 91), violação de direitos fundamentais e desterritorialização. Todos os mecanismos da morte nos quilombos que remontam ao arcabouço colonial se encontram hoje presentes no cotidiano quilombola. Esse projeto de mortes já em curso é atualizado na pandemia com a omissão do governo federal na promoção de medidas emergenciais, especialmente diante das condições de vulnerabilidade apresentadas, incluindo a ausência de monitoramento epidemiológico para formular ações estruturais de saúde e sanitária nos territórios.

Aqui temos um aspecto importante na compreensão da estrutura de violência nos territórios negros, a inviabilização material da vida negra. Essa condição é observada nos territórios quilombolas e decorre da fragilização de seu estatuto jurídico-político, o que é substancial na forma colonial-racista de desumanização, pois se volta à desidentificação dos quilombolas como sujeitos de direitos (GOMES, 2020GOMES, Rodrigo Portela. Constitucionalismo e Quilombos: famílias negras no enfrentamento ao racismo de Estado. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.).

O conteúdo dessa operação encontra respaldo no contínuo restabelecimento de imagens e representações de controle sobre os quilombos (COLLINS, 2019COLLINS, Patrícia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Trad. Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019.). Vale destacar o seu aprisionamento como experiência restrita ao passado escravista, uma redução de sua complexidade que encontra repercussão na afirmação e negação de seus direitos no presente. O problema de reduzir o quilombo a “mera” oposição da escravidão, revela um equívoco analítico apresentado pela historiadora Beatriz Nascimento (2018NASCIMENTO, Beatriz. Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual: possibilidades nos dias de destruição. In: União do Coletivos Pan-Africanistas - UCP (org.). Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.: 72) quando interpela o signo pejorativo produzido sobre o mecanismo da fuga.

A intelectual pontua que a valoração negativa da fuga tomava como pressuposto um sentido de liberdade desenvolvido a partir da experiência de matriz branca, que usufruía dessa condição, intrínseca ao sujeito moderno, em sua plenitude, tendo em vista a integridade do seu patrimônio jurídico-político. A colonização-escravidão fratura essa condição perante os sujeitos negros, pois a subjugação opera tanto legal - quando se institui a objetificação - quanto politicamente, por naturalizar a hierarquização. Desse modo, para viabilizar as experiências de liberdade e igualdade, a fuga foi fundamental, pois significava o desmantelamento desta estrutura jurídico-política e viabilizava a reconstrução autônoma da vida negra (NASCIMENTO, 2018NASCIMENTO, Beatriz. Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual: possibilidades nos dias de destruição. In: União do Coletivos Pan-Africanistas - UCP (org.). Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.; GOMES, 2020GOMES, Rodrigo Portela. Constitucionalismo e Quilombos: famílias negras no enfrentamento ao racismo de Estado. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.). Portanto, o signo pejorativo da designação constante aos quilombos como “negro fujão”, também significa a inferiorização das estratégias de sobrevivência da população negra. A invisibilidade das favelas como quilombos urbanos, em sua dimensão viva, também deve nos alertar sobre as interfaces entre racismo e cidadania entre o campo e as cidades.

A desqualificação dos mecanismos de luta por direitos, decorre exatamente das premissas sob as quais se constituem os paradigmas modernos de fazer, criar e viver, marcadamente não negros. Nesse sentido, o pacto ontológico moderno conduz à negação da negritude, incluída assim, a agência da população negra na conformação dos arranjos sociais, políticos, culturais e jurídicos. Desse modo, recuperar o sentido de quilombo como “reorganização e contestação da ordem estabelecida” (NASCIMENTO, 2018NASCIMENTO, Beatriz. Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual: possibilidades nos dias de destruição. In: União do Coletivos Pan-Africanistas - UCP (org.). Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.: 71) no presente, desloca a compreensão das articulações negras para fora do espectro reativo e espontaneísta consolidado no enredo da escravidão como única narrativa da população negra.

No contexto pandêmico, as estratégias autônomas das comunidades e movimento social quilombola têm sido fundamentais para o projeto das vidas negras, o que reforça o equívoco analítico apontado por Beatriz Nascimento (2018NASCIMENTO, Beatriz. Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual: possibilidades nos dias de destruição. In: União do Coletivos Pan-Africanistas - UCP (org.). Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.), quando reconhece no quilombo uma tecnologia social de reconstrução da vida negra em diáspora. Há, portanto, uma proposta política estabelecida por uma matriz civilizacional distinta da antinegritude. Fundado nas experiências de liberdade, igualdade e acesso à terra da população negra. Os quilombos, como agência negra da diáspora africana, apontaram como horizonte a reordenação estrutural do mundo moderno em que a negritude é sinônimo de vida.

Orientado por esse sentido histórico de (sobre)vivência negra, os quilombos na atualidade têm enfrentado os mecanismos de morte em seus territórios em diversas frentes, incluindo litigâncias perante poderes do Estado brasileiro e órgãos de proteção internacional dos direitos humanos. Nesse sentido, além da ADPF 742 destacamos o acionamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) pela CONAQ e Terra de Direitos para defesa da vida de 258 quilombos localizados no estado do Amapá, tendo em vista a crise humanitária, provocada pelo desabastecimento de energia e água potável na região17 17 TERRA DE DIREITOS. Organizações sociais acionam Comissão Interamericana para garantir direitos básicos à quilombolas do Amapá. Disponível em: https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/organizacoes-sociais-acionam-comissao-interamericana-para-garantir-direitos-basicos-a-quilombolas-do-amapa/23509. Acesso em: 14 dez. 2020. .

Outras medidas foram cruciais para visibilizar, denunciar e desmantelar o estado genocida nos quilombos: ressaltamos as articulações com o movimento indígena no Congresso Nacional para que o Plano Emergencial para enfrentamento à Covid-19 incluísse os territórios quilombolas. A despeito dessa articulação, por força dos vetos presidenciais, os quilombolas e outros povos tradicionais foram excluídos do plano emergencial sancionado na Lei Ordinária 14.021, de 7 de julho de 202018 18 BRASIL. Lei n. 14.021, de 7 de julho de 2020. Dispõe sobre medidas de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas; cria o Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas; estipula medidas de apoio às comunidades quilombolas, aos pescadores artesanais e aos demais povos e comunidades tradicionais para o enfrentamento à Covid-19; e altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, a fim de assegurar aporte de recursos adicionais nas situações emergenciais e de calamidade pública. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 de agosto de 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Lei/L14021.htm. Acesso em: 14 dez. 2020. .

As estratégias que têm sido mobilizadas na pandemia da Covid-19, como o monitoramento epidemiológico autônomo dos quilombolas, as denúncias de violação dos direitos fundamentais pelo Estado brasileiro e a articulação da sociedade civil para enfrentar a política de morte, constituem também uma memória do presente. Uma das disputas fundamentais que o quilombo tem empregado é quanto à narrativa elaborada sobre a experiência negra. Os recursos empregados para apagar as cenas de violência nos quilombos, por exemplo, para não contar as próprias mortes durante ou ocultar as disputas por políticas públicas na pandemia, indicam que a produção dos signos e a descrição da realidade se sujeitam aos desígnios de poder, saber e ser que a antinegritude fundou.

3. Cidadania radical: crítica à violência racial a partir da diáspora africana

Com o propósito de formular respostas sobre a lógica de violência antinegra descrita no tópico anterior, acionamos a ideia de cidadania informada por uma matriz político-jurídica da diáspora africana (GOMES, 2020GOMES, Rodrigo Portela. Constitucionalismo e Quilombos: famílias negras no enfrentamento ao racismo de Estado. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.). A cidadania negra surge aqui como ideia que permite observar as mediações que o negro elabora sobre si para ser sujeito de direito, e, consequentemente, para sobreviver. A categoria também contribui para enfrentar a noção idílica de cidadania ainda informada por uma lógica antinegra, a qual constantemente é atualizada para desconstituir e desidentificar o negro como sujeito.

Trata-se, portanto, de uma compreensão fora dos contornos dados pela experiência normativa branca. Falamos de uma noção de cidadania que considera a historicização da população negra e isso implica no reconhecimento da contínua fragmentação do status social e jurídico da maioria populacional no Brasil. Apesar dos últimos processos constituintes, especialmente o de 1988, quando “a Constituição Cidadã” operou na lógica de universalização dos direitos, a presença negra - como evidenciado anteriormente - é marcada pelo signo da morte física e política inaugurada pela colonização.

Exemplo disto foi o ocorrido no dia 06 de agosto de 2017, na comunidade quilombola de Iúna, município de Lençois, região da Chapada da Diamantina. A comunidade foi palco da chacina que resultou na morte de seis quilombolas: Adeilton Brito de Souza, Gildásio Bispo das Neves, Amauri Pereira Silva, Valdir Pereira Silva, Marcos Pereira Silva e Cosme Rosário da Conceição19 19 CONAQ. Líder quilombola em Simões Filho é o 9º assassinado este ano na Bahia. Disponível em: http://conaq.org.br/noticias/lider-quilombola-em-simoes-filho-e-o-9o-assassinado-este-ano-na-bahia/. Acesso em: 16 dez. 2020. . A área da comunidade, já reconhecida como quilombo pela Fundação Cultural Palmares (FCP), era objeto do processo de regularização fundiária perante o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

A constância negra nas cenas de violência, reveladora do contínuo genocídio antinegro, exige um esforço analítico que extrapole a órbita política dominada pela branquitude. É nesse sentido a interpelação apresentada por Ana Flauzina (2019FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Democracia genocida. In: MACHADO, Rosa P. (org.). Brasil em transe bolsonarismo, nova direita e desdemocratização. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2019, pp. 63-82.: 67), quando qualifica a democracia brasileira como genocida. A contradição intrínseca proposta pela autora não decorre do agrupamento de conceitos que a priori seriam desconformes, mas do modo como descrevemos democracia e genocídio. A incompatibilidade está na suposta integridade dos contornos da democracia, mesmo diante da realidade de violência vivida pelos negros que a informa e condiciona.

Outra evidência desse contínuo de violência antinegra, foi o crescimento de homicídios durante a pandemia. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública houve um aumento de 7% na taxa de mortes violentas intencionais quando comparado ao primeiro semestre de 2019 (FBSP, 2020: 12). Observe-se, aqui, que a decisão de suspensão das ações policiais, no bojo da ADPF 635, se refere aos limites do Rio de Janeiro. No restante do país, fica evidenciada a escalada da violência. Mas é importante destacar que, mesmo no Rio, nos meses que se sucederam à decisão liminar, outras mortes demonstraram que a decisão não havia sido cumprida plenamente. As primas Emily Victoria da Silva, de 4 anos, e Rebecca Beatriz Rodrigues Santos, de 7, foram mortas a tiros em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense20 20 SATRIANO, Nicolás. Emily e Rebecca: laudos indicam que tiros atingiram fígado, coração e cabeça. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/12/10/emily-e-rebecca-laudos-indicam-que-tiros-atingiram-figado-coracao-e-cabeca.ghtml. Acesso em: 16 dez. 2020. . Moradores relataram que não havia tiroteio ou operações policiais na região, porém, que viram o carro da polícia passando no bairro.

Um mês antes, desta vez no bairro Curuzu, em Salvador, no dia 08 de novembro, cena semelhante se observou. Railan Santos da Silva, de 7 anos, morreu após ser baleado quando assistia uma partida de futebol amador. As testemunhas afirmaram que “ninguém sabia o que estava acontecendo. A polícia entrou atirando. Não foi para o alto, foi para matar”21 21 CORREIO. 'Como tiram a vida de uma criança especial?', diz mãe de garoto autista baleado no Curuzu. Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/como-tiram-a-vida-de-uma-crianca-especial-diz-mae-de-garoto-autista-baleado-no-curuzu/. Acesso em: 16 dez. 2020. . A dimensão estrutural é recordada pelo Sr. Roberto, avô de Railan: "Ele era um menino inocente, autista. Sempre a polícia chega lá e faz isso, já chega atirando. Nós queremos justiça. Ele não é o primeiro, tem vários. Quero ver qual a providência vai ser tomada"22 22 CORREIO. 'Como tiram a vida de uma criança especial?', diz mãe de garoto autista baleado no Curuzu. Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/como-tiram-a-vida-de-uma-crianca-especial-diz-mae-de-garoto-autista-baleado-no-curuzu/. Acesso em: 16 dez. 2020.

Analisando o cenário de extermínio, João Vargas (2016VARGAS, João Helion Costa. “Desidentificação”: a lógica de exclusão antinegra no Brasil. In: PINHO, Osmundo; VARGAS, João Helion Costa (orgs.). Antinegritude: o impossível sujeito negro na formação social brasileira. Cruz das Almas: EDUFRB; Belo Horizonte: Fino Traço, 2016, pp. 13-30.) estabelece como proposta o deslocamento da base ontológica sobre a qual analisamos as relações sociais brasileiras. A partir da ideia de presença ausente - referência da negação da negritude - (VARGAS, 2017VARGAS, João Helion Costa. Por uma mudança de paradigma: antinegritude e antagonismo estrutural. In: FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; VARGAS, João Helion Costa (orgs.). Motim: horizontes do genocídio negro. Brasília: Brado Negro, 2017, pp. 91-105.: 95), mobiliza a filosofia fanoniana para tomar a antinegritude como um anteparo das estruturas modernas do saber-poder. Por esse pressuposto, temos que a reconstrução da cidadania fora do espectro em que foi estabelecida inicia com reconhecimento de que o seu sentido normativo é a negação da população negra.

O autor coloca lado a lado as dessemelhanças entre os mundos não-negro e negro. Se no mundo não-negro, as experiências passam pelas ideias do “Trabalhador/a”, do “Estado-Império” e da “Cidadania”, no mundo negro seus correspondentes são “Escravo/a”, “Não lugar” e “Morte social”. Dessa maneira, “[...] ser negro significa ser, desde sempre, excluído das esferas de cidadania, do consumo, de pertencimento político. De humanidade. Ser negro significa não ser; significa ser, desde sempre, socialmente morto” (VARGAS, 2017VARGAS, João Helion Costa. Por uma mudança de paradigma: antinegritude e antagonismo estrutural. In: FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; VARGAS, João Helion Costa (orgs.). Motim: horizontes do genocídio negro. Brasília: Brado Negro, 2017, pp. 91-105.: 92).

Diante de um quadro tão cruel, o arcabouço teórico e político fanoniano é substancial para sintetizar a equação na qual negritude é igual à morte:

Em Pele Negra, Máscaras Brancas, Fanon estabelece que a pessoa negra é negra sempre e somente em relação à pessoa branca. Ou seja, a ontologia negra depende e deriva da ontologia branca. A ontologia branca, então, é base de toda e qualquer ontologia. Ser negro é ser não branco. É importante lembrar que, de acordo com Fanon, a recíproca nunca é verdadeira. O ser da pessoa branca, diz ele, não depende da pessoa negra porque a pessoa negra, por ser uma derivação, um subproduto, “não apresenta resistência ontológica” aos olhos da pessoa branca (VARGAS, 2017VARGAS, João Helion Costa. Por uma mudança de paradigma: antinegritude e antagonismo estrutural. In: FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; VARGAS, João Helion Costa (orgs.). Motim: horizontes do genocídio negro. Brasília: Brado Negro, 2017, pp. 91-105.: 94-95).

Esta negação da população negra como agente político, fundamental para a manutenção de relações racialmente desiguais no Brasil, evidencia o enraizamento da antinegritude nas relações sociais brasileiras, que sustenta e atualiza os mecanismos de produção da morte, como se vislumbra na evolução da pandemia nas favelas e quilombos. Deste modo, desenvolver análises sobre a violência racial neste parâmetro idílico de cidadania nos parece limitador. Assim fazendo, restaria apenas a denúncia da incoerência ontológica assentada nas nossas relações políticas e o reconhecimento de que a cidadania moderna é não-negra.

Se a referência de cidadania é não ser negro, opera a fragmentação do status político-jurídico e da naturalização das violações físicas e simbólicas perpetradas aos indivíduos e a comunidade negra. Mesmo que o conteúdo moral, jurídico e econômico da cidadania, a priori, esteja alicerçado na afirmação universal do sujeito político, o signo marcante da presença negra na democracia brasileira ainda é a violência, caracterizando a antítese da cidadania. Por isso, a violência precisa ser dimensionada como aspecto estrutural da cidadania e não apenas como oposição.

Daí a importância em dialogar com a produção do pensamento negro nos debates da crítica à violência e ao sistema penal. Sendo ponto de partida é o “outro”, o sujeito negro e negra, o ponto de chegada será distinto e sem os vícios alçados pela branquitude. Enquanto a lógica imposta exclui discursos não-acadêmicos e não-hegemônicos, a diáspora ensina a ouvir os ensinamentos que estão “nas ruas”. Nesse sentido, conforme buscamos evidenciar ao longo deste texto, nos interessa o que é produzido pelos movimentos sociais.

Considerando as tecnologias sociais de sobrevivência levadas a efeito pela população negra, incluídas aquelas elaboradas no tempo presente, é necessário que os estudos críticos sobre violência acionem parâmetros que posicionem no centro de suas narrativas as agências negras, as quais permitam a nossa manutenção física e política. Assim, cidadania no interior da diáspora não designa um ideal, mas sim uma prática contínua de reconstrução da negritude, pois, na compreensão de Achille Mbeme (2018: 79), essa se conformou, desde a desterritorialização, como uma “humanidade sustada”.

Esse ponto de vista diaspórico sobre a cidadania está centrado na autonomia negra, nos agenciamentos que viabilizaram a sua conservação como comunidade. A tecnologia social da sobrevivência que notamos em territórios como as favelas e os quilombos implica em uma cidadania radical, pois toma o status da cidadania na matriz histórico-jurídica da negritude. Jaime Amparo Alves e Joy James (2017JAMES, Joy; AMPARO-ALVES, Jaime. Terror e securitização doméstica: geografia imperial da violência policial antinegra. In: FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; VARGAS, João Costa Helion (orgs.). Motim: horizontes do genocídio negro. Brasília: Brado Negro, 2017, pp. 125-150.), por exemplo, chamam atenção para as estratégias das mães negras para dar maior visibilidade ao terror racial imposto à população negra:

“Elas têm ocupado espaços públicos com fotos dos filhos/as mortos e denunciando o ‘terrorismo de estado’. A maternidade negra aparece em seus discursos e práticas não como uma condição biológica, mas sim como uma estratégia de politizar a morte” (2017: 143).

Ana Paula Oliveira, integrante e cofundadora do grupo Mães de Manguinhos, destaca que o nascimento de sua militância coincide com a morte do filho Johnatha. O primeiro ato em que ela e a família participaram fora da comunidade onde vivem, no Chapéu Mangueira, no Morro da Babilônia (Zona Sul do Rio de Janeiro). “Eu queria ir até lá para falar o que aconteceu com meu filho e com outros jovens aqui de Manguinhos. Era preciso botar essa dor para fora, se não ela ia me matar” (BRITO, 2018BRITO, Maíra de Deus. Não. Ele não está. Curitiba: Appris, 2018.: 57). O relato de Ana Paula mostra que além de politizar a morte, a maternidade negra é fundamental para a manutenção da vida dessas mulheres.

A luta por memória e por justiça dos jovens negros assassinados mantém essas mulheres negras de pé diante do racismo que desfaz famílias, futuros e sonhos. Nessa linha, a compreensão de cidadania negra está nas contra-estratégias que essa população tem pensado para garantir a sobre(vivência). Uma dessas outras contra-estratégias tem sido a memória coletiva e individual das perdas para o projeto de extermínio.

A renovação do projeto genocida no contexto pandêmico dimensiona a importância da memória e da produção do registro da violência, tendo em vista que se não fossem os mecanismos autonomamente agenciados pelos movimentos negros, as mortes sequer seriam quantificadas. Nesse sentido, vê-se que a autoinscrição das resistências é um instrumento que desloca a constatação da violência com discursos de inferiorização para enfrentamento da violência pelo reconhecimento da cidadania.

Pelos registros das comunidades e familiares temos a denúncia da violência, mas, também, a reivindicação da humanidade, pois foi a interdição desse atributo que produziu a perda. Assim, o luto pelos projetos de vida que sucumbiram é um direito pelo qual se luta a partir da memória. Por isso, é um mecanismo que opera contra violência que ultrapassa o sentido físico, atuando no âmbito subjetivo e político; reconstruindo sentidos afetivos e simbólicos de sociabilidade e poder, que são articulados na solidaridade do território negro afetado.

Essa dimensão está latente no testemunho de Maria Bernadete Pacífico: “os nossos filhos deixaram uma história, deixaram um legado e isso é que incomodou”. Bernadete é mãe da liderança da comunidade Pitanga dos Palmares, Flavio Gabriel Pacifico dos Santos (Binho do Quilombo)23 23 CONAQ. Mãe de Marielle Franco une forças com mãe Binho do Quilombo. Disponível em: http://conaq.org.br/noticias/mae-de-marielle-franco-une-forcas-com-mae-binho-do-quilombo/. Acesso em: 16 dez. 2020. , assassinado no dia 19 de setembro de 2017, na frente da escola do território quilombola, localizado no município de Simões Filho (BA). A sua oralidade é um registro dessa memória de resistência que ela recorda ter historicidade, “só em dizer que eu sou quilombola, a resistência está aqui” e segue:

“Meu filho lutava muito pelos direitos do quilombo, ai foi recebendo ameaças, ameaças, e outras ameaças dentro do quilombo veio a acontecer isso. Mas ele derramou sangue, esse sangue de quilombola, sangue de vitória, mesmo sangue que Zumbi dos Palmares largo pelo povo dele. Ser quilombola faz parte da nossa ancestralidade, da nossa cultura... E nós queremos nossa liberdade, nossos direitos e dai por diante ter paz nas nossas comunidades quilombolas. Que Deus e Xangô, que é o homem da justiça, eles peguem na caneta e respeite a nossa ancestralidade. Muita resistência pra hoje eu ta aqui, com essa cara aqui olhando pra todos vocês, pedindo força a Deus... É muita resistência”24 24 INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Ouça as #VozesDoQuilombo! - Maria Bernadete Moreira. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=c495IOeLv2s&ab_channel=InstitutoSocioambiental. Acesso em: 16 dez. 2020. .

A família de Ágatha Vitória Sales Félix, 8 anos, também testemunha a memória do projeto de vida que estava sendo construído coletivamente. A garota era boa aluna, fazia balé, estudava inglês e tinha um cotidiano intenso e carinhoso com os familiares na Fazendinha, uma das comunidades do Complexo do Alemão, onde vivia. Ainda assim, todo aparato de cuidado não foi suficiente para proteger Ágatha da violência que assola as periferias do Brasil. Em setembro de 2019, ela foi vítima de um tiro efetuado por um agente do estado, como comprovou o laudo pericial25 25 BARBON, Júlia. Investigação conclui que PM atirou na menina Ágatha no Rio. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/11/investigacao-conclui-que-pm-atirou-na-menina-agatha-no-rio.shtml. Acesso em: 12 dez. 2020. . O discurso de seu avô, Airton Félix, durante o velório e o enterro, aciona novamente as relações entre memória, cidadania e resistência à violência:

“Sabe qual era a arma que tinha dentro da mochila da minha neta? Lápis, caderno, apontador, livro. Tinha um simulado que ela fez nessa semana e tirou 7! Essas eram as armas que a Ágatha gostava de usar. Ela tinha um futuro, ia crescer e entrar na faculdade. Mas o estado não quer isso. E se continuar dessa forma, o que vai acontecer?”26 26 ZARUR, Camila; OUSHANA, Giselle. 'A arma que ela gostava de usar era lápis, caderno, redação nota 10', diz avô durante enterro de menina baleada no AlemãoDisponível em: https://oglobo.globo.com/rio/a-arma-que-ela-gostava-de-usar-era-lapis-caderno-redacao-nota-10-diz-avo-durante-enterro-de-menina-baleada-no-alemao-23966403. Acesso em: 12 dez. 2020.

Quisemos, ao longo deste tópico, pensar os discursos e práticas negros que põem ao avesso a noção de cidadania para apontar sua inseparabilidade da violência. Esse fazer é também uma forma de interpelação direta ao Estado e sua produção de terror racial, conectada finamente ao controle social sobre os territórios negros, no campo e na cidade. Entendemos que as dimensões, inclusive afetivas, da memória e da resistência aqui levantadas nos ajudam a compreender a complexidade dos agenciamentos e das críticas negras à violência de Estado.

Conclusão

Esse artigo é uma discussão inicial sobre violência, cidadania e (sobre)vivências. Partindo do pressuposto de que a geografia do extermínio atua tanto na cidade como no campo, observou-se a intensidade da máquina racista que a cada dia amplia o perfil de suas vítimas, comprovando o racismo estrutural e estruturante mantido historicamente pelo governo brasileiro em discursos e práticas diversas. A delimitação da violência antinegra ao espaço urbano fragmenta a compreensão de práticas de controle social que se desenvolvem como um continuum campo-cidade.

Além disso, o cenário de agudização da violência antinegra provocou reflexões sobre os estudos da violência e sobre como tem sido trabalhada a dimensão racial no Brasil. Em geral, sujeitos e sujeitas de territórios negros como favelas e quilombos, assim como suas demandas, não estão no cerne do debate. Desse modo, a redução das demandas da população negra, contra e a favor do Estado, aos problemas da punição, oculta projetos de vida, liberdade e igualdade, ou seja, cidadania, agenciados contra a violência colonial-racial. Entendemos ser urgente e fundamental que o racismo deixe de ser preterido para que produções acadêmicas possam, enfim, dar conta de todo espectro de horror que essas populações têm vivido.

Outro ponto importante é o entendimento entre movimento negro e sistema penal. Conscientes da relevância da contemporaneidade, citamos experiências de favelas e quilombos que, no contexto da pandemia de Covid-19, denotam as agências da população negra na política de justiça, bem como o alinhamento das demandas por direitos à redução do controle social e violência. Estas experiências informam que, independentemente da forma político-jurídica adotada nos pactos sociais, a conservação da vida negra requer a sustação da ordem antinegra. Nesse sentido, as Ações de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635 e 742 foram estratégias para garantir - minimamente - a manutenção da vida nos territórios negros. As ações evidenciam também a legitimação, por parte do Estado, das violência contra a população negra, enquanto mecanismo de interdição de sua cidadania.

Por fim, concentramos esforços na disputa de narrativa que a população negra tem produzido sobre si e as relações raciais no Brasil. Por exemplo, o agenciamento da memória afetivas e da resistência para contrapor as imagens e representações racistas que fragmentam a humanidade e desqualificam a subjetividade. Um dos aspectos enfrentados nessa memória da diáspora africana é a vinculação da experiência negra à política de um tempo passado que reafirma discursos de controle social e reduz a experiência social vivida pela população negra à violência, dor e morte.

Essas contribuições constituem possibilidades de uma cidadania radical no Brasil, em que seja possível enfrentar verdadeiramente a violência racial. Apesar de pretensos avanços com instrumentos como “Constituição cidadã”, a existência negra segue definida pela morte física e política. E se ser negro e negra é um processo muito mais de (sobre)vivência do que de vivência, não resta outro caminho do que revindicar outras vozes e saberes para que a experiência negra não seja um esforço, mas uma totalidade.

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  • 1
    Este artigo sistematiza reflexões empreendidas coletivamente no Maré - Núcleo de Estudos em Cultura Jurídica e Atlântico Negro (FD/UnB), grupo de pesquisas integrado pelos autores.
  • 2
    SATRIANO, Nicolás. Emily e Rebecca: laudos indicam que tiros atingiram fígado, coração e cabeça. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/12/10/emily-e-rebecca-laudos-indicam-que-tiros-atingiram-figado-coracao-e-cabeca.ghtml. Acesso em: 14 dez. 2020.
  • 3
    CONAQ. Nota de Pesar. Disponível em: http://conaq.org.br/noticias/nota-de-pesar/. Acesso em: 14 dez. 2020.
  • 4
    Exemplo disso foram os últimos encontros do Grupo Brasileiro de Criminologia Crítica e a última edição do Grupo de Mulheres das Ciências Criminais. Mais do que encontros pontuais, é importante mencionar também a ampliação da discussão dentro das próprias universidades, especialmente após a implementação de cotas raciais nos cursos de graduação e, mais recentemente, em alguns cursos de pós-graduação.
  • 5
    VEJA. Wilson Witzel: ‘A polícia vai mirar na cabecinha e… fogo’. Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/wilson-witzel-a-policia-vai-mirar-na-cabecinha-e-fogo/. Acesso em: 14 dez. 2020.
  • 6
    HABITAT. Tanta gente sem casa, tanta casa sem gente. Disponível em: https://habitatbrasil.org.br/impacto/nossa-causa/. Acesso em: 16 dez. 2020.
  • 7
    RAMALHOSO, Wellington. Alicerce: Pandemia escancara crise de moradia no Brasil, mas produzir casa adequada para todos é possível e urgente. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/moradia-digna-e-prioridade-para-refazer-cidades-pos-covid/. Acesso em: 16 dez. 2020.
  • 8
    FREITAS, Sueli de. Pesquisa revela que pardos e negros morrem mais por COVID-19. Disponível em: https://coronavirus.ufes.br/conteudo/pesquisa-revela-que-pardos-e-negros-morrem-mais-por-covid-19. Acesso em: 16 dez. 2020.
  • 9
    QUILOMBOS SEM COVID. Observatório da Covid-19 nos Quilombos. Disponível em: https://quilombosemcovid19.org/. Acesso em: 16 dez. 2020.
  • 10
    TRINDADE, Naira; GULLINO, Daniel. Governo prepara campanha com slogan 'O Brasil Não Pode Parar' Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/governo-prepara-campanha-com-slogan-brasil-nao-pode-parar-1-24332284. Acesso em: 09 dez. 2020.
  • 11
    Experiências de midiativismo têm se multiplicado pelas favelas do país, como se vê nas seguintes notícias: VADAKATTU, Sharonya. Midiativismo de Favela: Contrapúblicos para Direitos Humanos no Brasil. Disponível em: https://rioonwatch.org.br/?p=35418. Acesso em: 15 dez. 2020. CISCATI, Rafael; ALBINO, Airan. Papo reto quer criar uma "nova narrativa sobre a favela". Disponível em: https://www.brasildedireitos.org.br/noticias/506-papo-reto-quer-criar-uma-nova-narrativa-sobre-a-favela. Acesso em: 15 dez. 2020. COMUNICAÇÃO COMUNITÁRIA. Coletivo Força Tururu fortalece vozes comunitária e popular em Recife. Disponível em: http://www.midiacidada2012.unb.br/referencias/estudo-de-caso/140-coletivo-forca-tururu-fortalece-vozes-comunitaria-e-popular-em-recife.html. Acesso em: 15 dez. 2020.
  • 12
    Petição Inicial da ADPF 742. Disponível em: http://conaq.org.br/noticias/racismo-tambem-se-combate-no-stf/. Acesso em: 13 dez. 2020.
  • 13
    Iniciativa autônoma do movimento quilombola desenvolvida pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA). QUILOMBOS SEM COVID. Observatório da Covid-19 nos Quilombos. Disponível em: https://quilombosemcovid19.org/. Acesso em: 13 dez. 2020.
  • 14
    Por decisão do relator Min. Marco Aurélio, proferida em 17 de setembro, a ADPF foi submetida para decisão do colegiado, mas sem qualquer deliberação sobre as medidas cautelares incluídas dentre os pedidos da ação. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6001379. Acesso em: 13 dez. 2020.
  • 15
    No ano de 2019 o Presidente Jair Bolsonaro institucionalizou o imperativo de violência no campo: “não pode continuar assim. 61% do Brasil você não pode fazer nada. Tem locais aqui que você, para produzir uma coisa, você não vai produzir porque você não pode em uma linha reta para exportar, tem que fazer uma curva enorme para desviar de um quilombola, uma terra indígena, uma área de preservação ambiental. Estão acabando com o Brasil. Se eu fosse fazendeiro, eu não vou falar o que eu faria, não, mas eu deixaria de ter dor de cabeça”. GULLINO, Daniel. 'Estão acabando com o Brasil', diz Bolsonaro sobre restrições da preservação ambientalDisponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/estao-acabando-com-brasil-diz-bolsonaro-sobre-restricoes-da-preservacao-ambiental-23881657. Acesso em: 14 dez. 2020.
  • 16
    Estudo realizado pela CONAQ e Terra de Direitos (2018) com o apoio de organizações da sociedade civil, contribuindo com o levantamento de dados sobre a violência nos territórios quilombolas foram caracterizadas as principais formas de violência; a intersecção entre violência raça e gênero no contexto dos territórios quilombolas; as situações de agravamento da violência contra quilombolas (CONAQ, Terra de Direitos, 2018: 35).
  • 17
    TERRA DE DIREITOS. Organizações sociais acionam Comissão Interamericana para garantir direitos básicos à quilombolas do Amapá. Disponível em: https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/organizacoes-sociais-acionam-comissao-interamericana-para-garantir-direitos-basicos-a-quilombolas-do-amapa/23509. Acesso em: 14 dez. 2020.
  • 18
    BRASIL. Lei n. 14.021, de 7 de julho de 2020. Dispõe sobre medidas de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas; cria o Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas; estipula medidas de apoio às comunidades quilombolas, aos pescadores artesanais e aos demais povos e comunidades tradicionais para o enfrentamento à Covid-19; e altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, a fim de assegurar aporte de recursos adicionais nas situações emergenciais e de calamidade pública. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 de agosto de 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Lei/L14021.htm. Acesso em: 14 dez. 2020.
  • 19
    CONAQ. Líder quilombola em Simões Filho é o 9º assassinado este ano na Bahia. Disponível em: http://conaq.org.br/noticias/lider-quilombola-em-simoes-filho-e-o-9o-assassinado-este-ano-na-bahia/. Acesso em: 16 dez. 2020.
  • 20
    SATRIANO, Nicolás. Emily e Rebecca: laudos indicam que tiros atingiram fígado, coração e cabeça. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/12/10/emily-e-rebecca-laudos-indicam-que-tiros-atingiram-figado-coracao-e-cabeca.ghtml. Acesso em: 16 dez. 2020.
  • 21
    CORREIO. 'Como tiram a vida de uma criança especial?', diz mãe de garoto autista baleado no Curuzu. Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/como-tiram-a-vida-de-uma-crianca-especial-diz-mae-de-garoto-autista-baleado-no-curuzu/. Acesso em: 16 dez. 2020.
  • 22
    CORREIO. 'Como tiram a vida de uma criança especial?', diz mãe de garoto autista baleado no Curuzu. Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/como-tiram-a-vida-de-uma-crianca-especial-diz-mae-de-garoto-autista-baleado-no-curuzu/. Acesso em: 16 dez. 2020.
  • 23
    CONAQ. Mãe de Marielle Franco une forças com mãe Binho do Quilombo. Disponível em: http://conaq.org.br/noticias/mae-de-marielle-franco-une-forcas-com-mae-binho-do-quilombo/. Acesso em: 16 dez. 2020.
  • 24
    INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Ouça as #VozesDoQuilombo! - Maria Bernadete Moreira. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=c495IOeLv2s&ab_channel=InstitutoSocioambiental. Acesso em: 16 dez. 2020.
  • 25
    BARBON, Júlia. Investigação conclui que PM atirou na menina Ágatha no Rio. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/11/investigacao-conclui-que-pm-atirou-na-menina-agatha-no-rio.shtml. Acesso em: 12 dez. 2020.
  • 26
    ZARUR, Camila; OUSHANA, Giselle. 'A arma que ela gostava de usar era lápis, caderno, redação nota 10', diz avô durante enterro de menina baleada no AlemãoDisponível em: https://oglobo.globo.com/rio/a-arma-que-ela-gostava-de-usar-era-lapis-caderno-redacao-nota-10-diz-avo-durante-enterro-de-menina-baleada-no-alemao-23966403. Acesso em: 12 dez. 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    07 Jan 2021
  • Aceito
    20 Jan 2021
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