Acessibilidade / Reportar erro

Para além do “mundo jurídico”: um diálogo com as equipes multidisciplinares de Juizados (ou Varas) de Violência Doméstica

Beyond the “legal world”: a dialogue with members of multidisciplinary teams serving in Brazilian domestic violence courts.

Resumo

O presente artigo tem como objetivo entender o funcionamento das equipes multidisciplinares atuantes em Juizados (ou Varas) de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Buscamos identificar e compreender as possíveis modificações desenvolvidas nesses espaços especializados, inaugurados há mais de uma década, na direção de novas respostas, desafiadoras daquelas tradicionalmente oferecidas pelo Sistema de Justiça Criminal. Para tanto, e tendo por base pesquisa empírica realizada em sete capitais brasileiras, utilizaremos de falas e reflexões extraídas dos grupos focais realizados com as equipes multidisciplinares estudadas, bem como das percepções extraídas de entrevistas com magistrados que atuam na violência doméstica e vítimas desse tipo de conflito. Ao final, propomos o reconhecimento da importância das equipes multidisciplinares na busca de novas saídas à violência doméstica contra a mulher no Brasil, bem como a necessidade de enxergar/admitir as rígidas fronteiras do nosso “mundo jurídico”.

Palavras-chave:
Violência Doméstica contra a Mulher; Equipes Multidisciplinares; Lei Maria da Penha

Abstract

This article aims to understand the workings of multidisciplinary teams in Domestic Violence Courts in Brazil. We seek to identify and understand the possible changes developed in these specialised spaces, which now exist for over a decade, that are turned to new responses capable of challenging the traditional way of doing things in the country’s Criminal Justice System. For that purpose and based on empirical research carried out in seven Brazilian capital cities, we will highlight some of the reflections extracted from focus groups carried out with the aforementioned multidisciplinary teams, as well as draw on the perceptions extracted from interviews with magistrates who work with domestic violence and victims of this type of conflict. In the end, we highlight the need for recognition of the importance of multidisciplinary teams when searching for new “ways out” in the domestic violence against women arena, as well as the need to see/admit the rigid borders of our “legal world”.

Keywords:
Domestic Violence against Women; Multidisciplinary Teams; The Maria da Penha Act (Brazil’s Domestic Violence Law)

1. Introdução

Para a construção do presente artigo utilizaremos1 1 Optamos por apresentar a pesquisa de campo e seus resultados na primeira pessoa considerando o papel tão direto e íntimo que tem o pesquisador, tanto na coleta como na análise de dados (ROSENBLATT, 2015a). um recorte da pesquisa “Entre Práticas Retributivas e Restaurativas: a Lei Maria da Penha e os avanços e desafios do Poder Judiciário2 2 O referido projeto foi contemplado na 2ª Edição da Série “Justiça Pesquisa”, do Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ), em 2016, tendo sido financiando, portanto, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). As autoras declaram não haver conflito de interesses que comprometa a cientificidade do trabalho apresentado. , que objetivou compreender a aplicação da Lei Maria da Penha depois de mais de 10 (dez) anos de sua vigência. A pesquisa, financiada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), foi coordenada, conjuntamente, pelas três autoras do presente artigo e abarcou 7 (sete) capitais brasileiras, sendo 3 (três) cidades na região nordeste (João Pessoa, Maceió e Recife) e 1 (uma) cidade em cada uma das demais regiões (Belém do Pará, Brasília, São Paulo e Porto Alegre). O trabalho foi realizado com a utilização de diversas técnicas de pesquisa e contou com uma equipe de mais de 50 (cinquenta pesquisadoras/es). A equipe de pesquisa realizou entrevistas com magistrados, entrevistas com vítimas3 3 Reconhecemos a maior pertinência da expressão “mulheres em situação de violência”, por acreditarmos que ela remete à possibilidade de modificação da realidade sociocultural da violência doméstica e familiar contra a mulher (PASINATO, 2015) e, também, por entendermos que a expressão “mulher vítima” engessa a mulher numa situação única de vulnerabilidade, o que faz com que o complexo problema da violência doméstica e familiar contra a mulher seja interpretado a partir de uma causalidade unilateral e simplista, cuja compreensão precisa ultrapassar “os limites de uma leitura bidimensional, fundamentada em categorias fixas como ‘mulher-vítima’ e ‘homem-agressor’” (SOARES, 2012: 191). No entanto, para efeitos deste artigo, utilizaremos com frequência o termo “vítimas” por ser conciso, por estar na Lei Maria da Penha e corresponder à linguagem jurídico-penal e também porque o objetivo deste trabalho não está focado nas discussões em torno da terminologia mais apropriada. Do mesmo modo e por razões semelhantes, utilizaremos o termo “agressor” com frequência, apesar de entendermos que se trata de referência estigmatizante marcadora de uma identidade - e não de uma prática social, tal como compreendemos se tratar a violência contra a mulher (MEDRADO; MÉLLO, 2008; SOARES, 2012). , grupo focal com as equipes multidisciplinares, análise quantitativa de processos e revisão bibliográfica de literatura estrangeira sobre a aplicação da justiça restaurativa em casos de violência doméstica4 4 O componente qualitativo da pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética da Universidade Católica de Pernambuco, tendo sido aprovado (CAAE: 66958616.7.0000.5206). .

Com base nessa pesquisa e nos resultados alcançados, este artigo tem como finalidade estabelecer um diálogo com as equipes multidisciplinares das sete cidades pesquisadas, para entender a atuação dessas equipes nos Juizados (ou Varas) de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher5 5 O art. 14 da Lei 11.340/2006 apresenta a seguinte redação: “Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher”. Embora a nomenclatura dada pelo legislador seja Juizado alguns Tribunais de Justiça alteraram a expressão Juizado para Vara de Violência Doméstica, assim optamos por utilizar, durante o presente texto, o seguinte formato: Juizado (ou Vara), para contemplarmos as nomenclaturas utilizadas em todas as cidades pesquisadas. e o papel desempenhado pelas/os profissionais que as integram. Para tanto, vamos destacar não só a atividade de campo desenvolvida com as equipes multidisciplinares, mas também as reflexões extraídas das entrevistas com as vítimas e com a magistratura.

Cabe pontuar, desde já, que, apesar de as esquipes multidisciplinares terem sido celebradas por sua previsão no bojo da Lei Maria da Penha - tanto a fim de conferir um atendimento holístico às mulheres em situação de violência e a sua família, mas também para a produção de pareceres técnicos subsidiadores das tomadas de decisão pelos magistrados (DE KATO, 2016) -,durante a realização da pesquisa, nos chamou atenção a atuação periférica das esquipes multidisciplinares nos Juizados (ou Varas), ao menos em termos de aproveitamento e interferência das atividades realizadas no procedimento penal. A “ausência” das equipes multidisciplinares inicialmente se evidenciou na fase quantitativa da pesquisa, ou seja, no momento da análise dos processos criminais e se confirmou nos grupos focais com as equipes - o que não significa, entretanto, que as equipes têm pouco trabalho, mas que os seus esforços não se exprimem nos processos. Neles, inclusive naqueles em que se teve acesso ao inteiro teor, não encontramos qualquer menção à existência de encontros com a equipe multidisciplinar - seja pela vítima, seja pelo acusado -, tampouco houve menção ao trabalho da equipe nas sentenças. A ausência desse dado nos processos analisados na pesquisa torna a importância do presente artigo ainda maior, pois muitas vezes a dimensão dos trabalhos das equipes multidisciplinares, bem como o seu potencial transformador, não cabe (nem é recepcionado) na ritualística do processo penal e nem pode ser captada em números.

Dividiremos o artigo em três momentos distintos, apesar de entrelaçados: começaremos apresentando uma fotografia das equipes multidisciplinares à época da pesquisa; num segundo momento, destacaremos falas e reflexões extraídas dos grupos focais e entrevistas realizados que trazem alguns pontos que consideramos importantes para, na última etapa do artigo, projetarmos outras saídas - para além da lógica retributivo-punitiva - aos conflitos domésticos. Esse caminho nos levará a uma reflexão acerca do protagonismo das equipes multidisciplinares dentro das estruturas já existentes, bem como sobre a importância de reconhecê-lo quando do desenho de novas abordagens à violência doméstica contra a mulher no Brasil.

2. Uma “fotografia” das equipes multidisciplinares no momento de realização da pesquisa

Durante a pesquisa, conhecemos todas as equipes multidisciplinares atuantes nos Juizados (ou Varas) das cidades selecionadas. Para a condução dessas conversas, utilizamos a técnica do grupo focal. Ao longo do ano 20176 6 Todos os dados que iremos apresentar se referem a informações coletadas no ano de 2017 e é possível que tenham ocorrido mudanças nessas equipes ou no funcionamento dos Juizados (ou Varas) pesquisados. Dito isso, qualquer mudança que possa ter ocorrido não afeta, de nenhuma forma, as propostas de reflexões do presente artigo. , portanto, realizamos nove grupos focais.

Essa técnica de investigação qualitativa apresenta como objetivo a coleta de dados referentes à experiência das pessoas que dele participam sobre alguma vivência em comum. Assim, o grupo focal possibilita a observação da dinâmica social que ocorre entre os membros do grupo (NOAKS; WINCUP, 2004NOAKS, Lesley; WINCUP, Emma. Criminological Research: Understanding Qualitative Methods. London: SAGE, 2004.). Dessa forma, realizamos grupos focais com as/os assistentes sociais, as/os psicólogas/os, as/os pedagogas/os e outras/os profissionais das equipes multidisciplinares, com o intuito de compreender as atribuições dessas equipes, como também entender a interação entre as pessoas envolvidas no âmbito do funcionamento da justiça.

Os grupos focais foram feitos com o número máximo de dez participantes em cada cidade e nós sempre nos revezávamos na função de moderadora ou observadora, de modo que participamos de todos os grupos focais. Estávamos acompanhadas, ainda, por um mínimo de duas pesquisadoras/es assistentes, que enriqueceram as discussões, fizeram anotações e analisaram a linguagem corporal dos participantes. Ao término de cada grupo focal, nos reuníamos para trocar percepções, ponderar as falas mais significativas, tendo este momento colaborado muito na construção do relato. Por outro lado, as/os pesquisadoras assistentes também teceram considerações acerca da atuação da mediadora e da observadora, aprimorando, assim, a técnica para o grupo focal seguinte. Ao final, todos os integrantes participaram da revisão da síntese elaborada primeiramente por nós, gerando, assim, conclusões elaboradas pelo grupo7 7 Para a tomada dessas decisões, acataram-se as sugestões de como melhor conduzir entrevistas de grupo focal propostas por autores das ciências sociais, inclusive, e especificamente, da Criminologia, tais como Arksey e Knight (1999), Kvale (1996) e Noaks e Wincup (2004). .

O primeiro grupo focal realizado pela equipe de pesquisa ocorreu em Igarassu/PE, cidade não contemplada pela pesquisa. A realização do grupo focal nessa cidade, que faz parte da Região Metropolitana da cidade do Recife, se deu para testar os instrumentos, e, dessa forma, preparar o grupo para a realização da atividade nas cidades efetivamente selecionadas para a pesquisa8 8 Para uma explicação detalhada acerca dos critérios de seleção dessas cidades, consultar o Relatório Final da pesquisa (CNJ, 2018). . Assim sendo, não iremos apresentar os dados dessa atividade no presente artigo9 9 A análise dessa cidade consta no Relatório Final da pesquisa (CNJ, 2018). , mas nos deter aos Juizados (Varas) localizados naquelas sete capitais acima mencionadas.

Na cidade de Recife/PE temos três Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, mas só contamos com duas equipes multidisciplinares. Assim, realizamos dois grupos focais, o primeiro com a equipe da 2ª Vara e o segundo com a equipe que atua conjuntamente perante a 1ª e a 3ª Varas. A equipe da 2ª Vara era composta por funcionários concursados do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), majoritariamente mulheres. Eram três assistentes sociais e três psicólogos, sendo dois desses últimos homens e uma mulher. Nenhum dos integrantes da equipe havia trabalhado antes com a temática, tendo sido a escolha para funcionar nessa Vara, aparentemente, aleatória. A equipe que atende conjuntamente a 1ª e a 3ª Varas é também formada por funcionárias concursadas do TJPE e composta exclusivamente por mulheres: quatro assistentes sociais, quatro psicólogas e duas estagiárias, uma de psicologia e outra de serviço social. Destacamos que, anteriormente à investidura no serviço público do TJPE, nenhuma das integrantes da equipe havia trabalhado diretamente com a temática e a lotação de todas seguiu exclusivamente o critério de disponibilidade de vagas.

Na cidade de Belém/PA, embora existam três Varas do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, a equipe multidisciplinar é única e responsável por todas as Varas. Dessa forma, realizamos ali apenas um grupo focal. A equipe dessa capital era formada exclusivamente por mulheres, sendo duas psicólogas, duas pedagogas e cinco assistentes sociais, além de duas estagiárias na área de psicologia. Todas são concursadas do Tribunal de Justiça do Pará (TJPA) e começaram a atuar nas Varas entre os anos de 2007 e 2013, quando as mais novas ingressaram. A escolha das pessoas para atuarem nas Varas do Juizado é realizada de modo aleatória pelo Tribunal de Justiça.

Na cidade de João Pessoa/PB, existe apenas um Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e a equipe era formada exclusivamente por mulheres, sendo quatro psicólogas e duas assistentes sociais. Elas trabalhavam em esquema de revezamento entre o turno da manhã e da tarde, de modo que em cada turno havia uma equipe presente, formada por duas psicólogas e uma assistente social. O primeiro concurso realizado pelo TJPB, para os cargos de psicólogo, pedagogo e assistente social, aconteceu no ano de 2012 e as primeiras nomeações ocorreram em 2013. O edital do concurso delimitava a atuação para as áreas da violência doméstica e da infância e juventude

Na cidade de Maceió/AL também só existe um Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e a equipe é formada exclusivamente por mulheres, sendo duas psicólogas e duas assistentes sociais. A equipe conta ainda com apoio de estagiárias, duas na área de psicologia e duas na área de serviço social. A escolha para elas fazerem parte do Juizado foi realizada pelo Tribunal de Justiça de forma aleatória.

Na cidade de São Paulo/SP, embora existam várias Varas e, consequentemente, muitas equipes, só realizamos a pesquisa no Fórum do Butantã, que tem uma Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher10 10 A realização de um único grupo focal em cidade da dimensão de São Paulo se deu, dentre outros motivos, principalmente em virtude dos fatores tempo e acessibilidade. Para maiores detalhes sobre o recorte espacial na capital paulista, conferir o Relatório Final de pesquisa (CNJ, 2018: 42-43). . A equipe é composta majoritariamente por mulheres. Eram três assistentes sociais, três psicólogos, sendo dois desses últimos homens e uma mulher. Todos funcionários concursados do TJSP.

Na cidade de Porto Alegre/RS existem dois Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, mas esses Juizados não possuem uma equipe multidisciplinar própria, como nas outras capitais pesquisadas, porém contam com duas técnicas do Tribunal de Justiça que são psicólogas, com bastante experiência. Além das duas servidoras, a equipe é integrada também por professoras e alunas/os de instituições de ensino superior atuantes naqueles Juizados. Nessa capital, o serviço multidisciplinar é centralizado no âmbito da chamada Central de Atendimento Psicossocial e Multidisciplinar (CAPM), localizada no Fórum Central. Com efeito, em Porto Alegre, existia uma inserção muito grande da academia, diferentemente do que percebemos em outras cidades, por isso nesse grupo focal tivemos a participação de alunas/os e professoras do curso de psicologia de quatro instituições de ensino superior do Rio Grande do Sul (PUC, CESUCA, FADERGS, UFCSPA).

Em Brasília, não existem equipes multidisciplinares para os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, mas um serviço centralizado, o “Serviço de Atendimento a Famílias em Situação de Violência” (SERAV), para onde os juízes do plano piloto encaminham os casos quando precisam de uma intervenção ou acompanhamento psicossocial. O SERAV é responsável por prestar assessoria não apenas aos Juizados de Violência Doméstica, mas também aos Juizados (ou Varas) Criminais comuns do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF). No caso específico de violência doméstica contra a mulher, o SERAV atua em conjunto com o “Centro Judiciário da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar” (CJM), uma coordenadoria composta por onze funcionários (das áreas de psicologia, serviço social, pedagogia e direito), destinada à assessoria dos juízes que atuam no âmbito da violência doméstica. O grupo focal de Brasília foi realizado com a participação de três analistas da equipe do SERAV, sendo duas psicólogas e uma assistente social e, pela especificidade do atendimento em Brasília, participaram também dois analistas do CJM, sendo um assistente social e um analista jurídico.

3. o olhar dos juízes sobre as equipes multidisciplinares

Durante o artigo optamos por usar sempre o gênero masculino para nos referirmos à magistratura, já que os Tribunais de Justiça brasileiros11 11 Levantamento feito pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ), órgão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mostra que dos 17.670 magistrados em atividade no Brasil, 37,3% são mulheres. O número foi extraído do Módulo de Produtividade Mensal, sistema mantido pelo CNJ e alimentado regularmente por todos os tribunais. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84432-percentual-de-mulheres-em-atividade-na-magistratura-brasileira-e-de-37-3. Acesso em: 09 dez. 2020. são majoritariamente formados por homens. Mesmo quando a temática é de violência contra as mulheres, encontramos homens e mulheres atuando de forma paritária durante a pesquisa12 12 “Dos 24 magistrados entrevistados, 12 (doze) eram homens e 12 (doze) eram mulheres. Com relação à raça, 17 (dezessete) magistrados se identificaram como brancos, 4 (quatro) como pardos, 2 (dois) como amarelos e 1 (um) não respondeu” (CNJ, 2018: 132). . A nossa escolha tem como objetivo chamar atenção para como o modo de pensar masculino é ainda preponderante no âmbito do judiciário.

Entrevistamos juízes em todas as cidades pesquisadas, num total de 24 magistrados, e, ao longo dessas entrevistas, a equipe multidisciplinar é indicada, junto às medidas protetivas, como um dos pontos de maior relevância da lei.

É, eu acho, a equipe psicossocial, o trabalho do psicossocial é fundamental, acho que toda vara tem que ter uma boa equipe, uma equipe compromissada, e com essa, acho que, essa visão, né? Dos servidores, do juiz, do promotor, do defensor, de a gente tem que trabalhar naquela família que está doente. Às vezes é uma violência esporádica, né? Que você vê um arrependimento muito grande naquele agressor e tudo mais, que a gente sabe que aquilo ali foi um caso isolado. Mas há casos que não, que existe um ciclo de violência tão pesado e que ninguém consegue quebrar, e se você não cuidar, se você não tratar, e que a mulher não se liberta, e porque ela não quer se libertar também. Ela tem certos medos, ou ela viu na família dela, no pai, aquela agressão, então, aquilo, pra ela é normal, então ela não quebra aquele ciclo, num é? Então a gente tem que tratar essa família. E, se chegou a nós, passou por todo mundo, passou pela escola, passou por tudo e num foi resolvido, se chega a vara de violência doméstica nós temos que ter competência pra ajudar essas famílias, através de equipe psicossocial e através de encaminhamento pra ele. (Juiz 3)

(CNJ, 2018a: 153)

Aqui na minha vara a equipe faz um trabalho maravilhoso. Nas outras varas não sei muito, porque as equipes geralmente são um pouco reservadas e a gente não tem muito acesso a elas. Mas aqui, a da minha vara faz um trabalho belíssimo e amplo, muito amplo, né, com homens e mulheres e crianças. (Juiz 7)

(CNJ, 2018a: 153)

Nossa, todos os dias, toda hora, as portas são vizinhas. A gente tem uma abertura muito grande pra construir soluções juntos, pra ouvir as opiniões, inclusive esse nosso projeto da audiência de acolhimento foi pensado em conjunto com a equipe. Quando eu cheguei [...] na qualidade de substituto, o papel da minha equipe era apenas falar com os agressores... óbvio, eles iam também dar palestras em escolas, mas era falar com os agressores que haviam sido sentenciados, eu disse: “Meu Deus, é preciso repensar o papel dessa equipe, são pessoas tão boas que estão apenas se apegando a um cumprimento de pena”. A gente tem que fazer a diferença na vida dessas pessoas, prevenindo, evitando a reiteração de condutas, mas, sobretudo, dando uma proteção maior à vítima porque é, de fato, quem a gente deve olhar primeiro, a vítima, não que nós tenhamos que esquecer dos agressores, de forma alguma, primeiro que a competência não é nossa, né, a competência é da vara de execução, e segundo que, para fazer um trabalho com os agressores, primeiro eu tenho que fazer um trabalho com as vítimas, na minha opinião, porque não adianta a vítima não querer romper o ciclo de violência, é preciso ter essa consciência. (Juiz 8)

(CNJ, 2018a: 153)

Quando perguntamos se o trabalho da equipe influencia no julgamento, as respostas costumaram ser positivas e exaltadoras do trabalho desenvolvido. As mais representativas das falas dos magistrados são as seguintes:

Muito, a gente vive muito, muito junta. É tanto que elas me passam várias leituras... eu vou e converso com elas, discuto com elas, depois a gente vê um caso muito... a gente é muito, muito junta. Por exemplo, chega uma pessoa aqui que eu fico na dúvida, eu peço pra elas ouvirem, para elas me dizerem [...]. Eu converso com elas, entendeu? A gente tem uma interação muito grande. (Juiz 10)

(CNJ, 2018a: 153)

Influencia demais porque elas têm uma, uma visão diferente da minha, sabe? Porque elas vão e enxergam toda a realidade, todo contexto em que aquela família, né? E convive, e as motivações dos crimes, né? Os casos, as hipóteses dos crimes que surgem né? Então, essa equipe nos subsidia com pareceres excelentes, sabe? E ajuda demais na recuperação da autoestima das mulheres, quando elas vão lá nas residências [...] nós temos um veículo aqui, que vive quase que exclusivamente pra essa, essa equipe, entendeu? Pra visitar as mulheres, tanto que quando chega um veículo nosso, com a nossa equipe, na casa de uma vítima dessas, ela já se sente prestigiada. (Juiz 13)

(CNJ, 2018a: 154)

Ah, profundamente, principalmente em matéria de crianças, é muito difícil pra mim decidir afastar um pai de um filho; o filho tem direito de ter a companhia do pai. E até que ponto o problema de relacionamento do casal deve atingir o relacionamento com o filho? Isso é muito difícil de se aferir; então, esse estudo de caso ajuda muito na minha decisão. Nas medidas protetivas... se vem um estudo de caso indicando, mesmo sem prova, mas indicando que a mulher está mal psicologicamente, necessitante de um determinado encaminhamento, necessidade de uma determinada proteção, isso chama atenção e isso me leva a mudar de ideia. (Juiz 24)

(CNJ, 2018a: 153)

A menção ao trabalho das equipes multidisciplinares aparece muito quando a magistratura é indagada sobre questões de gênero no desemprenho de suas funções, pois a maioria não se sente confortável com a temática e alguns mencionam que a equipe multidisciplinar ajuda nessas questões. Um exemplo disso é a questão da aplicabilidade da Lei Maria da Penha às mulheres transgênero13 13 Para maiores detalhes e outros exemplos, vide o Relatório Final da pesquisa (CNJ, 2018). .

4. O que aprendemos escutando as equipes multidisciplinares

Nessa seção, o foco é apresentar as principais reflexões extraídas dos grupos focais realizados com as equipes multidisciplinares. O destaque, pois, será a nossa escuta das/os profissionais, embora, sempre que possível e relevante, cruzaremos seus relatos com dados obtidos em outros momentos da pesquisa, como durante as entrevistas com vítimas e magistrados.

4.1 As atribuições das equipes e a função de “triador” e de produtor de provas

Durante a pesquisa, percebemos diferentes formas de estruturar as equipes. Todas se ocupam dos aspectos introduzidos pela Lei Maria da Penha, mas existem concepções muito diferentes de como o próprio judiciário de cada estado pensa e organiza a equipe multidisciplinar. Como vimos acima, a equipe pode trabalhar de forma específica com um Juizado (ou Vara) de Violência Doméstica, como acontece em Recife, Maceió, João Pessoa, Belém e São Paulo; ou, pode existir uma equipe mais central que atende vários Juizados (ou Varas), como acontece em Brasília ou na situação bem peculiar de Porto Alegre, que tenta fazer parcerias, por exemplo, com as Universidades, para suprir a ausência de uma equipe multidisciplinar que atenda unicamente aos Juizados.

As próprias equipes, assim como a magistratura, têm dificuldades para dimensionar suas atividades. Conforme já mencionado, a equipe multidisciplinar apareceu em destaque nas respostas dos magistrados, porém não encontramos uniformidade quando discorriam sobre as atribuições dessa equipe. Também extraímos essa falta de uniformidade nos relatos das próprias equipes durante os grupos focais realizados. Importante destacarmos, ainda, que as suas atribuições podem variar dentro de uma mesma equipe, a depender do magistrado demandante. Essas situações acontecem quando a mesma equipe atende a mais de um Juizado (ou Vara), como foi visto na maioria das cidades pesquisadas.

Quatro das equipes pesquisadas demonstraram desconforto com a “função de triador” (de triagem dos casos) que elas sentem desempenhar. Para essas equipes, grande parte de seus esforços é para verificar se o conflito é ou não de competência daquele Juizado (ou Vara), como em situações que envolvem idosas, irmãs e adolescentes. Parte das equipes acredita que essa questão de competência seria mais uma questão jurídica do que da equipe psicossocial.

Outras equipes reportaram que, de início, sentiam-se utilizadas para “produzir provas”, na medida em que eram demandadas a estudar casos (de violência doméstica e/ou de estupro de menores) e emitir opiniões a respeito deles14 14 Nem todos os Juizados (ou Varas) pesquisados são competentes para julgar casos de estupro de crianças do gênero feminino. Há cidades em que essa competência é do Juizado (ou Vara) de Violência Doméstica e em outras cidades essa competência é do Juizado (ou Vara) de Proteção da Criança e do Adolescente. . Algumas vezes esses estudos de caso eram solicitados inclusive pelo Ministério Público. Com o tempo, algumas equipes conseguiram se afastar dessa função mais instrumental e passaram a trabalhar mais com as atividades de prevenção, de atendimento e de inclusão das pessoas envolvidas no conflito familiar na rede de assistência.

Aliás, o tempo despendido no processo judicial em si foi uma crítica comum entre todas as equipes pesquisadas. Três equipes relataram expressamente que a dificuldade era, de fato, “sair do processo”. Em uma das equipes, extraímos a seguinte fala, que sintetiza o que foi encontrado em várias outras: “gostaríamos de sair do processo, mas o tempo é consumido pela realização dos pareceres” (CNJ, 2018a: 233).

Um incômodo frequente relatado pelas equipes, portanto, é o fato de não existir uma sistematização sobre os casos em que devem atuar e quais as suas atribuições específicas, pois as atribuições que chegam ao setor tendem a vir por meio de determinação judicial e, pelo que algumas equipes podem sentir, a deliberação é feita de forma aleatória, a depender da vontade do magistrado que está atuando naquele momento.

Mesmo diante desses relatos, vale ressaltar, praticamente todas as equipes realizam várias atividades que vão muito além dos processos judiciais. Com efeito, não obstante a falta de uniformidade entre elas (ou, até, dentro delas), e para além de atenderem a demandas do juiz para fornecer pareceres aos autos, as equipes desenvolvem inúmeros projetos pensando na prevenção da violência doméstica, bem como trabalham no atendimento das vítimas e dos agressores15 15 Sobre as atribuições e projetos realizados por cada equipe de pesquisa conferir o Relatório Final da pesquisa (CNJ, 2018: 212-231). .

4.2 A linguagem jurídica e a “função de tradutor”

Durante a realização dos grupos focais também foi colocado o problema da “linguagem jurídica” e a necessidade de as equipes realizarem “uma tradução da linguagem do jurídico”. Essa questão não estava formulada no roteiro original do grupo focal, mas surgiu espontaneamente nos primeiros grupos focais, tendo sido incorporada no instrumento de coleta de dados da pesquisa desde então e até o final das atividades.

Segundo os profissionais das várias equipes pesquisadas, a “linguagem jurídica16 16 O problema da linguagem jurídica também foi apontado em estudo realizado pelo IPEA: “Essa capacitação também envolve o uso adequado da linguagem, porquanto o “juridiquês”, como é chamado a linguagem jurídica exageradamente rebuscada, vem sendo cada vez mais criticado” (BRASIL, 2015: 96). exige um esforço por parte das equipes para tornar “o mundo jurídico” mais acessível às partes envolvidas. Com efeito, a forma de comunicação dos profissionais da área jurídica apresenta como consequência uma incompreensão da vítima acerca do que está acontecendo. Essa dificuldade nos foi apontada por diversas vezes, como na seguinte fala: “Se a própria equipe tem dificuldade de compreensão, para a vítima é começar o processo sem conseguir decifrar o que está acontecendo” (CNJ, 2018a: 235).

Nesse mesmo sentido, as equipes relataram que as vítimas apresentam uma necessidade enorme de serem ouvidas e de entenderem o que está acontecendo. Por várias vezes, elas chegam ao Juizado (ou Vara) com pouca ou nenhuma informação. Algumas equipes explicam que o atendimento na delegacia é muito precário e a vítima não consegue sequer compreender quais foram as medidas protetivas solicitadas. Essa falta de entendimento segue para o judiciário, e foram vários os relatos por parte das equipes que as mulheres não entendem que estão fazendo parte de um processo criminal. Uma das integrantes de uma das equipes explica que a falta de informação e compreensão é tão grande que a mulher, por vezes, é liberada da audiência e fica aguardando no fórum, pois “as mulheres não conseguem nem entender que a audiência já acabou” (CNJ, 2018a: 235).

Tal-qualmente, em um grupo focal, foi-nos narrado que, por vezes, integrantes da equipe multidisciplinar são demandados para explicar às partes que o procedimento já acabou. Nesse sentido, foi dito: “As vítimas não entendem o que é a audiência e saem de lá sem entender nada do que está acontecendo e nos procuram para que a gente possa traduzir o que aconteceu” (CNJ, 2018a: 236). Em outra equipe, um dos integrantes fez uma reflexão parecida, ponderando que: “A informação é um empoderamento das mulheres e quando o jurídico dificulta essa compreensão, [ele] está evitando a mulher de sair daquele conflito” (CNJ, 2018a: 236).

Nos casos em que a mulher não teve acesso à Defensoria Pública, o relato mais comum foi dessas informações acabarem vindo das equipes multidisciplinares. E confirmando as narrativas dos grupos focais, as vítimas entrevistadas comumente expressaram terem obtido informações sobre o seu processo (ou sobre o procedimento de um modo geral) não na delegacia, nem em audiência com o juiz ou na Defensoria Pública, mas graças ao atendimento prestado pela equipe multidisciplinar.

No confronto dos resultados dos grupos focais com as entrevistas que realizamos com as vítimas, portanto, percebe-se o impacto da “linguagem jurídica” nos processos de revitimização das mulheres, aos quais voltaremos mais adiante17 17 Outra posterior pesquisa financiada pelo CNJ e executada pelo IPEA apontou para achados semelhantes: as mulheres entrevistadas e profissionais da rede de enfrentamento à violência (fora do judiciário) indicaram muitos problemas com a linguagem jurídica, seja nos instrumentos de comunicação e chamatórios ao processo (como as intimações), seja quando as vítimas solicitam informações aos atores jurídicos, aqui entendidos de forma ampla, como oficiais de justiça, estagiários, juízes, promotores, defensores, etc. Em alguns casos, inclusive, chegou a se apontar que, até mesmo em momentos criados para informar as mulheres em situação de violência do procedimento processual, constatou-se a utilização de linguajar próprio do mundo jurídico inacessível às mulheres que participam do ritual (BRASIL, 2019) .

4.3 “Os Doutores”

Um ponto frequentemente indicado pelas equipes multidisciplinares é que os profissionais de formação jurídica têm dificuldade em trabalhar com conceitos como “gênero”, “violência de gênero” e a própria “violência doméstica”. Várias equipes apontaram que falta capacitação para as pessoas da área jurídica, as quais atuam nos Juizados (ou Varas) sem nenhuma formação na área. Segundo a fala do integrante de uma das equipes: “falta na aplicação da lei um alinhamento conceitual, inclusive no que constitui violência” (CNJ, 2018a: 234).

Reverberando o sentimento dessas equipes, durante as entrevistas com os magistrados, apenas 4 (quatro) dos 24 (vinte e quatro) entrevistados declararam possuir algum tipo de formação na área de gênero ou em violência doméstica. As respostas mais próximas a algum tipo de capacitação foram generalistas, como podemos observar abaixo:

Olha, eu não tive nenhum curso em formação de gênero. Eu diria a você que eu sou autodidata. (Juiz 1)

(CNJ, 2018a: 133)

Curso, curso, não. Nós temos eventualmente algumas palestras, feitas por alguns outros doutos juízes ou outras pessoas da área, que a gente até assiste e acompanha, mas curso especificamente, de violência de gênero, eu nunca fiz e nunca participei. (Juiz 15)

(CNJ, 2018a: 133)

A maioria dos entrevistados informou que não foi exigido, por parte do tribunal de origem, nenhuma formação específica para atuar ou continuar atuando em um Juizado (ou Vara) especializado em violência doméstica contra a mulher18 18 Para uma reflexão mais aprofundada extraída das entrevistas com os próprios magistrados, vide Mello, Rosenblatt e Medeiros (2018). .

Muito relacionada a essa ausência de capacitação dos magistrados, também existiram relatos, por parte das equipes, sobre as dificuldades que os profissionais da área jurídica têm na hora do depoimento da vítima. Existe, por vezes, uma ausência de compreensão que a vítima está relatando uma situação de violência e, portanto, está “trabalhando com uma memória traumática” (CNJ, 2018a: 234). E “essa memória não vem de forma ordenada e controlada, é necessário tempo para a mulher ordenar o que aconteceu e esse não é o tempo da audiência” (CNJ, 2018a: 234).

As vítimas estão relatando situações de dor, sofrimento e é muito comum que as audiências ocorram muito tempo depois do fato. Não obstante, existiram narrativas de várias equipes no sentido de que é comum a interrupção das falas das mulheres nas audiências, bem como a reprodução da visão cultural, estereotipada da mulher. Com efeito, em muitos casos, a vítima tem dificuldades no relato, ou, por vezes, se emociona e, em momentos assim, é frequentemente reproduzida a ideia de que ela é descontrolada, exagerada e/ou histérica19 19 Achados semelhantes são apontados nos relatos de campo de Medeiros (2015), quando versa sobre o tratamento dispensado às “Macabéias” na Vara de Violência Doméstica pesquisada. .

Outra dificuldade apontada por algumas equipes diz respeito à troca do magistrado à frente do Juizado (ou Vara). Como a dinâmica de trabalho nesses Juizados (ou Varas) é muito atrelada à forma de demandar do magistrado, a troca de juiz pode alterar toda a estrutura de trabalho dessas equipes, já que não existe uma política institucional, nem sequer na escolha dos magistrados que irão atuar nessa área. Segundo uma das integrantes de uma das equipes pesquisadas: “A justiça é personificada na pessoa do juiz e não tem uma estrutura institucional. Então é muito comum torcermos que venha um juiz tal que tem mais perfil para violência doméstica” (CNJ, 2018a: 234).

Nesse mesmo sentido, algumas equipes criticaram a existência de mutirões, ocasiões em que chegam vários juízes, em sua maioria provindos de varas criminais comuns e que não têm conhecimento das especificidades de uma lesão corporal ou de uma ameaça, por exemplo, praticadas no âmbito da violência doméstica.

A falta de capacitação em gênero e/ou em violência doméstica ajuda a explicar aquela dependência dos magistrados nas equipes multidisciplinares para a identificação das situações em que se deve aplicar a Lei Maria da Penha (que leva à função de “triador” discutida acima). Na verdade, essa ausência de formação pode acarretar muitos prejuízos na individualização dos casos que chegam aos Juizados (ou Varas) de violência doméstica, bem como no tratamento dispensado às partes, principalmente à vítima.

4.4 “As meninas”

Entrevistadora: A senhora entendeu o que se passou na audiência?

Entrevistada: Não.

Entrevistadora: [...] Aí depois conversou com o Defensor pra poder entender?

Entrevistada: Conversei com as meninas...

Entrevistadora: Ah! As meninas da equipe multidisciplinar. Certo. (Vítima_Maceió1)

(CNJ, 2018a: 175).

Um ponto que merece destaque é a qualificação das equipes multidisciplinares. A maioria dos integrantes das equipes, como dissemos, são concursados dos respectivos tribunais de justiça em que estão lotados, e poucos foram os casos em que os membros das equipes eram cedidos por outros órgãos ou tribunais. A maioria dos integrantes chegou ao setor por decisão do tribunal de justiça e, quase sempre, não tinham experiência na temática. Em nenhum grupo existiram relatos de capacitação prévia dos integrantes das equipes, mas praticamente todas as equipes procuraram se capacitar por meio de cursos, pós-graduações (stricto e lato sensu) nas universidades e parcerias com a Secretaria Nacional ou Estadual das Mulheres.

Mesmo com pouco estímulo por parte dos tribunais de justiça, a procura por capacitação nas temáticas relevantes ao desenvolvimento do seu trabalho é enorme. Por exemplo, dentre os integrantes das equipes pesquisadas, percebe-se uma alta titulação, como realização de mestrado e doutorado na área de violência doméstica e/ou de gênero e da justiça restaurativa. Todavia, em praticamente todos os casos, essa qualificação foi fruto de iniciativas individuais, que contaram (ou não) com o apoio da própria equipe e/ou do magistrado. De fato, em quase todas as equipes, encontramos relatos sobre a pouca ou nenhuma política de incentivo à capacitação das/os funcionárias/os das equipes multidisciplinares pelos tribunais de justiça. Em alguns estados, o apoio aparece de forma esporádica através de editais de capacitação, embora em geral de difícil concretização.

Além da busca pessoal por qualificação, em todas as equipes registramos a prática de grupos de estudo, reuniões de avaliação e monitoramento das práticas realizadas e, em alguns casos, tais reuniões abrangem equipes de outros Juizados (ou Varas) e até de outras cidades para efeitos comparativos e aprimoramentos.

É interessante quando confrontamos a titulação e a experiência dos integrantes dessas equipes nas temáticas relevantes à especialização do Juizado (ou Vara) com a magistratura. “As meninas”, como são conhecidas as profissionais da equipe multidisciplinar em algumas cidades pesquisadas, apresentam uma titulação maior do que os “doutores” da área do direito, pelo menos no que diz respeito à magistratura que também foi objeto da pesquisa.

4.5 “O grito do estagiário de Direito”

O relato de um estagiário de psicologia pontua que a indiferença dos profissionais do Direito começa na sua própria formação, e ele contextualiza essa situação com a realização do pregão: “A estagiária do Direito grita o nome da mulher, mesmo quando ela é a única mulher que aguarda no espaço reservado às vítimas” (CNJ, 2018a: 235).

Essa fala é complementada por uma profissional de outra equipe:

[...] nós da psicologia precisamos nos apropriar de certos pontos da lei, mas sinto que existem vários aspectos psicológicos e sociais sobre os quais os juízes precisam se apropriar também. Nós sabemos que não podemos fazer muita coisa se não nos apropriamos da lei, e acredito que os juízes também precisam de outros conhecimentos (CNJ, 2018a: 235).

Novamente percebemos o problema da falta de capacitação dos atores do sistema de justiça criminal, notadamente do profissional de direito. A triangulação de métodos20 20 Entendemos que a triangulação dos métodos e consequente combinação de vários métodos de pesquisa (inclusive com a articulação de técnicas de análise quantitativa e qualitativa) permitiu que um método ajudasse a controlar o outro; em outras palavras, a triangulação de métodos nos ajuda na monitoração dos biases (NOAKS; WINCUP, 2006: 125; GOLDENBERG, 2004: 63-67). realizada na pesquisa nos permitiu enxergar que essa falta de formação para realizar atividades especializadas começa na própria delegacia (“das mulheres”) e segue durante todo o processo penal. Realmente, relatos nesse sentido surgiram em todas as etapas da pesquisa, trazidos não só pela vítima e pelas equipes multidisciplinares, mas também pela própria magistratura (vide MELLO; ROSENBLATT; MEDEIROS, 2018ROSENBLATT, Fernanda Fonseca; MELLO, Marília Montenegro Pessoa; MEDEIROS, Carolina Salazar L’Armée Queiroga de. “Quem são elas e o que elas dizem? Representações das mulheres usuárias dos juizados (ou varas) de violência doméstica em seis capitais brasileiras”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 146, 2018, pp. 329-371.).

4.6 O processo criminal, o processo de revitimização e um novo ciclo de violências

Entrevistadora: Então o primeiro contato foi com a equipe multidisciplinar hoje?

Entrevistada: Isso.

Entrevistadora: E se sentiu satisfeita [com o processo]? Confortável?

Entrevistada: Com eles [equipe multidisciplinar], sim. Agora a questão é que a gente não sabe de prazos, não sabe quando vai vir uma resposta, onde a gente procurar, assim, o andamento desse processo pra saber a resposta... isso aí ninguém informa a você. (Vítima_Recife13)

(CNJ, 2018a: 173)

A problemática da revitimização, sobrevitimização ou vitimização secundária é um fenômeno compreendido pelo “paradoxo da imposição de danos à vítima no próprio processo penal” (ROSENBLATT, 2015bROSENBLATT, Fernanda Fonseca. “Uma Saída Restaurativa ao Processo de Vitimização Secundária”. In: REBELLO FILHO, Wanderley; PIEDADE JÚNIOR, Heitor; KOSOVSKI, Ester (Orgs.). Vitimologia na Contemporaneidade. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015b.: 85)21 21 A respeito das características da vitimização secundária, Rosenblatt (2015b: 87) afirma: “a vítima também sofre ao longo do processo penal, dentre outras razões, porque: é muitas vezes destratada em Delegacias de Polícia; tem sua participação no processo limitada às funções de informante; segue aflita por desconhecer sobre o andamento do “seu” caso, e sobre os seus direitos enquanto vítima; raramente é atendida nas suas expectativas de reparação de danos; dentre outras situações de desprezo vividas pela vítima que, vale lembrar, também é protagonista na ocorrência criminosa”. . Um relato ouvido em vários grupos focais foi que durante o processo criminal a mulher passa por vários momentos de revitimização. Por exemplo, algumas equipes indicaram que a audiência pode ser “um momento muito traumático para a vítima, pois além da dificuldade de compreensão do que significa aquele momento, ela se sente culpada por levar sua família até a justiça criminal” (CNJ, 2018a: 217). Com efeito, uma preocupação comum a todas as equipes pesquisadas diz respeito aos processos de “vitimização secundária” vividos pela mulher ao longo do seu contato com o sistema de justiça criminal. E as equipes frequentemente atribuem esses processos de sobrevitimização à corriqueira reprodução de estereótipos, em vários setores e momentos processuais, que tendem a responsabilizar essa mulher pela manutenção da família. Como colocado por um integrante de equipe multidisciplinar: “O discurso da harmonia familiar, ele também permanece na delegacia, no Judiciário e até em algumas perspectivas clínicas, colocando a mulher como a âncora desse relacionamento” (CNJ, 2018a: 236).

Com relação ao momento da audiência, duas equipes apresentaram os seguintes relatos (CNJ, 2018a: 237):

Nós acompanhamos muitos relatos de audiência em que as mulheres se sentem muito mal durante aquele momento, se sentem invalidadas. Elas saem culpabilizadas, saem chorando e precisamos fazer acolhimento. [...] Perguntas frequentes na audiência são: o que você fez para acontecer essa agressão?

Chegamos aqui com a ideia que vamos fazer um trabalho com a violência doméstica que foi sofrida e de repente nos deparamos que as mulheres depois da audiência estão tão sofridas pela violência que ela passou na audiência, pois as mulheres são ouvidas inadequadamente e isso é muito frustrante.

A demora no processo criminal também foi apontada, pela maioria das equipes, como uma forma de revitimização, pois a vítima precisa retomar uma situação que ela gostaria de esquecer. Nesse sentido, um membro de equipe disciplinar nos alertou para a necessidade de se reconhecer a “demora do processo e a dificuldade dessa vítima, que já sofreu tantas violências, em ter que falar de uma violência que sofreu três ou quatro anos antes”. De fato, existem situações em que a demora da resposta é tanta que a vítima já conseguiu resolver seu problema de outra forma e o processo se torna um fardo (CNJ, 2018a: 237).

Dessa forma, todas essas percepções das equipes multidisciplinares estão de acordo com o que escutamos das próprias vítimas entrevistadas22 22 Para uma abordagem mais detalhada sobre os processos de revitimização vividos pelas vítimas, sob a perspectiva delas mesmas, vide Rosenblatt, Mello e Medeiros (2018). .

4.7 A delegacia como “porta de entrada”, a prisão como ameaça e as diferentes demandas apresentadas pelas vítimas

Na maioria dos grupos focais, as equipes apontaram que, para ter acesso à rede, a mulher precisa passar pela delegacia, pois “a delegacia continua sendo a porta de acesso aos serviços de apoio à mulher” (CNJ, 2018a: 236). Com efeito, embora todas as equipes pesquisadas reconheçam que a violência doméstica acontece em todos os níveis sociais, elas afirmam que são as mulheres com baixa renda as que mais procuram a delegacia, pois geralmente, para elas, “essa é a única porta oferecida [pelo Estado] como forma de resolução dos seus conflitos domésticos” (CNJ, 2018a: 236). Nesse mesmo sentido, uma das equipes fez a seguinte afirmação: “A maioria das mulheres que chega à equipe multidisciplinar tem raça e classe determinadas”, embora essa equipe também tenha destacado que o problema da violência doméstica perpassa por todas as classes sociais e reforçado que só pode falar das mulheres que chegam ao setor multidisciplinar e não ao Juizado (ou Vara) (CNJ, 2018a: 236).

Esse diagnóstico por parte das equipes sobre o perfil socioeconômico das mulheres vítimas de violência doméstica que buscam o sistema de justiça criminal e trafegam nos Juizados (ou Varas) pôde ser confirmado na etapa quantitativa da pesquisa (ROSENBLATT; MELLO; MEDEIROS, 2018ROSENBLATT, Fernanda Fonseca; MELLO, Marília Montenegro Pessoa; MEDEIROS, Carolina Salazar L’Armée Queiroga de. “Quem são elas e o que elas dizem? Representações das mulheres usuárias dos juizados (ou varas) de violência doméstica em seis capitais brasileiras”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 146, 2018, pp. 329-371.). Realmente, o acesso à rede de assistência, ou simplesmente, a uma separação do companheiro, é um problema das mulheres de baixa renda, pois na maioria das cidades pesquisadas continua sendo mais fácil acessar as delegacias do que as defensorias públicas. As mulheres que se encontram em situação de violência, quando procuram algum auxílio, é porque necessitam urgentemente de algum meio que possa fazer cessá-la de imediato. Aquelas mais independentes e que possuem recursos financeiros, têm a possibilidade de sair de casa e procurar ajuda em outras instâncias, que não a penal, ao lado de psicólogos, grupos de apoio, hospitais particulares ou, até mesmo, o auxílio de outros familiares (MELLO, 2015: 232). “Para as mulheres pertencentes às parcelas mais carentes da sociedade e dependentes financeiramente do companheiro, entretanto, o Estado só disponibiliza o aparato policial, totalmente despreparado para acudi-las” (MEDEIROS, 2015: 56).

No que se refere especificamente às demandas apresentadas pelas vítimas durante os atendimentos, as equipes destacaram a vontade da mulher de interromper o processo penal. Na opinião de várias equipes, são muitas as vítimas que não desejam o processo penal pelo fato de o autor da violência fazer parte de sua família, e, na maioria dos casos, ser pai dos seus filhos. Algumas equipes compartilharam como corriqueira a seguinte fala por parte das vítimas atendidas: “Eu não quero prejudicar ele, pois ele é um bom pai” (CNJ, 2018a: 238). O registro da ocorrência na delegacia, defendem essas equipes, está mais relacionado à busca da mulher por “proteção” e à expectativa de impor “limites” ao agressor - e as medidas protetivas comumente cumprem esse papel. Quer dizer, segundo testemunho das equipes, para um grupo marcante de vítimas atendidas, as medidas protetivas são sentidas como suficientes e satisfatórias às suas necessidades.

Na verdade, todas as equipes destacaram a importância da medida protetiva como principal instrumento introduzido pela lei. Uma das equipes afirmou que a medida protetiva “é um instrumento de responsabilização para o agressor e um empoderamento à vítima” (CNJ, 2018a: 239). Para outra equipe, a medida protetiva poderia resolver a maioria dos conflitos sem a necessidade sequer do processo criminal, pois é comum que a medida protetiva já tenha interrompido o ciclo da violência, “então esse processo chega e coloca todos, e não só o autor da violência, em um processo de culpabilização” (CNJ, 2018a: 238).

A “paz” também foi uma resposta recorrente das equipes quando perguntadas sobre o que as vítimas desejam quando procuram a delegacia e, por via de consequência, chegam ao Juizado (ou Vara) de Violência Doméstica. Nas palavras de um integrante: “elas querem paz” (CNJ, 2018a: 238). Essa busca por paz, explicou-se nos grupos focais, desemboca numa expectativa por parte da vítima de que haja mudança no comportamento do autor da violência, o que não necessariamente implica na necessidade de sua prisão. Nesse sentido, segundo o integrante de uma das equipes, “a prisão é uma exceção nos meus atendimentos, a maioria das mulheres deseja a paz”. O que foi corroborado pelos seus colegas (CNJ, 2018a: 238).

De fato, quando a temática foi a pena privativa de liberdade, as equipes afirmaram que as vítimas, em sua maioria, não desejam a prisão (provisória ou definitiva) do agressor. Para a maioria das equipes, uma grande parte das vítimas atribui principalmente ao álcool e às drogas ilícitas o desencadeamento dos conflitos domésticos e, nessas hipóteses, quando não estão buscando medidas protetivas, a principal demanda é pelo tratamento do autor da violência para que o mesmo deixe de usar essas substâncias, mas não pela sua punição. Nessa mesma linha, outra equipe compartilhou o entendimento de que a prisão não deve ser aplicada na maioria das situações que chegam ao seu conhecimento, pois pode piorar a situação da vítima. Um dos integrantes lembrou: “um dia ele vai ser solto”. Por compreender que a passagem do agressor pelo sistema prisional pode gerar muitas consequências à vítima e à sua família, essa mesma equipe entende que outras modalidades de pena podem responsabilizar o homem e, ao mesmo tempo, ser menos traumática para a família (CNJ, 2018a: 238).

A ideia de usar a prisão como ameaça surgiu em alguns momentos. Para uma parte dos integrantes das equipes, a pena privativa de liberdade é necessária, “pois estamos vendo o aumento dos casos de feminicídio”, ou ainda, “a ‘ameaça’ da prisão ainda é muito importante para interromper o ciclo da violência e também para a ‘mudança’ de comportamento do homem agressor” (CNJ, 2018a: 238). Mesmo para esses, são poucos os casos em que as vítimas, elas mesmas, demandam a pena privativa de liberdade.

As impressões das equipes sobre o que buscam as vítimas dialogam diretamente com as respostas que recebemos das próprias vítimas nas entrevistas que realizamos com elas (ROSENBLATT; MELLO; SALAZAR, 2018ROSENBLATT, Fernanda Fonseca; MELLO, Marília Montenegro Pessoa; MEDEIROS, Carolina Salazar L’Armée Queiroga de. “Quem são elas e o que elas dizem? Representações das mulheres usuárias dos juizados (ou varas) de violência doméstica em seis capitais brasileiras”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 146, 2018, pp. 329-371.).

4.8 Grupos reflexivos para “homens criminosos”

A maioria das equipes pesquisadas trabalha com grupos reflexivos para homens, e aquelas que ainda não trabalham estavam, ao tempo da pesquisa, elaborando projetos para começar a desenvolver essa atividade. As equipes, de uma maneira geral, entendem a importância desse espaço de fala para os homens. Segundo elas, nos grupos reflexivos, ocorrem vários desabafos por parte deles “no sentido de se sentirem injustiçados pelas medidas aplicadas” e/ou por não terem “espaço de fala, nem na delegacia, nem no Judiciário” (CNJ, 2018a: 240). Segundo uma das equipes, “os homens sentem muita necessidade de falar, pois eles constantemente se vitimizam afirmando que não existe lugar para eles no processo”.

Os relatos das equipes sobre as falas dos homens foram muito parecidos, em todas as cidades, de norte a sul: “não existe espaço para nossa fala”; “somos vítimas de uma lei”; “precisamos agora da lei João Maria”; “cadê a Lei Mário da Penha?”; “agora as mulheres querem nos ver de saia”; entre tantas outras falas, que demonstram a falta de percepção da violência produzida por eles. De fato, um sentimento comum entre as equipes é de que grande parte dos homens ainda não consegue entender que os seus atos são criminosos.

Ocorre que muitos dos homens que frequentam os grupos reflexivos, independentemente da classe social a que pertençam, nunca estiveram em uma delegacia antes. Muitas vezes, eles ainda convivem com a vítima depois de vários episódios de agressão. Se entendem “trabalhadores honestos”, “pais de família”, “cumpridores dos seus deveres”. Quase todos são primários para o sistema penal, pois nunca foram condenados com trânsito em julgado por um crime ou contravenção, mesmo que não tenha sido a primeira vez que a vítima foi agredida moral ou fisicamente por eles. As violências narradas nos Juizados (ou Varas) de Violência Doméstica, para além de condutas típicas, fazem parte do dia a dia das pessoas e podem até gerar certa familiaridade entre os agentes do Sistema de Justiça Criminal, independentemente do gênero e da classe social. O fato de encontrarmos no réu um “pai de família” ou “um trabalhador” torna difícil encontrar nesse homem a condição de criminoso e, consequentemente, torna ilegítima, quase que automaticamente, a condição da vítima (VALENÇA; MELLO, 2020: 1243).

Para tornar o lugar de vítima legítimo, parece necessário que, durante o processo, o homem passe da condição de “pai de família”, de “trabalhador” à de “bandido”. Para tanto, o Ministério Público e o Judiciário demandam que a mulher colabore no processo de desumanização do seu companheiro ou ex-companheiro, que na maioria dos casos é também o pai dos seus filhos. Quando esse processo não acontece, parece que o homem passa a ocupar o lugar de vítima e a mulher passa a ser a algoz, que levou “o pai de seus filhos” para a delegacia. Todas essas particularidades demandam uma atenção especial nos casos de violência doméstica para minorar os processos de revitimização da mulher.

Em pesquisa sobre as audiências de custódia realizada na cidade do Recife, encontrou-se a realização de “sermões” por parte da magistratura quando os juízes se deparavam com casos de violência doméstica:

[...] se acabou, por que o senhor ainda está nessa? É a segunda vez que ela foi na delegacia. Eu tô pensando em prender o senhor, então pare. Eu já prendi um rico, de posse, com advogado... Vai virar bandido a pulso, é isso que o senhor quer? Então pare. Se tiver chance, vai ficar com a tornozeleira eletrônica... E acabou, acabou. Deixa ela em paz. Não tem mais isso de porque ela é mulher, e você, homem. Ninguém manda em ninguém. Tem isso mais não. Ali onde você dormiu são as flores, cinco estrelas (VALENÇA; MELLO, 2020: 1266).

O “Vai virar bandido a pulso” sugere que o problema não é apenas de auto percepção, mas também de como o Sistema de Justiça Criminal percebe o réu da violência doméstica. Segundo as pesquisadoras:

A agressão, a ameaça, a “surra” são condenáveis, sem dúvidas, mas ainda não constituem “coisa de bandido”. Suspeitamos que um “traficante” reúne socialmente estereótipos muito mais negativos que um “agressor de mulher”, não raramente visto como alguém que escorregou, mas que não é propriamente um criminoso (VALENÇA; MELLO, 2020: 1266).

Os grupos reflexivos, portanto, são vistos pelas equipes multidisciplinares, de um modo geral, como uma oportunidade de educar esse homem sobre a natureza criminosa de suas ações, como na seguinte fala:

Eu fico ambivalente com relação ao aprisionamento, pois é necessário trabalhar a questão cultural, pois existem muitos relatos dos homens que não acreditam que o que eles fizeram era violência, até que chegaram na delegacia e no Judiciário e começaram a entender que o que estavam fazendo era errado (CNJ, 2018a: 238).

Da mesma fala podemos extrair outro dado: ainda que os grupos reflexivos tentem quebrar a lógica de uma resposta violenta nos casos que envolvem violência doméstica, existe resistência por parte de algumas equipes de afastar a pena, inclusive a privativa de liberdade, nos casos levados aos Juizados (ou Varas) de Violência Doméstica. Isso, na prática, significa que os grupos reflexivos ocorrem em paralelo ao processo e/ou são adicionados à punição. No máximo, a consequência da participação desses homens no grupo pode acarretar, em caso de condenação, que esse homem tenha uma atenuação na pena.

5. Sobre a possibilidade de pensar em outros caminhos

A pesquisa no qual se baseia o presente artigo aconteceu em meio a um movimento do CNJ - ainda em curso - de estímulo à chamada “Justiça Restaurativa”. À época da pesquisa, o CNJ já havia expedido duas Resoluções de incentivo a práticas de Justiça Restaurativa - a Resolução n. 125/2010 (que prevê a introdução das práticas de Justiça Restaurativa no sistema de justiça brasileiro) e a Resolução n. 225/2016 (que cria a “Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário”). Outro sintoma desse interesse do CNJ foi o fato de o seu Departamento de Pesquisas Judiciárias incluir chamada para duas pesquisas na área restaurativa no edital da 2ª Edição da Série “Justiça Pesquisa”23 23 De fato, além da pesquisa coordenada pelas autoras do presente artigo, foi realizada outra no mesmo período, de mapeamento de práticas de justiça restaurativa no Judiciário nacional, essa coordenada pela professora Vera Regina Pereira de Andrade (CNJ, 2018b). . Além disso, logo depois de findada a pesquisa, embora ainda não dialogando diretamente com os resultados da mesma, o CNJ manifestou apoio ao uso de práticas de Justiça Restaurativa especificamente em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, emitindo recomendação aos Tribunais de Justiça por meio da “Carta da XI Jornada da Lei Maria da Penha”, resultante de jornada de mesmo nome, realizada em Salvador (BA), em agosto de 2017.

O apoio do CNJ à Justiça Restaurativa (ainda presente24 24 Sobre esse interesse corrente e (talvez) crescente do CNJ na Justiça Restaurativa, vide as Considerações Finais do presente artigo. ) não surpreende diante dos benefícios desse paradigma de justiça, já experimentados em outros países, amplamente relatados na literatura e reconhecidos pela própria Organização das Nações Unidas (ONU)25 25 Vide, por exemplo, o Manual da ONU sobre Programas de Justiça Restaurativa (UNODC, 2020). . Com efeito, já são muitos os estudos empíricos, mundo afora, sugerindo que: o índice de satisfação das vítimas que participam de encontros restaurativos é alto e tem sido consistente em todos as localidades, culturas e independentemente da gravidade do crime; os processos restaurativos criam espaços reais para a vítima falar e ser ouvida dentro do processo de resolução do “seu” próprio conflito, levando a vítima a experimentar, mais facilmente, o sentimento de “justiça procedimental”; o diálogo com “seu” infrator permite que vítimas tenham respondidas perguntas que lhes são importantes, inclusive na tentativa de “passar a página”; por tudo isso, as vítimas tendem a se sentir empoderadas ao longo e em decorrência do processo restaurativo; a lógica menos formal e dialogal de resolução de conflitos tende a criar um ambiente propício e seguro para se discutir conflitos subjacentes ao delito, às vezes mais importantes para as partes do que o próprio crime reportado à polícia; ao invés de receber passivamente uma punição, o infrator é chamado a assumir as consequências de suas ações através da reparação dos danos provocados à vítima; e, não obstante as dificuldades metodológicas para afirmar isto, até algum impacto nos índices de reincidência tem sido reportado na literatura a partir de pesquisas empíricas de avaliação de programas de justiça restaurativa.26 26 Para uma explicação acerca desses possíveis benefícios, inclusive com referência a estudos que chegaram a tais resultados, vide Rosenblatt (2015a). Para uma lista tentativa dos possíveis benefícios e também riscos do uso de práticas de Justiça Restaurativa no específico caso da violência doméstica, vide CNJ (2018a).

Considerando esse movimento do CNJ, incluímos o tema restaurativo em todos os instrumentos de coleta de dados qualitativos da pesquisa. Isto é, perguntamos sobre Justiça Restaurativa aos juízes e às vítimas entrevistadas, bem como por ocasião dos grupos focais realizados27 27 As reflexões completas a respeito do tema podem ser encontradas no Relatório Final da pesquisa (CNJ, 2018a). Para uma versão resumida sobre as falas e impressões de juízes e vítimas a respeito, vide, respectivamente, Mello, Rosenblatt e Medeiros (2018) e Rosenblatt, Mello e Medeiros (2018). .

Nos grupos focais, quando a temática foi Justiça Restaurativa, ficou claro que esse não é um assunto confortável para a maioria das equipes. Em algumas equipes foram encontrados integrantes que realizaram cursos, especializações, e até mestrado e doutorado na temática. Porém, também foram encontrados integrantes que tinham apenas uma pequena noção conceitual, que não os preveniu, por exemplo, de associar a Justiça Restaurativa à “conciliação” ou “às drogas” (nesse último caso, a confusão pareceu ser em relação aos limites entre as Justiças Restaurativa e Terapêutica28 28 Acerca dos limites entre essas “justiças”, vide Achutti (2009). ). Existiram outros integrantes, mas nesse caso muito pouco representativos, que não sabiam atribuir qualquer significado à Justiça Restaurativa. Duas das equipes afirmaram que o assunto justiça restaurativa nunca tinha sido pauta da equipe. Uma das integrantes afirmou: “justiça restaurativa ainda não chegou por aqui” (CNJ, 2018a: 244). Embora essas duas equipes nunca tenham discutido sobre a temática em grupo, alguns de seus integrantes afirmaram ter alguma leitura sobre o assunto.

Se existe divergência quando o assunto é Justiça Restaurativa, a polêmica é ainda maior quando se associam Justiça Restaurativa e Violência Doméstica. Para alguns integrantes das equipes, seria “impossível aplicar justiça restaurativa em situações de violência doméstica” (CNJ, 2018a: 243). Outros apontaram que não conseguem compreender a aplicação da Justiça Restaurativa nos casos de violência doméstica por conta da proximidade entre as partes.

Outro tema polêmico que surgiu em um dos grupos focais foi a chamada “Constelação Familiar”. Existiu uma grande divergência entre essa equipe, não apenas sobre a possibilidade desse método ser considerado Justiça Restaurativa, como também se a “Constelação Familiar” é reconhecida pela psicologia como uma prática terapêutica.

Apenas duas equipes mencionaram aplicar Justiça Restaurativa em casos bem específicos de violência doméstica. Nessas hipóteses, os casos são selecionados pelo juiz e, geralmente, versam sobre situações que envolvam mãe e filho ou filha e pai. Nesses poucos casos, foi utilizada a metodologia de círculos, com a realização de pré-círculos, círculos e pós-círculos. As duas equipes entenderam que o resultado foi positivo embora, em todos os casos, não existiu nenhuma influência no processo criminal que continuou tramitando normalmente.

Uma dessas equipes que disse aplicar a Justiça Restaurativa, nessas situações bem pontuais, expressou que não entende os grupos reflexivos como Justiça Restaurativa, mas sim práticas restaurativas, muito embora a mesma equipe (na verdade, a maioria das equipes) não conseguiu fazer a distinção entre Justiça Restaurativa e práticas restaurativas. Chocando com esse entendimento, outra equipe disse acreditar que, dentre as atividades realizadas no Juizado (ou Vara), as que mais se aproximariam de uma prática restaurativa seriam os grupos reflexivos realizados tanto com as mulheres, quanto com os homens.

De um modo geral, os integrantes das equipes multidisciplinares consideram não ter capacitação para trabalhar com a Justiça Restaurativa e demonstram um grande receio que essas práticas sejam impostas “de cima para baixo”, sem preparo das pessoas que vão aplicar. Em algumas equipes foram encontradas falas preocupadas, como esta: “a justiça restaurativa está vindo de cima para baixo, como uma imposição do Tribunal” (CNJ, 2018a: 243). De fato, a maioria das equipes apontaram uma preocupação de que a Justiça Restaurativa seja uma imposição por parte do CNJ, sem capacitação dos atores e sem a análise de em quais situações ela realmente pode ser aplicada. Temendo os caminhos que essa possível “imposição” pode tomar, um outro integrante concluiu ser a Justiça Restaurativa “mais um modismo” (CNJ, 2018a: 243).

6. Considerações finais

O tratamento desrespeitoso à mulher vítima de violência doméstica é tema no país pelo menos desde a criação das delegacias especializadas na década de oitenta. Mas se a história nos ensina, e ela o faz, a criação de um lugar com placa de “especializado” não é suficiente para atender às necessidades das vítimas de crime nem para humanizar a administração de conflitos tão complexos porque tão relacionais quanto a violência doméstica, ainda mais quando essa está entrelaçada à violência de gênero. Para que um lugar especializado realmente o seja, são necessários os “especialistas”. O que a nossa pesquisa sugere, entretanto, e por diversos ângulos29 29 Isso é, do ponto de vista dos próprios magistrados, das vítimas e das equipes multidisciplinares (CNJ, 2018a; MELLO, ROSENBLATT e MEDEIROS, 2018; ROSENBLATT, MELLO e MEDEIROS, 2018). , é a falta de capacitação dos atores do sistema de justiça criminal, nomeadamente daqueles de formação jurídica, para lidar com as idiossincrasias de um Juizado (ou Vara) onde vítima e réu, muitas vezes, não estão (e/ou não se veem) em polos diametralmente opostos - ou, simplesmente, onde os casos não conseguem se encaixar nos recortes dicotômicos da realidade, convencionalmente feitos pelo processo penal.

A aposta da Lei Maria da Penha nas equipes multidisciplinares nos parece acertada, dentre outras razões mais óbvias, porque é principalmente a presença desses profissionais de fora do “mundo jurídico” que, hoje, mais de uma década depois, garante algum grau de especialidade aos Juizados (ou Varas). Com esse tempo de experiência, o óbvio seria encontramos um lugar (ainda mais) especializado (do que em sua origem). O que os dados empíricos indicam, entretanto, é que, dentro daqueles espaços tentativamente multidisciplinares, existe um “mundo jurídico” irradiante. Irradiante porque, mesmo depois de tantos anos, é muitas vezes incapaz de absorver a multidisciplinariedade do qual seria apenas uma parte. E irradiante porque invasivo, impondo suas lógicas, linguagens e conceitos enquanto se fecha aos ensinamentos que vêm “de fora” - “essas questões de gênero”, ouvimos de magistrados, “são de responsabilidade das equipes multidisciplinares”.

Com efeito, o testemunho de algumas equipes foi no sentido de (por vezes) se sentirem decidindo sobre competência jurisdicional e/ou dedicando mais tempo ao processo penal formal às expensas de mais tempo de qualidade no atendimento às partes ou, por exemplo, na criação e implementação de programas de acolhimento e/ou acompanhamento dessas pessoas. Isso nos diz muito sobre como esse “mundo jurídico” é capaz de invadir outros “mundos” enquanto mantém as suas próprias fronteiras lacradas. De fato, os Juizados (ou Varas) pesquisados funcionam ainda muito amarrados à lógica, não apenas retributiva-punitiva, mas também generalista. A sugestão empírica é de que os Juizados (ou Varas) de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher ainda não se especializaram em temáticas próprias do trabalho que ali precisa ser realizado, à exceção dos esforços mais evidentes de membros das equipes multidisciplinares. E, se é verdade que as equipes pesquisadas tenham buscado se especializar, também é verdade que essa busca ainda é muito dependente do esforço pessoal de cada um e tem pouco (ou nada) a ver com realizações institucionais conscientes da imprescindibilidade desse caminho.

A falta de capacitação para trabalhar com complexas questões de gênero, por um lado, é evidenciada na manutenção de estereotipagens (seja sobre quem é um “verdadeiro bandido” ou uma “vítima merecedora” de escuta e atenção) e, por outro lado, evidencia um outro problema, igualmente complexo: os engessamentos próprios da nossa cultura jurídica, entendida da forma mais abrangente possível, de modo a também incluir a nossa educação jurídica. Com efeito, a “linguagem jurídica” e o “grito do estagiário do direito” nos sinalizam um grave problema na formação das pessoas da área jurídica, problema que não pode ser tratado como adendo em projetos de reforma, mas sobre o qual precisamos refletir e agir.

Como dito, o movimento do CNJ, ainda hoje, continua sendo de promoção do uso de práticas de justiça restaurativa, inclusive na seara da violência doméstica. Por exemplo, no final de 2019, o CNJ aprovou o chamado “Planejamento da Política Pública Nacional de Justiça Restaurativa”30 30 As versões completa e resumida do referido planejamento podem ser encontradas no sítio eletrônico do CNJ, em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/justica-restaurativa/planejamento-da-politica-publica-nacional-de-justica-restaurativa/. Acesso em: 16 dez. 2020. , etapa importante do que vem sendo chamado de “segundo movimento” ou “segunda onda” do CNJ no âmbito da Justiça Restaurativa. A “primeira onda” corresponde aos esforços empreendidos até a aprovação, em 2016, da Resolução CNJ n. 225 - quer dizer, ao trabalho de construção e promulgação de um marco normativo para uma tal política pública voltada à absorção da Justiça Restaurativa pelo Poder Judiciário. Por seu turno, a “segunda onda” começou com a inauguração dos trabalhos do Comitê Gestor da Justiça Restaurativa do CNJ (previsto na mencionada Resolução) no sentido de concretização dessa política.

Muito embora o documento que apresenta o “Planejamento da Política Pública Nacional de Justiça Restaurativa” não faça qualquer referência a pesquisas anteriormente realizadas, nem sequer a pesquisas financiadas pelo próprio CNJ, os autores da proposta parecem bem informados sobre a sensação generalizada dos atores do sistema de justiça de que o movimento do CNJ de promoção da Justiça Restaurativa estava ocorrendo de “cima para baixo”31 31 Esse dado não apareceu apenas na pesquisa coordenada pelas autoras do presente artigo, mas também naquela outra, de mapeamento do movimento restaurativo nacional no âmbito do Poder Judiciário (CNJ, 2018b). . De fato, em várias passagens do documento, é feita a ressalva de que o planejamento não objetiva impor “de cima para baixo” a adoção de certas práticas ou de determinadas estruturas organizacionais ou de um único projeto pedagógico de formação em Justiça Restaurativa.

O documento também repete diversas vezes a intenção do CNJ de desenvolver a Justiça Restaurativa coletivamente, em diálogo com os mais diversos setores da sociedade civil, com outras instituições públicas e privadas, inclusive com universidades, para que a implementação e o funcionamento de programas de Justiça Restaurativa “seja resultado de uma construção coletiva comunitária”32 32 As transcrições aspeadas foram retiradas da versão completa do referido planejamento, que pode ser encontrado no endereço eletrônico informado na nota de rodapé n. 30, mas o documento não possui número de páginas, daí por que a falta de menção a elas. . Apesar dessa promessa, até agora, os grupos de trabalho formados para a preparação de minutas de resoluções e do próprio documento de planejamento, bem como o evento realizado para a aprovação desse documento33 33 No I Seminário sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa do CNJ, realizado em Brasília, nos dias 17 e 18 de junho de 2019. , todos esses momentos-chave do movimento restaurativo nacional parecem ter contado com a participação exclusiva de juízes. De fato, aparentemente, o movimento preferido permanece sendo de dentro (do Judiciário) para fora:

[...] os Tribunais e Juízes, para além de desenvolverem a Justiça Restaurativa na ambiência do próprio Judiciário, trabalhando os conflitos judicializados por meio de práticas restaurativas, também exercem um importante papel de disseminação dos valores e princípios restaurativos às demais instituições e à sociedade como um todo. (sem destaque no original)

O destacado não é um problema em si. Queremos chamar atenção, tão-somente, para os riscos de uma cultura jurídica corrente - que precisa ser desafiada - de criação de “mundos jurídicos irradiantes” dentro de ambientes que precisam ser investidos, verdadeiramente, dos caráteres “interinstitucional” e “interdisciplinar” (previstos no art. 3º da Resolução CNJ 225/2016).

A importância de capacitação, treinamento e atualização permanente do magistrado e de outros servidores nas técnicas e métodos próprios da Justiça Restaurativa também é uma preocupação evidenciada em diversas páginas do documento de planejamento. Mas, assim como a promessa de trabalhar coletivamente, num movimento de mão dupla (de dentro pra fora e de fora pra dentro), esse compromisso com a capacitação precisa sair do papel. Além do olhar para o futuro, portanto, é necessário um olhar para o passado, um olhar crítico que traga explicações sobre o porquê, por exemplo, de os Juizados (ou Varas) de Violência Doméstica, dez anos depois, não serem lugares (ainda mais) especializados - ou o serem, em algum medida, mais notadamente graças aos esforços individuais de profissionais de formação não-jurídica. Finalmente, portanto, é necessário um olhar crítico para o presente da nossa cultura jurídica e da nossa educação jurídica. Se esses olhares forem eclipsados pelo olhar para o futuro, arriscaremos transformar boas intenções e muito trabalho para concretizá-las em mais uma excelente ideia de reforma que não será verdadeiramente experimentada pela clientela do Sistema de Justiça Criminal.

Referências bibliográficas

  • ACHUTTI, Daniel. “Modelos contemporâneos de justiça criminal: justiça terapêutica, instantânea, restaurativa”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
  • ARKSEY, Hilary; KNIGHT, Peter Interviewing for Social Scientists. London: SAGE, 1999.
  • BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ); Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). “Relatório: o poder judiciário no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres” (2019). Disponível em http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/9530 Acesso em 13 dez. 2020.
    » http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/9530
  • BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “Entre práticas retributivas e restaurativas: a Lei Maria da Penha e os avanços e desafios do Poder Judiciário (Relatório Final)”. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/69f98306e01d7a679720c82bf016b8ea.pdf Acesso em: 10 nov. 2020a.
    » https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/69f98306e01d7a679720c82bf016b8ea.pdf
  • BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria de Assuntos Legislativos. “Violências contra a mulher e as práticas institucionais”. Brasília: Ministério da Justiça (Secretaria de Assuntos Legislativos), 2015.
  • CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Entre Práticas Retributivas e Restaurativas: a Lei Maria da Penha e os avanços e desafios do Poder Judiciário. Relatório Final de Pesquisa, 2018a. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-pesquisa Acesso: 12/03/2020.
    » http://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-pesquisa
  • CNJ (Conselho Nacional de Justiça). “Pilotando a Justiça Restaurativa: o papel do Poder Judiciário”. Relatório Final de Pesquisa, 2018b. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/722e01ef1ce422f00e726fbbee709398.pdf Acesso em 14 Dec. 2020.
    » https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/722e01ef1ce422f00e726fbbee709398.pdf
  • GOLDENBERG, Mirian. “A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em ciências sociais”. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.
  • KVALE, Steinar. InterViews: An Introduction to Qualitative Research Interviewing. London: SAGE, 1996.
  • KATO, Shelma Lombardi de. “Da equipe multidisciplinar - artigos 29 a 32”. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
  • MEDEIROS, Carolina Salazar L’armée Queiroga de. Reflexões sobre o punitivismo da lei “Maria da Penha” com base em pesquisa empírica numa vara de violência doméstica e familiar contra a mulher do Recife. Dissertação de Mestrado. Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2015.
  • MEDRADO, Benedito e MÉLLO, Ricardo Pimentel. “Posicionamentos críticos e éticos sobre a violência contra mulheres”. Psicologia & Sociedade, 20, 78-86, 2008.
  • MELLO, Marília Montenegro Pessoa; ROSENBLATT, Fernanda Fonseca; MEDEIROS, Carolina Salazar L’Armée Queiroga de. “O que pensam as juízas e os juízes sobre a aplicação da Lei Maria da Penha: um princípio de diálogo com a magistratura de sete capitais brasileiras”. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 8, 2018, pp. 422-448. DOI: https://doi.org/10.5102/rbpp.v8i1.5147
    » https://doi.org/10.5102/rbpp.v8i1.5147
  • MELLO, Marilia Montenegro Pessoa de. A Lei Maria da Penha: uma análise criminológico-crítica. Rio de Janeiro: Revan, 2015.
  • NOAKS, Lesley; WINCUP, Emma. Criminological Research: Understanding Qualitative Methods. London: SAGE, 2004.
  • PASINATO, Wânia. “Acesso à justiça e violência doméstica e familiar contra as mulheres: as percepções dos operadores jurídicos e os limites para a aplicação da Lei Maria da Penha”. Rev. direito GV, São Paulo, v. 11, n. 2, pp. 407-428, Dec. 2015.
  • ROSENBLATT, Fernanda Fonseca. The Role of Community in Restorative Justice. New York: Routledge, 2015a.
  • ROSENBLATT, Fernanda Fonseca. “Uma Saída Restaurativa ao Processo de Vitimização Secundária”. In: REBELLO FILHO, Wanderley; PIEDADE JÚNIOR, Heitor; KOSOVSKI, Ester (Orgs.). Vitimologia na Contemporaneidade. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015b.
  • ROSENBLATT, Fernanda Fonseca; MELLO, Marília Montenegro Pessoa; MEDEIROS, Carolina Salazar L’Armée Queiroga de. “Quem são elas e o que elas dizem? Representações das mulheres usuárias dos juizados (ou varas) de violência doméstica em seis capitais brasileiras”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 146, 2018, pp. 329-371.
  • SOARES, Bárbara Musumeci. “A ‘conflitualidade’ conjugal e o paradigma da violência contra a mulher”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 5, n. 2, p. 191-210, abr./jun. 2012.
  • UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime). “Handbook on Restorative Justice Programmes”. 2. ed. UNODC: Viena, 2020.
  • VALENCA, Manuela Abath; MELLO, Marilia Montenegro Pessoa de. “Pancada de amor não dói”: a audiência de custódia e a visibilidade invertida da vítima nos casos de violência doméstica. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro , v. 11, n. 2, pp. 1238-1274, Apr. 2020. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2179-89662020000201238&lng=en&nrm=iso>. access on 12 Dec. 2020. Epub June 08, 2020. http://dx.doi.org/10.1590/2179-8966/2020/50471.
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2179-89662020000201238&lng=en&nrm=iso
  • 1
    Optamos por apresentar a pesquisa de campo e seus resultados na primeira pessoa considerando o papel tão direto e íntimo que tem o pesquisador, tanto na coleta como na análise de dados (ROSENBLATT, 2015a).
  • 2
    O referido projeto foi contemplado na 2ª Edição da Série “Justiça Pesquisa”, do Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ), em 2016, tendo sido financiando, portanto, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). As autoras declaram não haver conflito de interesses que comprometa a cientificidade do trabalho apresentado.
  • 3
    Reconhecemos a maior pertinência da expressão “mulheres em situação de violência”, por acreditarmos que ela remete à possibilidade de modificação da realidade sociocultural da violência doméstica e familiar contra a mulher (PASINATO, 2015) e, também, por entendermos que a expressão “mulher vítima” engessa a mulher numa situação única de vulnerabilidade, o que faz com que o complexo problema da violência doméstica e familiar contra a mulher seja interpretado a partir de uma causalidade unilateral e simplista, cuja compreensão precisa ultrapassar “os limites de uma leitura bidimensional, fundamentada em categorias fixas como ‘mulher-vítima’ e ‘homem-agressor’” (SOARES, 2012: 191). No entanto, para efeitos deste artigo, utilizaremos com frequência o termo “vítimas” por ser conciso, por estar na Lei Maria da Penha e corresponder à linguagem jurídico-penal e também porque o objetivo deste trabalho não está focado nas discussões em torno da terminologia mais apropriada. Do mesmo modo e por razões semelhantes, utilizaremos o termo “agressor” com frequência, apesar de entendermos que se trata de referência estigmatizante marcadora de uma identidade - e não de uma prática social, tal como compreendemos se tratar a violência contra a mulher (MEDRADO; MÉLLO, 2008; SOARES, 2012).
  • 4
    O componente qualitativo da pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética da Universidade Católica de Pernambuco, tendo sido aprovado (CAAE: 66958616.7.0000.5206).
  • 5
    O art. 14 da Lei 11.340/2006 apresenta a seguinte redação: “Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher”. Embora a nomenclatura dada pelo legislador seja Juizado alguns Tribunais de Justiça alteraram a expressão Juizado para Vara de Violência Doméstica, assim optamos por utilizar, durante o presente texto, o seguinte formato: Juizado (ou Vara), para contemplarmos as nomenclaturas utilizadas em todas as cidades pesquisadas.
  • 6
    Todos os dados que iremos apresentar se referem a informações coletadas no ano de 2017 e é possível que tenham ocorrido mudanças nessas equipes ou no funcionamento dos Juizados (ou Varas) pesquisados. Dito isso, qualquer mudança que possa ter ocorrido não afeta, de nenhuma forma, as propostas de reflexões do presente artigo.
  • 7
    Para a tomada dessas decisões, acataram-se as sugestões de como melhor conduzir entrevistas de grupo focal propostas por autores das ciências sociais, inclusive, e especificamente, da Criminologia, tais como Arksey e Knight (1999), Kvale (1996) e Noaks e Wincup (2004).
  • 8
    Para uma explicação detalhada acerca dos critérios de seleção dessas cidades, consultar o Relatório Final da pesquisa (CNJ, 2018).
  • 9
    A análise dessa cidade consta no Relatório Final da pesquisa (CNJ, 2018).
  • 10
    A realização de um único grupo focal em cidade da dimensão de São Paulo se deu, dentre outros motivos, principalmente em virtude dos fatores tempo e acessibilidade. Para maiores detalhes sobre o recorte espacial na capital paulista, conferir o Relatório Final de pesquisa (CNJ, 2018: 42-43).
  • 11
    Levantamento feito pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ), órgão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mostra que dos 17.670 magistrados em atividade no Brasil, 37,3% são mulheres. O número foi extraído do Módulo de Produtividade Mensal, sistema mantido pelo CNJ e alimentado regularmente por todos os tribunais. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84432-percentual-de-mulheres-em-atividade-na-magistratura-brasileira-e-de-37-3. Acesso em: 09 dez. 2020.
  • 12
    “Dos 24 magistrados entrevistados, 12 (doze) eram homens e 12 (doze) eram mulheres. Com relação à raça, 17 (dezessete) magistrados se identificaram como brancos, 4 (quatro) como pardos, 2 (dois) como amarelos e 1 (um) não respondeu” (CNJ, 2018: 132).
  • 13
    Para maiores detalhes e outros exemplos, vide o Relatório Final da pesquisa (CNJ, 2018).
  • 14
    Nem todos os Juizados (ou Varas) pesquisados são competentes para julgar casos de estupro de crianças do gênero feminino. Há cidades em que essa competência é do Juizado (ou Vara) de Violência Doméstica e em outras cidades essa competência é do Juizado (ou Vara) de Proteção da Criança e do Adolescente.
  • 15
    Sobre as atribuições e projetos realizados por cada equipe de pesquisa conferir o Relatório Final da pesquisa (CNJ, 2018: 212-231).
  • 16
    O problema da linguagem jurídica também foi apontado em estudo realizado pelo IPEA: “Essa capacitação também envolve o uso adequado da linguagem, porquanto o “juridiquês”, como é chamado a linguagem jurídica exageradamente rebuscada, vem sendo cada vez mais criticado” (BRASIL, 2015: 96).
  • 17
    Outra posterior pesquisa financiada pelo CNJ e executada pelo IPEA apontou para achados semelhantes: as mulheres entrevistadas e profissionais da rede de enfrentamento à violência (fora do judiciário) indicaram muitos problemas com a linguagem jurídica, seja nos instrumentos de comunicação e chamatórios ao processo (como as intimações), seja quando as vítimas solicitam informações aos atores jurídicos, aqui entendidos de forma ampla, como oficiais de justiça, estagiários, juízes, promotores, defensores, etc. Em alguns casos, inclusive, chegou a se apontar que, até mesmo em momentos criados para informar as mulheres em situação de violência do procedimento processual, constatou-se a utilização de linguajar próprio do mundo jurídico inacessível às mulheres que participam do ritual (BRASIL, 2019)
  • 18
    Para uma reflexão mais aprofundada extraída das entrevistas com os próprios magistrados, vide Mello, Rosenblatt e Medeiros (2018).
  • 19
    Achados semelhantes são apontados nos relatos de campo de Medeiros (2015), quando versa sobre o tratamento dispensado às “Macabéias” na Vara de Violência Doméstica pesquisada.
  • 20
    Entendemos que a triangulação dos métodos e consequente combinação de vários métodos de pesquisa (inclusive com a articulação de técnicas de análise quantitativa e qualitativa) permitiu que um método ajudasse a controlar o outro; em outras palavras, a triangulação de métodos nos ajuda na monitoração dos biases (NOAKS; WINCUP, 2006: 125; GOLDENBERG, 2004: 63-67).
  • 21
    A respeito das características da vitimização secundária, Rosenblatt (2015b: 87) afirma: “a vítima também sofre ao longo do processo penal, dentre outras razões, porque: é muitas vezes destratada em Delegacias de Polícia; tem sua participação no processo limitada às funções de informante; segue aflita por desconhecer sobre o andamento do “seu” caso, e sobre os seus direitos enquanto vítima; raramente é atendida nas suas expectativas de reparação de danos; dentre outras situações de desprezo vividas pela vítima que, vale lembrar, também é protagonista na ocorrência criminosa”.
  • 22
    Para uma abordagem mais detalhada sobre os processos de revitimização vividos pelas vítimas, sob a perspectiva delas mesmas, vide Rosenblatt, Mello e Medeiros (2018).
  • 23
    De fato, além da pesquisa coordenada pelas autoras do presente artigo, foi realizada outra no mesmo período, de mapeamento de práticas de justiça restaurativa no Judiciário nacional, essa coordenada pela professora Vera Regina Pereira de Andrade (CNJ, 2018b).
  • 24
    Sobre esse interesse corrente e (talvez) crescente do CNJ na Justiça Restaurativa, vide as Considerações Finais do presente artigo.
  • 25
    Vide, por exemplo, o Manual da ONU sobre Programas de Justiça Restaurativa (UNODC, 2020).
  • 26
    Para uma explicação acerca desses possíveis benefícios, inclusive com referência a estudos que chegaram a tais resultados, vide Rosenblatt (2015a). Para uma lista tentativa dos possíveis benefícios e também riscos do uso de práticas de Justiça Restaurativa no específico caso da violência doméstica, vide CNJ (2018a).
  • 27
    As reflexões completas a respeito do tema podem ser encontradas no Relatório Final da pesquisa (CNJ, 2018a). Para uma versão resumida sobre as falas e impressões de juízes e vítimas a respeito, vide, respectivamente, Mello, Rosenblatt e Medeiros (2018) e Rosenblatt, Mello e Medeiros (2018).
  • 28
    Acerca dos limites entre essas “justiças”, vide Achutti (2009).
  • 29
    Isso é, do ponto de vista dos próprios magistrados, das vítimas e das equipes multidisciplinares (CNJ, 2018a; MELLO, ROSENBLATT e MEDEIROS, 2018; ROSENBLATT, MELLO e MEDEIROS, 2018).
  • 30
    As versões completa e resumida do referido planejamento podem ser encontradas no sítio eletrônico do CNJ, em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/justica-restaurativa/planejamento-da-politica-publica-nacional-de-justica-restaurativa/. Acesso em: 16 dez. 2020.
  • 31
    Esse dado não apareceu apenas na pesquisa coordenada pelas autoras do presente artigo, mas também naquela outra, de mapeamento do movimento restaurativo nacional no âmbito do Poder Judiciário (CNJ, 2018b).
  • 32
    As transcrições aspeadas foram retiradas da versão completa do referido planejamento, que pode ser encontrado no endereço eletrônico informado na nota de rodapé n. 30, mas o documento não possui número de páginas, daí por que a falta de menção a elas.
  • 33
    No I Seminário sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa do CNJ, realizado em Brasília, nos dias 17 e 18 de junho de 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    14 Jan 2021
  • Aceito
    21 Jan 2021
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º Andar, CEP: 20.550-013, (21) 2334-0507 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: direitoepraxis@gmail.com