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DA ITÁLIA AO BRASIL: INDÍCIOS DA PRODUÇÃO, CIRCULAÇÃO E CONSUMO DE LIVROS DE LEITURA (1875-1945)

FROM ITALY TO BRAZIL: EVIDENCE OF PRODUCTION, CIRCULATION AND CONSUMPTION OF READING BOOKS (1875-1945)

DE ITALIA A BRASIL: INDICIOS DE LA PRODUCCIÓN, CIRCULACIÓN Y CONSUMO DE LIBROS DE LECTURA (1875-1945)

DE L'ITALIE AU BRÉSIL : INDICES DE LA PRODUCTION, CIRCULATION ET CONSOMMATION DE LIVRES DE LECTURE (1875-1945)

Resumo

O objetivo do artigo é compreender a produção, a circulação e o consumo, no Brasil, de livros escolares italianos enviados para as chamadas escolas italianas no exterior, com atenção para a coleção organizada por Clementina Bagagli. Contribuições da História Cultural subsidiam a análise documental dos manuais didáticos, além de outros documentos. Concluo que a circulação dos livros enviados pelo governo italiano marcou ambientes escolares, em especial os urbanos. Percebo que houve diferenciação entre os livros didáticos em quantidade e conteúdo decorrente das políticas empreendidas pela Itália, sendo no fascismo, o mais profícuo. Por fim, houve preservação da leitura e dos livros mesmo que os estudantes frequentassem a escola pública ou confessional, com ensino em português.

Palavras-chave:
escolas étnicas; livros didáticos; imigrantes italianos; produção; circulação e consumo

Abstract

The objective of this article is to understand production, circulation, and consumption, in Brazil, of Italian school books sent to the so called Italian schools abroad, referring particularly to the collection organized by Clementina Bagagli. Contributions of Cultural History subsidize the documental analysis of didactic handbooks, in addition to other documents. I conclude circulation of books sent by Italian government was outstanding in school environments, especially in urban ones. I notice there were differences among didactic books in quantity and content resulting from policies practiced by Italy, being those during fascism, the most fruitful ones. Finally, there was preservation of reading and books, even if students went to public or confessional schools, with Portuguese teaching.

Key-words:
ethnic schools; didactic books; italian immigrants; production; circulation and consumption

Resumen

El objetivo del artículo es comprender la producción, la circulación y el consumo, en Brasil, de libros escolares italianos enviados a las llamadas escuelas italianas en el exterior, refiriéndonos en especial a la colección organizada por Clementina Bagagli. Contribuciones de la Historia Cultural subsidian el análisis documental de los manuales didácticos, además de otros documentos. Concluyo que la circulación de los libros enviados por el gobierno italiano marcó ambientes escolares, en especial urbanos. Noto que hubo diferenciación entre los libros didácticos en cantidad y contenido decurrente de las políticas emprendidas por Italia, siendo el fascismo, el más proficuo. Finalmente, hubo preservación de la lectura y de los libros aunque los estudiantes frecuentasen la escuela pública o confesional, con enseñanza de portugués.

Palabras-clave:
escuelas étnicas; libros didácticos; inmigrantes italianos; producción; circulación y consumo

Résumé

L'objectif de cet article est celui de comprendre la production, la circulation et la consommation, au Brésil, de livres écoliers italiens envoyés aux dites écoles italiennes à l'extérieur, nous référant en spécial à la collection organisée par Clementina Bagagli. Contributions de l'Histoire Culturelle subsidient l'analyse documentaire des manuels didactiques, en plus d´autres documents. Je conclue que la circulation des livres envoyés par le gouvernement italien a marqué les environnements écoliers, spécialement les urbains. Je remarque qu'il y a eu une différentiation parmi les livres didactiques en quantité et en contenu décurrente des politiques entreprises par l'Italie, étant le fascisme, le plus fructueux. Finalement, il y a eu une préservation de la lecture et des livres, même que les étudiants fréquentaient l'école publique ou confessionnelle, avec l'enseignement de la langue portugaise.

Mots-clé:
écoles ethniques; livres didactiques; immigrants italiens; production; circulation et consommation

Considerações iniciais

Este texto é resultado parcial da pesquisa História das Escolas Étnico-Comunitárias Italianas no Brasil (1875-1945), que conta com apoio financeiro do CNPq e tem como objetivo investigar as escolas étnico-comunitárias italianas existentes no Brasil, compreendendo as iniciativas de escolarização, as culturas escolares e a dinâmica escolar vivida por imigrantes e descendentes, nos diferentes contextos espaciais, em dimensão comparativa. O intuito, neste texto, é compreender a produção, a circulação e o consumo, no Brasil, de livros escolares enviados pelo governo italiano, atentando em especial para a coleção organizada por Clementina Bagagli, na década de 1920-30.

A quantidade e a diversidade de livros produzidos e enviados ao Brasil para serem distribuídos entre imigrantes e descendentes foi considerável. O acervo do grupo de pesquisa que coordeno já ultrapassa uma centena de exemplares diferentes. Para investigar a cultura material das escolas étnicas italianas que existiram no Brasil por décadas, na passagem do século 19 para o 20, os livros são significativos e ajudam a entender a pluralidade de processos educativos vividos no país, pois, o

livro escolar integra um complexo estrutural constituído pelos binômios: leitura/leitor; regulação/mercado; pedagogia/ordem do conhecimento; técnica editorial/meio didático; autoria/escrituração. Independentemente da especificidade didática, o livro escolar é um meio de leitura-forma, orienta, mas também é determinado pela capacidade leitora do sujeito a que está destinado. (Magalhães, 2015MAGALHÃES, Justino. O livro escolar como memória da educação. In: MOGARRO, Maria João (coord.). Educação e património cultural: escolas, objetos e práticas. Lisboa: Colibri, 2015, p. 135-140., p. 135)

Mapeando quais foram os livros enviados, como foram produzidos, a geografia de sua distribuição e alguns indícios de seu consumo, penso na dupla condição do livro: como objeto material e como discurso endereçado ao público (Chartier, 2014CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo: Unesp, 2014.). Observo que muitas escolas, ditas italianas, tiveram duração efêmera e que a preservação dos materiais, dispersos em diferentes espaços, foi possível por que famílias se afeiçoaram a alguns desses manuais didáticos, cuidando-os como relíquias, patrimônios da memória e lembranças da pátria. A despeito das políticas de nacionalização varguista, muitos dos materiais foram guardados por décadas.

As contribuições teóricas da História Cultural subsidiam a análise documental de manuais didáticos, em especial os exemplares da coleção de livros de leitura compilados por Clementina Bagagli, além de legislação, fotografias, relatórios, entrevistas, memórias autobiográficas. Esses documentos apresentam indícios das operações de produção, circulação e consumo, de sentidos que enlaçam os artefatos (Meneses, 1998MENESES, Ulpiano T. B. Memória e cultura material: documentos pessoais no espaço público. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV, 1998, n. 21, p. 80-103. ). Na história da educação os materiais didáticos são vestígios e registros das finalidades culturais da escola (Escolano, 1990ESCOLANO BENITO, Agustín. Presentación. In: DIAZ, José Maria Hernandéz; ESCOLANO BENITO, Agustín. Cien años de escuela en España (1875-1975). Catálogo de exposición. Salamanca: Kadmos, 1990, p. 2-7.).

Compreender os saberes produzidos e difundidos com a produção e o consumo de livros escolares, entrecruzando as políticas governamentais italianas voltadas para a dotação de materiais específicos para as escolas italianas no exterior, assim como a questão dos usos e dos sentidos simbólicos que esses objetos adquiriram no universo escolar brasileiro é tema de relevância para a História da Educação.

Este texto se compõe de três partes: inicialmente trata-se do contexto da imigração italiana e dos processos de escolarização no âmbito brasileiro, em seguida se trata da produção e circulação dos livros e alguns outros materiais didáticos produzidos e enviados pelo governo italiano e concluiu-se sobre as possibilidades de consumo de tais livros.

Contexto da imigração italiana e processos de escolarização

A imigração italiana, conforme diversos estudos1 Franzina (2006), Bevilacqua, De Clementi e Franzina (2009), Trento (1989), Azevedo (1975), Adami (1971), Costa (1992), De Boni (1985, 1987), Lorenzoni (1975), Caprara e Luchese (2005), Luchese (2009) e Manfrói (1975) são relevantes. , resulta dos processos de transformação capitalista que ocorriam na península itálica e no Brasil. E, nesse cenário de povoamento das terras devolutas das colônias, substituindo a mão-de-obra escrava ou em atividades urbanas, esses imigrantes se defrontaram com a precariedade do sistema público escolar brasileiro. Poucos anos após seu estabelecimento no Brasil diversas foram as iniciativas dos imigrantes na organização de escolas com características étnicas, mesmo que a maioria tenha sido efêmera. Desde o final do século 19, em relatórios consulares, encontram-se registros que retratam a situação das colônias, dos imigrantes e descendentes, mencionando a falta de escolas e a necessidade do governo italiano intervir, passando a apoiar a escolarização, em especial com o envio de livros e material escolar. Certamente transparece a perspectiva de manutenção dos laços culturais com a pátria-mãe, a Itália, pelo ensino escolar.

Como apontam estudos anteriores de Luchese (2015LUCHESE, Terciane Ângela. O processo escolar entre imigrantes no Rio Grande do Sul. Caxias do Sul: UCS , 2015.), Rech (2015RECH, Gelson L. Escolas étnicas italianas em Porto Alegre/RS (1877-1938): a formação de uma rede escolar e o fascismo. Pelotas: UFPel, 2015. 449f. Tese (doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas.), Ribeiro (1990RIBEIRO, Liane B. Moretto. Escolas italianas em zona rural do Rio Grande do Sul. In: De Boni, Luís A. A presença italiana no Brasil. Porto Alegre: EST ; Torino: Fondazione Giovanni Agnelli, 1990.) e Giron (1998GIRON, Loraine Slomp. Colônia italiana e educação. Hist. Educ. (Online) , Porto Alegre, v. 2, n. 3, 1998, p. 87-106.) sobre o Rio Grande do Sul, de Mimesse (2010MIMESSE, Eliane. A educação e os imigrantes italianos: da escola de primeiras letras ao grupo escolar. São Paulo: Iglu, 2010.) e Corrêa (2000CORRÊA, Rosa Lydia Teixeira. Conviver e sobreviver: estratégias educativas de imigrantes italianos (1880 a 1920). São Paulo: USP, 2000. 266f. Tese (doutorado em História Econômica). Universidade de São Paulo.) sobre São Paulo, de Maschio (2012MASCHIO, Elaine C. Falcade. A escolarização dos imigrantes e de seus descendentes nas colônias italianas de Curitiba, entre táticas e estratégias (1875-1930). Curitiba: UFPR, 2012. 340f. Tese (doutorado em Educação). Universidade Federal do Paraná.) sobre o Paraná, de Otto (2006OTTO, Claricia. Catolicidades e italianidades: tramas e poder em Santa Catarina (1875-1930). Florianópolis: Insular, 2006.) sobre Santa Catarina, de Gomes (2009GOMES, Maysa Rodrigues. Sob o céu de outra pátria: imigração e educação em Juiz de Fora e Belo Horizonte, MG, 1888-1912. Belo Horizonte: UFMG, 2009. 401f. Tese (doutorado em Educação). Universidade Federal de Minas Gerais.) sobre Minas Gerais e de Pagani (2012PAGANI, Carlo. A imigração italiana no Rio de Janeiro e em Petrópolis e a educação para os filhos dos imigrantes, 1875-1920. Petrópolis: UCP, 2012. 211f. Dissertação (mestrado em Educação). Universidade Católica de Petrópolis.) sobre o Rio de Janeiro, os imigrantes italianos e seus descendentes, em diferentes contextos e condições de ocupação, buscaram e valorizaram a escolarização: "A Igreja Católica, o governo italiano (por meio da ação dos diplomatas), as comunidades [famílias] e o próprio governo brasileiro promovendo a escola pública (mas marcadamente étnica, em muitos casos) fomentaram sob vieses, em geral, assimétricos, modos de ser e de fazer escola" (Luchese (2014LUCHESE, Terciane Ângela (org.). História da escola dos imigrantes italianos em terras brasileiras. Caxias do Sul: UCS , 2014., p. 33).

Diferente do que consta em várias bibliografias percebe-se que os imigrantes italianos não eram todos analfabetos, mas que os níveis de alfabetismo variavam em conformidade com a região de proveniência. Para exemplificar, consultando o primeiro recenseamento realizado nas Colônias Conde d'Eu e Dona Isabel, no Rio Grande do Sul, no ano de 1883, percebe-se que, especialmente homens, declararam em sua grande maioria serem alfabetizados, perfazendo uma média de 74% dos homens adultos. Giron (1998GIRON, Loraine Slomp. Colônia italiana e educação. Hist. Educ. (Online) , Porto Alegre, v. 2, n. 3, 1998, p. 87-106.) informa, a partir do levantamento dos mapas estatísticos da Colônia Caxias, que "63% dos imigrantes de sexo masculino sabiam ler, enquanto apenas 37% das mulheres eram alfabetizadas" (p. 90)

Dentre as escolas frequentadas por imigrantes italianos e descendentes destaco as escolas étnico-comunitárias, as públicas e as confessionais, apesar de reconhecer a necessidade de ampliar a pesquisa acerca das tipologias escolares. As escolas étnico-comunitárias podem ser diferenciadas. as escolas étnicas ,mantidas pelas associações de mútuo socorro, de modo geral estabelecidas nas áreas urbanas, estavam mais vinculadas ao governo italiano por meio dos cônsules. Foram escolas que chegaram a receber professores enviados da Itália, tinham currículo diversificado e material didático próprio, recebido do consulado. Aquelas escolas que surgiram nas áreas rurais foram sustentadas exclusivamente pelos próprios pais e comunidade que criava essas aulas onde o professor era pago para que ministrasse os conhecimentos básicos de leitura, escrita e cálculos, e na maioria das situações, também o catecismo. O professor era escolhido dentre os integrantes da própria comunidade. Conforme o imigrante Júlio Lorenzoni (1975LORENZONI, Júlio. Memórias de um imigrante italiano. Porto Alegre: Sulina, 1975. ), que foi professor em escola étnica e se estabeleceu em Dona Isabel,

a absoluta falta de escolas do governo brasileiro obrigava o colono a escolher as pessoas mais aptas para ensinar a ler, escrever e fazer contas àquela mocidade toda, sob pena de criarem-se na maior ignorância, verdadeiramente analfabetos. Precisavam então conformar-se com o melhor que houvesse, pois não eram professores formados os que iam lecionar, mas sim os que, na Itália, tivessem recebido uma razoável instrução e que, mediante módica retribuição, se sujeitassem a desempenhar a árdua tarefa de mestre, o que procuravam fazer da melhor maneira. (p. 126)

Essas iniciativas foram muito comuns no interior das colônias. Diversos foram os casos em que as famílias de imigrantes uniram-se para empreenderem em mutirão a construção da escola, geralmente uma pequena casa de madeira rústica, apesar de, nos primeiros tempos, estas aulas terem funcionado na própria casa do professor ou na casa das crianças. Já nas primeiras décadas do século 20 estas aulas foram desaparecendo pela dificuldade dos pais manterem o investimento, em especial pelo elevado número de filhos, pelo crescimento de ofertas de escolas de outras modalidades ou pela própria desistência do professor mediante parcas remunerações, o que por vezes era feito em espécie, como feijão, trigo, milho.

A dificuldade para organizar o ensino primário nas colônias e, posteriormente, nos já municípios, manteve-se por muitos anos. A distância da zona rural e a falta de meios de transporte isolavam algumas comunidades que, organizando-se por conta própria, já no final do século 19, começaram a solicitar professor pago pelo governo brasileiro.

A partir de meados de 1890 houve crescimento nas iniciativas de entrada e instalação de congregações religiosas em diversos Estados. No caso do Rio Grande do Sul, especialmente nas regiões em que se estabeleceram imigrantes italianos, foram inúmeras as congregações que investiram na construção de seminários, noviciados, juvenatos e escolas. As escolas confessionais mantidas por congregações diversas promoveram e disseminaram o ensino e a religião católica. Constituíram escolas importantes, de boa qualidade, com currículos diversificados, atendendo, principalmente, aos filhos das famílias mais abastadas. Cabe ressaltar, ainda, a presença de escolas paroquiais.

As escolas públicas foram mantidas e disseminadas pelos governos municipais e estaduais. Uma política de expansão da escola pública que no Rio Grande do Sul teve repercussão foi a subvenção, ou seja, o pagamento de um valor aos professores para que ensinassem em português. Entre as décadas de 1910 e 1940 houve um processo crescente para a implantação de escolas isoladas públicas, com investimentos em escolas municipais e ampliação das subvenções. As étnico-comunitárias foram diminuindo progressivamente no período e os colégios confessionais expandiram-se. Autoridades públicas passaram a preocupar-se com a formação e aperfeiçoamento docente, a regulamentação das inspeções, os currículos, os espaços e os tempos escolares. Portanto, a Igreja, junto com o governo, assumiram a liderança em se tratando da expansão da escolarização entre imigrantes italianos e descendentes.

Entretanto, com o progressivo fechamento das escolas étnicas italianas, mesmo em períodos de forte nacionalismo, caso do período varguista, entre os anos 1938-1942, não deixou de existir a circulação de material escolar, especialmente livros enviados pelo governo italiano.

As políticas italianas para as escolas no exterior e a produção dos livros escolares

No final do século 19 é possível encontrar indícios de distribuição e circulação de manuais didáticos italianos entre imigrantes e descendentes. Suas presenças não podem ser ignoradas quando se trata de pensar historicamente a educação no Brasil. Na historiografia da educação, os materiais escolares são vestígios e registros das finalidades culturais da escola e, assim considero, com maior ênfase, os livros que analiso:

há uma cultura escolar (um ritual, uma gestualidade, uma socialização, uma formação), que não é vertida para o manual, mas que, no entanto, tende a ser, direta ou indiretamente, homologada, contextualizada, metaprojetada por ele. O manual escolar é uma das portas de entrada na vida e na cultura. (Magalhães, 2015MAGALHÃES, Justino. O livro escolar como memória da educação. In: MOGARRO, Maria João (coord.). Educação e património cultural: escolas, objetos e práticas. Lisboa: Colibri, 2015, p. 135-140., p. 139)

Desse modo, com relação às políticas para as escolas italianas no exterior Floriani (1974FLORIANI, Giorgio. Scuole italiane all´estero: cento anni di storia. Roma: Armando, 1974.) informa que a primeira legislação foi em 1862, com o Ministro das Relações Exteriores, Durando, que autorizou a criação de um colégio italiano em Alexandria, no Egito. No ano seguinte ocorreu a expansão para Tunísia e Constantinopla. Os Irmãos das Escolas Cristãs, salesianos, passaram a contar com subsídio governamental desde que ensinassem em italiano. Assim, progressivamente, as escolas italianas se expandiram por territórios da África, Oriente Médio, de alguns países europeus e americanos. Cabe lembrar que a Itália passava por processo de unificação, de certo modo concluído em 1870.

No contexto de organização da Itália recém-unificada o Ministério da Instrução Pública cedeu a competência administrativa das escolas italianas no exterior ao Ministério das Relações Exteriores em 1870. O Ministério das Relações Exteriores, a partir da atividade consular, assumiu a instrução nas escolas italianas mantidas fora do Reino. O intuito estava na difusão da língua e da cultura italiana e isso ocorria por meio de três formas principais: "Com subsídios fixos ou extraordinários para as iniciativas particulares. Escolas criadas e mantidas pelo próprio governo com diversas naturezas e graus. Subsidiando institutos não italianos, mas que ensinassem a língua italiana" (Floriani, 1974FLORIANI, Giorgio. Scuole italiane all´estero: cento anni di storia. Roma: Armando, 1974., p. 8).

Nos anos 1870, conforme Chiosso (2013CHIOSSO, Giorgio. Libri di scuola e mercato editoriale: dal primo ottocento alla Riforma Gentile. Milão: Franco Angeli, 2013.), havia grande diversidade de livros voltados às primeiras classes elementares, no entanto, questionava-se a qualidade dos mesmos. Anton Giulio Barrili, encarregado pelo Ministério da Instrução italiano, lamentava: "bem como temos problemas com o analfabetismo, o temos com a impressão de livros" (Chiosso, 2013CHIOSSO, Giorgio. Libri di scuola e mercato editoriale: dal primo ottocento alla Riforma Gentile. Milão: Franco Angeli, 2013., p. 84). Predominava o uso de livros de leitura com poucas páginas compiladas por professores e inspetores escolares, com características tipográficas sóbrias e vendidos por baixos valores. Para os poucos alunos que chegavam ao 4º e 5º ano os livros eram mais frequentes e correspondiam às diversas disciplinas.

No caso dos livros enviados para as escolas italianas no exterior, pelos indícios, foram quantitativamente reduzidos e eram livros simples, com poucas páginas, sem maiores investimentos na editoração e impressão. Utilizavam papel jornal e as ilustrações eram pouquíssimas. Restringiam-se aos rudimentos do ler, escrever e contar.

Em oito de dezembro de 1889, pelo decreto real n. 6.566, o então primeiro ministro e também ministro das relações exteriores, Francesco Crispi, aprovou o ordenamento sobre as régias escolas italianas, comuns no entorno do Mediterrâneo, e escolas italianas no exterior. Nesse ordenamento estabeleceu-se que a gestão direta e imediata das instituições era encargo do governo italiano, afirmava a laicidade do ensino, o subsídio de escolas elementares mantidas por associações e particulares, bem como previa a possibilidade de abertura de escolas subsidiadas de ensino secundário. Se o orçamento para subsidiar o ano letivo de 1882 fora de 200.000 liras, o valor para 1889/1890 foi de 1.033.710 liras (Medici, 2009MEDICI, Lorenzo. Dalla propaganda alla cooperazione: la diplomazia culturale italiana nel secondo dopoguerra (1944-1950). Italia: Antonio Milani, 2009.). Havia a perspectiva de regular e estabelecer o programa de ensino, os livros textos que seriam utilizados e a realização de inspeções de verificação do funcionamento de tais escolas.

No período de 1887 até 1891 as reformas implantadas pelo ministro interino Francisco Crispi e seu chefe de gabinete, Albero Pisani Dossi, modernizaram a política diplomática da Itália e promoveram ações de aproximação com os emigrados. Pela lei n. 5.866, de 30 de dezembro de 1888, passou-se a prever que a Itália não podia perder de vista os emigrados, mas acompanhá-los na nova Pátria, tutelando-os. É importante situar também a criação da associação Dante Alighieri2 2 Ver Salvetti (1995). por Giacomo Venezian, em 1889, que seria "utilizada largamente pelo governo italiano na difusão da língua, da cultura e da italianidade no mundo todo" (Cervo, 1992CERVO, Amado L. As relações entre o Brasil e a Itália: formação da italianidade brasileira. Brasília: UNB, 1992. , p. 3). Ganhou impulso, nesse período, a criação de escolas italianas no exterior, muitas recebendo subsídios para o seu funcionamento. Cervo (1992)CERVO, Amado L. As relações entre o Brasil e a Itália: formação da italianidade brasileira. Brasília: UNB, 1992. afirma que Crispi

estimulou o sentimento da italianidade, favorecendo a criação de escolas, hospitais, jornais, associações beneficentes. Os censos indicavam a existência, em 1889, de 352 associações italianas no exterior, três hospitais (Londres, Buenos Aires e Lima) e inúmeros outros em projeto. Crispi cogitou em regulamentar as escolas e separou-as em duas categorias: escolas do governo e escolas subsidiadas. Contavam-se, em 1890, 92 do primeiro tipo, com 12.109 alunos, e 35 do segundo. Em 1900, cerca de duzentos jornais italianos eram publicados no exterior. (p.12)

A política externa italiana oscilou e a grande massa de emigrados, espalhada por diferentes países no mundo, defrontou-se com práticas diferenciadas para a promoção e a manutenção dos laços de italianidade, para a difusão da língua italiana, que tantos emigrantes desconheciam, pois faziam uso de dialetos regionais, como indicam Frosi; Mioranza (1983FROSI, Vitalina Maria; MIORANZA, Ciro. Dialetos italianos. Caxias do Sul: UCS , 1983.) e Frosi; Faggion; Dal Corno (2010)FROSI, Vitalina Maria; Faggion, Carmen Maria; Dal Corno, Giselle Olívia Mantovani. Estigma: cultura e atitudes linguísticas. Caxias do Sul: UCS, 2010.. A própria condução da política externa italiana variou ao longo das últimas décadas do século 19 e primeiras do século 20.

Um dos grandes entraves para a efetivação dos ideais daqueles que defendiam uma política externa italiana de grande potência foram de ordem econômica. Houve tentativas para manutenção do subsídio escolar, mas o debate sobre os investimentos maiores ou menores do governo italiano para com as escolas no exterior foi tenso e intenso. Houve argumentos diversos a favor de investimentos nas escolas italianas no exterior ou sua total suspensão, pois o sistema nacional de ensino ainda não era realidade e o analfabetismo era problema a ser enfrentado internamente.

Na Itália, a partir de 1880, passaram a ser organizadas diversas conferências pedagógicas pelo Ministério da Instrução. Conforme Chiosso (2013CHIOSSO, Giorgio. Libri di scuola e mercato editoriale: dal primo ottocento alla Riforma Gentile. Milão: Franco Angeli, 2013.) o livro de leitura foi valorizado por todos os programas escolares entre os anos de 1860 a 1923. Pela circular n. 688, de 12 de novembro de 1882, o livro de leitura deveria conter noções de higiene, ciências naturais, história e geografia, intercalados com pequenas histórias, poesias e contos moralizantes. Eles seriam a expressão do culto da boa língua (Chiosso, 2013CHIOSSO, Giorgio. Libri di scuola e mercato editoriale: dal primo ottocento alla Riforma Gentile. Milão: Franco Angeli, 2013.). Essas características também são identificadas nos poucos exemplares encontrados dentre aqueles enviados para as escolas italianas no Brasil daquele período.

Em 1910, foi aprovada a lei n. 867, de 18 de dezembro, que pode ser considerada uma normativa completa e orgânica para as escolas italianas do exterior (Floriani, 1974FLORIANI, Giorgio. Scuole italiane all´estero: cento anni di storia. Roma: Armando, 1974.). A legislação ampliava os subsídios para outras instituições escolares como bibliotecas populares e professores, mesmo que ambulantes, de adultos. Além disso, todas as escolas que fossem consideradas importantes na difusão da língua e da cultura italiana deveriam ser subsidiadas, afinal o objetivo primeiro da existência dessas escolas era conservar o espírito nacional. A orientação técnica para escolas italianas no exterior seria oferecida pelo Ministério da Instrução. Recomendava, ainda, que os professores deveriam ser nominados após serem reconhecidos como idôneos e reunindo condições físicas e morais. Da Lei Titoni de 1910 foi criado o regulamento n. 1.005, pelo real decreto de 20 de junho de 1912 (Floriani, 1974FLORIANI, Giorgio. Scuole italiane all´estero: cento anni di storia. Roma: Armando, 1974.).

Algumas outras normativas foram decretadas no período da Primeira Guerra Mundial, mas foi especialmente após seu término que novas legislações foram estabelecidas e, em especial, com o advento fascista. Segundo Barausse (2015BARAUSSE, Alberto. The construction of national identity in textbooks for Italian schools abroad: the case of Brazil between the two World Wars. History of Education & Children's Literature, Macerata, v. 10, n. 2, 2015, p. 425-461.),

durante esse período, para solicitar a produção de livros mais adequados para escolas italianas no exterior, as autoridades ministeriais, bem como as comissões, recorreram a medidas específicas, tais como anúncios públicos pelo Ministério de Educação para a produção de novos livros que seriam adotados nas escolas italianas no exterior e em territórios coloniais. (p. 433)

Aos poucos um conjunto expressivo de legislações passou a orientar não apenas a produção e a seleção de livros coerentes com a ideologia fascista para as escolas no exterior, como todo um conjunto de ordenamentos didáticos sobre as práticas escolares e de socialização. Cabe mencionar que a política externa do regime fascista foi caracterizada, conforme Pretelli (2010PRETELLI, Matteo. Il fascismo e gli italiani all'estero. Bolonha: Clueb, 2010.), pela ambivalência e ambiguidade, com táticas flexíveis e adaptáveis aos vários contextos estrangeiros.

Pelo decreto régio n. 933, de 19 de abril de 1923, firmado por Mussolini, na época também ministro interino das relações exteriores, foi suprimido o Conselho Central das Escolas no Exterior, criado pela Lei Tittoni de 1910. Estabeleceu que os professores das escolas italianas no exterior deveriam pronunciar solene voto profissional no qual prometiam educar seus alunos para amarem a pátria e terem maior devoção ao rei e às suas instituições. Portanto, propagandear a italianidade e promover, no seio das colônias, o ideal de que constituíam um único fascio que buscava a prosperidade econômica italiana e seu maior prestígio no mundo (Medici, 2009MEDICI, Lorenzo. Dalla propaganda alla cooperazione: la diplomazia culturale italiana nel secondo dopoguerra (1944-1950). Italia: Antonio Milani, 2009.). No caso dos professores a situação de adesão ao regime fascista seria intensificada em fins de 1932, quando se tornou obrigatória a adesão ao Partido Nacional Fascista. Pretelli (2009PRETELLI, Matteo. Fascist textbooks for Italian schools abroad. BIENNAL CONFERENCE OF THE AUTRALASIAN CENTRE FOR ITALIAN STUDIES, 5, 2009. Congress proceedings ... Auckland: Australasian Centre for Italian Studies. Disponível em <Disponível em http://researchbank.swinburne.edu.au >. Acesso em 17 abr. 2016.
http://researchbank.swinburne.edu.au...
) afirma que o professor foi entendido como pioneiro, soldado, combatente e missionário que, nas colônias italianas, o autor dá ênfase à Tunísia, Malta e Egito difundiria a língua de Dante e a italianidade.

Em legislação datada de 1924 foram estabelecidos os programas e fixadas diretrizes para as escolas italianas no exterior. Por meio da difusão da língua e da cultura italiana, do sentimento nacional, nas mais diversas colônias dispersas pelo mundo, das grandes realizações fascistas, acreditava-se que haveria a possibilidade de estreitar as relações, as influências e, desse modo, também os ganhos para a pátria-mãe Itália com os italianos do exterior3 3 A nominação emigrantes foi substituída por italianos no exterior, que passou a ser utilizada pelos órgãos diplomáticos referindo-se a todos os emigrados e descendentes. e os países receptores.

Outro fato a ser considerado é a reorganização do Ministério das Relações Exteriores, decreto régio n. 628, de 28 de abril de 1927, que aboliu a Comissão Geral de Emigração e instituiu a Direção Geral dos Italianos no Exterior. No interior dessa Direção foi criado o Escritório de Propaganda para o Exterior. Outra iniciativa fascista para os italianos no exterior foi a criação de um Comitê Interministerial para a expansão da cultura italiana nos países receptores. Ainda, em 12 de dezembro de 1929, pelo decreto n. 18, foi instituída a Direção Geral dos Italianos no Exterior e Escolas, cuja administração ficou aos cuidados de Piero Parini, que também era secretário geral dos Fasci italianos no exterior. Salvetti (2009SALVETTI, Patrizia. Le scuole italiane all'estero. In: BEVILACQUA Piero; DE CLEMENTI, Andreina; FRANZINA, Emilio (orgs.). Storia dell'emigrazione italiana: ii arrivi. Roma: Donzelli , 2009, p. 535-549.) destaca que a principal ação fascista com relação às escolas italianas subsidiadas foi o envio de novos livros de texto permeados com a ideologia fascista.

O fascismo, desde os primeiros anos, buscou nas associações, jornais e escolas mantidas por italianos ou descendentes, no exterior, apoio, meio de difusão e conquista de adeptos. Para Bertonha (2001BERTONHA, João Fábio. O fascismo e os imigrantes italianos no Brasil. Porto Alegre: PUCRS, 2001. ) "o governo fascista iniciou a conquista do sistema escolar italiano no exterior já em 1923/1924, quando várias leis centralizaram as escolas e acentuaram seu papel de educar italianamente os jovens italianos do exterior" (p. 48). A escola, enquanto espaço de difusão da italianidade, desde muitos anos era pensada. Cônsules, agentes diplomáticos e mesmo algumas leis italianas, como as promulgadas no governo Crispi (1889), como foi visto, buscaram aproximar e apoiar financeiramente, especialmente com o envio de livros didáticos, os emigrados e seus filhos com a Itália, desde o final do século 19.

Entretanto, é perceptível uma mudança na política externa italiana com o advento do fascismo. Investiu-se na expansão da rede consular e marcou-se presença mais ativa na tutela dos imigrantes. Além disso, buscaram garantir a fascitização por meio da institucionalização dos fasci all'estero4 4 Fasci all'estero: grupos que lideravam a organização da propaganda e difusão da ideologia fascista nas comunidades italianas do exterior, tentando cooptá-las. Desenvolviam também atividades assistenciais, culturais, cerimônias de defesa da italianidade e do fascismo. , dos dopolavoro5 5 Dopolavoro all'estero eram associações voltadas aos operários que no exterior converteram-se em "meio muito eficaz de aproximar, via recreação, esporte e cultura, os italianos do exterior ao fascismo." (Bertonha, 2001, p. 46). , bem como a promoção de grandes manifestações com desfiles, saudações, entoação de cantos de guerra como a Giovinezza, bailes, jogos de futebol, inauguração de monumentos e todo um conjunto de rituais fascistas celebrados em diferentes espaços de socialização. Porém, é preciso situar que "apenas uma pequena minoria de emigrantes foi convertida em militantes dos fasci all'estero e que desses, a maioria era constituída de membros da burguesia e das classes médias italianas locais" (Bertonha, 2001BERTONHA, João Fábio. O fascismo e os imigrantes italianos no Brasil. Porto Alegre: PUCRS, 2001. , p. 43)6 6 Conforme Bertonha (2001) em 1934 eram sete as cidades gaúchas que tinham a organização de fasci all'estero: Uruguaiana, Pelotas, Rio Grande, Porto Alegre, Garibaldi, Bento Gonçalves e Caxias. No que tange às escolas pretendia-se "educar italiana e fascisticamente as crianças italianas nascidas no exterior" (Bertonha, 2001, p. 49). .

Desse modo, os livros produzidos e enviados para as escolas no exterior ganharam forte investimento na medida em que passaram a ser produzidos em grande quantidade, com títulos diversificados e para diferentes níveis de ensino. Livros de leitura, silabários, livros de aritmética, história, geografia, ciências naturais, música, para desenho e diversos outros temas ganham espaço. A qualidade da impressão, o uso de papel de qualidade, impressos coloridos, figuras e uma concepção pedagógica moderna, marcam as características dos livros que passaram a ser distribuídos pelas agências consulares para as escolas e famílias italianas no exterior:

os livros de leituras examinados, nesses primeiros anos do fascismo, foram orientados a veicular nas escolas italianas do Rio Grande do Sul um nacionalismo moderado, fundado em um acentuado senso de orgulho baseado em um senso de pertencimento a uma nação potente, rica em cultura e num modelo de cidadão capaz de produzir riqueza e civilidade também no país hospedeiro. Um senso de grandeza sobre o qual se desenvolveu, em poucos anos, um posterior salto do senso de pertença a uma nação potente e guerreira em plena expansão. (Barausse, 2016BARAUSSE, Alberto. Os livros escolares como instrumentos para a promoção da identidade nacional italiana no Brasil durante os primeiros anos do fascismo (1922-1925). Hist. Educ. (Online), Porto Alegre, v. 20, n. 49, 2016, p. 81-94., p. 91)

Com forte cunho nacionalista e propagando os ideais fascistas, foram livros difundidos com o ideal de manter os laços com a pátria, agora idealizada e frequentemente relacionada com o grande império romano. Os manuais didáticos, como portadores de um conjunto de representações, pretendiam difundir o Fascismo, o Duce e podem ser pensados como iniciativas que buscavam inculcar valores e códigos de conduta considerados ideais naquele momento. Como constatou Galfré (2005GALFRÉ, Monica. Il regime degli editori: libri, scuola e fascismo. Roma: Laterza, 2005., p. 27) "é propósito do governo-conforme o comunicado oficial-dar ao livro não apenas as vestes, mas também a alma fascista".

Os livros analisados neste texto são parte dos materiais didáticos produzidos no período fascista italiano para as escolas no exterior. A escolha da coleção está relacionada ao significado que a mesma adquiriu no contexto do Rio Grande do Sul. A coleção de livros de leitura analisados, sendo três dos quatro volumes compilados por Clementina Bagagli, apresentam papel de qualidade superior, cores e ilustrações frequentes, um projeto gráfico arrojado para a época, com investimentos elevados para sua produção7 7 Para a produção de livros didáticos para escolas na Itália, nesse período, consulte-se Ascenzi e Sani (2005). .

Quadro 1
Livros de leitura do primeiro ao quarto ano.

Com relação à editora, a Libreria dello Stato, que publicou o Letture per la classe prima, foi instituída pelo decreto de 18 de janeiro de 1923 (Chiosso, 2008CHIOSSO, Giorgio (dir.). TESEO' 900: editori scolastico-educativi de primo novecento. Milano: Editrice Bibliografica, 2008.). A compiladora da maioria dos livros que compõem essa coleção foi Clementina Bagagli. Com relação ao ilustrador, Angelo Della Torre, em análise de sua produção, Colin (2012COLIN, Mariella. I bambini di Mussolini. Brescia: La Scuola, 2012.), afirma que

Angelo Della Torre, pintor, escultor e ilustrador nascido em 1903 e ainda ativo nos anos oitenta, foi particularmente feliz na representação das crianças, de quem exprimiu sem esforço as mais diversas sensações e os mais diversificados sentimentos com seus desenhos sóbrios, discretos, sempre claros, às vezes duros, bem apoiado por uso delicado de cores suaves [...]. No livro Letture per la Classe seconda di Clementina Bagagli (1932BAGAGLI, Clementina (comp.). Letture classe seconda: scuole italiane All'Estero. Ilustrato da Angelo Della Torre. Milano: Soc. Na. Stab. Arti Grafiche e Alfieri e Lacroix , 1932.) retornam ainda, com frequência, cenas de jogos e brinquedos, mas aumentam as imagens "futuristas" de aviões, oficinas, lugares, centrais elétricas com fiações que atravessam o texto da página, para exaltar no exterior a imagem da "nova Itália" progredindo tecnologicamente. (p. 475)

Não foi possível localizar maiores informações da ilustradora Liana Ferri, mas com relação à Carlo Vittorio Testi, nascido em 1902 e falecido em 2005, reconhecido como importante pintor e ilustrador que fez sua estreia como desenhista das glórias do fascismo, "sem nunca perder de vista o ideal clássico de beleza que se manifestará completamente em suas obras na maturidade" como afirmou Colin (2012COLIN, Mariella. I bambini di Mussolini. Brescia: La Scuola, 2012., p. 477). Para a mesma autora, o talento de Testi emergiu e pode ser observado no livro selecionado para essa análise:

Os dotes de Testi, extraordinário decorador de livros e refinado desenhista, emergem sobretudo na ilustração do Libro dela IV classe elementare per le Scuole italiane all' estero (1934) no qual a qualidade da fotogravura e da impressão, além do papel, rendem uma imagem novecentista lapidada, exaltando o brilho e a elegância tipográfica (Colin, 2012COLIN, Mariella. I bambini di Mussolini. Brescia: La Scuola, 2012., p. 477)

Nos livros analisados comparecem, diferindo apenas na complexidade explicativa, os discursos sobre símbolos, representações e ideias que o fascismo pretendia incutir. Páginas se sucedem permeando imagens e textos que apresentam forte cunho político-ideológico. Portanto, pretendia-se instituir uma identificação entre o ser italiano e a simbologia fascista, realçando as concepções sobre como caracterizavam o povo italiano. Poutignat e Streif-Fenart (1998), nesse sentido, afirmam que nas teorias da etnicidade a tônica está mais no caráter relacional do que no essencial das identidades étnicas, isto é, "o nós constrói-se em oposição ao eles". As diferenças entre os grupos étnicos são centrais, compreendendo que "a etnicidade não se manifesta nas condições de isolamento, é ao contrário, a intensificação das interações características do mundo moderno e do universo urbano que torna salientes as identidades étnicas" (1998, p.123). Importa considerar o étnico como um processo e não como um dado resolvido no nascimento, algo em permanente construção nas práticas sociais, num processo de relação. A nominação tem um papel central neste sentido. Portanto, nominar-se italiano para o regime fascista era estar identificado com os símbolos, ideais e práticas difundidas pelo regime. As capas dos livros permitem entrever algumas das representações.

Figura 1
Capas dos livros de leitura enviados para as escolas italianas do exterior.

Com relação à simbologia um dos recorrentes é o fascio Littorio. Ele é apresentado às crianças como o símbolo maior da Itália fascista. Relacionado diretamente com união, amor, harmonia e dando sentido de coragem e força para aqueles que buscavam a grandeza da Pátria. Em assim sendo, os textos explicativos sobre o fascio Littorio marcam presença em todos os livros de leitura analisados. No livro para a primeira classe o fascio é apresentado como o "símbolo sob o qual os Italianos disciplinados e em concordância trabalham pela grandeza da Pátria" (Bagagli,1938BAGAGLI, Clementina (comp.). Letture classe prima: scuole italiane all'estero. Milano: Soc. Na. Stab. Arti Grafiche e Alfieri e Lacroix, 1938., p. 88). No segundo livro de leitura o fascio é explicado por meio de uma metáfora: uma gota d'água é considerada sem força, mas muitas gotas d'água quando reunidas compõem uma força incrível: a do mar: "Somente a união e a concordância de todos os cidadãos criam a força e a potência de um povo. Por isso o feixe de varas foi escolhido como símbolo da nova Itália" (Bagagli, 1932BAGAGLI, Clementina (comp.). Letture classe seconda: scuole italiane All'Estero. Ilustrato da Angelo Della Torre. Milano: Soc. Na. Stab. Arti Grafiche e Alfieri e Lacroix , 1932., p. 89). Coragem, força, disciplina, trabalho e união são valores exaltados e reiterados como características do povo italiano nos diversos textos, constituindo representações sobre o processo identitário que se pretendia instituir também nos italianos que viviam no exterior.

Outra representação forte e presente em todos os livros é a apresentação do Duce às crianças. O líder do regime fascista torna-se presença frequente nas páginas dos livros didáticos, seja com pequenas sínteses de sua vida, de seus discursos ou idolatrando características ideais que deveriam ser perseguidas por todos os bons italianos. O Duce, representado como o guia que trabalhava pelo bem da pátria, que buscava a sua grandeza, que não media esforços pela construção da nova Itália: "Sabem as crianças italianas por que o Duce as ama tanto? As ama porque as crianças são a mais bela esperança da Itália por que se essas crescerem fortes, trabalhadoras, boas, a Itália também será forte, uma potência feliz" (Bagagli, 1938BAGAGLI, Clementina (comp.). Letture classe prima: scuole italiane all'estero. Milano: Soc. Na. Stab. Arti Grafiche e Alfieri e Lacroix, 1938., p. 89). A recorrência a esse discurso permanece nos livros subsequentes ganhando contornos sobre aspectos biográficos da vida de Mussolini, transcrevendo frases ou fragmentos dos discursos do mesmo.

Os livros são portadores de discursos, afirma Foucault (1979FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.). Os discursos enunciados nos livros dão conta, com certa constância, da produção de verdades, de regimes de verdade (Foucault, 1979). Regimes estes produzidos na ideologia fascista. Instituir processos identitários que permitissem aos italianos no exterior uma identificação direta com a Itália como pátria e a relação direta desta com o regime fascista. Ser italiano significava ser o herdeiro do Império Romano e o responsável por sua reconstrução, agora sob liderança do Duce. Os livros de leitura analisados evidenciam a possibilidade de reconstruir-se o império italiano, assim como fora o Império Romano. Nesse sentido, Roma é representada como o centro de todo antigo e também novo império (Franzina; Sanfilippo, 2003FRANZINA, Emílio; SANFILIPPO, Matteo. Il fascismo e gli emigranti. Bari: Laterza, 2003.). Frases do próprio Mussolini compõem o texto: "Salve, Deusa Roma! Salve a você, pelos que foram, são ou serão os teus filhos, prontos para sofrer e morrer pelo teu poder e pela tua glória" (Direzione, 1934DIREZIONE GENERALE DEGLI ITALIANI ALL' ESTERO (comp.). Letture per la classe quarta. Ilustrato da Carlo Testi. Milano: Soc. An. Stab. Arti Grafiche Alfieri e Lacroix, 1934., p. 41). Frases de outros pensadores da Roma antiga, como Horácio ou Virgílio, e de outros mais contemporâneos, como Gabrielle D'Annunzio e Cesare Cantú são presença nos textos dos livros analisados.

Mensagens aos jovens estudantes, pequenas frases ou textos mais longos, os livros trazem as palavras de Mussolini, marcavam presença nos livros didáticos. Os discursos são recorrentes no sentido de explicitar as responsabilidades, os valores e os ideais que precisavam ser praticados e referenciados pelos italianos, incluindo as crianças. Todos eram conclamados a serem soldados da nação. Entoação de cantos, hinos e cerimônias cívicas, práticas de ginástica e educação física, cuidados com a saúde e higiene, preleções acerca de valores morais e ideológicos identificados com o fascismo são elementos presentes nos diversos textos e mesmo imagens dos livros didáticos. A própria saudação fascista é representada em diversas ilustrações. Interessante observar que os discursos ao longo dos livros instituem papéis diferenciados para meninos e meninas. Ao analisar as políticas educacionais fascistas em contexto italiano Da Rosa (2009) postula questões que podem ser percebidas também para as políticas voltadas para o exterior, sem maiores diferenciações:

Os jovens e as crianças surgiram como o alvo principal da política educacional e de propaganda do Fascismo, pois através deles poderiam entrar na vida privada e pública da população italiana. As escolas, as universidades, as associações de trabalhadores (Dopolavoro), o cinema e as organizações da juventude assumiram a função de educar o 'novo homem' e de divulgar a cultura política do novo regime. Nas instituições do Fascismo, meninos e meninas recebiam uma educação voltada para a vida fascista, onde aprendiam que valores internalizar, como se comportar no dia a dia, a quem idolatrar e que papéis sociais assumir. Os meninos eram educados para serem bons pais de família, bons trabalhadores e bons soldados, enquanto as meninas aprendiam que a função da mulher era cuidar do lar, do marido, da prole, além de reproduzir o maior número de filhos para que compusessem os exércitos de trabalhadores e soldados do Fascismo. (Rosa, 2009, p. 622)

Os pequenos balillas foram conclamados a participarem da restauração da potência italiana pela obra fascista. O quanto esses livros e seus discursos ressoaram no contexto escolar da Região Colonial Italiana do Rio Grande do Sul, Brasil, é algo a ser pesquisado.

O consumo dos livros escolares italianos no Brasil

Os livros escolares, em diferentes momentos, do século 19 ao 20, foram enviados da Itália pelo governo e distribuídos pelos cônsules e agentes consulares aos professores ou diretamente às famílias. O cônsul italiano de Porto Alegre, Enrico Perrod, incentivador da criação de diversas escolas, em 1883, em relatório ao Ministério das Relações Externas, afirmava que os colonos, reiteradamente, solicitavam escolas e melhorias nas estradas:

O dinheiro ainda é raro e o preço dos livros elevadíssimo. Um abecedário custa 500 réis (1,25 liras), uma pequena gramática, 1 mil réis (2,50 liras), e um simples livro de leitura, entre 2,50 e 5,50 liras. [...] Sobre uma média de rendimentos calculada em 300 franco ao ano, segundo meus cálculos, cada pai reserva pois, cerca de 60 a 70 francos para a instrução dos filhos. E que pediram a mim? Não subsídios pecuniários, mas livros escolares. (Perrod, 1883, apud Boni, 1985, p. 27)

Dos registros consulares, dos livros de atas das sociedades de mutualística ou de memórias, a circulação dos livros de leitura em diferentes contextos educou e conformou modos de ser dos imigrantes e seus descendentes. Um fragmento das memórias de escolarização de Benedito Zorzi, nascido em 1908 em Nova Pádua, distrito de Caxias do Sul/RS, filho de imigrantes, como muitos outros relatos, narra que o primeiro contato com livros foi com um escrito em italiano que o ajudou na alfabetização:

Eu comecei a frequentar, a frequentar a escola não, porque o tio Guilherme, Meno, era um colono como os outros, trabalhava o dia inteiro na roça e à noite pacientemente, na luz da lanterninha, del lumin, ensinou a leitura. Ele tinha um livro, chamavam silabário, trazido da Itália com cada trecho do livro, começava por ordem alfabética, A, B, C. Começava com o nome de cidade da Itália. Por exemplo, A, Ancona; B, Belluno; R, Roma; N, Nápoli, por ordem alfabética. (Zorzi, 1988ZORZI, Benedito. Entrevista a Liane Beatriz Moretto Ribeiro. Caxias do Sul, 22 mar. 1988., s/p)

As lembranças de Paulina Soldatelli Moretto, nascida em 1913 em São Marcos, na época também distrito de Caxias do Sul/RS e que frequentou a Escola Paroquial Dom João Becker no início dos anos 1920, também são relevantes. Segundo ela uma das melhores recordações da escola foi quando ganhou como prêmio de final de ano, um livro italiano: "Eu ainda tenho um livro, bem bonito, que ganhei no último ano que frequentei a escola paroquial [...] eu fui a melhor aluna, que estava adiantada, então ganhei um bonito livro. Foi o padre que deu o livro para prêmio. Um livro italiano, se chama Cuore" (Moretto, 1984, s/p).

Nas memórias da professora Alice Gasperin (1996GASPERIN, Alice. Entrevista a Sônia Storchi Fries e Susana Grigoletto. Caxias do Sul, 18 jan. 1996.) consta que o primeiro livro que recebeu também era em italiano, em 1913. A mãe o ganhara do agente consular em Bento Gonçalves/RS para a filha que passou a frequentar a escola italiana da professora Camila Roncaronni.

As evidências documentais sinalizam que os livros enviados pelo governo italiano foram distribuídos, em maior quantidade, às escolas mantidas pelas sociedades de socorro mútuo. As escolas étnicas rurais, comunitárias, receberam poucos livros. A quantidade de livros enviados também variou ao longo do período. No entanto, nos anos de 1920, quando numericamente as escolas italianas eram em número bastante reduzido, passou a haver maior envio de remessas de livros. Conforme o estudo de Giron (1994), no momento em que o fascismo se preparava para modernizar o ensino que seria destinado a preparar as populações dos núcleos coloniais italianos para as necessidades do regime fascista, as condições para o funcionamento das escolas deixavam de existir. A mesma autora realizou diversas entrevistas e afirma que, a partir de meados da década de 1920, "testemunhos de alunos que frequentaram as novas escolas italianas, levam a concluir que as mesmas, mais do que ao ensino da língua italiana, estavam voltadas para o ensino dos símbolos, cantos e ideologia fascistas" (1994, p. 101). Destacando alguns desses relatos, Giron (1994) ainda transcreve que

Ibanez Lisboa tentou, em 1934, frequentar um curso de italiano e de cultura italiana na Escola da Sociedade Príncipe de Nápoles [...], em Caxias. Após algumas aulas desistiu do curso, pois o professor agia como se estivesse na Itália e como se o regime vigente fosse o fascismo. O depoimento de Lorita Zampieri, que frequentou a escola primária em 1936, considerou que a mesma era muito "fraca", não aprendeu as mínimas noções de aritmética ou de ciências, enquanto aprendia a história e a geografia da Itália. Ao se transferir para uma escola "brasileira", teve gravíssimos problemas de aprendizagem. O depoimento de Giovani Scavino, que chegou ao Brasil em 1936, aos seis anos de idade, juntamente com seu pai, [....]. Tendo sido alfabetizado na Itália (Torino), não encontrou na cidade de Caxias nenhuma escola italiana [...]. Para continuar o curso primário, foi obrigado a frequentar a escola dos padres "murialdinos", situada em Ana Rech, onde através do estudo do latim conseguiu aprender com mais facilidade o português. (p. 101)

Em relatório de 1939 o encarregado dos serviços de nacionalização evidenciou o problema das escolas étnicas alemãs. Mas apontou também para as poucas escolas étnicas italianas que se mantinham e o quanto estas constituíam centros de difusão dos ideais fascistas. No relatório (1939) consta que

nas zonas de colonização italiana, pela maior afinidade de língua e costumes, a integração do imigrante se ia processando vagarosa, porém seguramente. Nas grandes cidades o problema oferecia aspectos diferentes: os responsáveis pelos estabelecimentos alemães diziam ministrar o ensino em ambas as línguas, o mesmo acontecendo com os italianos.

Na continuidade, o relator indicou que o primeiro choque após a publicação das normas relativas à nacionalização de ensino foi com o consulado italiano, que não acatou as regras estabelecidas:

O consulado italiano mantinha cinco aulas nesta capital e três no interior do Estado-Caxias, Pelotas e Santa Maria, em cada uma das quais, a pedido do consulado, colocara o Estado uma professora pública. Constantes eram as queixas dessas professoras com referência à obra de catequese política que lá se procedia. Entretanto, desaparelhado como se encontrava o Estado, éramos obrigados a cruzar os braços e a assistir impassíveis a absorção da nossa meninada, pelos exotismos ideológicos lá predicados. (Relatório, 1939)

No relatório se reconheceu, portanto, que mesmo que as escolas étnicas fossem em número reduzido ao final dos anos de 1930, as que existiam eram espaços propagadores dos ideais fascistas. Após os decretos n. 7.212, de 8 de abril. e n. 7.247, de 23 de abril de 1938, tornou-se obrigatório o registro de todos os estabelecimentos particulares de ensino e a proibição de usarem mais de uma hora de atividade escolar no estudo e uso da língua estrangeira. Conforme o relator as medidas foram amplamente anunciadas na imprensa e o prazo máximo estabelecido para o registro fora 23 de maio de 1938. Após os estabelecimentos seriam fechados. No entanto, o consulado italiano não acatara a normatização, acreditando que se aplicava somente às escolas alemãs.

Com o não cumprimento dos decretos em 24 de maio de 1938 os estabelecimentos escolares italianos foram visitados pelo relator que, segundo expos no documento, defrontou-se com situação muito mais séria do que imaginava:

Em presença do Sr. Berlingieri, diretor didático das escolas italianas, foi-me dado o verificar quão grave era a situação. Todo o corpo de professores era formado por elementos oriundos da península, noventa por cento dos quais se não expressavam em português. Ambiente puramente italiano, vendo-se pelas paredes, em profusão retratos do Sr. Mussolini, de S. S. M.M. os Reis da Itália, dísticos da propaganda fascista, gravados em gesso e bronze, frases do Duce, por forma alguma aplicáveis a atividade pedagógica, com os seus incitamentos bélicos, e até, atentatórias da soberania nacional, como um grande letreiro, onde em tipos garrafais se afirma que Mussolini, sempre e em qualquer lugar era assistido pela razão. (Relatório, 1939)

Na continuidade do relatório o diretor administrativo registrou um comentário acerca dos livros didáticos. Segundo ele os livros eram fornecidos gratuitamente e constituíam-se em "riquíssimas joias de impressão em papel superior, eram verdadeiras alavancas desagregadoras da mentalidade infantil" (Relatório, 1939). E, para corroborar com sua argumentação, transcreveu excertos retirados dos livros em que se exaltava a Itália como pátria, os símbolos fascistas e parte do texto em que se fazia a comparação entre os pássaros que migram e os emigrantes que, mesmo distantes da Itália, eram seus filhos. Era o livro Letture per la classe terza de Bagagli (1933BAGAGLI, Clementina (comp.). Letture classe terza. scuole italiane all'estero. Ilustrato da Liana Ferri. Milano, Italia: Soc. An. Stab. Arti Grafiche Alfieri e Lacroix , 1933b. a). O relator ainda apontava que "as crianças cumprimentavam aos mestres com a saudação fascista e cantavam a Giovinezza" (Relatório, 1939).

A presença de professores enviados pelo governo italiano, o envio de material escolar, especialmente livros didáticos, e a propagação do discurso fascista nos espaços das escolas étnicas foi uma realidade. No entanto, as reações não foram exclusivamente do governo brasileiro a partir de medidas de nacionalização do ensino. Nas próprias comunidades a simpatia com o Duce e o regime fascista não foi uma uniformidade.

As escolas italianas rurais receberam de modo irregular o material escolar do governo italiano, inclusive livros, e os professores, integrantes da própria comunidade, ensinavam em dialeto as noções fundamentais de leitura, escrita e quatro operações. Nas escolas mantidas pelas associações de mútuo socorro o currículo era diversificado e elas receberam, por um período de tempo mais regular, o material didático vindo da Itália, bem como professores enviados com o intuito de ensinar, mas também de manter ou criar vínculos de italianidade e atuarem como agentes consulares. Os subsídios pagos também foram inconstantes.

Assim, ao que tudo indica, a circulação dos materiais didáticos enviados pelo governo italiano marcou e foi mais frequente nos ambientes escolares urbanos. Percebe-se que houve diferenciação entre os livros didáticos enviados, seja em quantidade ou em conteúdo, conforme as políticas externas empreendidas pela Itália. Outro aspecto verificado foi a manutenção, ao menos breve, da leitura e dos livros anteriormente utilizados, em italiano, mesmo que já frequentassem a escola pública. Muitos desses livros e materiais escolares constituem refúgios pouco lembrados do tempo em que a escola, no Brasil, poderia ser italiana, alemã, polonesa. São memórias, indícios no tempo que permitem pensar a história das singularidades da educação brasileira.

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  • 2
    Ver Salvetti (1995)SALVETTI, Patrizia. Immagine nazionale ed emigrazione nella Societá Dante Alighieri. Roma: Bonacci, 1995..
  • 3
    A nominação emigrantes foi substituída por italianos no exterior, que passou a ser utilizada pelos órgãos diplomáticos referindo-se a todos os emigrados e descendentes.
  • 4
    Fasci all'estero: grupos que lideravam a organização da propaganda e difusão da ideologia fascista nas comunidades italianas do exterior, tentando cooptá-las. Desenvolviam também atividades assistenciais, culturais, cerimônias de defesa da italianidade e do fascismo.
  • 5
    Dopolavoro all'estero eram associações voltadas aos operários que no exterior converteram-se em "meio muito eficaz de aproximar, via recreação, esporte e cultura, os italianos do exterior ao fascismo." (Bertonha, 2001BERTONHA, João Fábio. O fascismo e os imigrantes italianos no Brasil. Porto Alegre: PUCRS, 2001. , p. 46).
  • 6
    Conforme Bertonha (2001)BERTONHA, João Fábio. O fascismo e os imigrantes italianos no Brasil. Porto Alegre: PUCRS, 2001. em 1934 eram sete as cidades gaúchas que tinham a organização de fasci all'estero: Uruguaiana, Pelotas, Rio Grande, Porto Alegre, Garibaldi, Bento Gonçalves e Caxias. No que tange às escolas pretendia-se "educar italiana e fascisticamente as crianças italianas nascidas no exterior" (Bertonha, 2001BERTONHA, João Fábio. O fascismo e os imigrantes italianos no Brasil. Porto Alegre: PUCRS, 2001. , p. 49).
  • 7
    Para a produção de livros didáticos para escolas na Itália, nesse período, consulte-se Ascenzi e Sani (2005)ASCENZI, Anna e SANI, Roberto. Il libro per la scuola tra idealismo e fascismo. Milão: Vita e Pensiero, 2005..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2016
  • Aceito
    02 Nov 2016
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