Resumo
A entrevista tem como ponto de partida o conceito de acustemologia desenvolvido por Steven Feld, utilizado como ferramenta para a reflexão sobre as relações e experiências de seus anos formativos. A conversa segue por suas influências, abordagens teóricas e metodologias experimentais utilizadas nos seus múltiplos projetos, demonstrando a complexidade do universo artístico e antropológico de Steven Feld.
Palavras-chave:
Acustemologia; Coestética; Antropologia do/no som; Ativismo sonoro
Abstract
The interview starts with the concept of acoustemology developed by Steven Feld, used as a tool to reflect on the relationships and experiences of his formative years. The conversation follows with his influences, theoretical approaches, and experimental methodologies applied in his multiple projects, demonstrating the complexity of the author’s artistic and anthropological universe.
Keywords:
Acoustemology; Coaesthetics; Anthropology of/in sound; Sound activism
O músico, antropólogo, cineasta, professor e pesquisador estadunidense Steven Feld é uma das principais referências da antropologia do som e da música na atualidade, com uma significativa e diversificada produção. Essa abrange livros, artigos, coletâneas, filmes e registros fonográficos que vão da documentação etnográfica à arte sonora. A pertinência de sua obra para os estudos sociológicos e antropológicos das sonoridades atravessa uma pluralidade de temas que perpassam as inquietações da antropologia a partir da década de 1980 - da etnografia das formas poético-sonoras e musicais Kaluli às questões e paradoxos advindos da globalização e da ampla circulação musical e fonográfica; dos sons de sinos em pequenas vilas europeias e sua relação com concepções de tempo e espaço à música e músicos de Jazz em Accra, Gana. Toda essa trajetória é marcada por uma abordagem experimental que expande as possibilidades das formas de representação etnográfica.
Analisando essa produção como um todo, percebe-se que Feld traça ao longo de sua trajetória um movimento teórico-metodológico que se inicia com a proposta de uma antropologia do som, no contexto de um debate fundante da antropologia da música e etnomusicologia, e se desdobra no conceito inovador de acustemologia, que articula sonoridade, cognição, percepção, sentimento e ambiente.
Nosso interesse e aproximação com a obra de Steven Feld se inicia de modo mais sistemático em 2017 e, desde então, ele passa a inspirar diversos cursos oferecidos por nós, tanto na graduação como na pós-graduação. Feld seguiu como referência importante, e o crescente envolvimento com a sua produção nos fez elaborar e ministrar, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), durante o segundo semestre de 2021, um curso dedicado às leituras, escutas e visionamentos que atravessam múltiplos interesses do autor.
A experiência de imersão em sua diversificada obra, somada ao desejo de compartilhar com um público mais amplo nosso entusiasmo com suas ideias, composições e experimentos etnográficos, nos motivou a elaborar esta entrevista, ocorrida nos dias 16 e 23 de novembro por meio da plataforma Zoom. Steven Feld nos recebeu tendo como tela de fundo a imagem de um pássaro muni na mata da região Bosavi. Com tom emotivo e muito expressivo, Feld ilustrou sua fala com sons, imagens e gestos, tornando o encontro uma experiência em sua totalidade.
As perguntas e temas foram elaborados por nós coletivamente; desejávamos conversar sobre seus primeiros anos formativos na infância e juventude, sua longa relação e colaboração com os Kaluli, seus projetos na Europa e em Gana, além de suas reflexões sobre as políticas da world music e sobre as formas de representação etnográfica. Ainda nos interessava conversar sobre os conceitos que desenvolveu e os autores que marcaram sua criativa trajetória acadêmica, dedicada ao estudo das sonoridades.
A entrevista pretende ser uma contribuição para os esforços de divulgação e tradução da obra de Steven Feld para a língua portuguesa. Trata-se de um projeto que se junta ao movimento propagado nos últimos 15 anos em que se percebe um renovado interesse por suas ideias, experimentações e composições sobre, com e no som.
PRIMEIRO ATO
Acustemologia da infância e da juventude
Tatiana, Wagner e Felipe: Gostaríamos de começar nossa conversa perguntando sobre a dedicatória de Sound and Sentiment: “O menino que virou um pássaro muni, em memória de Charlie Parker, John Coltrane, Charles Mingus, ane kalu ɔbɛ mise”. Seria interessante ouvir suas considerações sobre o que estava presente em sua mente e em seu coração naquele momento.
Steven Feld: Eu tinha um sentimento muito forte - isso foi em 1979, quando estava escrevendo minha tese, que traz a mesma dedicatória - de que esse livro, essa imaginação, a possibilidade desse encontro nunca teria sido possível sem o menino que virou um pássaro muni. Então, a minha dedicatória inicial é para o mundo da mitologia, que possibilita às pessoas viajarem de uma cultura para outra e que a distância entre elas seja reduzida por meio da poética. Foi essa história que tornou possível imaginar que havia algo do meu mundo que eu podia trazer para o início de uma compreensão da complexidade do outro mundo.
Parker, Mingus e Coltrane foram personalidades que morreram cedo, envoltas em uma grande mitologia. Mingus até criou uma mitologia ao escrever Beneath the Underdog. Parte fantasia e parte memorial-autobiográfico, é um mitocosmos do seu mundo. Coltrane, particularmente no período tardio de sua vida, após A Love Supreme, dedicou-se à espiritualidade, às estruturas sônicas do universo e à cura. O seu espectro de som era um espectro de esperança, um grito de liberdade.
Sou da Filadélfia, e Coltrane passou um período formador de sua vida na Filadélfia. Para mim, ele será sempre uma referência mítica. A quantidade de vezes que caminhei até a casa onde ele morou e fiquei ali parado em êxtase, como se estivesse na catedral mais extraordinária na face da terra, era o mesmo modo em que eu me encontrava parado na floresta, ouvindo os pássaros. Apenas sentia que todos esses músicos me ofereceram, em diferentes momentos da vida, um modo de pensar sobre a música como transporte, como conexão, para além do mundo físico imediato, para além de qualquer ideia simplista do que é espiritual.
Wagner, Tatiana e Felipe: Gostaríamos de saber sobre a dimensão subjetiva do som e da música na sua vida, as suas memórias do som e do sentimento em casa, no bairro, na cidade ou nas cidades do seu passado - algo que poderíamos chamar de uma acustemologia da sua infância e juventude.
Steven Feld: Eu nasci na Filadélfia, no leste dos Estados Unidos, e meu pai era um pianista muito bem-sucedido no mundo da música popular e do jazz. Ele tocava para nós todas as noites e continuou fazendo isso até morrer, em 2018, aos 95 anos. Quando eu era bem pequeno, só dormia ao som do piano. Tenho uma primeira memória muito poderosa da vibração do seu piano Steinway B de dois metros - deitado sobre o tapete debaixo do piano, sentindo seu pé marcando o tempo e escutando as harmonias de canções de jazz e de música popular.
Quando eu tinha idade suficiente para ficar de pé ao seu lado no piano, meu pai fazia com que eu pusesse a minha mão esquerda sobre a sua mão e me ensinou a cantar as linhas de baixo de centenas de canções, que é como aprendi a harmonia do jazz. Até hoje consigo fazer isso. Embora não tenha me tornado um baixista, vocalizava a parte do baixo com frequência para o meu pai e depois, quando comecei a tocar trombone e tuba, tocava as partes do baixo e também as melodias.
Cresci em um mundo muito musical. O meu avô tocava bateria e o meu tio era violinista. A família da minha mãe também era muito musical. A irmã da minha mãe, uma cantora e pianista maravilhosa, se tornou terapeuta musical. Foi a minha primeira babá, porque tinha 14 anos quando nasci. Ela cantava comigo constantemente quando eu era pequeno, uma parte memorável dos meus primeiros anos.
Também tínhamos um equipamento caseiro de gravação. Era um gravador de discos - antes da era dos gravadores de fita de rolo. Era um toca-discos grande, e em um lado havia um braço para tocar o disco, no outro lado havia um outro braço para gravar os discos, e eles se voltavam para direções opostas. Debaixo do toca-discos havia um grande amplificador de válvula dentro de uma caixa e um microfone.
Tenho gravações cantando e tocando com a família desde os dois anos e meio. Há canções em iídiche, em inglês, eu vocalizando e brincando com os meus avós e contando piadas. A minha primeira gravação solo foi de outra gravação que estava tocando no meu toca-discos de 45 rpm! Então, me tornei engenheiro de som aos três anos e meio (risos)! Eu amava fazer essas gravações e ouvir as vozes da minha família toda. Acho que isso despertou em mim uma percepção poderosa de que as conexões mais básicas com o som e com a música são ancestrais, conectam as vozes com as temporalidades, os lugares e as memórias. A nossa experiência de chegar e aprender a estar no mundo envolve um momento mágico, o momento em que nos damos conta de que cada pessoa tem uma voz diferente, que cada um soa diferente.
A minha primeira consciência real da similaridade e da diferença foi perceber como certas palavras e frases, em iídiche e inglês, se justapunham. Me lembro de cantarolar junto com uma gravação de Mickey Katz: “matzos e knishes / they’re so delicious”1 1 Feld faz referência à música The baby, the bubbe, and you. Mickey Katz foi um músico e humorista norte-americano que ganhou notoriedade por escrever e interpretar paródias que jogavam com fonemas em inglês e iídiche e com a sonoridade da música Klezmer. . As palavras e os sons não se equilibram ou rimam necessariamente. Mas combinar comidas judaicas familiares e especiais, e alongar a palavra “delicious”, unia o som e o prazer de um modo singular. Meus avós vieram de diferentes partes da Europa - Áustria, Hungria, Romênia e Rússia -, e suas vozes eram um modo especial de como comecei a conhecê-los e amá-los. Sem entender que se tratava do som como modo de conhecimento no mundo e o som como um modo de vir a ser, minha primeira infância girou muito profundamente em torno do som.
A próxima parte da minha infância também girou intensamente em torno do som, porque estávamos nos anos 1950, e sou disléxico. Eu não aprendi a ler com facilidade, e mesmo quando aprendi não li bem por muito tempo. Então, tive que desenvolver o meu próprio modo de ler, procurando ideias ao invés de encontrá-las a partir de uma leitura linear. O que os outros aprendiam lendo eu aprendia memorizando. Aprendi muita coisa sobre estar no mundo apenas memorizando sons e frases. A mesma coisa aconteceu com a música. Os professores disseram que eu nunca poderia ser músico porque começava a tocar alguma coisa e justapunha dois valores rítmicos, como se estivesse invertendo ou misturando duas palavras em um texto. Então, a cada teste ou apresentação com o grupo da escola, eu apenas memorizava a música. Havia uma interação constante com o toca-discos - às vezes meu pai gravava coisas para eu aprender ouvindo - ou minha mãe lia e eu repetia de novo e de novo até desenvolver uma boa memória para longas sequências. A minha conexão com a tecnologia, a memória e o reconhecimento do som teve essa estranha característica desde cedo. A dislexia era uma deficiência, mas se tornou um poder, algo que eu podia controlar e esconder das pessoas. Porque naqueles dias, nos anos 1950, se você fosse disléxico as pessoas diziam que você era idiota e que nunca seria capaz de progredir, especialmente chegar à universidade.
Felipe, Wagner e Tatiana: Você acha que a memória é um elemento muito forte em seu modo de conhecer?
Steven Feld: Sim. Quando estava na floresta, na região Bosavi, e escutava um pássaro, invariavelmente não conseguia vê-lo, então olhava para o lugar de onde vinha o som. Perguntava às pessoas o nome da árvore, os nomes das folhas, sobre as outras árvores ao redor, de que tipo de alimento ou fruta se tratava. Isso era como uma imagem para preencher, como pintura numerada, algo familiar ao meu modo de conhecer e aprender. Eu fazia pequenos mapas mentais que eram tanto visuais como sonoros - esse ou aquele som vinham juntos com essa ou aquela árvore ou lugar como uma imagem. Isso me forneceu um modo inicial de compreender a complexidade do mundo da floresta.
Comecei então a realizar experimentos de gravação. Gravava o som no nível do chão; gravava o som na altura da minha cabeça; e gravava o som um metro e meio acima desse ponto. Depois gravava o som a um metro e meio de distância e a três metros de distância. De lá, isso forma um “L” - imagine esse “L”, ok? Imagine que o “L” na verdade cria três triângulos desiguais e esses triângulos desiguais constituem o mapa de onde as coisas vivem no mundo. Então, os pássaros que cantam em determinada altura e profundidade na floresta são em geral ouvidos em um ponto do triângulo; os pássaros que vivem nas copas até a floresta mediana são ouvidos em outro nível; e os pássaros que estão no chão e movendo-se para cima são escutados nesse nível.
Diagrama feito por Feld para explicar seu sistema de gravação das múltiplas camadas de som e do espaço da floresta, na região Bosavi
Me dei conta de que o som é espaço tanto quanto tempo. Se eu quisesse entender a floresta como um sistema sonoro espacial e temporal, tinha que aprender um novo modo de ouvir. O meu modo ocidental de ouvir imediatamente recorria aos olhos: olhando para cima e olhando para fora. Isso não funcionava de jeito nenhum. Eu tinha que aprender a ouvir desse outro modo, um modo relacional, um modo em que você relaciona os sons em função de onde eles se movem e como sua profundidade e imediaticidade se movem nesse tipo de mundo espacial da floresta. Isso era maravilhoso! Não era um experimento formal como a ciência cognitiva, mas era um modo, etnográfica e interativamente, de usar o meio da gravação para criar um experimento de escuta dialógica ou audição dialógica, como ouvir em diálogo. Começar a compreender uma abordagem da escuta, era um modo Bosavi de perceber o som e a floresta. Isso, é claro, afetou as minhas gravações ao longo dos anos. Esse tipo de ideia - aprender a ouvir em um novo idioma espacial - foi uma das partes mais bonitas da minha experiência na floresta.
Tatiana, Felipe e Wagner: Voltando um pouco, Steve, você falou sobre a sua experiência de infância e agora chegamos na juventude. Como você começou a pensar que gostaria de tocar música? Como você acabou estudando antropologia? Como essas experiências diferentes confluem no seu trabalho acadêmico?
Steven Feld: Eu estava sendo preparado ou desenvolvido para ser músico porque os professores disseram aos meus pais que eu não tinha a capacidade mental ou habilidade para me matricular na universidade. Então, quando eu estava no ensino médio, dedicava todo o meu tempo à música. Era um péssimo aluno. Não gostava da escola. Era extremamente entediante e a leitura era especialmente difícil. Eu estava sempre devaneando; tocava música e amava especialmente o jazz e o desafio de improvisar. Cresci num lugar que tinha uma quantidade tremenda de jazz e onde a relação entre a comunidade judaica, a comunidade italiana e a comunidade negra era muito fluida no que diz respeito à música. É claro, era também profundamente racista e as oportunidades nunca eram iguais. Havia muito preconceito nos anos 1950 e 1960; ainda assim tive muita sorte. Pude estudar com músicos negros, com músicos italianos, pessoas incrivelmente habilidosas. Elas me ajudaram a socializar com o mundo em que se fazia música. Meu pai tinha uma coleção de discos que era como um outro currículo. Quando cheguei ao penúltimo ano do ensino médio, podia te dizer cada música que o Art Tatum já tinha tocado e em que tom ela era. Eu absorvia tudo o que podia das gravações de disco e tentava tocar com elas. E tinha um enorme desejo por conhecimento musical naqueles anos; provavelmente foi o que me manteve são, especialmente como um adolescente isolado.
Durante um tempo toquei em grupos de música popular, fiz shows, toquei em big bands, em bandas de baile e bandas de blues. Naqueles dias, as bandas de blues estavam adicionando o trompete, o saxofone e o trombone como seção de sopro. Vocês se lembram de Blood, Sweat, and Tears? Da Al Kooper Band? Da Paul Butterfield Blues Band? Escutei toda essa música de blues com sopros e amei, eu tocava muito daquilo. Ingressei na universidade em 1967 e houve um acaso maravilhoso, ou melhor, três acasos.
O primeiro acaso foi que havia um professor de jazz maravilhoso, um músico de jazz que tocava trompete. Ele conhecia muitos músicos em Nova York e encorajou as minhas aulas com o pessoal do jazz. O seu nome era Herb Deutsch. Herb também foi coinventor do sintetizador com Robert Moog, e no subsolo do Departamento de Música da Hofstra nós tínhamos as peças originais do equipamento de Moog, de 1964. Em 1967 falei com Herb que queria aprender mais sobre elas. Em 1969-1970, nossa escola teve o primeiro estúdio universitário com um sintetizador Moog e um curso de um ano de produção de música concreta e eletroacústica. Era meu terceiro ano na universidade e amei tudo a respeito desse curso. Me tornei muito bom em gravação e em fazer emendas de fitas de rolo. Também fiz pequenas trilhas sonoras para filmes. Assim, me tornei um grande devoto do trabalho de Edgard Varèse, Pierre Schaeffer e todos os luminares da música concreta. Ao mesmo tempo, me dei conta de que o sintetizador era uma ferramenta muito interessante para compreender a materialidade do som.
O segundo acaso: eu era muito ativo politicamente e no meu primeiro ano da universidade, na primavera de 1968, organizei com outras pessoas uma aula-protesto contra a Guerra do Vietnã. Durante a tarde, alguém entrou na sala e disse que o Dr. Martin Luther King acabara de ser assassinado. Naquele momento, dois antropólogos, Sam Leff e Gerry Rosenfeld, que mais tarde se tornaram meus mentores e amigos, discutiram a relação entre racismo e militarismo, porque havia uma grande conexão entre o assassinato do Dr. King e o assassinato dos vietnamitas. Eles explicaram como o racismo funciona apagando o valor de outras vidas, tornando fácil matar sem o sentimento de uma humanidade em comum. Eles mostraram como isso era parte da supremacia branca e das ideias de uma raça “dominante”. Fiquei completamente atônito. Eu nunca tinha ouvido falar em antropologia, não fazia ideia do que se tratava! Então, no meu segundo ano, no outono de 1968, me matriculei num curso introdutório sobre raça, genética e antropologia biológica e em outra introdução, à antropologia social e cultural. E foi isso. Pensei: “Isso é maravilhoso! Isso é muito maravilhoso!”. Foi nesse momento que cheguei à conclusão: “Ok, eu quero fazer antropologia e música”.
Eu adorava o modo como esses dois mundos pareciam compatíveis: que o jazz também era sobre ativismo social e direitos civis e sobre igualdade, e sobre uma visão diferente das relações humanas; que a música eletrônica era sobre a fronteira da compreensão de que toda música é som, que toda vez que você se senta com um sintetizador poderá inventar um instrumento novo. Isso parecia tão próximo ao modo de pensar da antropologia, de que quando você se engaja seriamente com uma outra cultura você tem que inventar ferramentas diferentes para compreender como os outros compõem suas vidas. Comecei a pensar sobre a composição na música e a composição na sociedade como elementos muito similares, com materiais fixos e materiais não fixos. Na música eletrônica você tem uma onda senoidal e nas sociedades você tem relações de parentesco. Mas dentro da relação de parentesco você pode ter muitas variações. E dentro do conhecimento de como usar a onda senoidal você também pode ter muitas variações! Isso esteve comigo desde que eu tinha 19 anos. Foi incrível e me lembro disso até hoje, como se tivesse sido ontem!
Agora, o terceiro acaso. A minha universidade contratou Colin Turnbull para dar aulas de antropologia. Colin estava no Museu de História Natural em Nova York, desenvolvendo a exposição africana. Fiz um curso com ele, em 1969, e nos tornamos grandes amigos quando me contratou para transcrever a música Mbuti. Colin era músico, um grande cravista com formação incrível em música de órgãos de igreja. Foi o meu primeiro modelo de como se podia ser um músico, mas dedicar a sensibilidade de fazer música à compreensão das relações sociais. Colin foi uma grande inspiração, assim como Herb Deutsch foi uma inspiração maravilhosa. Então, em música, eu tinha esse mundo do jazz, da eletroacústica e da música concreta. Em antropologia, eu tinha esse mundo engajado com a raça, a história, a cultura e o poder.
Foi Colin quem me disse: “Sabe de uma coisa, você tem um ouvido muito bom. Você consegue escutar coisas rapidamente e transcrevê-las. Você realmente devia pensar em estudar a música antropologicamente. Eu adoraria levá-lo para a floresta na África central, seria fantástico para você escutá-la. E você gosta da tecnologia da música, sabe gravar”. Então aqui estou eu, com 20 anos, e começo a imaginar: “Oh, existe uma vida em que as pessoas fazem essas coisas”.
Colin disse: “Olha, eu quero que você vá para um lugar com um programa muito forte em estudos africanos e onde respeitem o estudo da música para que você possa desenvolver suas habilidades e ir para a África central”. Ele me enviou para a Indiana University para estudar com o Alan Merriam, que também era um estudioso da música da África central e havia feito gravações por lá.
Após o meu primeiro ano de pós-graduação, em 1972, Edward e Bambi Schieffelin, trabalhavam na Papua Nova Guiné. Ouvi as suas gravações e fiquei profundamente intrigado, até hipnotizado, por algumas das canções. E, mesmo interessado na África central, percebi rapidamente que a música da melanésia era também muito inspiradora.
Alguns anos depois, Alan Merriam me enviou a Paris para conhecer Gilbert Rouget, no Museu do Homem, e o musicólogo Simha Arom para me inteirar sobre o legado francês de pesquisa e de gravações na África central. Mas lá em Paris, em 1974, Hugo Zemp me disse: “Olha, Steve, sou Suíço, cresci falando francês e alemão. É importante você saber que ser de fora do sistema francês e tentar trabalhar na África central vai levar muito tempo. Você terá que primeiro dominar o francês, passar muito tempo aqui, não vai ser um caminho fácil. Eu comecei a trabalhar na Melanésia agora, nas Ilhas Salomão, a música é incrível e sabemos muito pouco sobre a música melanésia”. Hugo me encorajou a acompanhá-lo até a Melanésia e os Schieffelins me encorajaram a ir com eles até Papua Nova Guiné, já que estavam prestes a voltar para lá. No ano seguinte, fui para a Melanésia sem nenhum preparo sequer! Meu estudo tinha sido para a África! E eu ainda fiquei sem ir à África nos próximos 30 anos!
Wagner, Felipe e Tatiana: Temos uma pergunta sobre a sua formação em artes. Você teve experiência com a síntese sonora, a antropologia e o jazz. A combinação de todo esse conhecimento no seu trabalho acadêmico reflete o seu alto nível de sofisticação. Observamos que em suas gravações de som e música você vai além da etnografia tradicional. Há muita experimentação no modo como você grava e no modo como você representa diferentes contextos por meio do som. Como isso se relaciona com a arte contemporânea e a arte sonora? Você mencionou que morou e estudou perto de Nova York. Você percebe alguma influência ou relação com a cena de vanguarda dos anos 1960 e 1970?
Steven Feld: Sem querer parecer nostálgico, acho que tive muita sorte porque Nova York, entre 1967 e 1971, era incrível em termos de jazz e de artes visuais também. E porque eu era disléxico, estava sempre nas aulas de arte, fazendo cerâmica, pinturas, fotografia. Essas coisas me vinham mais facilmente, como a música. Parecia que a fiação no meu cérebro aceitava os padrões dos sons e das imagens em suas múltiplas conexões, e isso me estimulou muito. Em Nova York, me envolvi com o rádio e com os happenings e fiz parte do movimento Angry Artists Against the Vietnam War2 2 Movimento ativista organizado por artistas, poetas, performers, atores e escritores em janeiro de 1967, em Nova York, contra a invasão ao Vietnã por forças norte-americanas. quando estava na universidade.
Eu absorvia especialmente tudo sobre a história do cinema e comecei a planejar ingressar na escola de cinema e fotografia. Assistia a filmes mudos e imaginava trilhas, pensando como poderia usar o gravador ou o sintetizador para compor minhas próprias trilhas sonoras. A tecnologia sempre esteve comigo. Porque eu não conseguia ler bem, não conseguia adentrar a mágica do mundo por meio das palavras. Então a adentrei por meio dessas tecnologias de fazer imagens e fazer sons.
Frequentei a escola de cinema durante os verões quando estava na pós-graduação. Me afastei da Indiana University durante um ano, contra os conselhos de Alan Merriam, para estudar cinema. Em Paris, conheci o antropólogo-cineasta Jean Rouch, que se tornou meu professor e depois meu amigo, e me tornei o seu tradutor americano. A minha ligação com o cinema etnográfico francês também se tornou muito importante. Rouch me ajudou profundamente a compreender que a antropologia e a arte eram compatíveis como pesquisa, como prática, do mesmo modo que descobri que a antropologia e a composição eram compatíveis. Percebi isso ainda na graduação, quando descobri essa compatibilidade estudando sistemas de parentesco do mesmo modo como se estudam a modulação e a síntese analógicas. Foi na pós-graduação, por meio da fotografia e do cinema, que tive uma percepção similar sobre a compatibilidade da antropologia com a composição visual.
SEGUNDO ATO
Histórias de escuta
Felipe, Tatiana e Wagner: Gostaríamos de conversar sobre a sua pesquisa com os Kaluli, que entendemos ser uma trajetória complexa que atravessa um longo período de tempo. Nessa trajetória, você experimenta diferentes modos de interação, colaboração e representação por meio de texto, som e filme. Faz sentido para você chamarmos sua relação e trabalho com os Kaluli como uma composição etnográfica expandida?
Steven Feld: O livro que estou escrevendo agora chama-se exatamente Research as Composition! De certa maneira, apresentei essa ideia mais cedo quando estava falando do Colin Turnbull, Herb Deutsch e a minha formação. Estou interessado no modo como a sociedade, a linguagem e a música fazem uso de um mundo de possibilidades para criar submundos de relações naturalizadas entre coisas humanas, não-humanas, materiais e imaginárias. Nós congelamos essas coisas demais quando usamos palavras como identidade e cultura. É claro que esse é um tipo de composição; há elementos tanto fixos como móveis na composição da vida e das vidas, em interação e em relação. Assim, tenho tentado usar a minha sensibilidade na música e na arte para falar sobre a ideia de que a representação da pesquisa deve ser explicitamente reconhecida como composição.
A política do futuro também é um tipo de composição: significa que eu tive um tipo de relação com o povo Bosavi nos anos 1970 e 1980, estávamos sendo compostos e fazendo a composição de um conjunto de relações quando eu estava com a geração dos pais, com os avós, com os bisavós das pessoas com as quais eu trabalho agora. Esses jovens tiveram mais formação, falam múltiplas línguas, podem conversar comigo em Tok Pisin3 3 Tok Pisin é a língua oficial da Nova Guiné, sendo a mais falada no país. Steven Feld e Bambi Schieffelin publicaram um dicionário Bosavi-Inglês-Tok Pisin (Feld & Schieffelin, 1998). e em inglês - seus avós com certeza não conseguiam. Eles querem me usar como um recurso, então a nossa relação atual e futura é sobre compor esse caráter de recurso - “Quem sou eu como recurso?” - para uma comunidade que me ensinou tanto e confiou tanto em mim. Por exemplo, com a composição do CD e filme Voices of the Forest, tenho uma responsabilidade muito específica de fazer coisas que contribuam para um futuro sustentável. O povo Bosavi é dono dessas coisas e ganham dinheiro de direitos autorais em função disso. Trinta anos de dinheiro proveniente desses projetos têm ajudado a manter as companhias de mineração, as madeireiras e outras empresas de extração afastadas da floresta. Não temos covid lá, porque temos o dinheiro para enviar helicópteros com mantimentos e materiais educativos.
Em todo estágio da relação entre pesquisa e composição há sempre a questão central da confiança. E a confiança se transforma em novas obrigações, em novas relações, em novas possibilidades; mais que tudo, se transforma na ideia de que - independentemente de mim como pesquisador, como acadêmico - essas coisas podem ter vida. As pessoas podem escutar Voices of the Forest ou assistir ao filme e não precisam saber o meu nome. Mas elas irão se lembrar daquele lugar e a relação profunda entre os sons que as pessoas fazem e os sons que elas escutam em seu mundo.
Aprendi a pensar assim, quase 40 anos atrás, e não foi em conversas com pesquisadores acadêmicos. Foi ao conversar com os Deadheads4 4 Deadheads é o nome dado aos fãs do conjunto musical Grateful Dead, que constituíram uma comunidade que compartilhava gírias e expressões próprias relacionadas ao repertório e performance do Grateful Dead. Grupos de Deadheads se tornaram notórios por um estilo de vida nômade, participando e acompanhando a banda em shows e festivais por diferentes cidades. e o baterista do Grateful Dead, Mickey Hart. Em 1983, Mickey ouviu o meu trabalho para a rádio, Voices of the Rainforest, um dia na floresta em 30 minutos. Ele me perguntou se podia tocá-lo num concerto do Grateful Dead. Os telefones tocaram durante semanas! “Onde podemos conseguir isso?”. Mickey disse: “Se eu quero saber o que é, os fãs do Grateful Dead vão querer saber também!”. Ele conhecia sua comunidade, e a resposta realmente me mostrou que a ideia de pesquisa como composição era também, fundamentalmente, um tipo de ativismo sonoro. Era um modo não apenas de compartilhar as coisas que eu sei, mas de ativamente transformar a consciência de outras pessoas para muito além da academia. É muito importante para mim que Voices of the Rainforest faça parte da história do movimento ambiental. As pessoas ouviam e faziam a conexão entre a questão da floresta na Nova Guiné e as inúmeras batalhas locais com as mineradoras, madeireiras e outras empresas de extração.
Mickey e eu temos uma relação de quase 40 anos e muitos me criticam por isso. As pessoas dizem: “Você abandonou a missão acadêmica ou o trabalho intelectual só para trabalhar com uma estrela do rock, e você só faz coisas para os fãs do Grateful Dead”. Mas não vejo isso como uma questão de abandonar um público e escolher outro; vejo isso como composição. Eu componho alguma coisa com a ideia de que seja uma máquina autogeradora que continua criando novas possibilidades para ver e escutar. Sim, podemos compartilhar um filme como esse com a comunidade de etnomusicólogos na Europa, no Brasil ou nos EUA. Mas muitas das pessoas que alugam e assistem ao filme são fãs do Grateful Dead. A pedido de Mickey, eu até preparei filmes e sons para a turnê do verão de 2021 do Grateful Dead. Isso foi exibido em 30 cidades, e em cada show havia entre 20 a 25 mil pessoas. Para mim, meu nome não importa, a ideia de que sou autor de um trabalho acadêmico não importa. O que importa é que mais pessoas podem viajar até Papua Nova Guiné desse novo modo e ver como o povo Bosavi compõe uma vida e como, juntos, pegamos a história da escuta Bosavi e a minha história da escuta e criamos a possibilidade de uma nova história da escuta.
Wagner, Felipe e Tatiana: É um modo de transmitir o conhecimento científico por meio da experiência da escuta, um modo de comunicar e disseminar o conhecimento. Entendemos que no filme há um tratamento ambisônico. O filme foi feito para a sala de cinema, certo? Você consegue escutar as camadas dos sons da floresta e sentir o movimento do som ou sua posição no espaço.
Steven Feld: Sim. Você consegue ouvir o som estéreo no laptop ou na TV. Mas na sala de cinema você consegue ouvir som imersivo surround 5.1 ou 7.1. É como um concerto de rock ecológico. Eu chamo a experiência de “eco-rock-umentário”.
Felipe, Tatiana e Wagner: Steve, você disse uma coisa muito interessante: “Agora e no futuro eu sou visto como recurso”. Como você acha que era percebido nos anos 1990 e nos anos 1970?
Steven Feld: Nos anos 1970, eu era jovem. Quando cheguei na Papua Nova Guiné pela primeira vez, não conhecia uma palavra da língua sequer. Fui apresentado como o irmão mais novo de outra pessoa, a linguista Bambi Schieffelin, que as pessoas conheciam. Isso significou ser apresentado como o irmão da mãe do Zachary, que tinha cinco anos na época, e como cunhado do marido dela, Edward. Todas as minhas relações foram criadas em torno dessa família. As pessoas diziam: “Bambi trouxe o seu irmão mais novo porque ele é um homem do som no seu lugar de origem, e ele vai ajudar a recolher cantos e escrevê-los para que tenhamos nossa história do canto”. Talvez você possa categorizar isso como “eu enquanto recurso”, mas a parte mais importante das minhas relações com a comunidade nos anos 1970 era que eu era jovem e precisava de ajuda e de socialização, como uma criança. Eu era jovem e os homens com quem passava tempo eram jovens. A gente ia caçar, pescar e fazíamos caminhadas para lugares próximos e distantes. O tempo todo escutávamos dentro da floresta e a floresta. Também tive professores mais velhos, os pais e avós dos homens da minha idade. Mas as minhas relações foram realmente definidas pela minha juventude e pela ideia de que eu era como uma garrafa vazia na qual as pessoas tinham que derramar os modos locais de ser. E se eu absorvesse esse conhecimento, com o tempo eu me tornaria útil. Não importava se era aprendendo a língua, os cantos, ou sobre os pássaros, eu era um aluno em um mundo diferente. Naquela altura, as pessoas não me pediam para arranjar bolsas de estudo para ir à escola ou se podia arranjar mais mantimentos médicos - os tipos de pedidos que recebo agora todos os dias quando visito.
Nos anos 1980, quando voltei e as pessoas viram e discutiram o meu livro, comecei a mudar de posição social, e uma nova fase de diálogo e de edição dialógica se iniciou. É como se nos anos 1970 eles tivessem me ensinado geometria e nos anos 1980 eles tivessem dito: “Ok, agora você está pronto para cálculo”. Nos anos 1980, comecei a estudar temas que eram linguisticamente, sonoramente, culturalmente, geograficamente muito mais complicados. E a mesma coisa novamente nos anos 1990. Durante aquele período, Bambi, eu e mais cinco pessoas locais compilamos um dicionário da língua Bosavi e, em 1999, quando voltamos com cópias publicadas, as relações novamente mudaram. É como se dissessem: “Essas pessoas trabalham para nós; elas compreendem que há coisas que são importantes para nós; elas podem nos ajudar a assegurar nosso lugar no nosso país”. Então, voltar com o LP e o livro nos anos 1980, e depois com o CD e o dicionário, marcou transições sequenciais. As pessoas cada vez mais perguntavam sobre os Estados Unidos, a Austrália e o mundo exterior. Os jovens eram cheios de curiosidade, eles queriam que eu os ensinasse inglês e queriam ficar mais sofisticados quanto ao seu país e ao mundo.
Vinte anos após o nosso primeiro encontro, eles se tornaram antropólogos. Era sua vez de dizer: “Algumas pessoas dizem que o mundo gira em torno do sol, isso é verdade? Você pode explicar?”. Eles diziam coisas do tipo: “Nós temos nossas histórias, mas os missionários disseram que elas não são boas, que nós devemos escutar apenas as histórias deles. Mas você acha que essas histórias são verdadeiras?”. Toda essa retórica evangélica e apocalíptica que os missionários pregavam desde 1970, pela primeira vez os Bosavi me perguntavam: “Essas histórias são verdadeiras? Ou são como as nossas, como a nossa história sobre o rato que chega até a lua ao empilhar batatas doces?”.
Estava em processo essa reconfiguração total da relação entre o que é uma história, o que é a História, o que é a verdade. As pessoas desenvolveram uma nova consciência e acredito que é porque após 20 anos em torno de antropólogos, e compreendendo a nossa disposição em levar a sério suas subjetividades, eles começaram a direcionar o espelho para nós. As pessoas queriam compreender o fundamento moral do meu mundo tanto quanto eu queria compreender o fundamento moral do mundo delas. Isso envolveu uma transformação no modo como podíamos discutir o conhecimento, a escuta e o sentimento.
Em 2016, quando Voices of the Rainforest fez 25 anos, Mickey Hart me disse: “O que você quer fazer?”. E eu respondi: “Quero rever as fitas analógicas e recompor Voices como um concerto imersivo de som surround, levando-o para além do trabalho anterior”. Junto com Dennis Leonard do Skywalker Sound, passei um ano recompondo o trabalho digitalmente. E a reação ao material foi: “É como uma trilha sonora de filme, onde estão as imagens?”. Retomei as minhas antigas fotografias, todo o meu material filmado e decidi voltar a Bosavi e perguntar: “Podemos agora trabalhar juntos e fazer um filme?”.
Em 2018, retornei com o amigo e diretor Jeremiah Richards, e trabalhamos localmente para adicionar imagens à trilha sonora. Em 2019-2020, voltamos com Bambi também. Primeiro exibimos o filme na Universidade da Papua Nova Guiné para um público de alunos e também de antropólogos locais. O coordenador do departamento de antropologia da universidade graciosamente apresentou o filme, e outro antropólogo, o diretor do Museu Nacional da Papua Nova Guiné, fez uma crítica generosa. Foi uma experiência incrível! Havia algumas pessoas Bosavi na plateia e estavam muito orgulhosas.
Levamos o filme para exibições nas aldeias na floresta e, mais uma vez, tive a experiência de que a pesquisa como composição continua a ser gerativa. Depois que os moradores dos vilarejos assistiram ao filme, diziam: “Queremos um outro filme agora, queremos um filme sobre a música de String Band5 5 String Band é um conjunto musical popular entre jovens na região do Bosavi, caracterizado por vozes acompanhadas por instrumentação predominante de cordas, especialmente violões. O primeiro disco do álbum triplo Bosavi (Rainforest Music From Papua New Guinea), produzido e gravado por Steven Feld, é inteiramente dedicado ao gênero. , sobre a nossa vida de hoje, sobre sermos os filhos e netos daqueles no filme. Todos nós queremos falar”. Assim, filmamos entrevistas, discussões sobre o momento presente e a política na Papua Nova Guiné e comentários sobre a atividade madeireira e tudo o que os Bosavi estão vivenciando. Esse é o filme em que estamos trabalhando agora, chamado New Voices of the Rainforest.
Wagner, Tatiana e Felipe: Como foi retornar após tanto tempo?
Steven Feld: Foi incrível! Mas, é claro, por causa do aparecimento dos celulares, mesmo antes de viajar já conversava com frequência com as pessoas pelo WhatsApp. Assim, era possível falar sobre o filme. As pessoas diziam: “Quando você voltar, queremos que você traga computadores com todas as fotografias antigas, e vamos olhar para elas e falar, dia e noite, com você sobre as que queremos no filme”. Apenas uma coisa me surpreendeu: os Bosavi fizeram questão que houvesse fotografias de mim, de cada instante, desde o momento em que cheguei. Do ponto de vista deles, a história a ser contada também é a história deles comigo. Imaginei que fosse ficar de fora, mas eles acharam isso ridículo. “Não, não, a gente ama aquelas fotografias de você com os nossos avós, a gente ama aquelas fotografias de você em preto e branco. Você precisa mostrar às pessoas que você chegou aqui um menino e nós o ensinamos a ser uma pessoa de verdade”.
Tatiana, Wagner e Felipe: É um tipo de autoridade etnográfica em reverso, esse “queremos mostrar que nós ensinamos você”. Consideramos muito interessante como você faz diversos e criativos experimentos etnográficos - os erros calculados na construção da performance e do canto, as sessões em grupo, a escuta em conjunto, sua maneira de gravar, entre tantos outros. Tais experimentos nos fizeram pensar na relação entre Flaherty e Nanook e Jean Rouch com o seu conceito ativo de antropologia compartilhada, um termo muito similar à antropologia reversa ou antropologia simétrica. Quanto mais mergulhamos no trabalho do Rouch, mais de vanguarda ele nos parece. Ele falou de tantas coisas antes desses conceitos, certo? Temos uma pergunta sobre o quanto Rouch e outros foram uma inspiração para você. Sabemos que a edição dialógica foi uma conversa com a antropologia pós-moderna, mas quanto disso foi um diálogo com o Rouch?
Steven Feld: Quando fui para Paris como estudante em 1974, fiquei sabendo que Rouch tinha uma perspectiva muito crítica da tal antropologia reflexiva nos Estados Unidos. Ele disse que havia muitas piadas ou histórias internas sobre a autoria. Ele achava que o cinema poderia corrigir isso, porque alguém deve ficar atrás da câmera, alguém deve assumir essa responsabilidade. E aqueles diante da câmera podem falar com a pessoa atrás da câmera de um modo que é diferente das convenções do que dez anos mais tarde foi chamado de A Escrita da Cultura. Rouch falou para nós, estudantes: “Vocês podem tirar a câmera das suas mãos e colocá-la nas mãos de outra pessoa para que te filmem”. Rouch dizia que a reflexividade americana não compreendia o conceito de autoria. É claro que ele estava falando da teoria francesa do cinema de autor. Rouch nunca chamava seus filmes de reflexivos, embora fossem assim, desde o tempo de Chronique d’un été, de 1961. Ele dizia: “Eu faço filmes etnográficos em primeira pessoa”. E ele insistia que não importava o quão reflexivos, ou o quão compartilhados, tinha sempre que ter uma primeira pessoa. Ele dizia: “Sou o primeiro espectador dos meus filmes, no visor, vendo o filme pela primeira vez enquanto é filmado”. Rouch sentia a necessidade da autoria, da responsabilidade pessoal.
Nos anos 1980 e 1990, Rouch gostou das minhas ideias sobre edição dialógica e audição dialógica, não porque tivesse lido Bakhtin (ele não tinha) ou conhecesse a filosofia linguística. Para ele era uma questão prática, um tipo de orgulho do método. Rouch era meticuloso em trazer seus parceiros africanos para Paris e levar seus filmes para a África. Ele realmente pensava que o filme era uma intervenção poderosa na prática etnográfica, porque promovia e dependia do feedback. As pessoas podiam ver uma sequência de um ritual e dizer: “Não, você não pode fazer isso!”. Rouch sempre dava o exemplo de um filme que fez no início sobre a caça de hipopótamos, em que ele pôs música na trilha sonora para criar um suspense. Quando as pessoas assistiram ao filme, disseram: “Não, não, não, isso é silencioso. Você não pode ficar distraído pela música enquanto caça hipopótamos!”. Rouch depois escreveu sobre essa lição, declarando: “A música é o ópio do cinema”. Então, sim, o engajamento de Rouch com playback e feedback foi uma inspiração séria para mim. E daí desenvolvi inúmeras práticas de edição dialógica e audição dialógica.
Wagner, Tatiana e Felipe: É muito interessante e provocador quando você diz que o exercício de composição inspirado pela linguagem musical dos Kaluli foi um modo de compreender as teorias e concepções musicais deles. E esse exercício parece ter proporcionado a você o privilégio de acessar a experiência de ser emocionalmente afetado pela música e pelo som Kaluli.
Steven Feld: Esse é outro exemplo de pesquisa como composição. A pesquisa exigiu a disposição mental, as ferramentas e o desejo de compor. Também temos que compreender que é um tipo de jogo perigoso. É como se eu dissesse para você: “Nome é Steve meu”. Você responde balançando a cabeça e diz: “Ele é um falante nativo de inglês, então por que está dizendo uma frase errada gramaticalmente?”. Vocês não são falantes nativos de inglês, mas sabem que eu devia dizer “Meu nome é Steve”. Quando você está estudando uma língua que não compreende, uma técnica linguística muito boa - porque envolve falar, ouvir, playback e feedback - é deliberadamente dizer coisas que você sabe, ou que intui estarem erradas gramaticalmente na outra língua. E você sempre se pergunta: “Que tipo de reação irei receber?”. Dizer “Nome é Steve meu” é, então, um produtivo experimento linguístico cruzado.
Além disso, eu tinha que pensar sobre a relação entre a língua cotidiana e a língua do canto. Se eu posso dizer essa frase, posso também dizê-la num canto? Caso não, por que não? Compreender que há também uma gramática poética envolve experimentos com feedback e playback. Então, entoar cantos, compor cantos, pesquisar composição eram inseparáveis conceitualmente. Mas então a questão é como representar e contar a história.
Felipe, Wagner e Tatiana: Steve, esse exercício de compor no idioma Kaluli e cantar e brincar com os Kaluli têm influência ou é inspirado em Mantle Hood e na bimusicalidade ou provém de outra via, outra inspiração?
Steven Feld: Não, eu não fui influenciado pela ideia de bimusicalidade de Mantle Hood. Eu achava que a noção de bimusicalidade era ingênua, baseada em uma analogia muito trivial entre linguagem e música. O bilinguismo e a bimusicalidade são coisas muito diferentes. Considerei essa ideia de bimusicalidade pretensiosa e potencialmente racista. Mantle Hood foi um músico muito bom e um cara muito inteligente, mas você tem que relembrar a crítica de seu LP balinês na revista Ethnomusicology por Ernst Heins. Heins tocou a gravação de Hood para alguns músicos indonésios experientes em Amsterdam. Eles foram muito críticos e até disseram que o rebab estava um pouco desafinado. Então, Heins disse: “Esses são todos americanos”. E então os músicos disseram: “Isso é incrível! Fantástico! Maravilhoso! Eles são impressionantes!”. A meu ver nunca houve, na etnomusicologia, um discurso suficientemente crítico sobre o estrago que essa ideia provocou. Permanece incrivelmente ingênua.
Acho ótimo ir para qualquer cultura e estudar com músicos experientes. E acho ótimo que músicos experientes de outras sociedades ensinem em conservatórios ocidentais. Mas a ideia de um conservatório mundial da música não é etnomusicologia. É como treinar estudantes chineses a tocar música artística da Europa ocidental para que seu caráter chinês não faça parte da equação. Repare nos pianistas do mundo inteiro que tocam Bach. Isso é ótimo. Mas é muito diferente de quando estudantes de graduação de uma universidade americana tocam um repertório específico da Indonésia. E é também muito diferente de um estudante de pós-graduação ir para algum lugar para fazer pesquisa séria que inclui aprender um instrumento. Paul Berliner, por exemplo, foi para o Zimbabué nos anos 1970 para estudar mbira no contexto da cosmologia Shona. Ele se tornou um tocador de mbira competente, bom o suficiente para tocar com Cosmas Magaya e escrever um livro que apresenta a profundidade e a complexidade do conhecimento de Cosmas sobre sua tradição. Isso não tem nada a ver com bimusicalidade e tudo a ver com pesquisa musical baseada em uma relação respeitosa e saudável entre um etnomusicólogo e um músico local.
Eu quero fazer uma crítica da palavra e da ideia de bimusicalidade, mas ao mesmo tempo ser positivo e aberto sobre o tremendo valor do estudo profundo de um instrumento musical ou um conjunto de práticas musicais com um mestre da sociedade em questão. Eu fui estudar os xilofones gyil na África ocidental com Nii Otoo Annan, e quando tocava com ele mantinha o respeito de ser seu aluno. Existe uma história importante de respeito musical incorporada em alguns desses legados dentro da etnomusicologia que eu não gostaria de criticar de modo algum. Mas, em geral, a ideia de que a etnomusicologia é sobre bimusicalidade não auxilia os nossos estudantes nem os músicos cujas colaborações buscamos no processo de pesquisa.
TERCEIRO ATO
Coestéticas
Felipe, Tatiana e Wagner: Gostaríamos de falar sobre os temas da coestética e da emoção. Sound and Sentiment termina com a evocação de uma relação coestética entre o pesquisador e o sujeito: você apresenta a ideia ou a provocação de que para além da relação sujeito-objeto há uma dimensão humana permeada pelo afeto, sentimentos e emoções. O fato de você chorar quando recebe a carta de sua irmã e de Schieffelin, ou até quando Gigio derrama lágrimas ao ouvir o gisalo que você compôs, impactado pela despedida de Buck e Bambi, realça a dimensão sensitiva presente no encontro etnográfico, entendido como um encontro entre sujeitos, entre pessoas. De que maneira isso se relaciona com a ideia de observação participante? E o que você entende por coestética?
Steven Feld: O termo observação participante é colonial, remonta a um período inicial da antropologia; era uma tentativa de fazer a antropologia parecer uma atividade científica. Mas, evidentemente, é uma ficção. Se você vive com outras pessoas, você, sim, participa. Você janta com eles, observa, presta atenção em como eles comem o jantar, você aprende a não comer com a mão errada, ou com o utensílio errado etc. Não há absolutamente nenhuma ciência, nenhum rigor nisso. As palavras “observação participante” usam a mágica das palavras para criar uma aura, um prestígio, como se alguma coisa fosse controlada e científica. Mas isso sempre foi uma ficção colonial; foi sempre usada por nós para dignificar ou fingir que estamos fazendo algo parecido com a ciência. Não acredito que as ciências sociais devam imitar as características superficiais das ciências naturais, não acredito que devemos fingir que estamos num laboratório com moléculas quando estamos com seres humanos. Sabemos que a diferença entre pessoas é algo muito real mas, para reduzir a diferença que nos separa, a emoção, a lógica emocional e a dimensão cognitiva da emoção são parte fundamental do nosso fazer antropológico.
A ideia de uma antropologia da emoção emergiu no início dos anos 1980, na mesma época de Sound and Sentiment. Muitas pessoas acreditavam que se a gente usasse as palavras emoção e afeto do mesmo modo que usamos as palavras arte e estética, de algum modo, reduziríamos a ciência, reduziríamos nossa proposta de que fazemos um trabalho realmente científico e controlado. Sempre tive o ponto de vista oposto. Usar o termo observação participante não explica muita coisa. A emoção, por outro lado, é um modo de reconhecer que, em qualquer circunstância, todos os participantes têm emoções e você deve prestar atenção a elas; além disso, não é possível negar o fato de que as outras pessoas estão interessadas nos seus sentimentos e nas suas emoções. Às vezes, se eu estivesse com o cenho franzido, os Bosavi se aproximavam, olhavam para mim e diziam: “Qual o problema? Você está com raiva de mim”, ou algo assim. É muito importante a ideia de que, em algumas culturas, as emoções e o estado dos sentimentos, dos humores, do afeto são muito transparentes, e é necessário reconhecer isso. Em Bosavi, percebemos empiricamente que o choro é parte importante do ritual, da cultura expressiva e da estética.
Mesmo em outras culturas, por exemplo, no meu filme A Por Por Funeral for Ashirifie, o chefe da associação dos motoristas se dirige à família de Ashirifie e ele se vê numa situação difícil. Há um homem branco ali com uma câmera. Essa pode ser uma situação potencialmente difícil e explosiva. Então o que o chefe fez naquele momento? Ele olhou para todos os membros da família em luto - está no filme - e disse: “Alguns de nós nunca vimos um homem branco chorar”. Essa é uma declaração muito poderosa, vinda de um homem negro para outras pessoas negras. Ele prossegue: “Mas se você estivesse lá você saberia que esse homem chorou, então ele está aqui como um de nós”. Esse foi um modo de dizer que meu papel naquele contexto era como alguém em luto pela perda de Ashirifie, mas também que a minha presença com a câmera naquele momento era o meu instrumento musical, o meu instrumento de luto. Ele estabeleceu - sem ao menos citar o meu nome, sem contar a história do meu envolvimento com a associação dos motoristas ou a minha amizade com Ashirifie - para o grupo inteiro de pessoas, a maioria sem nunca ter me visto antes, que havia alguma coisa particular a respeito dessa relação.
Ao usarmos o termo coestética, somos conduzidos a reconhecer que há sempre uma interrelação entre os sentimentos e as emoções, o que define a natureza de como olhamos uns para os outros, como falamos, como confiamos uns nos outros. Se as pessoas olharem para as fotografias de nossos rostos agora, saberão eles que estivemos conversando antes, que nos conhecemos? Algumas pessoas irão dizer: “Oh sim, é óbvio, essas pessoas estão à vontade, elas confiam umas nas outras. E outras pessoas irão dizer: “Bem, não dá pra saber até ouvir as diferentes vozes”. Nós temos muitos modos de decidir se confiamos uns nos outros. Quando falo uma frase e você faz sim com a cabeça ou os seus olhos se arregalam ou ficam menores, ou você sorri levemente, ou se inclina como se estivesse escrevendo, todos esses gestos são parte do fluxo de comunicação. É impossível não chamá-los de estética. São estilizadas pelas pessoas na presença umas das outras. Quando estamos realmente presentes, há o olfato, o tato e todo um conjunto de elementos em relação aos nossos corpos no espaço e no tempo. E, com isso, há o prazer.
Não importa se chamamos isso de antropologia da estética ou de antropologia da emoção; as relações interpessoais se iniciam com o sentimento. Não há relação que não envolva sentimentos. Não podemos separar os sentimentos das relações. O que tentava fazer - e digo isso com modéstia e candura - era reconhecer que o desenvolvimento da minha relação com as pessoas em Bosavi era parte da estética da epistemologia. O sentimento e a emoção são centrais para a epistemologia, são centrais para como conhecemos e reconhecemos se algo é verdadeiro ou não. As próprias condições do conhecimento são relacionadas às condições do sentimento; essas dimensões não podem ser separadas. Dizer que podemos saber as coisas separadas da nossa atração por elas, separadas do nosso sentimento de sermos copresentes, separadas do nosso sentimento de que há uma certa simpatia na voz de uma outra pessoa de quem você gosta, ou que há uma certa agudeza na voz de outra pessoa que faz você se afastar, essas coisas são imediatas para nós, e uma das características mais imediatas é a voz.
A voz é um órgão experiencial de fabricação de verdades. O órgão fundacional de afetação da articulação é a voz, como o tato. A voz é um tipo de toque, é uma forma de coexperiência. Há afeto em tudo. Não importa se eu digo “sal é cloridrato de sódio”. Posso dizer o que parece uma afirmação científica completamente transparente, mas você sabe que, se eu dizê-la de um determinado modo, você sabe que estou fazendo uma piada ou sendo teatral. Sim, podemos tentar reduzir o que fazemos à observação participante, mas me parece que tem sido necessário, por muito tempo, sermos mais honestos e dizer: “O que fazemos não é observação participante, é nos relacionar para indagar sobre as relações e a relacionalidade”. Se relacionar significa que há uma dimensão afetiva, emocional, coestética e de copresença. Trata-se do significado de presença. Como você pode ter presença sem estética? Como você pode ter presença sem sentimento? Para mim, essa compreensão da coestética dá uma pancada final no prego do caixão do funcionalismo.
Wagner, Felipe e Tatiana: Agora gostaríamos de conversar sobre o termo “acustemologia”. É interessante e revelador acompanhar o processo de elaboração e desenvolvimento desse conceito, que aparece inicialmente em From Ethnomusicology to Echo-Muse-Ecology, em 1994, e é desenvolvido em trabalhos subsequentes. Seria importante ouvir você sobre o significado de acustemologia na sua obra.
Steven Feld: Em 1972, comecei a usar o termo antropologia do som, e isso foi porque era aluno do Alan Merriam e desenvolvia o que considerava uma resposta intelectual e teórica para o seu paradigma de antropologia da música. Eu sentia que a antropologia da música era extremamente fraca na dimensão da linguagem, voz e poética. O capítulo de Merriam sobre os textos musicais não investiga as questões da voz e da performance. Então, uma resposta à ideia de uma antropologia da música por meio de uma antropologia do som era realmente insistir numa antropologia da voz.
A essa altura, nos anos 1970, estávamos vivenciando muitas revoluções na tecnologia da música. A produção da música no mundo inteiro estava sendo transformada pela relação entre tecnologia e formas de produção de música ao vivo. A ideia de uma antropologia do som teria que incluir todas as dimensões tecnologicamente mediadas de produção de som e enfatizar o som em vez da música, no sentido da “música na cultura” do Alan Merriam. Além disso, tinha a dimensão das espécies: o paradigma da antropologia da música não continha nada sobre a produção de som por não humanos e a relação entre não humanos e humanos e a importância de uma perspectiva que levasse em conta todas as espécies e as interespécies. Essas ideias - uma antropologia da voz, uma antropologia conectando espécies para além do humano, uma antropologia do som que insistisse sobre a mediação e a tecnologia - ocupavam minha mente durante a elaboração de Sound and Sentiment, nos anos 1970 e 1980.
No meu trabalho de campo mais tarde, especialmente a experiência, em 1990, de gravar Voices of the Rainforest, durante um período de três meses de trabalho de campo em Bosavi, me dei conta de que alguma coisa não estava certa, que eu já tinha ultrapassado essa ideia. Tentava compreender essa sensação, e foi por meio de uma profunda releitura do trabalho de Maurice Merleau-Ponty que percebi estar procurando não uma antropologia do som, mas uma antropologia das percepções acústicas. Quanto mais lia e refletia sobre a fenomenologia do som e a fenomenologia da percepção, mais me dava conta de que estava tentando compreender o som como um modo de conhecer o mundo. Conhecer os pássaros na floresta. Eu me perguntava: “Como pode acontecer na evolução humana que tenhamos uma sociedade em que os melhores ornitólogos são também os melhores compositores? Quais tipos de condições históricas, ecológicas, cosmológicas, estéticas e criativas poderiam engendrar tal sociedade? Que tipo de equipamento - equipamento mental - é necessário para compreender e lidar com a natureza profunda de uma pergunta como essa? O que significa, nesse mundo, que cada criança aos 12 ou 13 anos já terá conhecido 75 ou 80 espécies de pássaros e seus sons, onde vivem e tudo mais sobre eles? O que significa que em mil cantos gravados encontramos sete mil nomes que mapeiam esse mundo? Que o canto é um mapeamento poético, uma cartografia poética da floresta?”.
Comecei a ler mais e mais sobre epistemologia e fui profundamente influenciado pelo livro de John Dewey, Knowing and the Known. Em vez de pensar sobre a epistemologia nos termos das condições lógicas da verdade, me interessava a epistemologia como condições experienciais da verdade sentida e a ideia de que essas condições experienciais podiam ser culturalmente diferentes ou culturalmente específicas. E isso é o que foi importante para mim ao juntar as palavras acústica e epistemologia: considerando o som no sentido mais amplo - sua materialidade, sua acústica -, mas também reconhecendo que toda materialidade tem uma socialidade, que o conhecimento acústico pode ser conhecimento compartilhado, é conhecimento que circula, conhecimento relacional. É isso que me conduziu para a palavra acustemologia.
No verão de 1993, houve uma festa em homenagem aos 60 anos do compositor Murray Schafer no Canadá, com uma conferência chamada The Tuning of the World. Havia muita gente, compositores de rádio e pessoas que faziam parte do mundo do Murray de composição musical e arte sonora do rádio. Havia geógrafos e pessoas que reconheciam o modo como Schafer tinha sido tão influenciado por Marshall McLuhan. Também estavam lá todas as pessoas que haviam feito parte do projeto original, The Tuning of the World, nos anos 1970, em Vancouver. Naquele momento, eu já conhecia todo aquele trabalho. Tinha lido os livros do Murray, conhecia a Vancouver Soundscape, conhecia o European Sound Diaries. Me vi como o único antropólogo da conferência. Eu discordava de muitas das ideias do Murray, é claro, e escrevi sobre isso; nós éramos muito honestos sobre nosso conjunto de discordâncias. Uma coisa que eu realmente gostava no Murray era que ele não tinha medo de criar palavras novas. Ele não tinha medo de usar as palavras de um modo que pudesse ser dramático ou evocativo. Eu considerava que uma de suas maiores habilidades era ser um comunicador. Ele não era muito bom em defini-las, mas ele as empregava para pedir às pessoas para pensarem esses temas de modos diferentes. Então, quando fiz minha fala - que era o ensaio From Ethnomusicology to Echo-Muse-Ecology - usei o termo acustemologia pela primeira vez. Eu disse: “Na tradição de Murray Schafer, estou usando uma nova palavra” e que a acustemologia seria um modo para focarmos sobre a relação entre o som e o conhecimento, ou o som e a história, ou o som e o ambiente. Queria focar no modo de fazer som e no modo de conhecer; no som como produção de conhecimento, em qualquer lugar, em qualquer período, em qualquer ambiente e em qualquer contexto histórico.
Eu não usei a palavra agência porque não queria lidar com Bourdieu e a sociologia, mas estava falando sobre agência e habitus. Queria pegar a antropologia do som e torná-la pós-estruturalista, trazer a dimensão da agência, da ação e do actante na teoria do ator-rede de Bruno Latour. Intencionava tomar todas essas direções, mas sem as palavras pesadas sociológicas. Com as palavras “acústica” mais “epistemologia” considerei que o público iria compreender melhor. Algumas pessoas consideraram que essa nova palavra era completamente ridícula e outras que era divertida e interessante. Quanto a mim, não fazia ideia se esse conceito iria render. Atualmente me perguntam com frequência: “Quando você vai escrever um livro sobre acustemologia para detalhar todos os métodos e teorias?”. E a minha resposta é sempre a mesma: “Nunca”. O mais importante é a palavra e para onde ela pode levar a sua imaginação ao compor pesquisa, ao compor interpretação. Mas não quero te dizer o que fazer com isso. Não é algo que me interesse de jeito algum.
Tatiana, Felipe e Wagner: Você mencionou muitos autores que inspiraram você. Nos perguntamos sobre a obra de Gregory Bateson nesse conjunto de leituras.
Steven Feld: Bateson me influenciou desde cedo. Enquanto estava na Papua Nova Guiné, em meados dos anos 1970, li Naven. Mas, em 1972, quando era aluno de pós-graduação, a coletânea Steps to an Ecology of Mind saiu, e esse trabalho me influenciou muito mais. O ensaio do Bateson, Style, Grace and Information in Primitive Art, me tocou profundamente, porque ultrapassava a teoria das homologias, propondo uma teoria relacional da percepção da arte, da produção da arte e da coestética. O que apreendi indo e vindo entre aqueles ensaios e Naven foi a ideia de que Bateson sempre esteve interessado em uma epistemologia cibernética, que a qualidade relacional era um conceito central para ele - que as relações são forças gerativas, que são sistemas que produzem sistemas e que têm dimensões de entropia, de aceleração, de vitalidade e de conflito. É uma ideia muito rica de modos de pensar sobre os sistemas. A cibernética foi a obliteração do funcionalismo para mim. Via em Bateson um modo de pensar a respeito da ideia de sistema e compreender que o mais importante de um sistema é que nunca é fechado. Nas sociedades humanas, a natureza dos sistemas não é apenas que são abertos, mas que fazem proliferar suas próprias dimensões internas de finitude e transformação.
As ideias da cibernética e do Bateson se combinaram com o conceito de “transformação”, nos anos 1970, na linguística gerativa de Noam Chomsky. Também se combinavam com a ideia da ecologia como um modo de pensar sobre a complexidade dos sistemas e de compreender que as relações entre os humanos e os ambientes, como as relações sociais, sempre trazem materiais contraditórios, materiais que florescem e decaem. A epistemologia cibernética, o pensamento sobre sistemas, o pensamento sobre as relações, a produção de conhecimento como produção de relação, isso para mim, no início dos anos 1970, reuniu a linguística gerativa, a teoria cognitiva e a teoria ecológica. Outras coisas também me influenciaram naquele período dos estudos de pós-graduação, entre 1971 e 1975, mas provinham da música e da arte de vanguarda. Frequentei um curso durante aqueles anos com o compositor Iánnis Xenakis e aprendi sobre estocástica e a modelagem matemática na música, a relação entre música e arquitetura, sistemas e caos. Havia muitas coisas da música e das artes visuais e, particularmente, do cinema que me interessavam. Mas no mundo das ciências sociais a epistemologia cibernética e a ecologia da mente foram muito inspiradoras.
Felipe, Wagner e Tatiana: Também gostaríamos de saber como a acustemologia se relaciona com a antropologia dos sentidos? Qual é o lugar do corpo, do gesto e dos outros sentidos no triângulo acustemológico?
Steven Feld:Sound and Sentiment chegou no momento em que a antropologia do corpo, a antropologia dos sentidos e a antropologia das emoções começaram a florescer. Participei de conferências e antologias nessas áreas. Também foi o momento em que a antropologia feminista - e seu modo de teorizar o corpo e as emoções por meio do gênero - realmente trouxe a diferença para uma consciência mais ampla. Fui influenciado pela teoria feminista, mas o que diferenciava a minha perspectiva era que tentava articular essas ideias com a estética e as emoções aguçadas. A maioria dos estudos descrevia os sentidos e o corpo como condições rotineiras do ser. O que me interessava era estudar essas dimensões ao contrário: em vez de estudá-las primeiro, como as condições do ser inconscientes e no plano de fundo, partia das expressões públicas e compartilhadas. Mas fiz algumas afirmações e erros naquela época, influenciado pelas ideias estruturalistas sobre natureza e cultura. Foi só depois, sob a influência dos meus alunos, que vi o potencial do gênero para teorizar a relação entre o choro e o canto em Bosavi.
Desde o início, na Papua Nova Guiné, compreendi o corpo como um campo do ser. Em Bosavi, você conta com e através do corpo [Steve demonstra isso contando no corpo]. Você conta 17 subindo pelo lado esquerdo do seu corpo até aqui [aponta para a narina esquerda] e o dezoito é aqui [aponta para o terceiro olho], e em reverso há mais 17 aqui [percorre o braço direito num movimento descendente]. Isso cria um sistema matemático fundamentado no 35 baseado na anatomia, na compreensão básica de que o corpo é um design de simetria. Se você põe um colar em torno do pescoço, há 17 conchas aqui [aponta para o lado direito do pescoço], 17 conchas aqui [aponta para o lado esquerdo do pescoço] e uma de um tipo diferente no centro. O design do colar, o design da casa, o design do corpo e o design do sistema numérico constituem uma ecologia de conhecimentos. Nos anos 1970, pensava em termos estruturalistas, diferentemente de como entendo agora, de um modo mais fenomenológico, de um modo em que os termos do corpo são os termos do mundo: o modo como a relação com o corpo é em si um tipo de planta arquitetônica - ou um arquétipo - que estrutura e faz a mediação entre todos os tipos de compreensão estética, material, espiritual e conceitual. Então, a ideia do corpo como um lugar primário do ser e do relacionar-se é tão simples como o sistema de contar. O meu colega Jadran Mimica defende a perspectiva de uma imaginação da infinitude melanésia (isso está detalhado em seu livro Intimations of Infinity), partindo do corpo como o quebra-cabeças fundamental que as pessoas têm para operar. A existência de diferentes tipos de corpos se constitui como outro quebra-cabeças fundamental e, a partir dele, se formam estruturas de diferença.
O mesmo acontece com a voz. Por que cada pessoa específica tem um tom diferente de voz? Isso não é impressionante? Não importa quantos seres existam na Terra, cada um tem um som diferente. É porque cada um de nós vive em um corpo diferente, e a voz é em si uma esfera relacional de toda a materialidade dos ossos, do que está na nossa cabeça e do que está no nosso corpo. Cada um de nós é uma câmara de ressonância diferente. A voz se torna um material primordial para a imaginação da diferença. Como separar isso da estética? Como separar isso do saber e da memória? Daqui a anos, se eu não estiver mais aqui, você poderá ouvir uma gravação da minha voz e sempre irá conhecê-la, guardá-la na memória sonora e não a confundir com nenhuma outra voz. Você irá sempre se relacionar com a minha voz como o mecanismo por meio do qual proferi uma certa verdade, o mecanismo por meio do qual levei a sério a subjetividade e a importância intelectual de uma pergunta sua e depois te devolvi com uma coisa vinda de mim. A voz se torna a pessoa em um sentido profundo. Não é por acaso que a voz se tornou uma metáfora primordial da identidade. Você atende o telefone e instantaneamente sabe quem é. A pessoa do outro lado da linha tem apenas que dizer algumas palavras ou fazer alguns sons e já é possível esboçar uma imagem inteira de um corpo, uma presença, uma pessoa, uma relação.
O fato de que cada um de nós tem uma voz diferente por si só justifica a ideia de acustemologia, do som como um modo de conhecer. Imagine: eu nunca vou confundir a voz da Tatiana com a voz do Wagner ou a voz do Wagner com a voz do Felipe. Não importa se vocês têm a mesma idade, o mesmo tamanho e a mesma condição de saúde e venham da mesma região, ou falem um dialeto similar, ou falem inglês com um sotaque exatamente igual, ou digam as palavras de um determinado modo, eu nunca confundirei a voz de vocês. Como isso é possível? Como pode a nossa escuta, a nossa atenção à voz como diferença ser uma máquina tão poderosa para a memória e para a feitura da diferença? A que se deve isso? Há realmente uma forte indicação de que os seres humanos são escutadores profundos e que escutar está muito conectado com a mais básica verdade experiencial, conhecimento e memória.
Wagner, Tatiana e Felipe: Vamos agora mudar de assunto para o seu trabalho com os sinos. Você alinha diferentes contextos e experiências sociais a partir da presença de um objeto: o sino. Ao ver seus vídeos e ouvir suas gravações sonoras, observamos que não se trata apenas de um objeto ou do tipo de som que o sino produz, seu timbre. Isso é importante, mas também é o modo como o sino ressoa no espaço, o modo como contribui para construir esses contextos e situações muito diferentes. Você pode falar um pouco sobre o seu trabalho com os sinos, como você chegou a essa ideia?
Steven Feld: [Steve pega um pequeno sino e o faz ressoar]. O que é isso de fato? É uma máquina. A questão é: que tipo de máquina? Ao pensar sobre pássaros, sinos e epistemologia cibernética, o espírito de Gregory Bateson vem falar comigo para dizer: “Um sino, como um pássaro, é uma máquina que produz a consciência do espaço e do tempo. É para isso que os sinos e os pássaros existem no mundo”. Em cada momento de suas vidas e do seu ser, os pássaros da Papua Nova Guiné escrevem uma história sobre o espaço e o tempo. E essa história é relacional, é ecológica, não pode existir sem as árvores, as frutas, as pessoas, as estações e o clima.
O sino me pareceu a mesma coisa, e me dei conta quando estava caminhando na Grécia, perto da fronteira Búlgara, na Grécia Macedônica, com Charles Keil, em 2000. Estávamos ouvindo sinos por toda parte, mas não conseguíamos vê-los. Isso conduz à conexão do som com o conhecimento por meio do questionamento de como esse é situado em uma história da audição. E para mim foi parecido com estar na floresta, onde não se consegue ver os pássaros, mas é possível escutá-los e saber que eles têm uma ecologia e uma vida relacional complexa. Me dei conta de que a relação entre o pastor, o cachorro, os bodes, as cabras, o sino e eu conta uma história de dez séculos de história europeia do mesmo modo que aqueles pássaros na floresta contam uma história de 40 mil anos de história melanésia.
Quanto mais eu conhecia a história dos fabricantes de sinos na Europa, mais comecei a me dar conta de que há uma relação profunda entre o escutar e a identidade. Colegas me contaram histórias de pastores os acolhendo em casa e, com os olhos rasos de água, mostrando os sinos de animais que não estavam mais vivos. Eles guardavam o sino do mesmo modo que você talvez guarde uma camisa com o número de um grande jogador de futebol. Outros pastores brincavam comigo, dizendo: “Ok, vou virar de costas e dizer quem está onde”. E então: “Aquela mais perto de mim, à minha direita, aquela tem uma mancha marrom bem em cima do ombro esquerdo, tem uma cicatriz onde foi cortada debaixo do olho à direita, e tem dois sinos, um mais velho e um mais novo”. Eles conseguiam contar a história dessas ecologias acustemológicas, detalhando cada sino em cada um de seus animais. O sino é a voz daquele animal, uma voz que vive em relação com outras vozes, animais e humanas. Como o fabricante de sinos faz cada sino um pouco diferente de todos os outros, de modo que cada animal tenha uma voz diferente?
E depois, no carnaval, ouvi como os sinos criam um barulho que vira o mundo de cabeça para baixo. Imagine, cada dançarino com 30 kg de sinos sobre o corpo, pulando nas ruas. É incrível! E comecei a pensar: “Ok, isso é uma ecologia, um conjunto acústico de relações”. As vozes dos animais, dos pastores, das pessoas, os sons do carnaval, da igreja… Esse é um modo sonoro de escrever a história europeia como histórias de escuta de relações sociais, as relações de seres humanos e animais. Quando você caminha pelo campo acompanhado de um pastor e escuta esses sinos, trata-se de uma tecnologia antiga, uma antiga ecologia relacional. Mas, no bolso de trás da calça do pastor, você vê um celular ou rádio transmissor, e talvez esteja ligado transmitindo os noticiários ou algo do gênero. Para mim isso é como uma cápsula sonora de tempo em que milhares de anos podem reverberar em apenas um segundo. Comecei a colecionar diferentes sinos e a mantê-los perto de mim, sobre a mesa, na prateleira, no parapeito da janela. Viver com essas coisas em torno de você é vivenciar sua vida sonora em uma ecologia em relação ao rádio, à campainha da porta, ao fogão, ao telefone que toca, a um cão que late.
Alguns dos trabalhos mais recentes e instigantes que li na antropologia da estética sonora-visual é sobre o uso de toques de celular na Austrália aborígene. As pessoas programam os seus celulares de modo que os toques avisam quais espíritos ancestrais, quais clãs, quais relações podem estar tentando se conectar com eles no telefone. Há um livro maravilhoso sobre isso, Phone and Spear, do Miyarrka Media Collective, na Austrália. Um membro desse coletivo é a antropóloga Jennifer Deger, e ela tem feito pesquisa de um modo colaborativo e coletivo com o povo Yolngu durante anos. Phone and Spear apresenta o mesmo tipo de relações e de acustemologia profunda que tenho tentado descrever com os seres humanos, os pássaros, os espíritos e a ecologia na floresta em Bosavi; como também tenho falado sobre os seres humanos, os sinos, os espíritos e a ecologia dos vilarejos pastorais na Europa, o mesmo trabalho que realizei na África Ocidental, com os seres humanos, as buzinas dos carros, os espíritos e a ecologia urbana. Da mesma maneira, o povo aborígene Yolngu no Norte da Austrália tem usado o telefone como uma tecnologia que pode ser ancestral e moderna por meio do toque de celular, da arte fotográfica líquida da tela e um mundo inteiro de designs espirituais, cosmológicos, ecológicos e locais. Acho que as tecnologias contemporâneas e históricas devem ser escutadas por sua enunciação sobre essas histórias profundas e antigas do se relacionar. Se tivesse tempo agora adoraria realizar um estudo empírico em Bosavi dos toques de celular e de como se conectam com o mundo dos pássaros, do choro, da poética e do canto.
Felipe, Tatiana e Wagner: A outra parte da pergunta diz respeito à sua ênfase sobre a representação visual e sonora nos projetos sobre os sinos, distanciando-se da textualização. Você pode falar sobre esse modo de lidar com esse tema nessa parte do seu trabalho?
Steven Feld: Bem, para que uma antropologia do som seja bem-sucedida, ela deve ser igualmente uma antropologia no som. O som é um material primordial da socialidade, um lugar em que a socialidade e a materialidade atingem uma síntese poderosa na história e na imaginação. Então, por que não utilizar o meio do som e da imagem como argumento principal de como isso acontece? Não podemos apenas depender das descrições e abstrações; as textualizações são limitadas, assim como também são os gráficos, os espectrogramas, os desenhos e as transcrições. O que torna a antropologia do som e a acustemologia um modo experimental de refletir sobre a auralidade e a materialidade do som é a possibilidade de trabalhar, pesquisar, analisar e representar no e através do meio sonoro. Como podemos inovar o trabalho de pesquisa sobre o conhecimento sonoro através do meio do som? Eis um exemplo das montanhas da França: lá ouvi as vacas com sinos pesados em torno dos pescoços desaparecendo nas florestas da montanha quando o sino soa às sete horas. Como eu poderia explicar isso para você num texto? O que escutei foi um som movendo-se do plano de fundo para o plano principal de um modo específico, e depois um som coexistente movendo-se para o plano de fundo, e em seguida para o plano principal. Esse tipo de som é tão dinâmico que precisamos usar a gravação e a composição de som para adentrar seu dinamismo. Temos que ser capazes de usar o nosso equipamento auditivo para sentir o espaço, o tempo, a duração, a relação entre duração e amplitude e o envoltório de cada pulsação de som.
Com os sinos foi até mais poderoso para mim. Imagine ouvir os sinos e as gaitas de fole ao mesmo tempo, movendo-se com a produção do som, com os objetos que fazem som. Isso é como os pássaros e o canto na floresta. Deixa-me tentar explicar de um outro modo. Não lhes parece estranho que, durante tantos anos, o estudo da etnomusicologia imaginou que o modo de estudar música era remover tudo que estivesse acontecendo ao mesmo tempo? Isso não é um estudo da música, isso é um estudo asséptico; é um estudo da extração. É como se eu dissesse para você: “O único modo de estudar uma língua é removendo a conversação, o ambiente, tudo exceto a sintaxe e a semântica”. Me parece que a etnomusicologia, como a sociolinguística, tem que reconstruir o contexto do que foi extraído e chamado de música, reconstruir para falarmos da música em seu contexto. Bom, como poderia ser diferente? Como pode haver música sem contexto, a não ser que estivéssemos falando de música que é gerada por um computador? Mas mesmo assim há um contexto, um programa e um circuito. O que possivelmente não teria contexto? Será a etnomusicologia realmente uma disciplina baseada na ideia de restaurar o contexto de alguma coisa que o perdeu? Como isso foi perdido, no Jardim do Éden?
Na primeira vez que Alan Merriam escutou uma gravação que fiz na Papua Nova Guiné ele disse: “Isso é muito interessante, mas vai ser difícil transcrever a música por causa do bebê chorando”. E eu respondi: “Essa é a música. Você é o cara que falou sobre a música em seu contexto!”. Como estudar cantigas de ninar removendo os bebês dos seios de suas mães? O que proponho fazer se reduz a esta questão: de como o som e a audição constituem uma relação - conectam de um modo relacional e são conectados ao conhecimento no e do mundo. Se queremos entender o som como um modo de conhecer, temos que estar preparados para aprender por meio de e com o som, e não recorrendo a textos e a gráficos.
Tatiana, Wagner e Felipe: Sobre esse tema, temos uma pergunta sobre pesquisa etnográfica e o uso da tecnologia de gravação sonora. Você sempre usou tecnologia de ponta nos seus trabalhos. Nos anos 1970, em Bosavi, você usou um gravador Nagra de múltiplas faixas e diferentes tipos de microfones. Agora, no seu último filme, você usa o áudio imersivo ambisonics para produzir representações sonoras desse mundo.
Suas gravações de Voices of the Rainforest e Rainforest Soundwalks expandem as possibilidades de uma gravação de som etnográfica standard focada apenas no registro de um canto, numa forma de música ou performance. As gravações oferecem uma oportunidade de escuta e compreensão mais experiencial desse ambiente. O modo experimental como você lidou com as possibilidades de gravação etnográfica demandou uma abordagem inovadora do uso de tecnologia no campo e na mesa de edição. Você pode falar sobre isso, a relação entre tecnologia, registro etnográfico fonográfico e representação sonora? Você pode também falar sobre esses dois projetos, Voices of the Rainforest e Rainforest Soundwalks?
Steven Feld: Tenho feito gravações sonoras a minha vida toda. Estou me preparando para viajar à Itália amanhã e estou levando comigo duas coisas: fones de ouvido que uso há mais de 20 anos, porque é meu modo de tomar notas de tudo que ouço; um microfone gravador ambisonic VR de 360 graus [mostra o microfone]. Isso não é uma aparelhagem comum para a etnomusicologia! Se interessar pelo som como modo de conhecimento é estar constantemente experimentando com a escuta. E para experimentar com a escuta você tem que compreender os diferentes modos como as tecnologias escutam, como escutamos com elas ou como escutamos a despeito delas. No Voices of the Rainforest e em todos esses outros projetos, é claro que eu quis usar a tecnologia mais contemporânea, a tecnologia mais recente. Por que não? Isso está relacionado à minha questão referente à etnomusicologia e ao contexto - se você quer realmente compreender alguma coisa sobre um som particular, por que você usaria um gravador barato para gravar? Por que você usaria seu celular? Por quê? Seria como dizer: “Eu quero ser um físico teórico, me dê uma régua, eu não preciso de um computador” ou “Eu quero ser um biólogo molecular, mas não preciso de um microscópio, não preciso de testes genéticos”. Por que nós, em uma disciplina interessada no som, aceitamos qualquer coisa senão a mais experimental, inovadora e melhor tecnologia que podemos usar? Temos uma grande quantidade de trabalhos em etnomusicologia que não é muito original. Por quê? A falta de imaginação está diretamente relacionada à falta de desejo de experimentar. Se você quer experimentar, você tem que inventar as ferramentas para o experimento.
Rouch, que me ensinou tanto sobre filmes, queria inventar um novo tipo de cinema, o Cinema Direto. Para fazer isso, teve que liberar a câmera para que pudesse facilmente carregá-la sobre o ombro. Ele teve que liberar o microfone, liberar a película, para que pudesse filmar sem muita iluminação. Ele teve que desmantelar o ritual do cinema documental clássico. Para fazer um cinema que fosse direto, ele precisava de uma tecnologia direta que não existia. E ele tentou inventá-la. Por que Kudelski inventou o Nagra? O Nagra era incrível! O que Richard Leacock fez? Em 1959, pegou um relógio, tirou o quartzo de dentro dele e usou isso para sincronizar o gravador Nagra e a câmera, sem um fio entre eles. Como você libera a câmera do gravador de som, mas possibilita que eles fiquem sincronizados? Você pega um relógio e tira o quartzo. Se você quer fazer algo interessante, tem que estar disposto a experimentar, não pode ficar esperando que outras pessoas o façam.
Quando quis fazer as gravações dos sinos, fui até Leonard Lombardo, um inventor de microfones, e comecei a trabalhar com ele. Comecei a usar sua tecnologia de gravação DSM e aprendi como controlar, com movimentos pequenos da minha cabeça, o modo como criar 360 graus de som. Eu mesmo não sei fazer um microfone, mas trabalhei com alguém que sabe. Isso é óbvio para mim: se você quer explorar alguma coisa, se quer fazer novas perguntas, precisa de novas ferramentas. Por que pegamos um programa e hackeamos o programa? Hackeamos o programa porque vemos uma limitação com os programas existentes e queremos saber como ultrapassar tais limitações.
As pessoas me disseram: “Vai ser impossível gravar a floresta. Você tem todos esses reflexos de sons, porque as árvores estão em todos os lugares”. Foi aí que comecei a fazer experimentos; aprendi a gravar em três níveis de altura na floresta e em dois níveis de profundidade. E depois relacionar as gravações que fiz às condições de conhecimento locais e à acústica do movimento sonoro na floresta. A partir daí, aos poucos, por meio da audição e da edição dialógica, aprendi a criar gravações que eram tanto produções etnoestéticas e coestéticas com o povo Bosavi, quanto gravações científicas precisas no tempo e espaço. Você pode escutar todas as minhas gravações e criar uma série de triângulos, e eu posso te dizer quem e o que vive em cada um desses triângulos. O método da trilha 7.1 de Voices of the Rainforest é esteticamente muito interessante, mas você também consegue ouvir 79 espécies de pássaros, vários tipos de som de água, insetos, diferentes momentos do dia, uma estação específica do ano. Você acessa uma imagem acústica, como uma cartografia paint by number. E ela pergunta e responde suas perguntas à medida que você escuta: “Quem vive aqui?” “Quem vive nesta imagem que escutou o que estou escutando?”
Para mim, essa parte foi a mais divertida e o tipo de ciência mais criativa e artística.
Wagner, Felipe e Tatiana: Nos anos 1990 você propõe uma reflexão crítica sobre a política da world music, sua comodificação e a apropriação cultural das e nas gravações fonográficas. Qual a relação dessas reflexões com a sua pesquisa etnográfica entre os Kaluli? Como você analisa esses textos no conjunto da sua obra?
Steven Feld: Essa é uma ótima pergunta, muito importante para mim. Em 1985, eu estava dando aulas na Universidade do Texas, em Austin. Lá, eu tinha um lugar privilegiado porque fui o primeiro a estar tanto no departamento de antropologia quanto no departamento de música, e isso me deu a oportunidade de criar uma ponte real.
Naquela época, já tinha me dado conta de que o mundo que meus alunos estudariam não seria o mundo que eu estudei. Em 1987, pela primeira vez, apresentei um curso chamado Música Popular e Meios de Massa. Austin, Texas, era um grande centro de música ao vivo e de produção musical e constituía um local importante para a teoria e a prática. Eu tinha alunos da comunicação, antropologia, literatura - muitas áreas diferentes. A minha ideia era promover trabalho etnográfico em estúdios de gravação, diferentes lugares de produção, clubes noturnos e assim por diante. Mas então algo aconteceu! Comecei a dar esse curso em setembro e algumas semanas depois, em outubro, foi lançado o LP Graceland, de Paul Simon. E esse momento incrível inaugurou múltiplas discussões sonoras, políticas e raciais, especialmente sobre músicos sul-africanos e Paul Simon, sobre o mundo das estrelas pop e sobre o poder. A gravação inaugurou o que eu achava que a próxima geração de etnomusicólogos deveria estudar: o poder, a indústria, o capital e a circulação da música à luz da teoria da globalização. Uma aluna da África do Sul na turma era Louise Meintjes, que depois escreveu um livro chamado Sound of Africa, sobre o estúdio de gravação na África do Sul, e depois Dust of the Zulu. Também na turma estava Tom Porcello, que escreveu o livro Wired for Sound e estudou os estúdios de gravação na parte sul de Austin; e Aaron Fox, que estava estudando música country nos bares ao sul do Texas. Eu tinha alunos maravilhosos! E mesmo entendendo que eles não iriam para a floresta na Papua Nova Guiné não consegui prever seus múltiplos projetos criativos e originais.
Eu queria focar nas representações nessa nova situação. Então, escrevi sobre Paul Simon e Graceland; David Byrne, Brian Eno e My Life in the Bush of Ghosts; a história do pygmy POP. Escrevi sobre o tipo de conexões entre o modo como etnomusicólogos produziram discos com uma espécie de inocência e naïveté, e depois como essas gravações se tornaram matéria prima para novas práticas industriais e novas formas de apropriação por pessoas que eram muito mais poderosas do que suas fontes. Fiquei muito interessado numa consciência emergente, no trauma coletivo etnomusicológico e na vergonha diante da constatação de que o uso de gravações envolvendo povos indígenas contribuíram para um novo colonialismo musical. Os artigos sobre world music que escrevi e os tipos de trabalho que encorajava eram de fato para as pessoas relacionarem o estudo da música popular com a questão do poder, para seguir o dinheiro, acompanhar a circulação do som e o lugar da raça, gênero e classe nesses circuitos emergentes.
Mesmo não sendo o meu trabalho de campo principal me encontrei envolvido com esses debates em solidariedade aos meus alunos. Para mim, tudo tomou uma dimensão adicional quando comecei a trabalhar com Mickey Hart e o Grateful Dead. Isso me deu uma espécie de experiência etnográfica, trabalhando no mundo das estrelas do rock, com o poder do rock e, realmente, tentando compreender esse relacionamento de um modo mais profundo e antropológico.
CODA
Tatiana, Felipe e Wagner: Para finalizar, nos parece que o estúdio como instrumento, como forma de arte, dá suporte à sua imaginação antropológica. Ecoa de maneira evocativa a imagem da floresta como estúdio, do estúdio como floresta. Gostaríamos de te ouvir sobre essa dimensão criativa e composicional e como tais ideias reverberam em seu novo livro.
Steven Feld: Realizei muitos projetos que se relacionam com o uso do estúdio como um laboratório experimental. Por exemplo, fiz as gravações dos sapos em Accra e depois dei essas gravações para o percussionista Nii Otoo Annan, e o gravei se sobrepondo aos sapos. Desse experimento resultou o CD Bufo Variations. Também gravei o Nii Otoo tocando canções solo no violão e depois de dez meses, quando ele veio me visitar nos Estados Unidos, fomos para o estúdio e ele tocou por cima das dez faixas, em cada uma daquelas canções: com o baixo, os tambores, os sinos e os chocalhos. Ele era uma banda de um homem só. O processo também me deu acesso à sua mente musical, e aquela janela foi organizada no Pro Tools6 6 Pro Tools é um software do tipo Digital Audio Workstation (D.A.W.) utilizado em produções fonográficas e audiovisuais, especificamente para a gravação, edição, processamento e finalização de áudio e música. , em que era possível visualizar a parte do violão, do baixo, dos tambores, dos sinos e como tudo se interligava. O Pro Tools funcionava como uma janela para o modo como a improvisação e a estrutura estão sempre se relacionando. Em outras palavras, uso a agência criativa fora do estúdio e com isso crio as condições para a agência criativa dentro do estúdio.
O projeto que estou fazendo agora, tentando descrever esse tipo de mentalidade, é o que chamo de pesquisa enquanto composição. Descrevo como a ideia de composição afeta toda a pesquisa e depois como a pesquisa em si, por meio do uso de filme e som, possibilita a criação de algo mais parecido com uma composição, sem importar se dá conta ou não de uma ideia tradicional de análise. Em outras palavras, tento desmistificar a interação entre a minha mente acustemológica e os mundos acustemológicos que me fascinam. Tento descobrir o lugar das novas tecnologias na criação de novos tipos de relações, interações e colaborações, não importa se compondo com os sons dos pássaros, sinos, sapos, buzinas dos carros, das músicas de String Band em Accra ou tocando com a banda Accra Trane Station. E ao mesmo tempo podemos usar isso para fazer CDs e filmes que trazem dinheiro, respeito e poder para artistas que tradicionalmente não os têm. A pesquisa enquanto composição é como chamo essa prática, essa ecologia relacional.
Felipe, Wagner e Tatiana: Ao mesmo tempo, é um momento de explosão do seu trabalho, que tem sido cada vez mais traduzido para o português na última década. Então, todos estamos ali, com você.
Steven Feld: Acho que tem a ver com algumas das perguntas anteriores. Quando era estudante imaginei que pesquisa significava a obrigação de fazer sempre trabalho textual, publicar e apresentar meu trabalho de modos mais convencionais. Mas assim que publiquei Sound and Sentiment e descobri que as pessoas estavam interessadas nos experimentos, nas fotografias coloridas, na gravação do LP e nos programas de rádio, decidi que era necessário fazer o máximo de projetos criativos, inclusive projetos que não são textuais. Ao longo dos anos descobri que gosto cada vez mais desse tipo de pesquisa experimental enquanto composição. Com certeza me faz sentir próximo dos alunos, mais próximo dos jovens; me faz gostar de estar velho, mas ainda ser hippie.
REFERÊNCIAS
- Schieffelin, Bambi & Feld, Steven. (1998). Bosavi-English-Tok-Pisin dictionary. Camberra: Pacific Linguistics.
NOTAS
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1
Feld faz referência à música The baby, the bubbe, and you. Mickey Katz foi um músico e humorista norte-americano que ganhou notoriedade por escrever e interpretar paródias que jogavam com fonemas em inglês e iídiche e com a sonoridade da música Klezmer.
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2
Movimento ativista organizado por artistas, poetas, performers, atores e escritores em janeiro de 1967, em Nova York, contra a invasão ao Vietnã por forças norte-americanas.
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3
Tok Pisin é a língua oficial da Nova Guiné, sendo a mais falada no país. Steven Feld e Bambi Schieffelin publicaram um dicionário Bosavi-Inglês-Tok Pisin (Feld & Schieffelin, 1998Schieffelin, Bambi & Feld, Steven. (1998). Bosavi-English-Tok-Pisin dictionary. Camberra: Pacific Linguistics.).
-
4
Deadheads é o nome dado aos fãs do conjunto musical Grateful Dead, que constituíram uma comunidade que compartilhava gírias e expressões próprias relacionadas ao repertório e performance do Grateful Dead. Grupos de Deadheads se tornaram notórios por um estilo de vida nômade, participando e acompanhando a banda em shows e festivais por diferentes cidades.
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5
String Band é um conjunto musical popular entre jovens na região do Bosavi, caracterizado por vozes acompanhadas por instrumentação predominante de cordas, especialmente violões. O primeiro disco do álbum triplo Bosavi (Rainforest Music From Papua New Guinea), produzido e gravado por Steven Feld, é inteiramente dedicado ao gênero.
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6
Pro Tools é um software do tipo Digital Audio Workstation (D.A.W.) utilizado em produções fonográficas e audiovisuais, especificamente para a gravação, edição, processamento e finalização de áudio e música.
NOTAS
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7
Traduzido por Luiza Leite
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
02 Dez 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
20 Set 2022 -
Aceito
26 Out 2022