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SOM, IMAGINAÇÃO E CONHECIMENTO: A FICÇÃO SÉRIA DO RITO

SOUND, IMAGINATION AND KNOWLEDGE: THE SERIOUS FICTION OF RITUAL

Resumo

Este artigo apresenta uma descrição da celebração do arete guasu chaquenho, atentando para a centralidade do som na estética da festa. Se as máscaras são o elemento-chave nesse ritual, as técnicas de figuração que elas exprimem ganham vida por meio de vozes e de uma série de sons musicais e não musicais que atualizam metáforas, mitos e formas de imaginação. Por meio do conceito de tradução intersemiótica, busca-se compreender as afetações mútuas entre diferentes linguagens - imagens, o som de flautas e tambores, vozes e movimentos - no ambiente do rito. Argumenta-se que a dimensão sonora é fundamental para ativar as relações que se materializam na estética do arete. Entendendo o ritual como ficção séria, elabora-se uma interpretação que permite compreender a festa, na sua performatividade, como uma instância capaz de mobilizar processos relacionais de produção de conhecimento.

Palavras-chave:
Ritual; Som; Máscaras; Tradução intersemiótica; Arete guasu

Abstract

This article presents a description of the arete guasu feast of the Chaco Plain, focusing on the centrality of sound in the feast aesthetics. If masks are the key element in this ritual, the figuration techniques that they express come to life with voices and a series of musical and non-musical sounds that build up metaphors, myths, and forms of imagination. By using the concept of intersemiotic translation, we aim to understand the multiple affectations of different languages - images, flutes and drums sounds, voices, and movements - in the ritual ambience. We argued that the acoustic dimension is fundamental to activate the relationships materialized in arete’s aesthetics. Understanding ritual as serious fiction, we elaborate an interpretation that allows to understand the feast, in its performativity, as an instance capable of mobilizing relational processes of knowledge production.

Keywords:
Ritual; Sound; Masks; Intersemiotic translation; Arete guasu

INTRODUÇÃO

O arete guasu, ou festa grande, é o encerramento das celebrações que tanto os guarani quanto os chané1 1 Ao longo do texto, o termo guarani é grafado em redondo por se tratar da forma aportuguesada. Já os outros etnônimos, como chané, são escritos em itálico porque a grafia está em outra língua. do oeste do Chaco realizam no final do verão, no período do carnaval. Trata-se de uma festa bastante comentada na literatura antropológica da área, dentre outras razões, por causa do apelo visual ligado ao uso generalizado de máscaras nas celebrações2 2 A literatura sobre o arete guasu é ampla e variada. Remeto aos trabalhos de Walter Sánchez (1998, 2001) sobre o arete guasu dos Guarani e Isoseños da Bolívia. Sobre o arete dos Chané da Argentina, ver Palavecino (1949), Rocca (1973), Rocca e Newbery (1978), Magrassi (1981), Pérez Bugallo (1982, 2012), Villar e Bossert (2014). Para textos que tratam especificamente do arete guasu de Santa Teresita (Boquerón, Paraguai), ver Fritz (1995), Toro (2000), Zindler (2006), Escobar (2012). . As máscaras do arete guasu já mobilizaram a imaginação etnográfica, assim como a sensibilidade artística, e inspiraram muitos trabalhos audiovisuais e fotográficos que exploram justamente o papel dessas máscaras na potência estética do arete3 3 Ver, dentre outros, Allen (2014, 2022), Escobar e Allen (2011), Casco (2009, 2014), Pompa e Colombino (2012), Samaja (2022), Vera e Potton (2017). . Tal produção artística variada, como também a análise da literatura que trata do arete guasu, permite observar que, nos diferentes lugares e apesar das variantes locais, as máscaras do arete compartilham materiais e mobilizam princípios formais semelhantes. É nesses princípios formais específicos que reside o segredo da sua eficácia, mas também na maneira como a dimensão visual da atuação dos mascarados se conjuga com sons e movimentos, metáforas e afetos.

Acompanhando os estudos antropológicos que se debruçam sobre a estética do arete guasu, referirei as relações entre as múltiplas linguagens que compõem a cena da festa. Fundamentalmente, interessa aqui descrever os sons - musicais e não musicais (por exemplo, as vozes agudas com as quais os mascarados falam, os sons de trompetes-buzinas que anunciam a sua chegada, os gritos ou sapukai das pessoas que dançam) - que acompanham a presença das máscaras e modelam o ambiente em que se vive o arete, buscando analisar seu papel na elaboração de imagens e noções relacionadas à cosmologia que se atualiza por meio do rito.

Nas linhas que seguem, a descrição se aproxima das relações entre sons, imagens e movimentos partindo da premissa de que elas contribuem para a imaginação de noções e metáforas importantes no conhecimento que dá forma ao arete guasu. Falar em imaginação, nesse contexto, relaciona-se com a intenção de compreender as formas como o conhecimento associado a esse ritual é elaborado e compartilhado. Na antropologia da arte e do pensamento, mas também na antropologia sensorial, a imaginação tem sido tematizada em análises sobre a elaboração de categorias sociais e outras ações coletivas (Godelier, 2015Godelier, Maurice. (2015). The imagined, the imaginary and the symbolic. London: Verso.; Ingold, 2014Ingold, Tim. (2014). That’s enough about ethnography! HAU Journal of Ethnographic Theory, 4/1, p. 382-395.; Schäuble, 2016Schäuble, Michaela. (2016). Introduction. Mining imagination: ethnographic approaches beyond the written word. Anthrovision, 4/2.). As abordagens variam, mas pode-se identificar uma tendência a não separar o domínio da imaginação do da ação, enfatizando sua dimensão pragmática como produtora de conhecimento. Aqui inspiro-me fundamentalmente nas ideias do Carlo Severi (2018Severi, Carlo. (2018). Capturing Imagination. On living objects and the anthropology of thought. Chicago: Hau Books.) em Capturing Imagination e em suas considerações sobre pensamento, animação de objetos, imaginação e conhecimento. Acompanhando a proposta que o autor apresenta nesse estudo, e também em diálogo com as formulações de Steven Feld (2015Feld, Steven. (2015). Acoustemology. In: Novak, David & Sakakeeny, Matt (eds.). Keywords in Sound. Durham: Duke University Press , p. 12-21.) em torno das relações entre sons, escuta e conhecimento, a proposta é considerar os sons associados ao uso de máscaras no rito para compreender como certos objetos inanimados capturam ou provocam a imaginação. Se boa parte da antropologia contemporânea busca não impor de antemão pontos de vista naturalistas sobre os objetos, no caso das máscaras do arete guasu não parece equivocado afirmar que, nos discursos das pessoas que preparam e usam-nas, as máscaras são objetos inanimados que ativam a imaginação apenas quando alguém as veste e as coloca para dançar na circunstância da festa. Por isso, e para entender a sua eficácia, as imagens e figurações que as máscaras revelam serão descritas aqui em relação a outros elementos também fundamentais no ambiente do rito.

MÚSICA E OUTROS SONS NO AMBIENTE DA FESTA

O arete guasu é um ritual musical; sem música a festa não acontece. Quem busca entender e descrever a experiência da celebração inevitavelmente se refere ao som da flauta e dos tambores que anima as rodas de dançarinos por horas a fio. A música e os músicos são chave no bom andamento das celebrações; a musicalidade associada ao rito, portanto, é peça essencial dos conhecimentos que lhe dão forma. Dediquei alguns anos de pesquisa a esses conhecimentos, gravando em áudio e vídeo muitas performances dos músicos do arete guasu, tanto na Argentina e na Bolívia quanto no Paraguai.

Essas experiências e registros em lugares distantes entre si permitiram uma aproximação comparativa da estética da festa, identificando algumas diferenças, mas também muitos pontos em comum. No noroeste argentino, participei do arete guasu nas comunidades de Tuyunti e Campo Durán. Trabalhei, desde 2014, com flauteiros que vivem nas comunidades de Cherenta, Piquirenda, Peña Morada, Tranquitas e Capiazuti (província de Salta, Argentina). Em 2015, participei do festival arete guasu em Aguayrenda (província de Gran Chaco, Bolívia), onde é frequente a participação de delegações do noroeste argentino e do sudeste boliviano, embora em algumas edições participem também grupos paraguaios. E, desde 2016, participei do arete guasu nas comunidades guarani do Chaco Boreal paraguaio: Mariscal Estigarribia, Macharety, Yvopeyrenda, Santa Teresita e Pedro P. Peña (Figura 1).

Figura 1
Localização de algumas comunidades guarani e chané mencionadas no texto

A reflexão apresentada neste texto é baseada fundamentalmente na descrição do observado e registrado nas duas últimas dessas localidades: Santa Teresita (em 2016, 2017, 2018, 2019 e 2022), e Pedro P. Peña (San Agustín, em 2019 e 2022). Porém, a análise se nutre também da aproximação comparativa entre diferentes versões da festa nos distintos locais do oeste do Chaco em que pude conhecê-la.

A escuta desses registros, atenta às características dos sons produzidos pelos instrumentos musicais, revela um ambiente saturado de outros sons, ou sons não musicais, que são fundamentais na constituição da trama de sentido que a festa produz. Com o passar do tempo, essa dimensão foi chamando cada vez mais minha atenção, e empenhei-me no registro desses outros sons nas gravações que realizei como parte da pesquisa etnográfica nos rituais chaquenhos4 4 Projeto “Arte e sociabilidades indígenas no Chaco ocidental”, CNPq Processo: 443340/2015-3, Chamada CNPq/MCTI nº 25/2015 Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas. Para a pesquisa de campo também contei com o apoio do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Brasil Plural. Registro aqui meu especial agradecimento às famílias chané e guarani que me receberam e me autorizaram a participar e a fazer registros audiovisuais em suas festas. . Em todos os casos o ambiente sonoro do arete compartilhava algumas características que não decorriam apenas da música: sons não musicais, aparentemente sem sentido e aleatórios, se repetiam nos diferentes locais que eu visitava para conhecer a festa.

A questão não é nova. A antropologia da música, ou etnomusicologia, tem, entre suas problemáticas fundantes, a busca por entender diferentes formas de classificar os sons, mostrando que os limites do que no Ocidente moderno se entende por música não correspondem às formas como outras sociedades classificam os sons. Steven Feld (2012Feld, Steven. (2012). Sound and Sentiment: Birds, Weeping, Poetics, and Song in Kaluli Expression. Durham: Duke University Press.) foi inclusive mais longe, mostrando o potencial de se levar em consideração sons produzidos por outras espécies, como as aves, e as habilidades para ouvi-los na hora de compreender os conhecimentos associados a determinadas formas de compor canções. Na sua etnografia com os Kaluli da Papua-Nova Guiné, mas também em trabalhos posteriores, Feld (2012Feld, Steven. (2012). Sound and Sentiment: Birds, Weeping, Poetics, and Song in Kaluli Expression. Durham: Duke University Press.) destaca a importância de não reduzir a experiência acústica ou o interesse antropológico apenas aos sons que no Ocidente se enquadrariam na categoria musical. Por meio do seu conceito de acustemologia, Steven Feld (2015Feld, Steven. (2015). Acoustemology. In: Novak, David & Sakakeeny, Matt (eds.). Keywords in Sound. Durham: Duke University Press , p. 12-21.) propôs integrar as habilidades para a escuta de determinados sons característicos da floresta tropical do monte Bosavi, onde desenvolveu sua pesquisa com as formas que assumem a musicalidade e a poética de cantos e lamentos nesse contexto. Assim, sua análise transcende a fronteira artificial - determinada pelas formas ocidentais de classificar os sons - entre música e sons produzidos por outras espécies ou sons do ambiente.

Quando nos perguntamos acerca das características do ambiente acústico que caracteriza o arete guasu, concluímos que os sons produzidos pelos instrumentos musicais são apenas parte da sonoridade que anima os participantes. Não quero afirmar que esses outros sons sejam considerados parte da música; a ideia é apontar que a descrição da estética do rito, bem como a análise da sua eficácia, pode acompanhar o convite de Steven Feld no sentido de incluir uma multiplicidade de fontes e sons que não se reduzem aos produzidos pelos instrumentos musicais, e que, independentemente do seu estatuto, são importantes na experiência que a festa promove.

Como já evidenciado na antropologia dos rituais, é na inter-relação entre as múltiplas linguagens estéticas que compõem o rito que reside a fonte dessa força capaz de ativar diferentes formas de percepção e disparar tipos de ação somente possíveis na circunstância do ritual. A eficácia de cada uma das linguagens em jogo se vê potencializada por sua ocorrência simultânea a outras formas de expressão estética em um mesmo âmbito de ação coletiva. Na reflexão etnográfica sobre a performatividade dos rituais - isto é, sobre o que os ritos produzem socialmente -, a potência dessa sobreposição ganha destaque: é justamente na fusão ou condensação de diferentes linguagens que se constitui a trama densa que marca a experiência e os efeitos sociais da festa. No já clássico estudo do ritual do antropólogo Stanley Tambiah (1985Tambiah, Stanley. (1985). Culture, thought, and social action: an anthropological perspective. Cambridge: Harvard University Press) no Sri Lanka, por exemplo, o rito aparece definido nos seguintes termos:

O ritual é um sistema culturalmente construído de comunicação simbólica. É constituído de sequências padronizadas e ordenadas de palavras e atos, muitas vezes expressas em múltiplas mídias, cujo conteúdo e disposição são caracterizados em graus variados pela formalidade (convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensação (fusão) e redundância (repetição). A ação ritual em suas características constitutivas é performativa nestes três sentidos: no sentido austiniano de performativo, em que dizer algo é também fazer algo como um ato convencional; no sentido bem diferente de uma performance encenada que utiliza múltiplos meios pelos quais os participantes vivenciam o evento de forma intensa; e no sentido de valores indiciais - derivo esse conceito de Peirce - sendo anexados e inferidos pelos atores durante a performance (Tambiah, 1985Tambiah, Stanley. (1985). Culture, thought, and social action: an anthropological perspective. Cambridge: Harvard University Press: 128, tradução nossa)5 5 No original: “Ritual is a culturally constructed system of symbolic communication. It is constituted of patterned and ordered sequences of words and acts, often expressed in multiple media, whose content and arrangement are characterized in a varying degree by formality (conventionality), stereotypy (rigidity), condensation (fusion), and redundancy (repetition). Ritual action in its constitutive features is performative in these three senses: in the Austinian sense of performative, wherein saying something is also doing something as a conventional act; in the quite different sense of a staged performance that uses multiple media by which the participants experience the event intensively; and in the sense of indexical values - I derive this concept form Peirce - being attached to and inferred by actors during the performance”. .

Formalidade, padronização e repetição são pensadas, na antropologia do ritual, na sua dimensão produtiva; é justamente por meio da redundância de determinados gestos que a ação ritual se torna eficaz. Por sua vez, a organização sequencial de repertórios musicais, bem como os diferentes momentos na estrutura da performance que são pautados por meio da música, também são temas bem estabelecidos na antropologia do rito, da festa e da performance. Os repertórios que integram festas e rituais, ao serem pensados em conjunto, mostram que os diferentes temas ou peças musicais não fazem sentido individualmente, mas somente em relação a outros, que são executados em sequência e que tornam possível o correto andamento e desenvolvimento da festa. Na etnomusicologia, o tópico foi explorado etnograficamente em rituais indígenas e também em relação a outros âmbitos de práticas musicais:

[…] peças isoladas de música não parecem fazer muito sentido, […] o ‘sequenciamento’ - com o respectivo ‘fazer parte’ das peças de música - é muito comum pelo mundo afora, contribuindo para a eficácia da performance musical, aumentando por exemplo a emoção da audiência e estimulando nela o grau de participação, especialmente em shows (Menezes Bastos, 2018Menezes Bastos, Rafael José de. (2018). Lupicínio Rodrigues e a Colônia Africana de Porto Alegre - maneiras de cantar como maneiras de sentir. Ilha Revista de Antropologia , 20/1, p. 67-88.: 79)6 6 Para análise sobre a centralidade das sequências musicais em um ritual xinguano, remeto a Menezes Bastos (2013). Sobre a relação sequência-variação em estudos da música indígena no Brasil, ver Menezes Bastos (2017). Sobre a sequencialidade na música popular, conferir Seeger (2013). Acerca da dialética com a repetição, ver Middleton (1983). Em Domínguez (2018) trato da repetição e das sequências na música do arete guasu chaquenho. .

Desse modo, sequencialidade e repetição formam um par-chave na dinâmica de muitas performances, tornando-se um caminho analítico interessante quando nos perguntamos sobre a eficácia do rito.

Já a possível condensação ou fusão entre diferentes linguagens na estética dos rituais também foi tematizada em alguns estudos para aproximá-la da tradução intersemiótica. A atenção para as diferentes linguagens que compõem o rito, e que ocorrem de forma simultânea, resultou em conceitos que ajudam a compreender como essas linguagens se relacionam e se afetam reciprocamente. Com base em sua etnografia em rituais kamayurá, Rafael Menezes Bastos tratou esse fenômeno como “cadeia intersemiótica do ritual”, atribuindo ao plano musical um papel estruturante das relações entre as linguagens que compõem o evento: “[…] o caso kamayurá estabelece a música como um sistema pivot que faz a intermediação, no rito, entre os universos das artes verbais (poética, mito) e aqueles ligados às expressões plástico-visuais (grafismo, iconografia, adereços) e coreológicas (dança, teatro)” (Menezes Bastos, 2021Menezes Bastos, Rafael José de. (2021). Músicas nas terras baixas da América do Sul: uma breve atualização. In: Dominguez, María Eugenia & Montardo, Deise Lucy (orgs.). Arte, som e etnografía. Florianópolis: Edufsc , p. 270-282.: 281). Como Bastos, outros estudiosos das artes sul-americanas dedicaram-se a analisar essas afetações mútuas entre diferentes linguagens, contribuindo para a tematização de um aspecto-chave da arte ritual.7 7 A tradução entre linguagens também foi tematizada em relação à arte não ritual. Conferir, por exemplo, Lagrou (2021) sobre as estéticas relacionais em exposições como Dja Guata Porã: Rio de Janeiro indígena.

Tal teoria etnográfica também ressoa na proposta de Carlo Severi e na forma como trabalha o conceito de transmutação. Retomando as ideias do Roman Jakobson, Severi (2014Severi, Carlo. (2014). Transmutating beings: a proposal for an anthropology of thought. HAU Journal of Ethnographic Theory , 4/2, p. 41-71.) entende a transmutação como um tipo de tradução intersemiótica, isto é, uma interpretação de signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais. A tradução, nesse caso, não se refere à reprodução dos mesmos significados por meio de outras linguagens, mas à possibilidade de evocação de sentidos relacionados8 8 Esse tópico é desenvolvido por Menezes Bastos (2021). . Nas formulações de Severi, a música e os cantos também têm centralidade como tradutores do mito em imagens, movimentos, danças e adereços pessoais (como máscaras ou roupas).

A centralidade da música nesses processos, portanto, é bastante consensual, e cada vez mais etnografias revelam a força singular de determinadas práticas musicais e cantos para materializar os mitos e as ideias sobre o cosmos em determinadas formas estéticas que compõem a cena do rito de forma integrada (Barcelos Neto, 2011Barcelos Neto, Aristóteles. (2011). A serpente de corpo repleto de canções: um tema amazônico sobre a arte do trançado. Revista de Antropologia, 54/2, p. 981-1012.; Cesarino, 2013Cesarino, Pedro. (2013). Cartografias do cosmo: conhecimento, iconografia e artes verbais entre os Marubo. Mana, 19/3, p. 437-471.; Mello, 2005Mello, Maria Ignez C. (2005). Iamurikuma: música, mito e ritual entre os Wauja do Alto Xingu. Tese de doutorado. CFH/Universidade Federal de Santa Catarina.; Piedade, 2004Piedade, Acácio Tadeu de Camargo. (2004). O canto do Kawoká: música, cosmologia e filosofia entre os Wauja do Alto Xingu. Tese de doutorado. CFH/Universidade Federal de Santa Catarina.). A intenção, aqui, não é negar a importância dos sons musicais e dos músicos na realização do arete guasu, argumento que já desenvolvi em textos anteriores (Domínguez, 2018Domínguez, Maria Eugenia. (2018). Sons, ritual e história indígena. Ilha: Revista de Antropologia , 20/1, p. 45-66., 2021Domínguez, María Eugenia. (2021). Música e cura entre os flauteros chané e guaraní do oeste do Chaco. In: Domínguez, María Eugenia & Montardo, Deise Lucy (orgs.). Arte, som e etnografía. Florianópolis: Edufsc, p. 83-100.). De forma a complementar tais descrições, interessa-me focar agora esses outros sons, que não são responsabilidade dos músicos, mas que também assumem importante papel nas formas de imaginação que a estética da festa promove. É por meio da fusão ou condensação da sonoridade musical e não musical, além dos sons, dos movimentos dos corpos e das figurações das máscaras que se integram ao passo sincronizado das rodas de dança, que o ambiente da celebração ganha os contornos da “ficção séria” (Severi, 2018Severi, Carlo. (2018). Capturing Imagination. On living objects and the anthropology of thought. Chicago: Hau Books.: 6) que se vive no arete guasu. Os cuidados e o investimento formal para elaborar a ficção do rito e dar forma à cena que se cria no arete guasu se revestem da maior seriedade, pois deles depende a eficácia de tudo o que será feito na festa.

Se a fusão de linguagens e a tradução intersemiótica são processos-chave na estética de muitos rituais, a etnografia se depara com o desafio de encontrar maneiras de registrar, analisar e comunicar esse tipo de fenômeno. A observação e a participação in loco, embora importantíssimas na compreensão do tipo de experiência multissensorial que a festa provoca, podem ser insuficientes para gerar materiais suscetíveis de análise futura. No caso aqui descrito, o uso do audiovisual como meio de pesquisa foi fundamental para modelar o enquadramento (MacDougall, 2006MacDougall, David. (2006). Introduction: meaning and being. In: The corporeal image: film, ethnography, and the senses. New Jersey: Princeton University Press, p. 1-6.) do que foi percebido e analisado depois. O registro dos sons durante a pesquisa e as montagens sonoras realizadas durante a edição desse material possibilitaram uma imersão profunda no ambiente acústico que tinha sido registrado, revelando detalhes sonoros que podiam passar despercebidos.

É claro que os registros elaborados não revelam a sonoridade da festa como um todo; um registro sonoro exaustivo seria, sem dúvida, tarefa impossível, considerando que a escuta é sempre localizada. Os registros audiovisuais elaborados na pesquisa são parciais, pois em todas as situações a captura foi feita com um único microfone incorporado à câmera que eu mesma operava. Por sua vez, um registro pode diferir de outro, a depender das diferentes possibilidades técnicas do equipamento utilizado (câmeras, microfones) em cada etapa da pesquisa. Buscando superar algumas dessas limitações na captação do som, inspirei-me nas formas de gravação que Steven Feld sugere para a pesquisa etnográfica em torno das paisagens sonoras (Feld & Palombini, 2014Feld, Steven & Palombini, Carlos. (2014). Pensando na gravação de paisagens sonoras. Revista Música e Cultura, 9/1, p. 23-29.). Como ele mesmo menciona, em Voices of the Rainforest pode-se ouvir uma nítida mistura das quatro técnicas principais associadas a esse tipo de abordagem. Primeiro, a gravação é feita permanecendo em um mesmo lugar em relação a fontes fixas de som; segundo, o dispositivo da gravação fica em um lugar fixo em relação a fontes móveis; terceiro, quem grava se desloca em relação à fonte fixa; e quarto, o dispositivo de gravação se desloca junto com as fontes móveis (Feld & Palombini, 2014Feld, Steven & Palombini, Carlos. (2014). Pensando na gravação de paisagens sonoras. Revista Música e Cultura, 9/1, p. 23-29.). Essas diferentes formas de gravação - por mais que não decorram de uma estratégia intencional durante a pesquisa de campo, e sim das condições que a gravação de uma festa itinerante possibilita - permitem, no momento da edição, combinar diferentes tipos de registro, nos quais os mesmos sons se repetem com diferentes intensidades. Isso possibilita perceber os diferentes sons que operam juntos no rito como uma trama de várias camadas em permanente recomposição. Foi, então, por meio da observação e da participação em sucessivas edições do arete guasu, de conversas com os organizadores e participantes sobre os sentidos e relações entre os seus diferentes aspectos, mas também por meio do registro e edição de materiais audiovisuais que foi ganhando forma a interpretação das ações do rito que apresento a seguir.

SONS, MÁSCARAS E IMAGINAÇÃO NO ARETE GUASU

Como referido acima, o arete guasu é o encerramento de um ciclo festivo que culmina em uma celebração que, entre os guarani ocidentais do Chaco paraguaio, dura quatro dias, do sábado até a terça-feira de carnaval, antes do início da quaresma no calendário cristão. Há particularidades nas formas de celebrar o arete na Argentina, na Bolívia e no Paraguai, como também há diferenças históricas, culturais e linguísticas entre as comunidades chané e guarani que o celebram. A descrição que aqui apresento é baseada nas festas que acompanhei na comunidade guarani de Santa Teresita e em San Agustín (Pedro P. Peña), no Chaco boreal paraguaio.

No atiku - preparação e abertura -, os músicos e outras pessoas reúnem-se em uma casa previamente escolhida da comunidade para tomar chicha9 9 Bebida fermentada de milho, também chamada de kagüi em guarani. e dançar ao som da flauta e de alguns bumbos e caixas. O conjunto musical do arete é composto de uma flauta e de caixas e tambores em número variável, todos tocados exclusivamente por homens. As flautas são de dois tipos - temïmbï (quena) e pinguyo -, ambas longitudinais e sempre executadas por um solista. Os flauteiros alternam-se para tocar, e o toque de um nunca ocorre de forma simultânea ao de outro. Os cajeros são no mínimo três, embora em alguns casos um grande número de caixas se junte ao som sempre individual do temïmbï ou do pinguyo.

Nesse momento é preparada uma cruz de madeira e de flores que acompanhará a festa como um estandarte, de forma itinerante, pelos próximos quatro dias, até a terça-feira à noite, quando a festa acaba e a cruz é desfeita no cemitério da comunidade. Os líderes proferem discursos tanto no início quanto no final da celebração. Na abertura faz-se um agradecimento aos presentes e se pode evocar com emoção a memória dos parentes falecidos, desejando a todos uma boa festa. No encerramento novamente há agradecimentos às visitas e expressa-se o desejo de que todos se reencontrem no ano seguinte. O arete guasu é invariavelmente uma festa itinerante - o conjunto se desloca para dançar por algumas horas em determinadas casas - e seu encerramento tem contornos de despedida dos parentes vivos e dos mortos, evocados durante a festa por meio de diferentes formas de mascaramento.

Durante os quatro dias de festa, na frente ou em volta dos músicos, rodas de mulheres e homens dançam em círculos. Geralmente há crianças que também dançam, e em alguns casos formam-se rodas apenas com elas. De mãos dadas, os participantes dançam em roda; quando abraçados em pares ou em trios, eles avançam em filas que giram em torno de um eixo, como as pás de um moinho. Repete-se, porém, sempre o mesmo passo. Sentadas ou em pé nas bordas do pátio, da praça ou do local onde a festa ocorre, muitas pessoas bebem, conversam ou apenas observam as rodas de dança.

É o toque da flauta que comanda os movimentos dos dançarinos. Através de um som alto e prolongado, por exemplo, a flauta sinaliza quando as rodas de dança mudam a direção do giro ou quando - com o toque denominado oguata pegua (“para caminhar”) - o conjunto de músicos e dançarinos deve deslocar-se de um ponto a outro da comunidade. O instrumento também determina as pausas de alguns minutos para depois retomar a dança e a entrada em cena, na arena ritual, de determinados personagens. O flauteiro executa diferentes temas para anunciar a chegada e acompanhar a performance dos kuchi-kuchi (porcos) - meninos e jovens com o corpo coberto de lama -; do touro, que ataca e marca a testa dos agüeros (almas dos mortos) com uma cruz (o touro é um homem com o corpo pintado que, segundo explicam, evoca o colonizador não indígena e o gado introduzido por ele no território guarani das terras baixas da Bolívia e do Paraguai)10 10 Para uma descrição da formação das comunidades do povo guarani ocidental no Chaco boreal paraguaio após o deslocamento desde o sudeste boliviano em consequência da Guerra do Chaco (1932-1935), remeto a Domínguez (2020). ; e do tigre (homem com o corpo pintado que evoca a figura do jaguar).

O som da flauta, ao tocar koya-koya, anuncia que os kuchi estão chegando para enlamear os participantes - um momento de grande expectativa e alvoroço. Por meio do toque toro-toro, a flauta avisa aos mascarados que se aproxima o combate ritual com os touros. O instrumento também acompanha, ao tocar o tema conhecido como “o touro e o tigre”, a luta entre esses dois personagens. Nesse momento afrouxam-se as amarrações de caixas e bumbos, produzindo-se um som mais abafado do que quando as rodas de dança giram animadas, e a própria música apresenta um andamento muito mais lento, criando uma sonoridade grave para esse ponto de clímax na dramaticidade do rito. Se a melodia da flauta se destaca na função de guia dos movimentos, a percussão também é da maior importância na sonoridade do arete. É o som de bumbos e caixas que imprime o ritmo geral do evento e pode ser ouvido de longe nos lugares onde a festa acontece: o repique constante das caixas e a marcação grave do bumbo, a combinação dos seus timbres e a intensidade destacada do seu som são, sem dúvida, marcas estéticas fundamentais nessa festa.

Já no início do arete guasu é possível ver saindo do mato grupos de mascarados que se aproximam da casa onde os instrumentos soam e as pessoas dançam. Eles chamam a atenção dos presentes e geralmente provocam certa inquietação entre os participantes da festa, tanto pela aparência híbrida (leve-se em conta que as máscaras muitas vezes são feitas com partes de diferentes animais), quanto pelo comportamento desajeitado, o modo rude com que podem conduzir as mulheres para as rodas de dança, bem como pelo cheiro forte, as gargalhadas e os uivos. Aos poucos vão se incorporando às rodas de dança para acompanhar o mesmo passo dos demais participantes. O ritmo e o andamento da música parecem conduzir as pessoas para esse movimento sincronizado que iguala todos os que dançam e naturaliza a presença de tais criaturas metade homem, metade animal, que, em alguns casos, têm rostos de madeira com grandes asas de penas nas laterais. Como se verá, os mascarados condensam uma série de relações que na vida cotidiana seriam concebidas como contraditórias, mas que na “ficção séria” do ritual não são só possíveis, mas esperadas e muito bem acolhidas. Como aponta Carlos Fausto (2013Fausto, Carlos. (2013). A máscara do animista: quimeras e bonecas rusas na América Indígena. In: Severi, Carlo & Lagrou, Els (orgs.). Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena. Rio de Janeiro: 7 Letras, p. 305-331.) ao tratar da eficácia ritual das máscaras na América indígena, podemos pensar que a multiplicação de referentes, ou inclusive a mistura entre formas animais e humanas, remete a noções formais - isto é, convenções estéticas que permitem a figuração adequada nas diferentes tradições -, como a de ‘referência múltipla’, vitais para que determinados objetos rituais se tornem eficazes em certos contextos de ação (Fausto, 2013Fausto, Carlos. (2013). A máscara do animista: quimeras e bonecas rusas na América Indígena. In: Severi, Carlo & Lagrou, Els (orgs.). Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena. Rio de Janeiro: 7 Letras, p. 305-331.: 305-308).

Embora todas as máscaras sejam denominadas genericamente como agüeros ou aña, há diferenças formais entre elas. Algumas são feitas com madeira de samou (chorisia insignis) e contornadas com longas penas nas duas laterais do rosto (güira pepo); outras são produzidas com peles e partes de diferentes animais costurados em uma única composição; há também os apyte puku, máscaras cônicas com cerca de um metro de altura e cuja superfície de pano é pintada à mão por quem a usa. Como os responsáveis pela festa explicam quando perguntados sobre as máscaras, os agüeros ou aña (o primeiro termo geralmente é traduzido como “alma dos falecidos”, o segundo pode ser seu sinônimo, embora alguns também o traduzam como “diabo”) vêm do matyvirocho, um lugar muito distante onde vivem os mortos. Embora a maioria aceite que as almas dos parentes falecidos podem às vezes se aproximar do mundo dos vivos e que sua presença é indicada por diferentes sinais, é somente no arete guasu - e com um rosto criativamente elaborado - que os agüeros podem dançar à vontade com os parentes vivos (Figura 2).

Figura 2
Agüeros dançando na festa de Santa Teresita (Boquerón, Paraguai), fevereiro de 2019

No contexto do arete, o uso de máscaras não implica a incorporação de um espírito, possessão ou transe. Pode-se falar, porém, de um tipo de sensibilidade diferente da habitual, gerada em parte pela bebida, mas também pela música e pela dança. Todos bebem, não apenas os mascarados - portanto, a sensibilidade exacerbada é geral. Nesse quadro os agüeros, figurações híbridas do animal e do humano, também se comportam de maneira particular: andam em grupos, arrastam as pessoas para as rodas de dança (Figuras 3 e 4), gritam ou uivam, riem alto e, se falam, o fazem com uma voz muito aguda - o tom de sua fala e os sons que produzem lembram os grunhidos das raposas. Quando perguntados o porquê desse som, os moradores de Santa Teresita às vezes respondem que essa é a voz dos mortos, dos aña ou do diabo. Essa relação entre os agüeros, os mortos e os sons das raposas está associada às maneiras como se descreve o fim da vida, ou a morte, entre os guarani e chané do oeste do Chaco. Em alguns casos ouve-se dizer que quando as pessoas morrem podem se transformar em raposas ou outros animais da floresta (monte, kaa). A raposa é tanto um trickster na mitologia da área quanto uma das figurações mais usuais a evocar as almas errantes dos mortos (Villar, 2011Villar, Diego. (2011). La religión del monte entre los chané. Suplemento antropológico, 44/1, p. 151-201.: 187)11 11 Com base nas leituras do padre Doroteo Giannecchini, missioneiro franciscano que atuou no Chaco boliviano no final do século XIX, Diego Villar comenta sobre o sentido da raposa: “Para el chiriguano, como ya hemos manifestado, es um animal real y mítico. En cuanto mítico, creen que el zorro que está gritando representa las almas de los antepasados y por tanto le tienen mucho miedo; ni se atreven a salir de sus chozas por la noche cuando grita el zorro” (Villar, 2011: 187). Como aponta o autor, as mesmas ideias foram constatadas por Erland Nordenskiöld quando visitou os chané do norte argentino na primeira década do século XX (Nordenskiöld, 2002). A mesma associação entre a raposa e os mortos aparece em muitas narrativas contemporâneas, tanto entre os chané do norte da Argentina quanto entre os guarani do oeste do Paraguai. . A tradução dessa noção para o termo “diabo” se relaciona, evidentemente, com os efeitos da evangelização católica na região.

Figura 3
Apyte puku dançado em roda no arete guasu de Santa Teresita (Boquerón, Paraguai), fevereiro de 2018

Figura 4
Agüeros descansam durante uma pausa na dança no arete guasu de San Agustín (Boquerón, Paraguai), fevereiro de 2019

Vale lembrar, não obstante, que a voz de raposa se manifesta em um corpo híbrido, que em muitos casos tem o rosto que a máscara lhe empresta emoldurado por duas grandes asas laterais que remetem, de forma inequívoca, a imagens de aves. A literatura que trata das cosmologias guarani já mostrou a relação que se estabelece entre as aves e as almas dos mortos (Cadogan, 1968Cadogan, León. (1968). Chonó Kybwyrá: Aves y almas en la mitología guaraní. Revista de Antropologia , 15-16, p. 133-147.). Portanto, nos agüeros sobrepõem-se índices ou referentes múltiplos que permitem pensar em um tipo de figuração quimérica que ativa a imaginação e a elaboração de conhecimentos por meios que vão além do estritamente visual. Trata-se, seguindo a proposta de Severi (2014Severi, Carlo. (2014). Transmutating beings: a proposal for an anthropology of thought. HAU Journal of Ethnographic Theory , 4/2, p. 41-71.), de enunciadores complexos que evocam vários referenciais simultaneamente. Os sons que esses mascarados emitem, seus uivos e as vozes agudas que usam, assim como seu comportamento e aparência, indicam relações significantes entre o que vemos e ouvimos e as metáforas que são atualizadas no rito.

Muitas partes, pedaços ou peles de animais estão presentes no arete: porco-do-mato, onça, veado, puma, nhandu, víboras e pássaros aparecem por meio de alguma parte de seu corpo que, como característica essencial, condensa a imagem do animal e se refere a ela. Por mais que vejamos um pedacinho do animal - o rosto de um veado ou as penas de uma ema -, esse elemento nos permite imaginar algo maior. Há nessas máscaras a representação icônica (os ícones que vemos) e a indicação indiciária (os pedaços de animal que funcionam como índices ao apontar para o que não está ali). Nossa percepção faz o resto: o olhar também é a ação de criar um conceito não totalmente mostrado na imagem. Acompanhando as ideias de Carlo Severi e Els Lagrou (2013Severi, Carlo & Lagrou, Els. (2013). Introdução. In: Severi, Carlo & Lagrou, Els (orgs.). Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena. Rio de Janeiro: 7 Letras , p. 11-24.) sobre a figuração quimérica, é possível afirmar que a presença simultânea de diferentes animais na mesma figura, mas também do animal e do humano, do vivo e do morto fundidos no mesmo corpo, é uma forma de imaginar - no sentido de colocar em imagens - a transformação entre esses seres e estados que muitas narrativas como mitos ou contos mencionam12 12 Refiro àqueles mitos, contos ou outras narrativas verbais que se escutam entre os guarani e chané da região e que referem ao arete, ao atiku - momento de preparação da festa -, aos mortos e ao mativyrocho - lugar onde vivem os mortos -, ao som de flautas e tambores, às raposas e ao carnaval. Essas narrativas são da maior importância entre os conhecimentos associados ao arete guasu. Não trato delas em maior detalhe aqui porque demandariam um desenvolvimento próprio, que não cabe neste texto. . As formas de figuração das máscaras dos guarani chaquenhos alimentam modos específicos de imaginação que traduzem essas narrativas verbais para outras linguagens. Reunidos em um mesmo corpo, rostos de madeira, de pano ou de pele de animais ganham asas e falam com vozes de raposas: é nessa fusão e tradução que pode residir seu poder para evocar os mortos ou a noção de morte13 13 Para uma análise das relações entre a noção de morte e as máscaras aña häti utilizadas pelos chané do Chaco argentino, ver Villar e Bossert (2014). , da forma como são conhecidos nesse contexto.

Como apontado, na ficção séria do arete as máscaras ganham vida quando os instrumentos musicais soam e as pessoas dançam. A música é a condutora da força estética que anima a participação dos mascarados na festa, é o que os atrai, permitindo que saiam do mato e se mostrem. Por sua vez, a ação de olhar que completa a imagem das máscaras por meio dos indícios que oferecem não acontece a partir de um estado de contemplação estática. Muitas pessoas dançam e bebem, as rodas giram, e o que se vê está em movimento. Quem vê, em muitos casos, está também no calor da dança, de mãos dadas com outras pessoas, todos levados pelo som da flauta e dos tambores em perfeita sincronia. O passo da dança forma um paralelismo simétrico, em que o pé direito e o esquerdo se alternam de forma regular. A leveza dos movimentos das mãos enlaçadas que acompanham a batida da música em um ligeiro sobe e desce se embala no vaivém do corpo para um lado e para outro, seguindo o balanço do passo simétrico dos pés. No som que os passos produzem ao friccionar o chão seco reverbera a estrutura simétrica do movimento regular: o som repetitivo que esses movimentos geram e seu ritmo constante somam-se ao ambiente acústico do arete. Desse modo, os movimentos que resultam dos sons dos instrumentos são também produtores de outros sons, não musicais, que adensam a trama sensorial da festa.

Além da flauta, há outro instrumento de sopro cuja sonoridade é comum no arete guasu, tocado pelos mascarados que dançam, e não pelo conjunto dos músicos. Trata-se de uma espécie de trompete feito com chifre de vaca, que pode ter um tubo servindo de aeroduto. Os guarani o denominam iguaramïmbï ou serërë. O instrumento também é muito comum nas festas andinas, onde é conhecido como pututu. É utilizado desde tempos remotos nas terras altas e baixas da Bolívia para anunciar visitas importantes nas comunidades, convocar reuniões ou emitir alertas, mas também se faz presente na sonoridade das festas (Cavour Aramayo, 2010Cavour Aramayo, Ernesto. (2010). Instrumentos musicales de Bolivia. La Paz: Cima Editores.: 88). No arete, seu som grave e prolongado, como o de uma buzina, geralmente acompanha a entrada na arena ritual de grupos de mascarados que se aproximam dos músicos e do espaço onde as pessoas dançam. É um dos mascarados que carrega o instrumento e o faz soar enquanto o grupo avança. Nas festas de Santa Teresita, o instrumento aparece de modo frequente entre os mascarados que vestem apyte puku (os cones compridos) e que na maioria dos casos chegam em grupos muito numerosos. Sua entrada no espaço da festa sempre acontece de modo bastante enérgico, que pode até parecer ameaçador quando a fileira de mascarados, com os braços entrelaçados, avança no mesmo passo simétrico das pessoas que dançam, mas com uma pisada forte, acelerada e uniforme.

Eles chegam muitas vezes produzindo uma emissão vocal grave e repetitiva em uníssono, gerando uma espécie de estrondo. O sapukai, ou os gritos sucessivos dos apyte puku que chegam, também revela a euforia que geralmente marca esses momentos em que grandes grupos de mascarados se incorporam às rodas de dança.

O sapukai é mais um som a caracterizar o ambiente acústico do arete guasu e que também não é emitido pelos músicos e seus instrumentos. Trata-se de uma emissão vocal potente e aguda produzida tanto por homens quanto por mulheres em momentos de grande emoção. Embora exista muita variação na forma do sapukai, é possível reconhecer um padrão que se repete com frequência. Há aqui também uma estrutura simétrica (duas metades idênticas em termos de duração absoluta, mas que apresentam diferentes subdivisões), que cada emissor pode repetir três ou quatro vezes. O sentido do sapukai relaciona-se sobretudo com a forma redundante que adota, e não com a remissão a algum conteúdo de tipo verbal ou semântico. Desse modo, o sapukai se integra a uma trama por meio da qual se elaboram os sentidos da festa, caracterizada pela fusão entre os sons de flautas e tambores, das buzinas de chifre e dos pés que raspam o chão, pela dança e os deslocamentos no espaço da comunidade, pelas máscaras e suas vozes, tudo modelando o ambiente da festa.

A FICÇÃO SÉRIA DO RITO

Es que la máscara permite al hombre representar su condición de ser y no ser; le posibilita recordar la verdad temible del simulacro, el recurso de la ficción que debe esconder para revelar: la inquietante paradoja de la comedia humana - de la cultura toda - que expresa menos por lo que dice que por lo que calla (Escobar, 2012Escobar, Ticio. (2012). La belleza de los otros: arte indígena de Paraguay. Asunción: Servilibro.: 158).

Em sua abordagem relacional dos rituais14 14 Além dos clássicos como Boas (2015) e Lévi-Strauss (1958, 1979) ver, por exemplo, Goulard e Karadimas (2011) e Fausto (2013). , Houseman e Severi (1998Houseman, Michael & Severi, Carlo. (1998). Naven or the other self: a relational approach to ritual action. Boston: Brill.) acompanham as formulações do Gregory Bateson sobre o rito (1999Bateson, Gregory. (1999). Steps to an ecology of mind: collected essays in anthropology, psychiatry, evolution and epistemology. Chicago, IL: University of Chicago Press.: 35-40), para enfatizar o que as palavras de Ticio Escobar na epígrafe acima referem como simulacro e ficção. Ao falar sobre a “ficção séria do rito”, esses autores aludem ao fato de que a ação ritual permite a condensação, na identidade de alguns de seus protagonistas, de aspectos vistos como contraditórios ou incompatíveis na vida ordinária. No caso do arete guasu, por meio da ação ritual, máscaras que partilham princípios estéticos singulares compõem uma performance que integra vozes, música e outros sons, além de movimentos e cheiros, permitindo que determinados conhecimentos sejam produzidos e colocados em circulação.

Como vimos, no arete operam de forma integrada diferentes linguagens, configurando uma experiência na qual sons, imagens e movimentos se relacionam formalmente. Por sua vez, a sua ocorrência simultânea permite observar as afetações mútuas e a evocação de sentidos relacionados. É por isso que se pode pensar em um processo de tradução intersemiótica, no qual as imagens e figurações que as máscaras e os movimentos criam - mas também todos os sons, desde os produzidos pelos instrumentos musicais e as vozes emitidas pelos agüeros até outros sons que preenchem o ambiente, como buzinas e o sapukai - materializam noções e metáforas conhecidas entre os que, ano após ano, protagonizam o arete guasu chaquenho. A cena gerada por essa série de relações entre diferentes linguagens é parcialmente uma ficção, mas uma ficção séria, que tem momentos solenes, momentos de euforia e momentos de nostalgia e choro. Os afetos mobilizados pela experiência do rito se relacionam, por sua vez, à memória de um passado comum e de experiências compartilhadas.

O uso de máscaras em festas e rituais é uma prática comum entre os indígenas chaquenhos, e a literatura que a menciona é abundante. Na antropologia, as máscaras representam um importante capítulo tanto dos estudos sobre objetos (ou sobre cultura material) quanto da antropologia da arte e dos rituais. Por seu apelo visual, as máscaras colaboram sobretudo para a geração de imagens, que, dependendo do contexto, afetarão de formas diferenciadas os acontecimentos. Sua eficácia, porém, e seu poder para gerar determinados efeitos no ambiente da festa ou do ritual geralmente vêm associados a determinados sons que ora tornam possível sua presença na festa ou no rito, ora completam o sentido do que o mascarado faz na arena ritual. Se falamos em tradução intersemiótica para referir às afetações mútuas entre diferentes linguagens no ambiente da festa, é justamente para realçar a dimensão relacional e agentiva da percepção, entendida como processo que identifica e interpreta relações (Feld, 2015Feld, Steven. (2015). Acoustemology. In: Novak, David & Sakakeeny, Matt (eds.). Keywords in Sound. Durham: Duke University Press , p. 12-21.: 13-14). As máscaras podem ativar a imaginação e, com ela, mobilizar processos relacionais de produção de conhecimento e de elaboração de metáforas, isto é, formas de conhecer situacionais e baseadas na experiência. Ao relacionar imagens, sons, odores e movimentos, a presença dos mascarados na festa revela sentidos de muitas narrativas (como mitos ou contos que referem ao atiku, ao arete, ao matyvirocho, aos sons de flautas e caixas, aos mortos, às raposas etc.) e acontecimentos conhecidos.

Desse modo, os conhecimentos que dão forma ao arete guasu circulam na região do Chaco por meio das sucessivas e variadas edições da festa nos locais em que vivem os guarani e os chané. Esses conhecimentos se materializam em uma série de técnicas para fabricar e tocar instrumentos, para preparar a chicha, a cruz, as roupas e as máscaras usadas na celebração, técnicas para imprimir um ritmo nos corpos que dançam e elaborar a atmosfera acústica que define a realidade do que acontece no rito. Assim, cria-se um mundo organizado em modos de classificação próprios, que definem a ficção séria do rito, na sua efemeridade. Esse cuidadoso investimento criativo na elaboração formal de relações entre imagens, sons e movimentos redunda em emoções que dão vida à ficção séria do rito.

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NOTAS

  • 1
    Ao longo do texto, o termo guarani é grafado em redondo por se tratar da forma aportuguesada. Já os outros etnônimos, como chané, são escritos em itálico porque a grafia está em outra língua.
  • 2
    A literatura sobre o arete guasu é ampla e variada. Remeto aos trabalhos de Walter Sánchez (1998Sánchez, Walter. (1998). La plaza tomada: proceso histórico y etnogénesis musical entre los chiriguanos de Bolivia. Latin American Music Review, 19/2, p. 218-243., 2001Sánchez, Walter. (2001). “Sonidos”, “ruidos” y “silêncios” en las misiones franciscanas del Chaco boliviano. Revista Argentina de Musicologia, 2, p. 15-48.) sobre o arete guasu dos Guarani e Isoseños da Bolívia. Sobre o arete dos Chané da Argentina, ver Palavecino (1949Palavecino, Enrique. (1949). Algunas informaciones de introducción a un estudio sobre los Chané. Revista del Museo de La Plata, 4/20, p. 117-131.), Rocca (1973Rocca, Manuel. (1973). Los Chiriguano-Chané. América Indígena, 23/3, p. 743-756.), Rocca e Newbery (1978Rocca, Manuel & Newbery, Sarah. (1978). El carnaval chiriguano-chané. Cuadernos del Instituto Nacional de Antropología y Pensamiento Latinoamericano, 8, p. 43-92.), Magrassi (1981Magrassi, Guillermo (1981). Chiriguano-Chané. Buenos Aires: Búsqueda-Yuchán - Centro de Artesanía Aborigen.), Pérez Bugallo (1982Pérez Bugallo, Rubén. (1982). Estudio etnomusicológico de los Chiriguano-Chané de la Argentina. Cuadernos del Instituto Nacional de Antropología y pensamento latinoamericano, 9, p. 221-268., 2012Pérez Bugallo, Nahuel. (2012). Algunos apuntes sobre el patrimonio etno-organológico de los Guaraníes de Pichanal (Salta). Folklore Latinoamericano, 13, p. 195-200.), Villar e Bossert (2014Villar, Diego & Bossert, Federico. (2014). Máscaras y muertos entre los chané. Separata, 14/19, p. 12-33.). Para textos que tratam especificamente do arete guasu de Santa Teresita (Boquerón, Paraguai), ver Fritz (1995Fritz, Miguel. (1995). El carnaval guaraní. Suplemento Antropológico, 30/1-2, p. 45-62.), Toro (2000Toro, Juana Gladys. (2000). Contexto social y religioso del ritual arete guasu en la convivencia comunitaria de los guarayos del Chaco Central. Trabalho de Conclusão de Curso (Engenharia em Ecologia Humana). Universidade Nacional do Paraguai.), Zindler (2006Zindler, Ilona (2006). Máscaras y espíritus. Asunción: Ceaduc.), Escobar (2012Escobar, Ticio. (2012). La belleza de los otros: arte indígena de Paraguay. Asunción: Servilibro.).
  • 3
    Ver, dentre outros, Allen (2014Allen, Fernando. (2014). Tiempos paralelos. Direção e Filmagem: Fernando Allen. Publicado pelo canal Selección Texo Py. Assunção: Texo, 2014. 1 vídeo (43 min), son., color. Disponível em <Disponível em https://youtu.be/2Drk1gqsg-Q >. Acesso em 15 ago. 2022.
    https://youtu.be/2Drk1gqsg-Q...
    , 2022Allen, Fernando. (2022). (A)Imagen. De dioses y espectros. Fotografias de Fernando Allen. Curadoria Fredi Casco. Assunção: Fábrica Galería/Club de Arte. Disponível em <Disponível em https://fernandoallen.com/a-imagen >. Acesso em 15 ago. 2022.
    https://fernandoallen.com/a-imagen...
    ), Escobar e Allen (2011Escobar, Ticio & Allen, Fernando. (2011). ARETÉ: Acerca de fiestas y rituales del Paraguay. Asunción: Fotosíntesis S. A.), Casco (2009Casco, Fredi. (2009). Chaco fantasma. Direção e Filmagem: Fredi Casco. Porto Alegre: 5ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul. 1 vídeo (6 min), son., color. Disponível em <Disponível em https://youtu.be/2jhmCkKuYrU >. Acesso em 15 ago. 2022.
    https://youtu.be/2jhmCkKuYrU...
    , 2014Casco, Fredi. (2014). La Fascination des Sirènes. Fotografias de Fredi Casco. Curadoria de Albertine de Galbert. Paris: Artesur-Maison de l’Amérique Latine. Disponível em <Disponível em https://www.arte-sur.org/home/fredi-casco-la-fascination-des-sirenes >. Acesso em 15 ago. 2022.
    https://www.arte-sur.org/home/fredi-casc...
    ), Pompa e Colombino (2012Pompa, Dea & Colombino, Lia. (2012). Arete Guasu. Direção de Dea Pompa. Produção, ideia original e investigação: Lia Colombino. La Paz: Red Conceptualismos del Sur/Korekogua. 1 vídeo (37 min), son., color. Disponível em <Disponível em https://youtu.be/tXhVB_Cd3VQ >. Acesso em 15 ago. 2022.
    https://youtu.be/tXhVB_Cd3VQ...
    ), Samaja (2022Samaja, Mario. (2022). El tiempo itinerante. Fotografias de Mario Samaja. Curadoria de Fernando Allen. Assunção: Alianza Francesa-Naciones Unidas Paraguay. Disponível em <Disponível em http://www.areteguasu.org/i-proyecto.html >. Acesso em 15 ago. 2022.
    http://www.areteguasu.org/i-proyecto.htm...
    ), Vera e Potton (2017Vera, Luís & Potton, Jean-Christophe. (2017). Desde este lado. Fotografias de Luís Vera e Jean-Christophe Potton. Asunción: Centro Cultural de la República El Cabildo.).
  • 4
    Projeto “Arte e sociabilidades indígenas no Chaco ocidental”, CNPq Processo: 443340/2015-3, Chamada CNPq/MCTI nº 25/2015 Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas. Para a pesquisa de campo também contei com o apoio do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Brasil Plural. Registro aqui meu especial agradecimento às famílias chané e guarani que me receberam e me autorizaram a participar e a fazer registros audiovisuais em suas festas.
  • 5
    No original: “Ritual is a culturally constructed system of symbolic communication. It is constituted of patterned and ordered sequences of words and acts, often expressed in multiple media, whose content and arrangement are characterized in a varying degree by formality (conventionality), stereotypy (rigidity), condensation (fusion), and redundancy (repetition). Ritual action in its constitutive features is performative in these three senses: in the Austinian sense of performative, wherein saying something is also doing something as a conventional act; in the quite different sense of a staged performance that uses multiple media by which the participants experience the event intensively; and in the sense of indexical values - I derive this concept form Peirce - being attached to and inferred by actors during the performance”.
  • 6
    Para análise sobre a centralidade das sequências musicais em um ritual xinguano, remeto a Menezes Bastos (2013Menezes Bastos, Rafael José de. (2013). A festa da Jaguatirica: uma partitura crítico interpretativa. Florianópolis: Edufsc .). Sobre a relação sequência-variação em estudos da música indígena no Brasil, ver Menezes Bastos (2017Menezes Bastos, Rafael José de. (2017). Tradução intersemiótica, sequencialidade e variação nos rituais musicais das terras baixas da América do Sul. Revista de Antropologia , 60/2, p. 342-355.). Sobre a sequencialidade na música popular, conferir Seeger (2013Seeger, Anthony. (2013). Fazendo parte: sequências musicais e bons sentimentos. Revista Anthropológicas, 24/2, p. 7-42.). Acerca da dialética com a repetição, ver Middleton (1983Middleton, Richard. (1983). Play it again Sam: some notes on the productivity of repetition in popular music. Popular Music, 3, p. 235-270.). Em Domínguez (2018Domínguez, Maria Eugenia. (2018). Sons, ritual e história indígena. Ilha: Revista de Antropologia , 20/1, p. 45-66.) trato da repetição e das sequências na música do arete guasu chaquenho.
  • 7
    A tradução entre linguagens também foi tematizada em relação à arte não ritual. Conferir, por exemplo, Lagrou (2021Lagrou, Els. (2021). Revelar e ocultar: políticas estéticas e ontologias relacionais no universo ameríndio. In: Domínguez, María Eugenia & Montardo, Deise Lucy (orgs.). Arte, som e etnografía. Florianópolis: Edufsc , p. 15-30.) sobre as estéticas relacionais em exposições como Dja Guata Porã: Rio de Janeiro indígena.
  • 8
    Esse tópico é desenvolvido por Menezes Bastos (2021Menezes Bastos, Rafael José de. (2021). Músicas nas terras baixas da América do Sul: uma breve atualização. In: Dominguez, María Eugenia & Montardo, Deise Lucy (orgs.). Arte, som e etnografía. Florianópolis: Edufsc , p. 270-282.).
  • 9
    Bebida fermentada de milho, também chamada de kagüi em guarani.
  • 10
    Para uma descrição da formação das comunidades do povo guarani ocidental no Chaco boreal paraguaio após o deslocamento desde o sudeste boliviano em consequência da Guerra do Chaco (1932-1935), remeto a Domínguez (2020Domínguez, Maria Eugenia. (2020). Um lugar onde se achar. Deslocamentos e rituais entre os guarani do Chaco boreal paraguaio. Revista de Antropologia da USP, 63/2, p. 1-22.).
  • 11
    Com base nas leituras do padre Doroteo Giannecchini, missioneiro franciscano que atuou no Chaco boliviano no final do século XIX, Diego Villar comenta sobre o sentido da raposa: “Para el chiriguano, como ya hemos manifestado, es um animal real y mítico. En cuanto mítico, creen que el zorro que está gritando representa las almas de los antepasados y por tanto le tienen mucho miedo; ni se atreven a salir de sus chozas por la noche cuando grita el zorro” (Villar, 2011Villar, Diego. (2011). La religión del monte entre los chané. Suplemento antropológico, 44/1, p. 151-201.: 187). Como aponta o autor, as mesmas ideias foram constatadas por Erland Nordenskiöld quando visitou os chané do norte argentino na primeira década do século XX (Nordenskiöld, 2002Nordenskiöld, Erland. (2002). La vida de los índio: el Gran Chaco (Sudamérica). La Paz: APCOB.). A mesma associação entre a raposa e os mortos aparece em muitas narrativas contemporâneas, tanto entre os chané do norte da Argentina quanto entre os guarani do oeste do Paraguai.
  • 12
    Refiro àqueles mitos, contos ou outras narrativas verbais que se escutam entre os guarani e chané da região e que referem ao arete, ao atiku - momento de preparação da festa -, aos mortos e ao mativyrocho - lugar onde vivem os mortos -, ao som de flautas e tambores, às raposas e ao carnaval. Essas narrativas são da maior importância entre os conhecimentos associados ao arete guasu. Não trato delas em maior detalhe aqui porque demandariam um desenvolvimento próprio, que não cabe neste texto.
  • 13
    Para uma análise das relações entre a noção de morte e as máscaras aña häti utilizadas pelos chané do Chaco argentino, ver Villar e Bossert (2014Villar, Diego & Bossert, Federico. (2014). Máscaras y muertos entre los chané. Separata, 14/19, p. 12-33.).
  • 14
    Além dos clássicos como Boas (2015Boas, Franz. (2015). Arte primitiva. Rio de Janeiro: Mauad X.) e Lévi-Strauss (1958Lévi-Strauss, Claude. (1958) Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac & Naify, 2012., 1979Lévi-Strauss, Claude. (1979). A via das máscaras. São Paulo: Martins Fontes.) ver, por exemplo, Goulard e Karadimas (2011Goulard, Jean-Pierre & Karadimas, Dimitri. (2011). Masques des hommes, visages des dieux. Paris: CNRS.) e Fausto (2013Fausto, Carlos. (2013). A máscara do animista: quimeras e bonecas rusas na América Indígena. In: Severi, Carlo & Lagrou, Els (orgs.). Quimeras em diálogo: grafismo e figuração na arte indígena. Rio de Janeiro: 7 Letras, p. 305-331.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Jun 2022
  • Revisado
    22 Ago 2022
  • Aceito
    05 Set 2022
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