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OS DESERTOS E AS LETRAS

Uriarte, Javier. . (2020). The desertmakers: travel, war, and the state in Latin America.Abingdon: Routledge, 306 p.

The desertmakers: travel, war, and the state in Latin America não é somente um título chamativo, capaz de despertar o interesse mesmo dos mais desatentos leitores, mas também uma descrição precisa de todos os nexos estabelecidos de forma habilidosa por Javier Uriarte, professor do Departamento de Línguas e Literaturas Hispânicas de Stony Brook (Estados Unidos) e autor desse belo trabalho. Produzido a partir da intensa reformulação de uma tese de doutoramento defendida na New York University em 2012, sob a orientação de Mary Louise Pratt, The desertmakers é um texto de natureza híbrida, combinando estudos culturais, teoria literária e história intelectual em um registro comum a esse tipo de especialização na academia estadunidense. Talvez por isso desperte fascínio especial para os brasileiros familiarizados com essa grande área interdisciplinar que convencionamos chamar de “pensamento social no Brasil”, e que também mobiliza argumentos e métodos de campos distintos, entrecruzando sociologia, literatura e história.

O desafio a que Uriarte se propõe não é pequeno. Ele quer analisar como as guerras que assolaram o Cone Sul na segunda metade do século XIX foram fundamentais para a produção de desertos, entendendo esses espaços como territórios domados para expansão da modernidade e do capital. Nas palavras do próprio autor, “A transformação do árido ou selvagem deserto em um espaço produtivo demanda, antes de tudo, a transformação do deserto no despovoado1 1 No original: “The transformation of the arid or wild desert into a productive space first requires the transformation of the desert into the deserted”. (Uriarte, 2020Uriarte, Javier. (2020). The desertmakers: travel, war, and the state in Latin America. Abingdon: Routledge. 306p.: 2, grifo do autor, tradução nossa). Assim, Uriarte não está interessado em investigar as representações literárias da “natureza” entendida como uma paisagem oposta ao moderno, mas sim em compreender como espaços tidos como vazios ou selvagens, foram, na verdade, efeitos de lógicas estatais violentas que imprimiram suas marcas e ruínas no real.

O tema, como se vê, aproxima-se de estudos clássicos de sociologia política e histórica, referindo-se a largos processos de state-formation marcados pela acumulação de capital e de território por meios da violência organizada. Uriarte, porém, entra no tema por meio da literatura e escolhe os escritos de quatro viajantes do período para investigar como essas performances textuais revelam os aspectos mais significativos dessas guerras estatais desertificadoras.

Os viajantes e seus escritos estão apresentados em quatro bem definidos capítulos. Uriarte inicia sua obra com uma investigação de Letters from the Battle-Fields of Paraguay (1870), escrito pelo notório aventureiro e explorador inglês Richard Burton. Em seguida, debruça-se sobre The purple land (1885), famoso livro de William Henry Hudson sobre as andanças de seu alter ego por terras do Uruguai no auge de seus conflitos civis. O terceiro capítulo é dedicado à análise de diferentes escritos de Francisco Moreno sobre a Conquista do Deserto2 2 A datação dessa longa campanha de extermínio das populações indígenas no extremo sul do continente vai de 1879 até 1885, quando praticamente todo o território da Patagônia foi conquistado. Entretanto, o próprio Uriarte sugere que sejam consideradas as contínuas guerras contra indígenas promovidas por forças militares argentinas desde a década de 1830, ainda sob o governo de Rosas. na Argentina. E The desertmakers se encerra com uma incursão pelos Os sertões (1902), de nosso Euclides da Cunha. Cada um desses escritores ocupa lugar de destaque nos cânones sul-americanos, exigindo de Uriarte a mobilização de um vasto repertório de literatura secundária, que surge com mais destaque nas notas ao final de cada capítulo.

É um conjunto heterogêneo e peculiar, que desafia a lógica nacional que preside nossa compreensão do que sejam os cânones literários. Afinal, dois desses textos são escritos em inglês, por autores que desenvolveram distintas relações com os territórios ao Sul. Uriarte explora bastante essa condição desterritorializada, que lhe permite mostrar como as figurações do deserto encontradas em tais obras escapam às fronteiras da nação, constituindo-se em territórios fluidos percorridos por gentes e povos em movimento. A escolha é feliz por permitir ao autor nos mostrar como as ficções de nacionalidade nessa região muitas vezes ignoraram as conexões políticas, culturais e afetivas entre espaços que transcendiam as lógicas nacionais que, por fim, se impuseram na Argentina, no Uruguai, no Brasil e no Paraguai.

A introdução é talvez a seção mais intrincada do livro, por ser o espaço no qual Uriarte mobiliza uma gama de referências teóricas para dar conta de temas distintos, cada qual constituindo um manancial de debates intelectuais - guerra, formação do Estado e viajantes na América Latina pós-independência. Assim, o autor recorre a textos de Charles Tilly e Miguel Angel Centeno para entender as práticas de construção estatal por meio de conflitos armados; dialoga com James Scott para decifrar as estratégias modernas de legibilidade estatal dos espaços; recorre à discussão dos estudiosos da literatura sobre o tema das ruínas e dos desertos, imagens que já eram caras à tradição do Romantismo e que ganharam novos sentidos nas obras de Mary Pratt sobre o olhar imperial dos viajantes; e revisita o marxista Henri Lefebvre para dar conta das dinâmicas entre Estado, produção do capitalismo e território. Contudo, é no par formado por Deleuze e Guattari que o autor encontra formulações produtivas para os seus nexos. Afinal, os escritos dos franceses sobre máquina de guerra e aparato estatal introduzem os conceitos de espaço liso e espaço estriado, que permitem a Uriarte analisar como os textos dos viajantes performam a transformação violenta de espaços marcados pelo nomadismo em territórios disciplinados por agentes e instituições do Estado.

Já a estratégia analítica de Uriarte - o que também poderíamos chamar de método - foca a habilidosa leitura interna dos textos em busca de suas performances narrativas, suas descrições e seus modos de figuração do espaço e das guerras. Ao longo dos quatro capítulos, o autor destrincha essas performances, fixando-se no modo como o self narrativo se transforma em função dos seus deslocamentos, evidenciando as táticas de legibilidade do espaço veiculadas por cada texto.

O leitor é recompensado não apenas por uma incrível viagem pela literatura sul-americana em seu período formativo, como também por um vendaval de insights teóricos e analíticos, que dão a cada capítulo um sabor intelectual específico. Seu estudo sobre Burton é perpassado pelo tema das ruínas, que Uriarte demonstra estar presente tanto como efeito da Guerra do Paraguai quanto como condição originária de espaços que já nascem decadentes - um tema clássico na história das ideias latino-americanas. No capítulo dois, sobre Hudson, a costura entre leitura crítica do texto, reconstrução do material histórico ali presente e conexão com abordagens teóricas mais vastas, particularmente as formulações de Deleuze e Guattari, está muito bem feita e produtiva. Já a relação entre as autodescrições e as figurações das paisagens tem seu ponto alto no capítulo três, em que Uriarte analisa os escritos de Francisco Moreno sobre a Patagônia, demonstrando como o ato de nomeação da então desconhecida geografia da região está relacionado a uma forma de autodescrição oscilante entre o papel do “conquistador estatal” e o suposto “protetor” das comunidades originárias com quem Moreno travou contato. Finalmente, o capítulo sobre Euclides e os sertões é conduzido por meio de uma delicada investigação sobre a dialética entre visibilidade e invisibilidade que marca a forma narrativa euclidiana, sempre às voltas com a dificuldade de representar paisagens e processos ignotos. Ao longo dos quatro capítulos, é possível perceber que Uriarte sempre retorna ao tema da intrincada relação entre o self narrativo e as paisagens desertificadas, apontando os sentidos assumidos por esses desertos à luz das formas pelas quais os narradores se posicionam em relação às guerras e aos emergentes poderes estatais.

É claro que a complexidade das questões colocadas diante da densidade do material empírico nem sempre permite resultados similares. O esforço interpretativo demandado pela análise de textos de quatro autores distintos não permite a Uriarte nos apresentar com mais detalhamento os universos linguísticos e culturais em que tais publicações foram produzidas e circularam. Há poucas informações sobre as edições, as recepções e os contextos literários mais amplos nos quais autores e suas obras se inscreviam. Ou seja, sente-se falta da história material de cada conjunto textual, certamente rico em suas ressonâncias e efeitos.

Finalmente, nem sempre os autores convocados na introdução comparecem de modo orgânico na fatura do texto, o que faz com que o leitor seja muito exigido no acompanhamento das múltiplas reflexões teóricas de Uriarte, que demandam cada qual um mergulho específico.

Ao final, o saldo é certamente muito positivo. Ao lograr uma habilidosa análise interdisciplinar, Uriarte tem muito a oferecer aos leitores brasileiros, tanto àqueles interessados nas formas de figuração do espaço e da natureza nos escritos que forjaram nossa aventura intelectual, como àqueles com interesse historiográfico no estudo das guerras e das práticas de acumulação estatal de territórios. Resta apenas aguardar a bem-vinda e obrigatória tradução.

REFERÊNCIAS

  • Uriarte, Javier. (2020). The desertmakers: travel, war, and the state in Latin America. Abingdon: Routledge. 306p.

NOTAS

  • 1
    No original: “The transformation of the arid or wild desert into a productive space first requires the transformation of the desert into the deserted”.
  • 2
    A datação dessa longa campanha de extermínio das populações indígenas no extremo sul do continente vai de 1879 até 1885, quando praticamente todo o território da Patagônia foi conquistado. Entretanto, o próprio Uriarte sugere que sejam consideradas as contínuas guerras contra indígenas promovidas por forças militares argentinas desde a década de 1830, ainda sob o governo de Rosas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    03 Fev 2021
  • Aceito
    04 Maio 2021
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