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DESFIGURAÇÃO* * A tradução deste texto é fruto de uma atividade coletiva no âmbito do grupo religião e espaço público (RESA), o qual existiu no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ) entre o final da primeira década de 2000 e o começo da seguinte. Dela participaram: Bernardo Curvelano Freire, Christina Vital Da Cunha, Edilson Pereira, Emerson Giumbelli, Izabella Bosisio, Janayna De Alencar Lui, Mauro Pereira Júnior e Paola Lins de Oliveira. Rodrigo Toniol, Els Lagrou e Daniele Thomaz contribuíram para a tradução da introdução e da seção final do texto, realizada em 2023 em parceria com Emerson Giumbelli.

DEFACEMENT

Resumo

Este texto é uma tradução parcial da primeira parte do livro de Michael Taussig, Defacement: Public Secrecy and the Labour of the Negative (1999). A tradução traz uma seção inédita ao texto, além de ajustes realizados pelo próprio autor, duas décadas depois da primeira publicação.

Palavras-chave:
Michael Taussig; Desfiguração; Profanação

Abstract

This text is a partial translation of the first part of Michael Taussig’s book, Defacement: Public Secrecy and the Labour of the Negative (1999). The translation includes an unpublished section of the text and improvements made by the author himself, two decades after its first publication.

Keywords:
Michael Taussig; Defacement; Desecration

UMA BREVE INTRODUÇÃO À TRADUÇÃO BRASILEIRA

Escrito em meados da década de 1990, Desfiguração foi motivado pela problemática da representação da violência. Eu pensava que a violência entre pessoas era muito feroz para ser descrita ou filmada por despertar tanto medo quanto desejo. Pensava que escrever sobre a desfiguração de objetos inanimados na esfera pública, como estátuas, pinturas e dinheiro, seria mais inspirador por ser menos pesado. Pensei em tratar disso a partir da construção de etnografias e de narrativas, descrevendo as ações e as reações provocadas por ocasiões específicas de desfiguração.

Esses eram minidramas de ultraje e de escândalo, como quando um lenhador fez uma escultura da rainha da Inglaterra [Isabel II] e de seu consorte [Filipe], nus, sentados atrás do Parlamento, em Canberra, Austrália, onde eu vivia na época. Isso criou um turbilhão de reações hostis. Multidões fervilhavam. Tornou-se um evento midiático. As pessoas se enfureceram. Algumas tentaram cobrir a escultura com a bandeira nacional. Veteranos da Guerra do Vietnã surgiram para protestar. Mas, como um gesto cômico de retaliação, alguém amarrou um cão vivo, da raça corgi, no pulso da estátua rainha. Outra pessoa amputou o braço do consorte, e, depois, em um ou dois dias, sua estátua foi decapitada e alguém levou sua cabeça. Então, visivelmente abalado, o organizador da exposição de esculturas, Neil Roberts, disse “Chega!”, e removeu a escultura. Aquilo havia se tornado violento demais. Já não eram apenas esculturas. Algo terrível havia sido libertado - aquilo que Georges Bataille chamou de transgressão.

Houve outros dramas com os quais lidei, como aquele de meu amigo John Reid, um professor de fotografia que picotou notas de dólar australiano (adquiridas com a venda de sua casa de praia) para criar uma montagem sobre as violações de Henry Kissinger e Augusto Pinochet no Chile. Reid foi preso pela desfiguração da moeda da Coroa e sucedeu-se uma batalha com o advogado-geral da União. Outra ocasião envolveu a eloquente e demorada declaração de William Rehnquist, da Suprema Corte dos Estados Unidos, contra um jovem que havia desfigurado a bandeira nacional, costurando-a na sua calça jeans e/ou a queimando.

Houve outros casos parecidos. O desenvolvimento da pesquisa se deu com minha progressiva atenção em pensar como as coisas desfiguradas (i) ganhavam vida e (ii) adquiriam uma ontologia sagrada, ou quase-sagrada.

Isso merecia ser considerado, como foi, décadas antes, quando o austríaco Robert Musil (1987Musil, Robert. (1987). Monuments. In: Musil, Robert (org.). Posthumous Papers of a Living Author. Hygiene: Eridanos, p. 61-64.) apontou que não notamos as estátuas até que elas sejam desfiguradas, convocando-as a se esforçarem mais.

Era como se algo interno e precioso ao objeto fosse libertado por sua desfiguração, o que me levou a pensar na revelação de um segredo. Realmente tratava-se de algo interno ou era o ato de desfiguração que produzia essa sensação de uma interioridade oculta, vasta, sagrada e poderosa?

O retrato feito por Elias Canetti sobre o segredo em Crowds and Power [Massa e poder] (1984Canetti, Elias. (1984). Crowds and Power. New York: Farrar, Straus and Giroux.) mostrou-se poderoso. Era como uma fábula que crescia passo a passo, começando como um tigre se agachando, à espreita de sua presa, e então dando o bote para, depois, engoli-la e fazê-la desaparecer na escuridão de seus intestinos. Essa fábula era central para a tese de Canetti de que o segredo está no coração do poder.

Todavia, achei que isso era melodramático demais. Afinal, esse segredo raramente, ou nem sequer, existe. Em seu lugar, o que existe é aquilo que chamei de segredo público, conhecido por muitos, mas raramente articulado, seja por medo, constrangimento, ou o que quer que seja. Isso nos deixa com uma forma especial, porém comum, de conhecimento, uma forma de não saber, ou saber pela metade entre as linhas, um saber de relance.

Foucault (1980Foucault, Michel. (1980). The History of Sexuality: Vol. 1: An Introduction. New York: Vintage.) compreende esse segredo quando escreveu sobre o sexo como aquilo que, de tão discutido, torna-se ainda mais secreto. Isso segue a crítica nietzschiana aos modelos profundos de conhecimento de Platão ao monoteísmo e o Iluminismo.

Para mim, um drama primordial do segredo, e do segredo público, era aquele do rosto humano como uma janela para a alma, mas, ao mesmo tempo, como uma máscara. Isso torna-se ainda mais intrigante quando consideramos dois rostos voltados um para o outro em uma conversa.

A partir dessa situação, não era necessário dar um grande salto para considerar as máscaras em rituais, em especial em sociedades de caçadores-coletores nas quais não há chefias, como no meu exemplo paradigmático dos Selk’nam e dos Yamana da Terra do Fuego, como descritos por Anne Chapman (1982Chapman, Anne. (1982). Drama and Power in a Hunting Society: The Selk’nam of Tierra del Fuego. Cambridge: Cambridge University Press., 1997Chapman, Anne. (1997). The Great Cerimonies of the Selk’nam and the Yamana: A Comparative Analysis. In: McEwan, Colin et al. (org.). Patagonia: Natural History, Prehistory, and Ethnography at the Uttermost End of the Earth. London: Trustees of the British Museum, p. 82-109.), Lucas Bridges (1951Bridges, Lucas. (1951). Uttermost Part of the Earth. London: Hodder and Stoughton.) e Martin Gusinde (1961Gusinde, Martin. (1961). The Yamana: The Life and Thought of the Water Nomads of Cape Horn. New Haven, CT: Human Relations Area Files, 3 v., 1982Gusinde, Martin. (1982). Los indios de Tierra del Fuego: Vol. 1: Los Selk’nam. Buenos Aires: Centro Argentino de Etnología Americana.), os quais descreveram o mito de origem de (i) um matriarcado original, quando as mulheres detinham o poder; e (ii) o subsequente matricídio e a sucessão do poder patriarcal trazidos à luz em teatros de iniciação ritual, periodicamente apresentados pelos homens, mascarados como espíritos. A performance ocorria de modo que as mulheres e crianças que assistiam ao espetáculo noturno, com chamas saltitantes e efeitos sonoros dramáticos, acreditassem que as fantásticas figuras mascaradas e pintadas não eram homens, mas espíritos. Parece provável que elas sabiam o que estava acontecendo, todavia, tinham de desempenhar seus papéis crédulas.

Esse modelo estava presente na Amazônia e no leste das ilhas do Pacífico, atingindo a Nova Guiné, a Austrália e partes da África.

Como descrevi em Defacement: Public Secrecy and the Labour of the Negative [Desfiguração: o segredo público e o trabalho do negativo] (1999), esse tema é muito analisado e fascinante. Trata-se, por assim dizer, do arquétipo do segredo público em sua inflexão de gênero. O movimento crucial, me parece, é quando as máscaras são removidas de modo que os iniciados - em geral do gênero masculino - descubram que são homens, demasiadamente humanos, que usam máscaras. Em vez de causar desilusão aos iniciados, parece que a exposição do segredo o fortalece - como Walter Benjamin (2019Benjamin, Walter. (2019). Origin of the German Trauerspiel. Cambridge, MA: Harvard University Press.) sugere em seu livro sobre o Trauerspiel [drama trágico, ou tragédia], onde ele segue o Simpósio, de Platão, no qual a fusão entre o Eros e o corpo não é uma exposição que destrói o segredo, mas uma revelação que lhe faz justiça.

Essa é uma questão complexa na qual você terá que decidir-se por si mesmo sobre suas implicações para seu próprio mundo e compreensão.

Em publicações posteriores, como em “Viscerality, Faith and Skepticism” [“Visceralidade, fé e ceticismo”] (1998), desenvolvi as ideias de ocultação e revelação como meu modo de compreender o enigma levantado pelos truques dos xamãs. Eu levei o assunto adiante no que considero o nosso principal desafio e prazer, que é a escrita, seja de ficção, de não ficção, ou de fictocriticismo. Esbocei essa questão no ensaio “The Corn Wolf” [“O lobo do milho”] (2015) e na minha ideia de escrita apotropaica, contra aquilo que chamo de escrita convencional ou escrita agrobusiness, que defino como uma escrita que se utiliza da mágica para encobrir a mágica da qual depende.

TAUSSIG, Michael. (1999Taussig, Michael. (1999). Defacement: Public Secrecy and the Labour of the Negative. Stanford, CA: Stanford University Press.). Defacement: Public Secrecy and the Labour of the Negative. Stanford, CA: Stanford University Press, p. 1-45.1 1 Há apenas uma nota do autor, indicada adiante. As demais são notas da tradução.

PRÓLOGO

Quando um corpo humano, uma bandeira nacional, o dinheiro, ou uma estátua pública é desfigurada [defaced], é como se uma estranha sobrecarga de energia negativa emergisse da própria coisa, a qual está, naquele momento, num estado de profanação [desecration], o mais próximo que muitos de nós chegarão do sagrado neste mundo moderno. De fato, esse estado negativo pode insurgir como mais sagrado que o sagrado, sobretudo quando a mais espetacular desfiguração, a morte de Deus, fora anunciada pelo louco de Nietzsche (1974Nietzsche, Friedrich. (1974). The Gay Science. New York: Vintage .: 181): “‘Vocês não sentem o hálito do espaço vazio?’, ele pergunta, segurando uma lanterna ao alto, em meio a um sol de rachar”.

Tomo este espaço para estar onde se dá a ação de desfiguração [defacing action], transmitindo a este livro a pureza de um movimento interno, de um vazio tão vazio que qualquer coisa poderia acontecer num embaçado contínuo - como Margaras, o gato branco, caçador e matador, que não é similar a qualquer outra coisa; apenas similar. “Ele pode se esconder na neve e, à luz do sol, em paredes brancas, nuvens e rochas”, William Burroughs (1987Burroughs, William. (1987). The Western Lands. New York: Viking Press.: 56-57) adverte. “Ele se move em ruas, em ventania, com jornais soprados e pequenas porções de música e papéis alumínio ao vento”. Margaras é o que este livro é: um comentário estendido daquilo que G. W. F. Hegel (1972Hegel, Georg Wilhelm Friedrich. (1972). Phenomenology of spirit. Trad. A. V. Miller. Oxford: Oxford University Press.: 10) chamou de trabalho do negativo [die Arbeit des Negativen].

Algo tão estranho emana da ferida do sacrilégio escrito pela profanação que, em vez de pronunciar um veredicto teórico e encapsular a misteriosa força da desfiguração, vejo como a primeira e mais importante tarefa não sua explicação, mas sua caracterização. Ainda assim, isso é uma traição, pois, depois de tudo, realmente acredito que exista essa tal coisa de explicação? E mesmo de tarefa? Isso não é uma falha, uma tentativa natimorta, rendição ao que o mundo é, querendo ser uno e, apesar disso, ser devorado pela matéria em questão, o negativo? O ato ulterior em ser similar?

Para caracterizar a desfiguração não se pode confrontar seu objeto de modo imediato, algo que ocorre só porque a desfiguração nos surpreende, aparecendo de modo inesperado, cúmplice da violência da vida diária. O escritor deve confrontar essas resistências. Por qual outra razão escrevemos? O caminho mais curto entre dois pontos, entre a violência e sua análise, é o longo entorno, traçando lateralmente as extermidades, como os passos de um caranguejo. Chamamos isso também de trabalho do negativo. E aqui sigo não só o caranguejo fujão, olhos saltados nas hastes, a casca suada, embora também a avaliação de Walter Benjamin (1977Benjamin, Walter. (1977). The Origin of German Tragic Drama. Trad. John Osborne. London: New Left Books.) de Eros no Simpósio, de Platão, para quem a verdade não é uma questão de exposição que destrói o segredo, mas a revelação que lhe faz justiça.

Assim, facilmente reunimos verdade e segredo; deslizamos entre ambos em júbilo, envolvendo um no outro: verdade = segredo. Ainda firmes em meio a essa poesia dos hábitos diários, existe algo que não é tão óbvio, um processo teatral em boa sintonia, graças ao qual, como Benjamin o vê, a revelação deverá fazer justiça ao segredo. De fato, ele retrata essa revelação como o incêndio2 2 No original, burning up, cujo sentido engloba tanto um ato incendiário quanto a provocação que gera ira da parte do provocado. da casca da beleza, da aparência exterior, que se passa ao adentrar no domínio das ideias. “É o mesmo que dizer”, ele acrescenta, “a destruição do trabalho no qual as forças exteriores atingiram seu mais brilhante grau de iluminação” (Benjamin, 1977Benjamin, Walter. (1977). The Origin of German Tragic Drama. Trad. John Osborne. London: New Left Books.: 31).

A justa revelação equivale a uma pira funerária, ou mesmo alguma outra coisa. Da beleza que vem esperando seu momento incendiário como o destino pelo qual deverá alçar às alturas inesperadas da perfeição na qual sua natureza íntima deverá se revelar pela primeira vez. No momento de sua destruição, seu poder de iluminação atinge seu ápice. Esse processo místico - o qual se equivale ao ato de desmascarar -, pelo qual a verdade tomada como segredo é finalmente revelada, é logo um sacrifício, um sacrifício de si, graças a um ato de desfiguração inspirado, belo por direito, violento, negativo e incandescente. E esse processo de revelação, organizado de modo cuidadoso, note-se bem, se dá na justaposição de sua exposição pela qual, Benjamin adverte, só destruiria o segredo.

Ainda assim, e se a verdade não é tanto um segredo quanto é um segredo público, como é o caso do mais importante conhecimento social, saber o que não saber? Então o que acontece ao ato inspirado de desfiguração? Destruiria o segredo ou só o fortaleceria? Pois não são segredos compartilhados a base de nossas instituições sociais, locais de trabalho, do mercado, da família e do Estado? Não é o segredo público a mais interessante, a mais poderosa, mais dissimulada e ubíqua forma de conhecimento social ativo que existe? O que chamamos de doutrina, ideologia, consciência, crenças, valores, e mesmo de discurso, empalidece até a insignificância sociológica e à banalidade filosófica por comparação: pois são a tarefa e a força vital do segredo público a manutenção da zona limite na qual o segredo não é destruído por sua exposição, mas submetido a uma espécie de revelação muito diferente, que lhe faz justiça. Essa é a borda dos “mil platôs”, resoluto em sua stasis desorientada, meu assunto, meu justo assunto: a caracterização da negação como um excedente sagrado cuja força repousa inteiramente no modo de revelação perseguido, e que procuramos realizar.

É o corte da (des)figuração que libera seu excedente sagrado, o corte da totalidade como sagrado que, em parte, o revela como numa montagem fílmica, não só uma outra visão por meio de um outro enquadramento, mas os fluxos de energia liberados. Como Thomas Elsaesser (1987Elsaesser, Thomas. (1987). Dada/Cinema?. In: Kuenzli, Rudolf (ed.). Dada and Surrealist Film. New York: Willis, Locker and Owens, p. 13-27.: 25) observa em seu ensaio sobre o cinema dada: “É o corte, como o princípio da montagem, que faz da energia no sistema visível e ativa”.

Se é o corte que faz da energia no sistema tanto visível quanto ativa, então devemos observar os cortes em linguagem, acidentes estranhos e contingências, como na forma pela qual a língua inglesa traz juntos, como montagem, a face e o sacrilégio sob a rubrica da desfiguração. É no sentido dessa contingência que sou alertado para a suavidade da face e das faces encarando-se, tensas na expectativa de segredos tão desmedidos quanto parecem dignos de desmascarar - um dos tropos heroicos, em minha experiência, daquilo que podemos chamar de iluminação, não menos que de fisionomia, lendo interiores por seu exterior, a alma pela face.

Tomo a face como sendo a figura de aparência, a aparição da aparência, a figura da figuração, a ur-aparência,3 3 No original, ur-appearance. O prefixo alemão ur significa origem, anterioridade, estado primitivo, algo primordial. se quiser, do segredo em si como ato primordial de presença. Porque a face em si é uma contingência na encruzilhada da máscara com a janela da alma, um dos mais bem guardados segredos públicos, e essencial para a vida diária. Como é possível essa contradição que termina com a contradição, entrecruzando-se em infinitos cruzamentos da face? E poderia a desfiguração em si escapar desse vai e vem sem fim da revelação e da ocultação?

A desfiguração é como o Iluminismo; traz o interior para o exterior, revelando o mistério. Enquanto faz isso, contudo, enquanto espolia e lacrimeja nas vestes, pode também animar a coisa desfigurada, e o mistério revelado pode se tornar mais misterioso, indicando a curiosa magia da qual o Iluminismo, em sua eliminação da mesma magia, depende. De fato, desfiguração é também a primeira coisa na qual as pessoas pensam quando pensam em magia mimética, como enfiar uma agulha no coração de um boneco como se matasse a pessoa assim representada. Não é nenhum acaso que isso seja o primeiro exemplo de Frazer (1912Frazer, James George. (1912). The Golden Bough: A Study in Magic and Religion. London: Macmillan, 12 v.: 52-214) nas páginas de abertura dedicadas à arte da magia em O ramo de ouro [The Golden Bough]. A desfiguração é privilegiada entre essas artes de magia por oferecer um atalho para o componente mimético da magia simpática na qual a representação vem a ser o representado, para então vir a morrer, no vulto de sua presença.

A desfiguração evoca a pré-história da face como sacrifício, como o faz Georges Bataille quando reescreve Charles Darwin e Sigmund Freud com suas histórias das consequências poderosas da ascendência do homem à postura ereta a partir do primata rastejante. Essa é aquela fonte da repressão há muito tempo buscada, Freud (1977Freud, Sigmund. (1977). The Origins of Psycho-Analysis: Letters to Wilhelm Fliess, Drafts and Notes, 1887-1902. New York: Basic.: 229-235) gritou para sua musa em Berlim, Wilhelm Fliess, porque o sentido do olfato, delicadamente ligado ao ânus e aos genitais do Outro, perdeu daí por diante sua ascendência sobre os sentidos assim que o homem se pôs sobre duas pernas. Doravante, os olhos eram reinantes e a vergonha fez sua entrada no mundo justo quando o sexo veio a se concentrar nos genitais, que então tiveram que ser cobertos. Evitando afirmar que fosse mera especulação, com alguma frequência consignando esses pensamentos a notas de rodapé em uma página longa, Freud se ateve a essa história até o fim, por mais de trinta anos, desde suas cartas de 1897 a Fliess, passando pelo Homem dos Ratos e o ensaio sobre amor e ubiquidade na decadência do objeto amado, até o terrificante Mal-estar na civilização com suas profecias sobre a mortificação sexual e o triunfo total da repressão do corpo.

Não era somente o nariz que estava em questão nesse embate milenar pelos direitos do corpo, mas o ânus como botão sensorial do mundo, desancorado no nascer da civilização como uma, se oculta, presença pesada, e pesada o suficiente para que os autores de Dialética do Esclarecimento (Horkheimer & Adorno, 1987Horkheimer, Max & Adorno, Theodor. (1987). Dialectic of Enlightenment. Trad. John Cumming. New York: Continuum.: 184-185), filosoficamente treinados, afirmem o odor como uma epistemologia totalmente estranha à percepção normal, civilizada. Pois, se o visual se estabeleceu com um bom senso de distância entre sujeitos autocontidos e objetos altercontidos, esse distanciamento fora anulado pela percepção nasal, tal que os sentidos corriam em turba, um em direção ao outro, tanto quanto em direção ao Outro, como com o cão, o melhor amigo do homem, leal até o fim, nunca tão feliz como quando fuça os fundilhos do Outro. Faz-se a ambivalência das palavras primordiais, como com “cão”, estimada companhia através dos anos, e não menos, um sinal de tudo que é chão e degradante. Então Bataille (1985Bataille, Georges. (1985). The Jesuve. In: Bataille, Georges (org.). Visions of Excess: Selected Writings, 1927-1939. Minneapolis: University of Minnesota Press, p. 73-78.), canino até o fim, ligando sua surpreendente fábula sobre o ânus do primata com as séries de conexões entre a face e as regiões baixas. Tudo começou com uma cena amedrontadora no zoológico, com os rostos suaves de crianças expostas ao botão florescido do traseiro do primata balançando-se escarlate até o ponto de dominar o campo visual como uma flor deslumbrante, sugerindo para escritor que a ascensão do homem ao seu status privilegiado no desenho cósmico é evocada no desenvolvimento do misterioso órgão chamado olho pineal ao realizar sua relação extática com o Sol. Localizado no topo do desenvolvimento evolucionário, a coroa da cabeça, com acesso direto aos céus alhures, esse olho é, na verdade, um ânus solar cuja realização que lhe é peculiar é precisamente fazer um olfatório visual. Como a nobre ave de rapina e o ícone de Estado, a águia mitológica, esse é um olho que pode mirar o Sol diretamente e, quando o faz, estimula imensas e ofensivas ejaculações como sinal de uma fusão orgiástica de si com o Outro, exatamente como a criança berra sob a observância do ânus maravilhoso no outro lado das barras. Tudo isso é resultado da reconfiguração da anatomia do primata, a migração de seu ânus para cima, absorvido no corpo do homem para evitar a concepção de que fosse um mero rachado nas nádegas. “Todo o potencial para o florescimento”, nota Bataille, “encontra abertura só rumando para a região superior dos orifícios bucais, pela garganta, o cérebro e os olhos”. A face humana”, ele conclui, “é a conflagração que tem feito do orifício anal, até um certo momento, ambos, botão e flama” (Bataille, 1985Bataille, Georges. (1985). The Jesuve. In: Bataille, Georges (org.). Visions of Excess: Selected Writings, 1927-1939. Minneapolis: University of Minnesota Press, p. 73-78.: 77).

A desfiguração trabalha os objetos da mesma forma que as piadas trabalham na linguagem, trazendo consigo sua mágica inerente, em lugar algum mais efetiva que naqueles objetos rotinizados e sociais, como o dinheiro ou uma bandeira nacional nas sociedades seculares que Deus há muito se pôs em seu lugar. A desfiguração dessas coisas sociais, todavia, tira do esconderijo um Deus cheio de ira, e o louco de Nietzsche, muito preocupado com as implicações da morte de Deus, não conhece nenhuma forma melhor de voltar à vida que essa, mesmo que evocar esse retorno seja encobrir o argumento de Michel Foucault (1977Foucault, Michel. (1977). A Preface to Transgression. In: Foucault, Michel & Bouchard, Donald (ed.). Language, Counter-Memory, Practice. Ithaca, NY: Cornell University Press, p. 29-52.), erigido no de Bataille, de que, com a morte de Deus, a transgressão adquire um caráter diferente de outrora, uma vez que, agora, Deus é a própria transgressão, mais pronunciado e mais condensado no que chamamos de sexo - esse segredo sobre o qual estamos doravante fadados a falar exatamente porque é segredo.

Essa reconfiguração da repressão na qual a profundidade se torna superfície de forma a permanecer como profundidade, eu chamo de segredo público, que, em outra versão, pode ser definido como o que é geralmente conhecido, mas não pode ser articulado, e que me chamou a atenção pela primeira vez de modo extremo na Colômbia no começo dos anos 1980, quando ocorreram muitas situações nas quais as pessoas não ousaram discorrer sobre o óbvio, esquadrinhado, por assim dizer, com a irradiação espectral do não dito - como quando são retiradas dos ônibus e revistadas em bloqueios de estradas montados pela polícia ou pelos militares, o segredo sendo que aqueles mesmos policiais e militares estavam provavelmente mais envolvidos em terrorismo e tráfico de drogas do que a guerrilha contra a qual combatiam. Semelhante, contudo em um registro diferente, era o que essas pessoas em vilas e aldeias ao norte de Cauca, Colômbia, onde morei intermitentemente desde 1969, chamam de “lei do silêncio”, frase que ouvi pela primeira vez em 1980 quando, lado a lado com a suspensão das liberdades civis e a imposição de regras militares por meio de “estados de emergência” recorrentes, corpos mutilados apareceriam nas estradas que saíam da vila, de modo misterioso. Hoje, enquanto escrevo, em janeiro de 1998, a “guerra suja” alcançou patamares que ninguém acreditaria naquele tempo, com massacres de camponeses ocorrendo todos os dias. E é rotina para as pessoas dos direitos civis desenharem essas ações em termos de cortina de fumaça, unindo executores paramilitares com as forças militares regulares. Todos “sabíamos disso, e “sabiam” que “sabíamos”, todavia, não houve jeito de isso ser bem articulado, certamente não de modo explícito, face a face. Essas “cortinas de fumaça” há muito tempo são conhecidas da humanidade, embora este “há muito tempo conhecido” é em si um componente intrínseco do conhecimento de saber o que não se deve saber, de forma que, em muitos momentos, mesmo que a concebendo, na luta dura por nos libertarmos desse abraço pegajoso, caímos em uma armadilha ainda melhor armada, e pelo nosso próprio esforço. Esse é o trabalho do negativo, como o que é apontado como algo que pode ser óbvio, mas que precisa ser dito para que venha a sê-lo - por exemplo, o segredo público. Saber é essencial ao seu poder, e a mesma coisa serve para negá-lo. Não estar apto a dizer qualquer coisa é o mesmo que testemunhar seu poder. E assim segue, cada negação alimentando outra enquanto as manchetes berram EL ESTADO, IMPOTENTE. E a mesma coisa, em grande parte, aplica-se, até onde sei, à Agência de Combate às Drogas dos Estados Unidos [US Drug Enforcement Agency, DEA], à Receita Federal [Internal Revenue Service, IRS], e por aí vai. Somente os filmes contam o que ocorre de verdade, em particular aqueles concernentes à corrupção na força policial de Nova York - mas são ficção.

Meus exemplos, assim como muito da experiência que contêm, parecem extremos e tendem a enfraquecer a banalidade devoradora do fato de que essa negatividade de saber o que não saber reside no coração dos limites amplos dos poderes sociais e dos saberes mesclados a esses poderes, de forma que o híbrido desajeitado poder, ou saber, finalmente fique sob foco significativo, não sendo essa a ideia de que o conhecimento é poder, mas ao contrário, que um não saber ativo o faz como tal. Assim, silenciamos quando encarados com tamanho fenômeno sociológico e massivo, consternados com tamanha cumplicidade nossa que, sem esses segredos compartilhados, toda e qualquer instituição social - local de trabalho, o mercado, o Estado e a família - naufragaria. “Você quer mesmo saber o segredo?”, perguntou Burroughs (1997Burroughs, William. (1997). Last Words. The New Yorker, 73/24, p. 36-7.: 37) no diário que manteve nos meses antes de sua morte. “Não, diabos!”, ele retruca, falando para si, seu gato e para a morte. “Tudo está no não feito”.

Nietzsche estaria sorrindo em seu túmulo diante dessa manobra ousada com esse modelo de mundo em duas realidades, superfície e profundidade, aparência e essência escondida, herança para o Ocidente de Platão e do cristianismo. “O mundo ‘aparente’ é o único”, escreveu em seu último suspiro (Nietzsche, 1990Nietzsche, Friedrich. (1990). Twilight of the Idols. Trad. R. J. Hollingdale. London: Penguin.: 50-51). “O mundo ‘real’ vem sendo só adicionado”. Essa é outra manobra do tipo caratê com o investimento da realidade no segredo, envolvendo-o na rodada final do sistema nervoso. E essa linguagem, zombeteira, ferina e oportuna nos lembra que a questão relativa à vida, assim como relativa à morte, não é a de procurar dominar o segredo ao esvaziá-lo, como alguém disse, excitado por um insight súbito, que “o segredo do segredo público é que não há nenhum”. Truco! Mãos trêmulas buscam alcançar a negatividade.

“Não, diabos!”.

Então o que escrevemos, assim como o que vivemos, torna-se extenso, dando abertura a perseguições em trilhas cinematográficas do indizível, não vindo a nos fechar em segredo, em tremor e em temor da exposição iminente. Logo, o que escrevemos se torna um exercício de vida em si, unida com a vida e na vida como vivida em relações sociais, não transcendendo ou sequer pretendendo fazê-lo, mas contíguo com a ação e reação na grande cadeia dos contos e estórias, contando uma sempre antes da última. Ainda assim, como se pode ser contíguo ao espaço não meramente vazio, embora negativo?

Elias Canetti (1984Canetti, Elias. (1984). Crowds and Power. New York: Farrar, Straus and Giroux.: 290) pronunciou o segredo como sendo o cerne do poder. Estava decididamente certo: onde quer que haja poder, há segredo. No entanto, esse segredo no cerne do poder não é qualquer segredo, mas o segredo público. E há uma possibilidade distinta de cair em erro por aqui. Grosso modo, não há tal coisa como um segredo. Trata-se de uma invenção que irrompe do segredo público, um caso limite, uma suposição, o grande “como se fosse” sem o qual o segredo público evaporaria. Ver o segredo como segredo significa assumir seu valor de face, que é o que a tensão de desfiguração requer. De acordo com Canetti, é nessa tensão que a fetichização do segredo, como uma coisa escondida e momentânea, feita por pessoas e ao mesmo tempo transcendendo-as, beira uma explosão autodestrutiva, capaz de levar a todos consigo. Essa é sua previsão, que identifica como a lei virtual do segredo. Todavia, contra essa ameaça apocalíptica, observo que o segredo público está fadado a manter a borda onde o segredo não é destruído através de sua exposição, mas está sujeito à revelação que lhe faz justiça.

E o louco no mercado agonizando pela morte de Deus? Está ele realmente preocupado com Sua despedida? É culpa tardia ao matar o Pai, feito impetuoso muito facilmente levado a cabo pelos insensíveis que viverão para lamentar esse dia? Um psicodrama da pesada? Ele está certamente melhor. Mas a respeito de quê? Ouçam seu lamento. Há ainda um acima ou abaixo? Não sentimos o hálito do espaço vazio (Nietzsche, 1974Nietzsche, Friedrich. (1974). The Gay Science. New York: Vintage .)?

Deus não é o problema. Matá-Lo em nada resolveu. Ou ainda, menos do que nada. O modelo-mistério do real continua ainda mais forte que antes com substitutos de Deus erigidos em todo momento. O vício da disjunção entre aparência e essência vai ainda mais fundo. Diante dos dois mil anos do Cristo homem, havia, por trás da cena, o Platão homem, com formas belas e escondidas por trás da crosta sensual da aparência. Segredo e mistério vão ao chão. É por isso que o louco festeja, e festeja porque sabe que, sendo louco, vê que o Esclarecimento criou outros deuses ocupados por trás da cena na tela. Ele arrebenta sua lanterna lá, no meio mercado e à plena luz do dia. “Vim muito cedo”, ele disse (Nietzsche, 1974Nietzsche, Friedrich. (1974). The Gay Science. New York: Vintage .: 182). “Este grande evento ainda segue seu caminho”.

Então há o hálito do espaço vazio. Pois se fôssemos abolir a profundidade, qual mundo restaria? O mundo aparente, talvez? Mas não! Com a abolição da profundidade, aboliríamos também o mundo aparente!

O medo de Canetti dos poderes apocalípticos do segredo como um fetiche explosivo: realizado.

E Nietzsche nos deixa com essa figura de um mundo pós-ficcional, carente de profundidade. É o movimento gravado em preto e branco. O gato de Burroughs. “Ele pode se esconder na neve e, à luz do sol, em paredes brancas, nuvens e rochas. Ele se move em ruas, em ventania, com jornais soprados e pequenas porções de música e papéis-alumínio ao vento”.

“Meio-dia”, diz Nietzsche (1990Nietzsche, Friedrich. (1990). Twilight of the Idols. Trad. R. J. Hollingdale. London: Penguin.: 51), pondo a cena sem a tela: “Momento da menor sombra; fim do erro maior, zênite da humanidade”.

Defacement!

PARTE I: SACRILÉGIO

Assim, a ideia de Deus e de cognição divina bem podem ser ditas como uma diversão do Amor consigo próprio; mas essa ideia decai em mera edificação, e ainda assim insípida se lhe falta a seriedade, o sofrimento, a paciência e o trabalho do negativo.

G. W. F. Hegel, “Prefácio à Fenomenologia do espírito” (1972Hegel, Georg Wilhelm Friedrich. (1972). Phenomenology of spirit. Trad. A. V. Miller. Oxford: Oxford University Press., p. 10)

Sacrilégio

Descendo pelo lago com Phil e Liz: uma história de desfiguração e desfiguração da desfiguração

“Esta coisa imunda. Porque permitem que esta coisa imunda seja exibida?”

“Claramente, para algumas pessoas na Austrália, o motivo político do trabalho corporificado nas representações da rainha Isabel [II] e do príncipe Filipe como seres humanos frágeis e desprotegidos é inaceitável - para elas, o ‘símbolo’ da monarquia exige ser preservado imaculado e sagrado, a despeito da realidade por demais óbvia da recente fragilidade régia.”

“Eu estava de serviço em George Street como jovem policial em 1971, quando a Rainha passou em seu caminho para inaugurar o Opera House. Foi um momento que nunca vou esquecer. Disse então a mim mesmo: ‘Te amarei até o dia em que eu morrer.’”

“… trouxe desgraça para si ao permitir que esta coisa imunda seja exibida.”

“Obra de arte! Obra de arte! Você é uma obra de arte!” ele gritou, braço direito erguido ameaçadoramente.”

“‘Não dormi muito a noite passada’, disse o outro. ‘Sabia que isto ia acontecer. Tive um pressentimento de que os desgraçados iam mudar de ideia e terminar com tudo.’”

“No primeiro ataque de marreta na imagem semana passada, a cabeça da rainha foi removida; em seguida, o príncipe Filipe foi atacado, no sábado à noite as pernas da rainha foram decepadas e um dos braços do príncipe Filipe foi destruído.”

“‘Estou mais para um artista de matadouro’, disse. ‘Gosto de tomar vacas sagradas e assassiná-las.’”

“Os trabalhos em si são um tanto conservadores. São realistas, de tamanho natural. Talvez se fossem mais abstratos seriam mais aceitáveis… O choque de ver a rainha nua tem ressonâncias edipianas.”

“Sai daqui!”

“O policial sargento McQuillan chocou centenas de turistas quando tentou cobrir as formas nuas do casal real com um lençol adornado com a bandeira australiana.”

“Ele mostrou seu brasão policial e suas medalhas do Vietnã.”

“Uma briga estourou quando os organizadores, prometendo parar qualquer outra profanação da escultura, moveram-se para retirar a bandeira.”

“‘Esta escultura foi cerimoniosamente vandalizada, disse Neil Roberts, coordenador da Feira Nacional de Esculturas de Canberra, 1995.”

“Você é absolutamente muito nojento!”

“Mas os organizadores dizem que vai ficar. É mais pertinente deixar como está - como um símbolo de intolerância, irrelevância, desintegração.”

“O governador-geral distanciou-se do debate.”

“Uma rainha e um príncipe Filipe decapitados foram levados ontem, na caçamba de uma ute [caminhonete] enferrujada.”

“‘Isso passou dos limites do humor’, Mr. Roberts disse.”

“Duas semanas depois, ainda havia multidões amontoadas ao redor da tribuna vazia onde as estátuas haviam sido assentadas” (Fontes: The Sydney Morning Herald, The Australian, e Channel 2 News, Sydney).

Profanação

Uma briga estourou quando os organizadores, prometendo parar qualquer outra profanação da escultura, moveram-se para retirar a bandeira.

O sacrifício começou a me preocupar. Tudo parece tão misterioso. Por muito tempo entendi a palavra de modo literal, como no dicionário Noah Webster: sacer, sagrado + facere, fazer, sua precisa factualidade compondo o mistério. A santidade é seguramente algo além do fazer? E como se pode fazer algo a partir do nada? Como se pode realizar esse grande salto da não santidade à santidade? Questões por demais ingênuas, sem dúvida, embora persistentes. Refleti bastante sobre as tentativas de justificar ou explicar o sacrifício. Ainda assim, com notáveis exceções, todas se mostraram decepcionantes. Entretanto, temos ainda a profanação [desecration], o inverso do sacrifício, e, nesse caso, parece haver muito mais certeza, muito mais paixão.

Ao meu redor não há sacrifício. Tudo isso estava no passado ou em lugares distantes. Em Nova York, Avi Bornstein fez um vídeo para meu seminário sobre surrealismo etnográfico . Seu trabalho de campo foi no Oriente Médio, na Cisjordânia, onde travou conhecimento sobre o sacrifício. O vídeo mostrava-o sacrificando um cordeiro em Nova York, na companhia de um primo jovem, com cerca de dez anos. Os espectadores acharam-no chocante de um modo que não aconteceria se fosse um documentário sobre o sacrifício na Cisjordânia. Pareceu sacrílego, e, apesar disso, primorosamente sagrado.

Ao meu redor não há sacrifício, nem muita paixão por coisas sagradas. O desencantamento do mundo ainda me parece um fato amplamente consumado. O que existe hoje é talvez melhor entendido como um novo amálgama de encantamento e desencantamento, o sagrado existindo em formas mudas, mas poderosas, em particular - e essa é minha preocupação central - em sua forma “negativa”, como profanação. Então o todo-poderoso fala - de fato, fala alto, como testemunhamos a pouco tempo de modo tão vívido no debate do Congresso dos Estados Unidos a respeito do impeachment do presidente Clinton, acusado de mentir sob juramento. Esteve alguma vez o sagrado livre do impulso transgressivo? Isso sugere que a profanação é mais do que o inverso do sagrado ou do sacrifício. Algo mais complicado do que uma inversão está em jogo.

Trabalhadores necróticos “Anzacs roubados”4 4 Anzac é acrônimo de Australian and New Zealand Army Corps, companhia militar formada, em 1915, por Austrália e Nova Zelândia durante a Primeira Guerra Mundial para a Batalha de Galípoli, península no noroeste da Turquia.

“A Comissão Independente Contra Corrupção descobriu ontem como a equipe necrótica de Glebe5 5 Glebe é cidade no subúrbio oeste de Sydney. O nome deriva da condição historicamente anterior de gleba, originalmente anglicana, na região. celebrava o dia anual de memória dos mortos da [Primeira] Guerra, Anzac Day,6 6 Comemoração nacional em 25 de abril na Austrália e Nova Zelândia, originalmente em memória dos membros da Anzac, mas atualmente em nome de todos que serviram e morreram em operações militares pelos dois países. visto o número de soldados que morreram naquele dia com grande quantidade de dinheiro em espécie. ‘Lembro quando comecei aqui’, disse Simon McLeod, assistente de necropsia acusado, há duas semanas, de lavar e secar dinheiro que ele furtou de cadáveres sujos e decompostos, ‘sabe, tipo, você aguardaria ansiosamente pelo Anzac Day porque os velhos diggers7 7 Old diggers, no original. O substantivo digger, nesse caso, é uma a gíria militar comum na Austrália e Nova Zelândia para se referir ao soldado australiano ou neozelandês durante a Primeira Guerra Mundial. O uso é informal, mas recorrente. estariam jogando two-up8 8 Popular jogo de azar australiano, uma espécie de cara ou coroa jogado com duas moedas ao mesmo tempo em que o resultado é dado a partir da combinação das faces expostas de cada moeda a cada lance. Heads são as faces frontais das moedas, que, em geral, exibem um rosto masculino. Tails são as faces dorsais das moedas. Odds, ou one them, são as diferentes faces de cada moeda. O jogo é tradicionalmente jogado no Anzac Day. e inevitavelmente alguém poderia revistar’.”

“Ele admitiu ter roubado dinheiro em diversas ocasiões e ter, certa vez, retirado um par de sapatos de ginástica que depois calçou, mas negou fervorosamente que ‘adorava’ examinar corpos decompostos ou trocar ‘notas muito fedidas’ no banco e ter odiado as novas notas de polímero porque elas não secam adequadamente após serem lavadas.”

“Como informante da Comissão sobre Corrupção, Mr. McLeod fez gravações secretas de vídeo de um atendente de caixa em um necrotério, Mr. Nichols, que negou muitas vezes a prova apresentada. ‘Eu nunca roubei ninguém vivo, logo não o faria quando mortos’, disse ele. ‘Eles não têm como se proteger’.”

“‘Eu não sou santo, porra!’, pensou ele, lembrando-se dos velhos tempos quando fez ganhos gigantescos.”

“Estou falando do ganho gigantesco’, McLeod sussurrou para ele, no vídeo, ‘que Frank teve com aquela mulher decomposta. Ela tinha aquela carteira de dinheiro ao redor de sua…’”

“‘Lembro de uma’, respondeu Nichols, ‘aquela… a mulher tinha um par de tetas muito pequenas, ela andava por aí como se ela tivesse um busto 44 do cacete, que estava cheio de grana’.”

“Ao ser forçado a ler as transcrições das conversas, Nichols disse que não negou que as conversas tivessem ocorrido, mas não tinha registro delas. A inquirição continua” (Fontes: The Sydney Morning Herald, 28 de junho de 1996).

Lei de Crimes e Costumes de 1981, Federação da Austrália

“Uma pessoa não deve, sem consentimento, por escrito, de pessoa autorizada, por força de vontade desfigurar, mutilar, cortar ou destruir nenhuma moeda ou papel-moeda que é legalmente corrente na Austrália.”

“Penalidade: (a) no caso de pessoa física - A$ 5.000 ou aprisionamento por 2 anos, ou ambos; ou (b) no caso de pessoa jurídica - A$ 10.000.”

“E as mesmas penalidades aplicam-se àqueles que vendem essas moedas ou papéis-moedas ou os têm em sua posse.”

O Peixe-homem de Budawangs

A opinião jurídica não era clara sobre o fato de eu ter cometido um crime. Uns diziam que era contra a lei desfigurar cédulas sob qualquer circunstância, enquanto outros diziam que somente era contra a lei se a intenção fosse fraudá-las.

John Reid sabia das leis sobre desfiguração de dinheiro antes de cortar vários milhares de dólares [australianos] que ele recebeu da venda do seu estimado lote de bens imobiliários na costa sul, oitava maravilha do mundo, de modo a começar, em 1982, uma colagem sobre o drama de prisioneiros políticos na América Latina?

Em 1984, quando Reid havia cortado 25 mil cédulas, principalmente de um, cinco e vinte dólares, um colega enviou, de modo anônimo, ao Esquadrão de Fraudes da Polícia Federal Australiana, 52 notas cortadas, com o nome de Reid acompanhado da evidência. Na parede do estúdio de Reid, a polícia encontrou a figura inacabada de uma extraordinária mulher nua, com os braços e pernas abertos, sendo espancada com porretes. Abaixo estavam as matérias-primas do artista: tigelas contendo quadrados, retângulos e pedaços de notas em forma de meia-lua, separadas de acordo com o formato e a cor; o papel-moeda australiano tem cores deslumbrantes, como dinheiro de Monopoly, 9 9 No original, Monopoly money, referência a um jogo de tabuleiro. com as cores variando em intensidade ao longo da cédula, perfeita para tons de carne, contusões e machucados. Algumas notas continham o rosto da rainha cuidadosamente cortado em grandes semicírculos, deixando misteriosos espaços negros entre, de um lado, os cabelos penteados e, do outro, o brasão australiano, segurado por um canguru e por uma ema. Embora os detetives sejam, em geral, insensíveis, os policiais estavam perplexos diante daquela cena. Eles retornaram, para prender Reid, com pinças, luvas, sacolas plásticas e um fotógrafo forense. De acordo com uma lei de 1959, Reid foi preso sob 55 acusações por adulterar intencionalmente cédulas australianas em seu estúdio na Escola de Arte de Canberra, da Universidade Nacional Australiana.

O fato revelou, no entanto, que o diretor do Ministério Público Federal era um amigo das artes, voltando atrás para achar uma solução. O Commonwealth Bank ofereceu dinheiro oficialmente desfigurado para Reid usar, mas ele recusou, e seu caso se arrastou até 1986, quando, levando vantagem por meio de uma nova lei, solicitou, com sucesso, a permissão do primeiro-ministro e do tesoureiro para completar sua obra de arte - a qual, pelo menos em 1996, quando a vi, permanecia incompleta, como se a permissão oficial do líder do país para desfigurar as notas tenha levado a uma pausa repentina.

Reid é conhecido por suas investidas às margens da lei em imagens políticas, assim como sua também espetacular fotografia selvagem visando salvar uma floresta virgem. 10 10 No original, old-growth forest, o que pode ser traduzido como antiga floresta, floresta primária, mata virgem, floresta virgem. Seu local favorito é o Budawangs, uma cordilheira, ao sudeste de Canberra, com precipícios assustadores, nos quais ele escondeu câmeras estimuladas pelo som ou movimento na procura por uma tímida criatura, o peixe-homem, que dizem estar escondida nas hidrovias daquelas partes remotas. Como ela nunca fora vista por humanos, esse ser esquivo representa, para Reid pelo menos, a possibilidade de comunicação com o selvagem, a despeito do fato de o peixe-homem ser uma fraude, ou, mais precisamente, um segredo público, inventado pelos australianos - nas palavras de Reid, “uma descoberta artística, e não científica”. Trabalhando às margens do segredo público, revelando e ocultando ao mesmo tempo, essa perseguição fotográfica ao peixe-homem na escuridão da pré-histórica Budawangs parece gerar não menos um mistério do que o contágio liberado por desfigurar o dinheiro nacional. Por isso a pinça e as luvas cirúrgicas? (Fontes: ANU Reporter, 9 de dezembro de 1992; arquivo pessoal de correspondência jurídica de John Reid).

Texas versus Johnson

um grunhido ou rugido inarticulado.

“Tanto o Congresso quanto os estados decretaram inúmeras leis regulando o uso incorreto da bandeira americana. Até 1967, o Congresso deixou o regulamento do mau uso da bandeira nas mãos dos estados. Agora, entretanto, o Título 18 USC #70011 11 Título 18 do Código dos Estados Unidos (United States Code, USC), seção 700. O título 18 do Código norte-americano discorre sobre crimes e procedimentos criminais [crimes and criminal procedures]. É dividido em cinco partes, cada uma contendo diversos capítulos. O texto citado se encontra na parte 1 (“Crimes”), capítulo 33 (“Emblems, Insignia and Names”), seção 700 (“Desecration of the Flag of the United States; Penalties”). (a) estabelece que: ‘Qualquer pessoa que conscientemente desrespeite a bandeira dos Estados Unidos, ao mutilar, desfigurar, sujar, queimar ou pisar na bandeira publicamente, deve ser multada por não mais que US$ 1.000 ou presa por não mais que um ano, ou ambas as penas’.”

“Além disso, Johnson foi processado porque ele sabia que sua manifestação política poderia causar uma ‘ofensa grave’. Se ele tivesse queimado a bandeira como uma forma de descartá-la por estar suja ou rasgada, não estaria culpado por ter profanado a bandeira sob essa lei do Texas: a lei federal indica o ato de pôr fogo como o meio preferido para descartar uma bandeira ‘quando ela está em condições nas quais não é mais um símbolo adequado para se exibir’, e o Texas não questiona essa disposição.”

“Note-se que o chefe de justiça Rehnquist, escrevendo pela opinião dissidente, em favor do processo, alegou que o ato de Johnson não poderia ser interpretado como um discurso simbólico e, portanto, não estava protegido pela Primeira Emenda. “Atear fogo à bandeira”, declarou, “é equivalente a um grunhido ou rugido inarticulado” (Fonte: Texas versus Johnson, 88 US 155 [1989]).

Adeus às bandeiras

“Escoteiros no Panhandle da Flórida12 12 O Panhandle da Flórida é a região que inclui a maior parte do noroeste daquele estado (dezesseis condados). É uma faixa estreita em forma de cabo de frigideira, razão pela qual é chamada panhandle [cabo de frigideira, cabo de caçarola]. retiraram centenas de bandeiras americanas maculadas ontem em uma cerimônia no Cemitério Nacional de Barrancas em Pensacola. Um escoteiro de doze anos fez continência depois de acrescentar mais uma bandeira à pira.”

A fotografia mostra um garoto loiro em seu uniforme de escoteiro, corpo ereto, fitando as bandeiras em chamas, com o braço direito rígido em continência. Ele se encontra muito perto da pira. Suas luvas brancas se enrugam enquanto executa a continência escoteira com os dois dedos. As chamas provenientes das bandeiras saltam no primeiro plano da fotografia. Ondas de calor se espalham sobre o resto da imagem, criando uma impressionante visão dos sonhos, através da qual contornos brancos regulares de pedras de sepulturas permanecem em colunas, estendendo-se ao infinito como os soldados que elas representam uma vez fizeram. O menino escapa a este diáfano destino. Sua imagem é incisiva como as chamas que avançam em sua direção (Fonte: Legenda de uma fotografia em The New York Times, 12 de junho de 1994).

Nota: Pyre, por OED: “usualmente uma pilha funerária para cremar um cadáver”.

Os garotos Nichols eram uma preocupação, dizem habitantes locais

“Decker, Michigan: Uma cidade tão pequena não guarda muitos segredos… Os vizinhos se perguntavam por que James Douglas Nichols, de 41 anos [acusado, com seu irmão, Terry, e de Timothy McVeigh pelo assustador atentado a bomba contra o prédio federal na cidade de Oklahoma], insistiu em dirigir sem carteira porque ele colocou tantos adesivos antigoverno na sua caminhonete e porque gostava de pagar pelos produtos usando notas de dólar desfiguradas por ele com um carimbo” (Fontes: The Sydney Morning Herald, 27 de maio de 1995, publicado por The Los Angeles Times e The Washington Post).

Sobreviventes divididos no julgamento seguinte

“Em uma noite de reunião do grupo de sobreviventes, as pessoas repetidamente se perguntavam se olhar para o Mr. McVeigh poderia ajudar os sobreviventes a entender o incidente.”

“‘Preciso vê-lo apenas uma vez’, diz um sobrevivente. ‘Gostaria de ver suas ações, suas expressões faciais. Agora ele está com aquela aparência de garoto legal do quarteirão. Mas deve haver alguma coisa a mais. De outro modo, como poderíamos saber? Quando você caminha por um shopping center, como pode dizer se alguém é louco ou não? Será que existe alguma maneira de perceber isso?’”

“‘Não, não!’, diz um psicólogo do Departamento de Assuntos dos Veteranos dos Estados Unidos. ‘Eu garanto a você, olhar para ele vai confundir ainda mais. Ele não irradia ódio’” (Fonte: The New York Times, 19 de abril de 1997).

O rosto do vietnamita

“Em Dispatches, Michael Herr escreveu que ler a expressão de um vietnamita é como ler o vento. O Mr. Bang é diferente. Ele não reflete a discrição submersa e embutida no típico mistério da geração mais velha de oficiais vietnamitas. Seu semblante fica sereno com lembranças da infância ou quando seu poema favorito é mencionado.”

“O Mr. Bang movimenta sua cabeça com prazer, frequentemente. Ele está satisfeito com seu novo lugar ao sol, [mas] a guerra ainda está para ser enterrada… Em quase todo lugar por onde ele passa, há protestos. ‘Mentiroso’ e ‘comunista’ são os gritos.”

“Uma fonte próxima do senador Robert C. Smith, um republicano de New Hampshire, disse: “Le Bang é um comunista bem treinado que acha que vestir um terno e falar sobre negócios e investimentos com lobistas de Washington vai nos fazer esquecer, aqui na Colina do Capitólio, que Hanoi ainda está enganando a América sobre o destino ainda inexplicado dos prisioneiros de guerra e dos desaparecidos em combate. 13 13 No original, POWs and MIAs. POW significa prisioneiro de guerra [prisoner of war]; MIA significa desaparecido em ação [missing in action]. Ele está enganado’” (Fonte: International Herald Tribune, 6 de outubro de 1995. O artigo se distribui ao redor de uma grande foto do senhor Le Van Bang elegantemente vestido, debaixo de um retrato de Ho Chi Minh, o qual está ao lado da bandeira vietnamita).

Em Miami, linhas de corte da alfândega e mais inspeções à paisana: história de um cão peludo.

“Junto à esteira de bagagens, um jovem de jeans e tênis de corrida olha, de relance, os demais passageiros. Em seguida, um cão peludo apalpa e fareja o fundo falso de uma mala e senta-se, abanando o rabo como um mau presságio. O rapaz de jeans revela seu distintivo e escolta o homem que carregava a droga a uma pequena sala para interrogatório.”

“Jay R. McNamara, um vagabundo de jeans e camiseta, fez 57 apreensões desde que começou a interagir com os viajantes.”

“Eu leio os olhos das pessoas’, disse Mr. McNamara.”

“A força de interdição já usou cães, incluindo beagles e spaniels, para detectar drogas ilegais. Mas Mr. Gordon contou, ‘Nós achamos tanto tráfico aqui que os pequenos cães estavam sendo maltratados, então nós tivemos que trocá-los pelos maiores’. Agora, os recrutas que saem do canil local, que ainda são guiados pelos inspetores uniformizados, são tão grandes quanto Abby, um Chesapeake Bay retriever que recentemente farejou os pacotes de quase cinco quilos14 14 No original, 10 pounds. Cada pound equivale a 453 gramas. de cocaína de uma dupla de carregadores de droga, que estavam fortemente revestidos com repelente de cães.”

Recrutada para a máquina estatal de fiscalização, a fisionomia conduz a uma íntima relação com o nariz do cão, grande ou pequeno. “De todos os sentidos”, escreveram os autores de Dialética do Esclarecimento (Horkheimer & Adorno, 1987Horkheimer, Max & Adorno, Theodor. (1987). Dialectic of Enlightenment. Trad. John Cumming. New York: Continuum.: 184), “o do olfato - que é atraído sem se objetificar - conduz ao mais claro testemunho do impulso do perder-se de si e do tornar-se o ‘outro’”. Se isso for verdade, seria o olfato, e não a visão, a mais efetiva arma do arsenal fisionômico. Como estão errados os fisionomistas! Procurando pelo olhar quando, desde o princípio, era o nariz que podia dar conta do trabalho graças à verdadeira imersão dionisíaca no corpo, embora o corpo do Outro; para realmente conhecer os Interiores - por isso que você se perde neles, o único conhecimento que vale conhecer.

Assim, enquanto a visão prospera sobre a realidade como uma entidade de dupla camada, com uma superfície e um interior, por meio disso, conferindo mais importância e mistério ao não visto do que à cena, o olfato qualifica-se como “conhecimento nietzschiano”. Foi-se o profundo, foi-se a superfície também, plataformas em chamas, o mastro principal vem abaixo e nenhum lugar há para pôr os seus pés. O odor ridiculariza a cena da tela.

E o que faz a atração? Essa perda de si e o tornar-se Outro? Drogas apropriadas? Opa! Melhor ter uma composição humano-animal arrancada da trela da civilização. Logo, humanos fisionomicamente abençoados (“Eu leio os olhos das pessoas”) canalizaram o olfato à visão, assim como o jovem Freud farejador de cocaína o fez muito em suas cartas para o especialista em nariz Wilhelm Fliess, de Berlim, na aurora da psicanálise, em 1897. Freud especulou que essa canalização do olfato à visão era a base da repressão - a mais importante (para não mencionar a misteriosa e negativa) função da cultura. Ainda mais significativo - para leitores de Bataille, por exemplo -, foi Freud sugerir que, como consequência, “libido e nojo pareceriam associativamente interligados” (Freud, 1897 [1960-1974]Freud, Sigmund. ( 1960-1974). Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud. London: The Hogarth Press; Institute of Psycho-Analysis, 24 v.: [v. 1,] 270).

Fisionomia, nesse esquema, não seria apenas um substituto visual para o olfato, mas também para o sexo animalesco, quadrúpede, com a transformação deste para uma esfera “elevada”, mais civilizada, em que a cena da tela promove abismos misteriosos e remotos. Desse modo, a própria fisionomia, a arte de ler o interior a partir do exterior, é a marca não tanto de um sexo deslocado, mas da repressão e da tentativa de suplantá-la. Nenhuma surpresa que a Dialética do Esclarecimento argumente que a tentativa civilizadora de suprimir instintos de base criou um excesso sensual, coisa tão fora de lugar que desperta “momentos de pré-história biológica: sinais de perigo que fazem o cabelo arrepiar e o coração parar de bater” (Horkheimer & Adorno, 1987Horkheimer, Max & Adorno, Theodor. (1987). Dialectic of Enlightenment. Trad. John Cumming. New York: Continuum.: 180). Assim, um cão peludo abanando seu rabo não vale menos do que drogas como despertar pré-histórico, o valor de cinco quilos empacotados, mesmo se revestidos em um invólucro de olfato (Fonte: Christopher S. Wren, “Travelers’ Boon Is Smugglers’ Bane”, The New York Times, 27 de maio de 1996).

O monumento

Eu estou muito cansado, eu devo tentar descansar e dormir, senão eu me perco em toda circunstância. Que esforço de se manter vivo! Erigir um monumento não requer o consumo de tanta força.

Franz Kafka (1965Kafka, Franz. (1965). Diaries: 1914-1923. New York: Schocken .: 23, registro do diário, 1914)

Em Lênin em Ruínas [Lenin in Ruins] (1991), Mark Lewis cita Robert Musil para falar do efeito que ocorre quando passamos pelos monumentos de nossa cidade: nunca damos muita atenção a eles. Provavelmente, nem sequer os notamos.

Por que então - temos que questionar - todo o espalhafato que subitamente se formou a respeito dos monumentos durante e depois da derrubada do regime [soviético]? Evidentemente, a “derrubada” entrega o jogo, como se o regime fosse, ele mesmo, um monumento e, ainda mais, como se existisse uma espécie de desejo de morte dentro do monumento, algo na monumentalidade do monumento que clama para ser derrubado, difamado, profanado - em uma palavra, desfigurado. Aqui está a “lei fundamental” no coração da religião e das coisas sagradas. Como o conceito de Flaubert sobre o ato de escrever, erigir uma estátua é vingar-se da realidade. E a realidade, por sua vez, exige a sua dívida. Mark Lewis sugere que as mentiras, ou a história reprimida, do regime são gravadas na estátua como uma falha escondida, uma linha defeituosa invisível esperando a ressurgência da verdade do passado; e, ele dá a entender, é isso que conta para a fúria da desfiguração e para o efeito mágico efervescente que revela mais. Mas essa valiosa sugestão padece por si mesma, assim me parece, da mesma fé monumental na verdade e na história, para não mencionar na memória, que sustenta o autorretrato do regime. Ela carece da qualidade desfiguradora necessária para qualquer teoria da desfiguração que valha a pena. Ela falha em ver a lei fundamental, a atração não menos que a repulsa pelas ruínas, e o êxtase que há nelas.

Quão fascinantes, por conseguinte, as contribuições para a arte desfigurante oferecidas ao The New Yorker por diversos artistas que, em 1993, foram questionados sobre o que deveria ser feito com os monumentos da recém derrubada União Soviética (Weschler, 1993Weschler, Lawrence. (1993). Slight Modifications. The New Yorker , p. 59-64.). Um inverteu as estátuas, enterrando a cabeça delas no chão, deixando a base no ar, onde vegetais, como repolhos e cenouras, foram plantados. Outro artista sugeriu simplesmente tirar a base, ou ao menos aquela parte dela na qual o trabalhador e o camponês deveriam firmar seus pés, deixando ambos magicamente suspensos no ar, incertos sobre o que o próximo passo trará. “Um passo à frente…”.

É evidente que esses interessantes exemplos de desfiguração são enfraquecidos pelo fato deles ocorrerem só depois que um regime foi, como se costuma dizer, derrubado, emergindo do vantajoso ponto de segurança providenciado por outro Estado forte.

Ignomínia mucoide

Mesmo que ele tenha sido glorificado nas capitais da Europa e dos Estados Unidos, morreu no exílio com poucos companheiros, os quais se poderiam contar nos dedos, tossindo seus pulmões tuberculosos na quente costa de Santa Marta, Colômbia. Ele que comandou grandes exércitos e derrubou a cavalaria espanhola de Murillo. Ele, que mudou o destino de um império e trouxe novas nações a novos mundos. Aclamado como O Libertador, em poucos e breves anos, sua fama evaporou sob o sol tropical.

Mas, por um estranho desvio da imaginação histórica, o outro lugar europeu o ressuscitou uma década depois. E, como o ressuscitaram! Estátuas foram encomendadas, de Paris e dos Estados Unidos. Navios trincaram com o peso do mármore. Foi prodigioso. O retorno do reprimido, para não mencionar a insistência em mover os restos sagrados de seu corpo da novíssima república para o oeste, onde ele finalmente descansou seus atribulados ossos. Mas pouco haveria de descanso. Eles queriam seus restos mortais, insistiram em ter seu espírito, e, no absoluto de suas reivindicações à probidade da posse, eles definiram a própria noção de nacionalidade. “Ninguém tem o direito de ir buscá-los além da nação à qual pertencem”, disse o general Páez ao Congresso, em 1842, doze anos depois da morte do Libertador, amontoado de injúrias por aquele mesmo Congresso.

Aquilo foi, em outras palavras, o ato fundador da possessão do espírito pelo novo Estado.

Um barco chamado A Constituição foi enviado ao longo da costa. Simón Camacho, parte da delegação, encontrou-se com o jovem cônsul e médico francês Próspero Révérend, que havia estado em Santa Marta desde 1828, onde auxiliou O Libertador em seus últimos dias e guardou, como relíquia, por todos aqueles anos, um pedaço de muco bronquial seco, recuperado do pulmão do Libertador no post-mortem. Ele tinha “uma forma alongada”, comentou Camacho, “poroso e assemelhado aos pequenos ossos que são encontrados nas espinhas dos peixes”.

Foi com desprendida apreciação que Próspero Révérend entregou esse muco seco, embrulhado no mesmo papel em que foi colocado durante a autópsia, doze anos antes. Ele planejava enviá-lo à França, caso morresse longe de sua família. Assim, passando pelas mãos de familiares, e, por meio delas, de nação em nação, a antecipação, ou o medo, da morte serviu para transferir o muco do homem que tossiu até a morte no exílio. Poderia haver um laço mais íntimo entre nações do que o estabelecido por essa troca de uma ignomínia mucoide de estranho formato exumada do cadáver? E por qual estranha lógica de tabu e transgressão, por qual estranha mistura de diploma médico e saber ritual, pôde um ato de perfeito materialismo de base vir a glorificar tão naturalmente o estado do todo?

Cimento fundido

Cimento fundido foi o material que Greg Taylor usou para fazer sua estátua dos reis nus, a qual ele encapou com óxido de ferro para que enferrujasse rápido. Decadência ativa, reminiscente do dadaísmo, foi, portanto, constitutiva desse trabalho, que no espaço de três dias, começando com a decapitação da rainha, irrompeu como uma excitante “performance” [happening] no centro da atenção nacional.

Taylor enveredou pela escultura após um acidente com uma serra que cortou profundamente sua perna, quando ele era fazendeiro e madeireiro nos arredores de Bega, na costa meridional de Nova Gales do Sul. Um médico o aconselhou a fazer arte, para relaxar. Down by the Lake with Phil and Liz foi sua terceira escultura. Ela lhe custou 6 mil dólares. Ele a chamou de “máquina de lavar” dinheiro em um idioma australiano esquecido, referência aos trocados que famílias de meios modestos devem colocar de lado para uma conquista maior. Um conto inocente o suficiente de um quixote australiano sobre sua cabeça. Demais para arte terapia em hospitais rurais! Demais para a arte quando cai nas mãos dos homens bravos que cortam o deserto australiano.

Mas uma história muito diferente, e até sinistra, foi descoberta em sua escultura quando ela foi colocada nas águas silenciosas do recém-construído lago Burley Griffin, ele mesmo uma obra de arte produzida para adicionar uma certa gravidade plácida à nova cidade capital da Austrália. Na margem oposta ao local onde a estátua foi disposta está o Memorial Nacional da Guerra, composto por uma ampla avenida margeada por estátuas dedicadas a muitas das guerras em que esse pequeno país, em sua breve história de Estado-nação branco, posto avançado do Império, tem se envolvido. Há mais guerras prestes a receberem suas estátuas enquanto outras ainda estão esperando. É um negócio vagaroso. Atrás da estátua de Taylor estavam as duas casas do Parlamento, a velha e a nova, e, enquanto a Suprema Corte e a Galeria Nacional se situavam em um lado da estátua, a Biblioteca Nacional e o Centro Nacional da Ciência e Tecnologia ocupavam o outro.

O cenário era perfeito demais. O lugar preciso para uma estátua ofensiva, pelo menos para aqueles que podiam ver o panorama geral [big picture]. É evidente que muitas pessoas tenham considerado que ela foi apoiada pelo “próprio governo”, o primeiro-ministro sendo publicamente contra a monarquia e ele mesmo sendo visto como o “testa de ferro”, se não o provocador, da mudança extraordinária na identidade australiana, de sua orientação colonial ligada à Coroa britânica, para seus primeiros passos desastrados em direção a uma nação definindo-se a si própria em termos de uma surpreendente mistura de aboriginalidade australiana e Ásia.

“Elas permanecem lá enferrujando, e eu adoro isso. Elas nem ao menos sabem que são irrelevantes”, disse Taylor no início da saga, referindo-se à rainha e ao príncipe Filipe. Foi um sentimento profético, em vários sentidos. Elas “enferrujaram” muito mais rápido do que ele antecipou, e, quanto à atribuição de (falsa) consciência, ou pelo menos a possibilidade disso, às estátuas - “Elas nem ao menos sabem que são irrelevantes” -, como se elas fossem a verdadeira rainha e seu consorte, temos apenas que observar de modo célere os registros para ver que essa magia simpática, na qual a cópia parece adquirir as propriedades daquilo de que é cópia, com frequência acompanha a desfiguração e é o que fundamenta sua curiosa lógica do “eles nem ao menos sabem”.

Mas o que vem primeiro, o ovo ou a galinha, desfiguração ou magia simpática? Uma questão retórica, sem dúvida. Porém, permitam-me sugerir que a desfiguração vem “primeiro”, ou, ao menos, cria uma via expressa para a magia do mimético, assim como a desfiguração da cópia, até então inerte, transforma sua capacidade inerente para vida em vida. Lembremos que o primeiro exemplo do famoso capítulo sobre magia simpática em O ramo de ouro, de Sir James Frazer, é uma estatueta com uma agulha espetada em sua cabeça ou coração por um “índio Ojibway”. O grande número de exemplos de magia simpática, em torno de 162 páginas, dá relevo, portanto, à desfiguração, e o faz porque o autor pensa nisso como a forma de arte mágica mais comum.

Talvez a aplicação mais familiar do princípio de que semelhança produz semelhança é a tentativa que tem sido feita por muitas pessoas, em muitas épocas, de prejudicar ou destruir um inimigo por meio da agressão ou destruição de uma imagem dele, na crença de que, assim como a imagem sofre, o mesmo acontece com o homem, e, quando a primeira perece, o último deve morrer (Frazer, 1912Frazer, James George. (1912). The Golden Bough: A Study in Magic and Religion. London: Macmillan, 12 v.: 55).

Ainda mais, não é só como se ao desfigurar a cópia se agisse sobre aquilo de que ela é cópia, mas que, somando-se a isso, a cópia desfigurada emitisse uma carga que parece - de que outra maneira poderíamos dizer isso? - entrar no corpo do observador ao ponto de preencher fisicamente, transbordar, e com isso criar uma efusão de desfigurações proliferantes… “Elas permanecem lá enferrujando, e eu adoro isso”. E a deterioração propaga-se em uma profusão de contágio começando com (i) a amarração de um cão da raça corgi a um banco um dia ou dois depois da decapitação dela, sem mencionar (ii) o zelo com que a mídia sublinha os sinais de poluição-imagem por toda a parte, seus seios despidos e as pernas partidas do príncipe, e ainda (iii) as pessoas de todas as idades queriam, mais do que qualquer coisa, sentar com eles, ou entre eles, ou atrás deles, o que fosse, e ter fotografias desse momento. Hope Bush, de seis anos, aparece entre eles em uma fotografia de jornal com uma mão deferente em cada ombro desnudo, parecendo tímida, orgulhosa e eminentemente respeitosa.

Depois de tudo, como foi assinalado pela senhora Betty Churcher, diretora da Galeria Nacional de Arte, o furor sobre a escultura foi reminiscente da contenda desencadeada pelo primeiro-ministro Paul Keating ao tocar na rainha durante a visita real de 1992. Eles estavam inspecionando a guarda de honra, e, em um momento de confusão, o primeiro-ministro, de modo delicado, colocou sua mão na “base das costas” dela, próximo ao traseiro real.

“Foi como se ele tivesse realmente tocado Deus”, disse a Mrs. Churcher.

Ele violou um dos tabus mais antigos. Mais do que isso, um daqueles tabus que criaram, em via de mão única, o próprio conceito de tabu, muito antes do capitão Cook colocar a palavra em nossa língua depois de sua viagem ao Pacífico.

E esses tabus relacionados aos corpos de rainhas e reis, sem falar no de Deus, foram ampliados pela relação colonial, tornados mais preciosos e, portanto, mais vulneráveis. Seu status, contudo, é um mistério. E talvez esse seja o ponto. O australiano comum saberia que esse contato foi uma violação se isso não tivesse sido apontado pela mídia citando autoridades estranhas, como os mais altos hierarcas da tradição em Westminster? Em qualquer caso, deve ter havido considerável poder para ser galvanizado uma vez que isso se tornou uma questão.

Notamos como a Mrs. Churcher - quatro anos depois do primeiro-ministro ter tocado a rainha - é citada como tendo dito que era realmente como tocar Deus.

Ela está sendo pedagógica. Ela está procurando por uma imagem para expressar o inexpressível e colocar a ideia em uma linguagem clara, de que (i) jamais se deve tocar em Deus ou, de modo análogo, (ii) na realeza.

Mas por que não se deve tocar?

E ainda mais surpreendente e mais curioso: Por que você desejaria tocar? Por que não deveria? E tocar a estátua desfigurada pela nudez é tão ruim quanto tocar o objeto imaculado não desfigurado?

Mas lá estão eles tocando a estátua poluída, seios despidos, pernas partidas, e tudo. “Todos os pervertidos de Canberra foram e ficaram olhando fixamente para seus seios. Alguns dos doentes e pervertidos republicanos até os tocaram”.

Jorraram cartas ao editor porque, antes mesmo de ter sido desfigurada, a coisa era, para muitos, um fenômeno nojento e imundo:

“Totalmente repugnante.”

“Obsceno.”

“Peça de lixo exposta em nome da arte.”

“Vulgar.”

“Grotesco.”

“Monstruosidade.”

“Pichação de banheiro.”

“Vandalismo disfarçado de arte.”

“Uma manifestação revoltante.”

“Por que autorizaram que essa porcaria profanasse a margem do lago?”

“Eu não consigo encontrar palavras… Um ataque covarde, projetado para ser o mais insultante possível.”

“Mau gosto.”

“Aviltante e ridículo.”

“A rainha tem passado por tempos difíceis nos últimos anos e tem sobrevivido com dignidade. Ela não pode, entretanto, defender-se contra esse tipo de ataque.”

“Profanação.”

“Uma efígie degradante da minha rainha.”

“Essas pessoas deveriam estar nas árvores com os macacos ou em jaulas no zoológico.”

“Podridão.”

“Um escândalo horripilante.”

“Tente fazer isso em qualquer outro país, contra qualquer outro chefe de estado. Você deveria ter o que merece.”

“Uma façanha doentia.”

“Uma jogada barata.”

“Assédio sexual.”

“Violação dos direitos humanos.”

“É doloroso e desnecessário.”

“Esmagadores 94% dos que ligaram para a linha de votação do Herald Sun ontem se disseram ofendidos pelas esculturas nuas da rainha e do príncipe Filipe. As estátuas provocaram uma ampla resposta, com 1.852 ligações.”

Também houve ridicularização da tentativa de definir o trabalho não tanto como imundo e doentio, mas, por causa de sua sordidez, como pueril.

Um cavaleiro do Reino disse: “Minha própria reação instintiva àquela escultura ofensiva foi ignorá-la. Afinal, não é assim que nos dizem para tratar a pirraça de uma criança mimada que deliberadamente faz uma bagunça nojenta no tapete da sala de estar, quando a reação natural seria virá-la e bater em seu traseiro? Mas eu posso compreender a reação daqueles que preferem bater no escultor [sic] em vez de ignorá-lo”.

O cavaleiro do Reino levanta questões difíceis. Pois não há um embaraço na iconoclastia, paradoxalmente privilegiando seu alvo pelo ridículo? E a iconoclastia não justifica e até mesmo insiste em contrarreações violentas, pueris, aviltantes, ultrajantes, revoltantes, desonestas, repulsivas, insultantes, profanas, e por aí vai - nesse caso, virar o artista de costas e espancar seu traseiro; isto é, desfigurar o desfigurador ou, ao menos, seu traseiro?

Mais do que privilegiar seu alvo, a iconoclastia se volta contra si mesma. Sendo assim, há a opção padrão, expressa por nosso cavaleiro do Reino, de ignorar a coisa toda, exatamente como se deve ignorar uma criança malcriada, como diz o cavaleiro (pode-se ver quantas crianças malcriadas o cercam). Ou a reivindicação semelhante de uma jornalista descrita como especialista em linguagem, Jo-Ann Stubbings, de que os australianos são inerentemente iconoclastas - eles adoram “fazer provocações com o sagrado e o sério” - tanto que o efeito final, nesse caso da escultura de Taylor, foi de tédio. Venceu a indiferença, de acordo com ela, e fazer provocações com o sagrado e o sério é, ao final das contas, tedioso. A negação espatifa-se em sua face desfigurada. De fato, ela recorre à própria escultura para desenvolver seu ponto: “Ambos os membros da realeza pareciam cansados”, disse Stubbings. “Pobres almas […]. Eles estavam, de fato, mortos de tédio. Alguém os estava provocando. E que medíocres, súditos desleais, isso tudo já foi feito antes”. Interessante aqui é como ao desfigurar a desfiguração do artista, negando sua negação, ela anima as estátuas, ou, pelo menos autoriza que ecloda seu potencial para ser aquilo de que elas são cópias. Ho hum.

De acordo com isso, o artista perdeu. E talvez ele tenha feito pior do que perder, pois, além de ineficaz, sua desfiguração tenha adicionado novo poder ao objeto criticado. Seu trabalho pode ser não só mortalmente enfadonho, mas pode mesmo elevar a estatura do que foi tornado estátua, obtendo o resultado oposto do desejado por causa da virada desfiguradora do Aufhebung [subsunção] de Hegel, convertendo um negativo em um positivo transcendente, o trabalho artístico desfigurado servindo como testemunha da verdade contra a contraverdade que o artista gostaria de exaltar. Curiosamente, essa virada sugere que, para se tornar morto (enfadonho), o trabalho artístico deve primeiro ser avivado em um surto de erupção mimética, abrindo para nós uma gama de possibilidades interessantes em relação à faculdade mimética: como tendo não tanto a vida, mas também morte própria - e até talvez uma vida na morte?

Então, vamos admitir essa tensão não resolvida no interior da desfiguração, primeiro, andando ao longo da margem dessa autodestruição e, depois, no modo pelo qual os termos da presente autodestruição oscilam entre o aborrecimento versus o aumento do poder do desfigurado, não menos do que oscila entre o aborrecimento e o desejo da parte do aborrecido de ser tão desfigurante quanto a desfiguração que os torna aborrecidos, esse aborrecimento criado pela desfiguração deslizando facilmente em vexatória irritação quando todos os tipos de desfigurações, ou “pés na bunda”, estão estacionados aguardando a louca corrida para se proliferarem.

“É tempo da Austrália enfrentar o que costumava ser chamado decência… Será que estamos agora sendo dominados por um pênis de doze metros de altura chamado ‘primeiro-ministro’ ou por uma vagina gigante chamada Carmen Lawrence?” (Carmen Lawrence foi ministra da Saúde e intimamente associada ao primeiro-ministro). “Acho ambas as opiniões revoltantes”, acrescenta o escritor dessa carta ao editor em uma daquelas negações improvisadas que encorajam você a pensar que, talvez, o revoltante não seja só revoltante, pode ser engraçado e divertido, como bolas de neve de desfiguração.

“Nos meus 25 anos de relações públicas, eu nunca tive que ouvir comentários tão imundos […]. Algumas pessoas estavam chorando ao telefone”, disse um porta-voz da Autoridade Nacional de Planejamento da capital.

Mais do que bater no traseiro do artista como uma criança, mas no mesmo eixo de punição e de prazer, eram inúmeras fantasias relativas à decapitação do artista, uma vez que a estátua da rainha nua tinha sido decapitada. A família do artista recebeu ameaças de morte também.

“Bruce Ruxton, chefe da Liga Estadual dos Soldados Retornados, disse ontem à noite que a escultura era doentia e que seu criador, Mr. Taylor, deveria ser amarrado ao concreto e atirado no lago Burley Griffin.”

“Memorável Mr. Taylor, sua escultura pode ser vista como um ato de sedição e em, outras épocas, você teria sido decapitado.”

“Como somos sortudos, eu reflito, de viver em um país onde a irreverência em relação às figuras de autoridade produz cartas nos jornais em vez de batidas na porta no meio da noite.”

Aqui, o efeito proliferante da desfiguração, com sua grande produção de movimentos rápidos e alternantes entre literalidade e figuração, pode chamar a atenção para a complexidade peculiar que a arte, pretendendo desfigurar, adquire em Estados liberais-democráticos nos quais a censura não pode ser física e/ou financeira. A disposição legal a favor da liberdade de expressão invalida todo o sucesso da intenção da desfiguração. Quanto menos censura houver, mais atenuado, em geral, torna-se o ato desfigurante. Esse paradoxo tem efeitos paradoxais, como quando a desfiguração atinge o seu objetivo antagonizando a autoridade e trazendo repressão para cima de si, o artista protesta em nome da liberdade de expressão - quando o objetivo do trabalho era despertar aquele antagonismo, criar repressão e fortalecer a hostilidade, a desfiguração que a liberdade de expressão solaparia. O paradoxo apenas se aprofunda pela observação de que o artista parece não ter outra opção além de protestar, quando, na verdade, o protesto deveria ser a ausência de repressão. Essa é a insolúvel contradição da desfiguração, também ilustrada pela abnegada dedicação do censor ao experimentar todos os tipos de prazeres sinistros, testemunhando obscenidades, de modo a detê-las em seu trajeto. Basta pensar nas crianças.

Em todo caso, observa-se que a violência continua a ser um elemento fundamental: quer se trate da violência indireta na forma de censura financeira, como praticado pelo senador dos Estados Unidos, Jesse Helms, por meio do Fundo Nacional para as Artes, por exemplo, e como veementemente expresso pelos numerosos críticos da estátua de Canberra em nome da defesa dos contribuintes americanos; quer se trate das ameaças de violência física feitas pelo oficial de polícia de Sydney, fora de serviço, ao tentar vestir as estátuas nuas ou o esforço físico envolvido para tirar as cabeças e os membros das estátuas, nos dias que se seguiram.

Há algo mais nessas reações físicas que a raiva cega - como se a raiva pudesse ser “cega” -, algo quase como se fosse calculado, à sua maneira, como a peça de arte a ser mutilada, ainda que esse cálculo use uma linguagem além da consciência ordinária, em que os corpos humanos e artefatos culturais conversam.

“Obra de arte! Obra de arte! Você é uma obra de arte!!” Assim ecoa a fúria virtuosa do policial enquanto ele se prepara para violar a violação. Ele parece magnífico ao lado da rainha e do príncipe, os quais tiveram sua nudez cobertas por lençóis que ostentam a bandeira e insígnias nacionais. “Por cima do meu cadáver”, lê-se na legenda para as fotos do jornal, enquanto ele levanta seu pulso. Os lençóis deixaram as estátuas parecendo pacientes de hospital ou mesmo cadáveres. O segredo foi reconstruído debaixo dos panos. Apenas a ausência de cabeça da rainha desponta.

Assim como o artista desfigurante viola a norma e violenta o gosto e os padrões morais, o ato de desfiguração parece demandar uma contrarreação mimética, uma desfiguração da desfiguração pelo que pode eventualmente ter um retorno perturbador, mágico ou religioso, para ele. (“É como se eles realmente fossem pessoas”, ouço uma voz dizendo. “É ainda pior, porque eles não são pessoas!”, respondo). “Isso agora passou dos limites do humor”, Neil Roberts disse enquanto as estátuas mutiladas eram removidas. “Isso foi quase como violência de nível muito elevado. Estamos falando de gente atacando as estátuas com muita violência, não apenas com um golpe de esguelha casual”.

O momento mágico-religioso chega tranquilamente. Sentimos o mistério que tinha estado ali ao longo de toda a magia mimética das estátuas, essas estátuas desfigurantes, elas mesmas desfiguradas até o ponto em que não são mais meros símbolos, elas adquiriram vida, tornando-se uma extensão emotiva daquilo que representavam. Somente cimento fundido. No entanto…

Sentimos que um limiar foi transposto e há poucas chances de retornar como se, estupidamente, a violência contra uma mera representação pudesse ser pior do que a violência contra uma pessoa real, talvez porque as bases da ficção e da suspeição da descrença tivessem sido violadas.

O brilhante comentário de Musil (1987Musil, Robert. (1987). Monuments. In: Musil, Robert (org.). Posthumous Papers of a Living Author. Hygiene: Eridanos, p. 61-64.) acerca dos monumentos leva isso além. Seu argumento é que não só raramente (ou nunca) olhamos os monumentos, mas que eles são (em sua formulação) “conspicuamente inconspícuos”, com isso ele quis dizer, e afirmar do modo maçante, primeiro, que os monumentos são seres vivos, dotados de vida para criar sua não ser, e, segundo, como parte dessa extraordinária morte em vida, ou vida em morte, os monumentos incitam a desfiguração. “Não se pode dizer que não os notamos”, diz Musil dos monumentos, “deveria-se dizer que eles nos ‘desnotam’, eludem nossas faculdades perceptíveis. Essa é a capacidade deles em nos incitar ao vandalismo!”. E ele insiste para que os monumentos se esforcem mais nisso, como todos nós devemos fazer nos dias de hoje.

Esse deslizamento em direção à grandeza corporal das estátuas desfiguradas garante que a própria mídia se torne uma extensão da desfiguração, essencial para sua proliferação. O que atrai os olhos da mídia é o páthos desse desafio à morte da representação. Como as palavras e imagens agora voam!

Note-se o prazer com o jogo de palavras desencadeado com manchetes como LESA-MAJESTADES DESVELADAS NA BARRAGEM; RAINHA NUA PERDE A CABEÇA NA AUSTRÁLIA; PHIL CONSERVA SUA CABEÇA ENQUANTO TODOS PERDEM AS SUAS; CABEÇAS PODEM ROLAR SOBRE REIS NUS, e assim por diante. Maravilhosas piadas de mau gosto, uma após a outra: “Lucy, a corgi, chegou muito atrasada para impedir a decapitação da rainha”. Depois, as lascivas descrições sérias falso-sérias15 15 No original, mock-serious, que significa algo com um falso olhar, ou ato sério. Não encontramos tradução exata em português. da destruição, em que a narrativa afirma de modo enfático sua impassibilidade enquanto conspira com a suspensão da descrença que permite que a estatuária seja de fato o que meramente representa. “A balbúrdia… teve uma nova rodada ontem, quando a cabeça do duque foi serrada fora com uma serra tico-tico [depois que Mr. Roberts] encontrou a cabeça do duque destacada do corpo, dependurada na vareta de reforço de ¼ de polegada que percorre o pescoço da figura. O ombro esquerdo até o cotovelo tinha sido esmagado”. Outro jornalista escreveu: “Os ataques começaram na quinta-feira, ao final da tarde, quando a rainha foi decapitada. Ontem mais cedo tinha perdido suas pernas. Na sexta-feira à noite, vândalos atacaram a cabeça do príncipe Filipe, deixando-a pendente até que os organizadores a tirassem com uma serra tico-tico. Até ontem, seu braço esquerdo também tinha sido cortado e seu peito esmagado”.

“Elas permanecem lá enferrujando, e eu adoro isso”, e a podridão propaga-se em uma onda de contágio que se inicia com a hiperreal corgi ligada ao seu banco. As desfigurações agora são uma legião. E se a palavra escrita do jornalista, mediando a imagem com seu público, acha esse meio termo da imagem desfigurada próprio para um jogo de palavras recém-descoberto deslizando entre o real e o espelho do real, não menos do que entre um pândego bom humor e uma triste e instigante magia, imaginem então a fotografia e as caricaturas! Onda após onda de desfigurações em forma de cartuns rolam nas páginas editoriais para vencer as barreiras da censura e as restrições do gosto, seguras em serem mero comentário sobre a desfiguração de outrem. Uma caricatura do príncipe balbuciando na orelha de sua boa esposa, sentados, como estavam, nus sobre o banco do parque, “Imagine se eu tivesse tido uma ereção”. E assim por diante.

Quanto às fotografias da imprensa, estou pensando no tipo de coisa exemplificada na foto da corgi ligada ao banco do parque em que as estátuas do casal real estão sentadas, uma foto tão perfeita que apareceu em vários jornais, algumas vezes colorida, algumas vezes em preto e branco. O fotógrafo fez a foto perto do nível do chão, de frente para esse cão feliz, o qual toma o meio da cena, nos encarando, sentado sobre as patas traseiras em frente ao banco, preenchendo a fotografia com sua presença transbordante. Você quase pode vê-lo abanando a cauda. A parte traseira do seu corpo é escura, a cabeça e o tórax brancos e radiantes. Na verdade, o propósito dessa imagem é a projeção da frente do cão, sua face brilhante e alerta, elevando o cão para a superfície da fotografia, como se, em sua erupção da imagem, estivesse atraindo, com sua presença acelerante, também as estátuas que, de outra maneira, ficariam inertes. Esse cão está pronto para saltar sobre você. Apenas a coleira o detém rápido. Não penso que a “animalização” seja necessária para as estátuas ganharem vida, mas isso ajuda. Assim como a brutal ausência de cabeça da rainha nua com o pescoço rasgado e ereto sob um céu nublado.

Ao usarem partes do corpo real, especialmente a cabeça, outras fotos alcançam do mesmo modo essa misteriosa presença. O que cria essa quase palpável força não é tanto o recurso ao traumatizante corpo dilacerado, mas a forma como o corpo deslocado perturba o senso do todo e, até mesmo, o aparelho perceptivo do observador. Vejamos, por exemplo, a cabeça cortada do príncipe no Canberra Times, de 16 de abril de 1995, com uma fotografia mostrando Roberts ao fundo, com uma serra tico-tico na mão, ajeitando o vandalizado pescoço da rainha. A frente, ou a metade inferior da foto, no entanto, devido à distorção da perspectiva, é ocupada pela desproporcional cabeça do príncipe, deitada ao seu lado no chão. Algo pré-histórico fervilha nessa imagem. Algo incômodo, e, contudo, indicando vida, como se o objeto quebrado, justamente por estar quebrado, exalasse aura e retribuísse nosso olhar.

Isso também tem de ser dito quando a cabeça não foi tirada do corpo. Afinal, a câmera guilhotina a cabeça com o piscar de um olho ao excluir o corpo da moldura, de modo que, na edição de 16 de abril do Herald Sun, encontramos a maior parte da foto dedicada a um close do lado da cabeça do príncipe ainda intacta, com a face ligeiramente desfocada de uma espectadora de óculos de sol no fundo recuado e esbranquiçado. A cabeça dele está nos empurrando de lado, como um caranguejo rastejando para fora da moldura. Em contrapartida, a espectadora parece ser um objeto, um manequim, na melhor das hipóteses.

Mas a animação e o efeito de presença são mais fáceis quando os corpos violados são finalmente movidos fora das suas bases a partir da vertical para a horizontal, em irrecuperável transição para o materialismo de base. A imagem é inundada de vida, como somos lembrados pela foto veiculada no Advertiser, de 17 de abril, em que, de uma visão panorâmica, olhamos para baixo e vemos os corpos sem cabeça estirados de lado na traseira de uma caminhonete. Ele está de costas, com as mãos sobre as coxas. As mãos dela estão apertadas, de modo firme. Ambos aparentam estar lutando, tentando se erguer, como Lázaro, atraídos pelo terno olhar dos observadores ao fundo. As pernas dela também foram cortadas.

Um banco vazio em um tranquilo lago. A imagem mais convincente de todas, no entanto, relacionada à magia mimética que percebe as estátuas como presenças vivas e, portanto, espirituais, é a fotografia em Canberra Times exibindo o banco vazio preenchido com o olhar de passantes curiosos após as estátuas terem sido removidas. Aqui, o vácuo é tão preenchido com presença quanto o lago adjacente é suavemente sorvido nas margens da água a poucos metros de distância. Uma completa desfiguração. Um espaço perfeitamente vazio preenchido com o que era.

Desfiguração e a história do bandido. O rumor, reforçado pela aprovação da mídia, exibiu essa mesma tendência de desfiguração pela proliferação mimética de presença infestada de excesso sacral. Talvez menos esperado foi o anúncio, um mês depois que as estátuas foram violadas, de que a cabeça da rainha havia enfim sido localizada! Graças à polícia federal, trabalhando com a ASIO [Organização Australiana de Informações de Segurança ], o equivalente australiano da CIA [Agência Central de Inteligência], que descobriu a cabeça na casa de um membro de uma milícia de direita, cujo grupo, como sabemos agora, não apenas guardava um arsenal, mas também havia se infiltrado nas seções de computação e de comunicação do Departamento de Defesa. Autoridades policiais graduadas recusaram-se a dar mais declarações. Um “cobertor de segurança” estava em vigor. “Ambos os assuntos são bastante sensíveis, e ninguém gostará de conversar sobre eles”, disse uma fonte policial. Dois dias depois, contudo, em 14 de maio, uma nota lacônica da polícia federal negou que a cabeça tivesse sido recuperada. “É uma invenção completa - não há qualquer verdade nisso”, disse uma porta-voz da polícia.

Eis aí causa para muita especulação, essa cabeça desaparecida. Na sua coluna cativa, na edição de 18 de abril do Daily Telegraph Mirror, Mark Day propôs que a cabeça desaparecida “deveria ser equiparada à máscara de morte de Ned Kelly”, e, se um dia fosse encontrada, deveria ser exibida na Casa do Parlamento, em uma caixa de vidro preenchida com argônio. Tratava-se de uma daquelas piadas australianas, Kelly sendo o ícone de resistência à autoridade colonial, sobretudo à sua cabeça?

Pois Kelly foi um interiorano australiano do final do século XIX, de ascendência convictamente irlandesa, que, depois de muitos feitos burlando a lei, foi capturado em circunstâncias macabras com seu irmão, ambos vestindo trajes de armadura de aço feitos de arados. Uma inversão clara da homilia bíblica. O traje cobria a cabeça e boa parte do corpo; e a imagem da cabeça de Kelly, em forma de lata quadrada, parecida com um aparelho de TV, aparentemente desconjuntada de seu torso e movendo-se de modo inesperado em valentes arrancadas em meio às matas e cidades australianas, aparece animada na série de painéis - imaginados por Sidney Nolan na década de 1960 - dedicados a ele e ao projeto mais ambicioso de criar, ex nihilo, aquele tesouro desesperadamente necessitado, uma mitologia australiana.

Na pintura de Nolan, Riverbend, verdes e marrons sombrios e monótonos tremulam desde o pântano povoado por densos troncos de eucaliptos em formações serradas, como soldados, sentinelas da natureza. Kelly está presente em apenas dois dos nove painéis que formam essa enorme pintura longa de dez metros. Mesmo onde figura, está minúsculo, prestes a ser engolido pelo pântano, exceto pelo detalhe reluzente de sua cabeça de aço quadrada de contornos pretos, a “cultura”, por assim dizer, que impede a aniquilação do ser humano pela natureza, como se cultura na Austrália - ao menos aquela dos homens não aborígenes - devesse ser preeminentemente definida por um desafio desajeitado, metálico, mascarado ao Estado. A presença de Kelly é um segredo, logo a presença mais imponente. Porém, o fato de que ele perambula para dentro e para fora do campo visual sugere algo mais do que segredo, e isso é o jogo com a revelação, um striptease da presença oculta, um segredo público, podemos dizer, reforçado pela estranha cabeça que é sua armadura, maior do que o próprio homem, assim como a floresta de uma natureza primordial também apequena o homem. E não há nada, absolutamente nada, onde deveria estar a face, no centro dessa caixa craniana de contornos negros, nada a não ser um espaço vazio, branco, desocupado. A isso chamamos desfiguração.

E Kelly era o maior desfigurador de todos, não apenas em vida, mas ainda mais no pós-morte, como a figura do rebelde cujo amor pelo roubo de cavalos velozes e gado ruidoso transbordou em ondas cada vez maiores de ódio contra a autoridade policial e colonial. Seu nome é agora lenda, a lenda ela mesma um trabalho de arte coletiva, começando onde a vida termina - naquela armadura feita de arado, destinada a conservá-la. Havia uma boa monta dessa armadura na escultura de Taylor de Phil e Liz perto do lago.

Há nove painéis na Riverbend, de Nolan, bem colados uns aos outros a fim de formar algo como um filme cujo tema, mais do que Kelly e do que a natureza profunda da Austrália, é o próprio tempo movendo-se com as águas do pântano na base das árvores imponentes das quais emerge a figura oculta e minúscula do rebelde australiano para matar um homem a cavalo. O rifle de Kelly mal pode ser notado. Apenas a caixa de TV da cabeça destaca-se quando ele toma o cavalo e se dirige para a floresta, deixando o cadáver rígido na água escura. Essas águas fluem enquanto nosso olhar vasculha os cinco painéis restantes. Pois não há nada, nada a não ser florestas tristes recuando enquanto mais e mais água insípida preenche a tela.

A cabeça de Kelly aparecia de modo estranho em relatos de sua captura. Bastante ferido, debilitado pela hemorragia, e muito incomodado por sua armadura caseira, Kelly escapou a cavalo do hotel cercado por tropas, mas decidiu voltar na fria manhã para ajudar seus camaradas, o que significava que teria que romper o isolamento por trás. Um repórter, testemunha ocular, do Age de Melbourne notou que uma “figura alta foi vista logo atrás da linha da polícia. Pensou-se primeiro que era um parceiro dele. Ele carregava um casaco cinza sobre seu braço, e andava calma e vagarosamente entre a polícia… como se ele fosse um demônio com uma vida encantada” (White, 1970White, Charles. (1970). History of Australian Bushranging. Hawthorn: Lloyd O’Neil, 2 v.: 351-352). Outra fonte cita um sargento da polícia descrevendo Kelly como um aborígene alto, enrolado em um cobertor ou manta de gambá, com um velho chapéu alto em sua cabeça (Jones, 1995Jones, Ian. (1995). Ned Kelly: A Short Life. Melbourne: Lothian.: 259).

O policial James Arthur, cuja arma derrubou Kelly, descreveu textualmente o modo como, no raiar do dia, quando acendia seu cachimbo na manhã fria, o ouviu se aproximando por trás. A aparência de Kelly era tão extraordinária que o cachimbo caiu de sua boca enquanto ele “fitava o estranho objeto por um momento, não sabendo se era um louco que tivera a ideia de tomar de assalto o hotel com uma lata em sua cabeça”.

“Para trás, seu babaca, ou leva bala”.

“Eu poderia atirar em você, filhinho”.

Kelly atirou, mas errou o alvo, pois seu braço havia sido estilhaçado por tiros de rifle na noite anterior.

Eles estavam distantes apenas seis ou nove metros, e Arthur disparou seu rifle na direção do capacete, pensando que ele poderia detê-lo. Isso só o fez cambalear.

Uma abertura no capacete parecia uma enorme boca, escreveu Arthur. “Eu atirei naquilo e o acertei novamente”. Ele continuava vindo.

Eu atirei uma terceira vez e escutei a bala zunindo através dele. Eu estava completamente assombrado, e não conseguia entender o que era o objeto no qual eu atirara. Os homens ao meu redor também pareciam assombrados. Alguém disse: ‘Ele é um louco!’. Dowsett, o guarda ferroviário, disse: ‘Ele é o diabo!’. O sargento Kelly exclamou: ‘Olhem, rapazes, ele é o bunyip’ (White, 1970White, Charles. (1970). History of Australian Bushranging. Hawthorn: Lloyd O’Neil, 2 v.: 352).

O bunyip, devo explicar, é uma criatura do pântano lendária do imaginário australiano branco. O sargento Kelly declarou mais tarde que o que ele realmente disse foi que “Ele era à prova de balas” (Jones, 1995Jones, Ian. (1995). Ned Kelly: A Short Life. Melbourne: Lothian.: 259) - como eu penso que o bunyip era também.

Após o enforcamento de Ned Kelly, então com 25 anos, sua cabeça foi serrada, o cérebro removido e, descarnada, a cabeça foi guardada como uma curiosidade, com paradeiro atual desconhecido. O cadáver decapitado foi coberto de cal viva e enterrado, sem identificação, nos arredores da prisão (Jones, 1995Jones, Ian. (1995). Ned Kelly: A Short Life. Melbourne: Lothian.: 324).

Com a polícia federal negando a notícia de que haviam encontrado a cabeça da rainha, sua presença fica cada vez mais forte, e não posso deixar de imaginar como esses milicianos presos pelos federais deveriam ter gostado dela, com suas armas e habilidades computacionais, em uma linda caixa sobre uma almofada púrpura como a peça central de um novo e estranho culto fortalecido pela desfiguração. Essa linha de especulação acerca da cena da descoberta de uma cabeça sob um cobertor de segurança assenta-se sobre a noção de que esse culto secreto no coração do Ministério da Defesa não é apenas secreto, mas é a marca do segredo, e que é o segredo ao qual responde a proliferação de desfigurações, estrebuchando, separando partes de todos, em um destrinchar de tecidos, de modo a liberar um interior verdadeiramente sagrado, levando a mais do mesmo oculto.

Portanto, a nudez era crucial, interpenetrando o erótico com o segredo. Muita gente ficou ofendida ao ver a cabeça constitucional do Estado e sua consorte exibidos nus. Defesas comoventes foram feitas em nome da centralidade do corpo humano nu para a arte ocidental, e algumas pessoas - uma franca minoria - apontaram para um surto estranho de humanidade despertado pelo que viam como solidão e tristeza evocadas pela presença de um casal idoso contemplando o lago vazio, despido de toda pretensão e proteção, assim como de suas roupas - ou seja, em vez de insultar a rainha, a nudez, sob aquela perspectiva, a enobrecia ao indicar o peso carregado pelo enaltecido.

“Havia tanto dignidade quanto algo de absurdo naqueles corpos cansados, envelhecidos, mas estoicos, tremulando nos ventos da mudança no lago Burley Griffin”, escreveu o curador principal de arte na Tasmanian Museum and Art Gallery (também, seja notado, recrutando as estátuas - como seres vivos, tremulantes - para sua causa enobrecedora).

“Para mim, era um estudo sensível de um casal no crepúsculo da vida”, escreveu B. N. Mainsbridge, de Stanwell Park, a um jornal diário, enfatizando a intensidade que expressava um retrato da solidão e da fragilidade humana. Despida de todas as insígnias, a majestade do cargo foi reduzida “à fragilidade da condição em que todos somos parte. O que há de ofensivo nisso?”.

Os vínculos entre o segredo e a nudez da forma humana deram mais um giro na carta de Taylor, publicada no The Sydney Morning Herald, em 19 de abril, na qual ela (talvez inadvertidamente) chamou atenção para o importante fato de que, quando colocada em segredo, a cabeça compartilha de uma curiosa divisão de trabalho com os genitais, e pode até mesmo ser sua substituta. Para ela, o vandalismo que atingiu as estátuas (que começou, lembremos, com a decapitação da rainha) era uma “reminiscência daqueles que pediram que a genitália do Davi, de Michelangelo, fosse coberta com uma folha de figueira”. A lógica exposta aqui é notável. Desfiguração torna-se equivalente à cobertura dos genitais. O que poderia ser mais perfeito?

Isso nos traz ao básico, a cabeça sendo a parte do corpo em geral deixada descoberta em toda a história humana e em todas as culturas, enquanto os genitais são a parte do corpo em geral coberta (até onde sei), mesmo por um símbolo, um estojo peniano ou uma peça de fios. As duas zonas do corpo, a coberta e a descoberta, são, sem dúvida, selecionadas por uma sabedoria superior por conta de seus impressionantes contrastes, uma zona, a face exposta, sendo de fato capaz de assumir coberturas as mais ambíguas, em função de sua capacidade tremenda de automascaramento do que eu optei por chamar, talvez poeticamente demais, a janela da alma, mas que podemos agora conceber como a janela para o coração e para as emoções, incluindo as emoções sexuais e seu repositório erótico concentrado na sempre coberta genitália. A linha direta de conexão entre a face e “as partes privadas” de alguém recebe um endosso na correnteza de sangue que, em pessoas pálidas, cria o rubor, um tipo de superabundância de conexão quando o rosto deve hipermascarar ou, como um signo denunciador de vergonha, revelar ao mundo que alguém entregou algo secreto, imposto em terreno secreto, ou teve seu segredo revelado.

Para o editorialista do Canberra Times, foi a ordinariedade criada pela nudez que explica a raiva que muitas pessoas sentiram, e tal ordinariedade do extraordinário sugere a sabedoria eterna do conto “A roupa nova do imperador” - “por debaixo do artifício das roupas”, sugeriu o editorialista, “todos temos valores e fragilidades físicas similares. Isso também vale para aqueles que vieram de berço de ouro ou de linhagem inferior”.

Todavia, o contrário disso não ocorre? Isto é, quando a nudez é não apenas um nivelamento com uma humanidade comum, mas também uma elevação dramática? A longa e complexa tradição de nudez na arte ocidental, feminina ou masculina, testemunha essas esperanças de elevação? Como então deveríamos reconciliar essa oposição e como ela deveria constituir a raiva contida na exibição da realeza nua?

A “resposta” está no descarrilamento de algum tipo de montanha-russa hegeliana na qual se afirma a essência da realeza no “descer” a fim de “subir”; daí as observações abafadas, porém reverentes com júbilo à esplêndida humildade da rainha, por exemplo, exibindo os intestinos da realeza ao visitar operários em suas casas modestas e apertando suas mãos ordinárias e tomando chá com eles. Sem mencionar o gozo com fotos de jornal com princesas de peitos expostos e as histórias obscenas e fantasias envolvendo coisas da realeza.

Mais do que um clichê, isso é o que faz, de fato, a realeza real e a autoridade autoritativa, mesmo quando essa autoridade está longe da cultura aristocrática feudal e da estrutura da realeza - sendo a autoridade de qualquer nível automaticamente aristocrática à sua maneira. O que quero dizer é que “descer” está prescrito nas alturas do poder. Não é, em definitivo, um consolo ou um preço a pagar por estar no topo, e certamente não se trata de uma gentileza inspirada por benevolência da parte dos superiores na sociedade, embora possa incluir muita gentileza e consideração também. Não. O “descer” em jogo no jogo do poder é, aqui, nada mais do que uma condição de seu próprio ser - oferecido de modo inadvertido, nesse exemplo, pelo artista desfigurante que não apenas ataca e insulta os representantes representados, mas também - e isso é o que me importa - levanta e expõe aquela condição para aqueles que são capazes de ver.

A montanha-russa hegeliana apenas descarrila quando é esse fato de poder que é exposto de sua ocultação na luz do segredo público, pois a obscenidade real não é o retrato obsceno de seres nus na estatuária, ou a sua proliferação como extensão e comentário em cartuns cheios de licenças: “Imagine se eu tivesse uma ereção”. O descarrilamento ocorre com o cruzamento de alguma linha bizarra, apenas meio percebida e menos compreendida, expondo a necessidade do poder de “descer”. Não é a nudez em si que é o problema, mas o despir da - que de outra maneira ficaria oculta - necessidade autoritativa em estar nu.

O que vem para o foco, portanto, e o que se torna a questão apropriada, não é o esforço de desfiguração e o insulto consecutivo, mas a maneira excessivamente curiosa com a qual a desfiguração, como uma propriedade inerente do poder do poder, insere-se no fenômeno a ser desfigurado. Assim nos aproximamos mais da compreensão do caráter mimético da desfiguração, do “encaixe” mimético entre o objeto e sua desfiguração, e podemos avançar para concluir que o que cria a raiva pela desfiguração em questão deve ter mais a ver com o fato da transgressão do tabu, não da nudez em si, mas do ousar indicar que a obscenidade está embutida no direito quase divino da autoridade, real ou comum.

Em outras palavras, a ideia expressa no editorial do Canberra Times, de que a obra de arte era uma desajeitada reedição do conto “A roupa nova do imperador” tem um mérito que é facilmente ignorado por sua aparência de obviedade. Ela nos dirige para a questão do desmascaramento, nesse caso desvelando um segredo que ninguém pode vocalizar, a não ser um garotinho, havendo o paradoxo e a perplexidade de que, no conto, tanto quanto na estátua, não existiam roupas para serem tiradas. Ao contrário, era a ausência de cobertura que tinha de ser descoberta. (Fontes: The Australian, The Canberra Times, The Sydney Morning Herald, The Age, The Advertiser, The Herald Sun, The Daily Telegraph, The Mirror. Recortes compilados por Neil Roberts, coordenador do Canberra National Sculpture Forum, em dossiê de imprensa: Down by the Lake with Phil and Liz, de Gregory Taylor, 1995). 16 16 Fotos da escultura Down by the Lake with Phil and Liz disponíveis em: http://www.tomw.net.au/senliz1.html.

O hegeliano espaço da morte

A parábola de Hegel acerca do servo e do senhor na história da consciência se tornando autoconsciência não passa de uma posição na disputa entre o trabalho e a morte, processada por meio de equações aborrecidas do Self in Other, como anunciado pelo desenrolar do World Spirit - trabalho, porque é isso que o servo faz pelo senhor; morte, porque é isso que o senhor, mas não o servo, estava preparado para arriscar. Mas se o temor da morte determinasse as suas respectivas posições nessa história, o trabalho triunfaria sobre a morte uma vez que o servo não triunfa apenas sobre o senhor, mas sobre a inabilidade original de arriscar a morte que o afundou na servidão.

Se essa parece uma história sobre trabalho um tanto romântica, ainda que incuravelmente intrigante, e quanto às propriedades da morte e, ainda, àquilo que podemos batizar de trabalho-morte; há um exemplo em Fenomenologia do espírito no qual Hegel (1972Hegel, Georg Wilhelm Friedrich. (1972). Phenomenology of spirit. Trad. A. V. Miller. Oxford: Oxford University Press.), em uma passagem agora célebre, aborda essa mágica:

Agora, a vida do espírito [Geist] não é aquela que teme a morte, e se poupa da destruição, mas aquela vida que assume a morte e vive com ela. O espírito obtém sua verdade apenas ao encontrar-se em absoluto desmembramento [dismemberment]… O espírito é aquele poder somente na medida em que contempla o negativo [Negative], face a face, e se detém com ele. Essa estadia prolongada é a força mágica que transpõe o negativo em given-Being (Hegel, 1972Hegel, Georg Wilhelm Friedrich. (1972). Phenomenology of spirit. Trad. A. V. Miller. Oxford: Oxford University Press. apud Bataille, 1990Bataille, Georges. (1990). Hegel, Death and Sacrifice. Yale French Studies, 78, p. 9-28.: 14).

Aqui, o death-work, se posso utilizar essa expressão, parece ter o potencial para trilhar ambos os caminhos - na direção do triunfo que está propriamente interpelando o trabalho triunfando sobre a morte, transpondo o negativo em given-Being, ou pode, pelo contrário, inclinar-se na direção de uma forma de triunfo bastante díspar, se realmente tratar-se de um triunfo, que permanece com a morte, permanece com o negativo encontro de faces e se detém nisso, encontrando verdade na força mágica do desmembramento absoluto. Se o primeiro caminho engana a morte ao transformá-la em um espetáculo teatral, como no sacrifício em que o sacrificador substitui um intermediário para destruição, a segunda forma de triunfo é como a automutilação ou o autossacrifício do Deus, que doa e não espera por uma retribuição.

A desfiguração é aquela disputa com a morte e o desmembramento que se insinua na direção dessa segunda forma de triunfo, se realmente tratar-se de um triunfo, que está além da recuperação por death-work ou por quaisquer modalidades de trabalho, e tanto além da soberania quanto da servidão - como Derrida (1978Derrida, Jacques. (1978). From Restricted to General Economy: A Hegelianism Without Reserve. In: Derrida, Jacques (org.). Writing and Difference. Chicago: The University of Chicago Press, p. 251-77.) ressalta em seu comentário sobre o hegelianismo “sem reservas” de Bataille. A desfiguração é o confronto com a morte e a luxação cujo significado é irrecuperável por meio de um sistema mais transcendente. Irrecuperável, por quê? Porque rompe o círculo mágico da compreensão para transbordar como uma força contagiosa, proliferante e oca em que, a despeito do tempo em que a morte seja confrontada, a contradição resiste ao domínio e apenas as risadas, os tapas em traseiros, o erotismo, a violência e o desmembramento compartilham um silêncio violento. Como vimos.

“Ontem, uma rainha e um príncipe Filipe decapitados foram levados na traseira de uma picape enferrujada. “Isso passou dos limites do humor”, Mr. Roberts disse”.

Duas semanas depois, multidões ainda se reuniam ao redor do banco vazio no qual as estátuas haviam repousado.

Atrás do banco vazio e gentilmente inclinado, gramados bem cuidados sustentam o Parlamento. Na frente do banco, atravessando o lago, uma fileira de estátuas homenageia os sacrifícios daqueles que foram perdidos em guerras nas quais o Estado australiano escolheu participar. Aqui, durante o pôr do sol do Anzac Day, promove-se um serviço religioso. Nos Estados Unidos do presente, há veteranos australianos da Guerra do Vietnã que não se encaixam perfeitamente nos moldes do soldado bom, limpo e patriótico. Eles são desajustados, viciados em cigarros, parcas rasgadas, cabelos desgrenhados e olhos que exprimem tormento. Eles complexificam o sacrifício, como se o sacrifício da guerra estivesse além da apropriação que o Estado-nação persegue por meio de seus rituais. Agora, em vez disso, a morte se parece com um sacrilégio pois, mais e mais, a guerra está sendo encarada como tal, e é por essa razão que, em seus âmagos, os veteranos são efígies do sacrilégio. Ao contrário das estátuas para os mortos, eles ocupam os fundos do grupo reunido para o serviço religioso. Eles se parecem com denúncias em carne e osso da própria noção de sacrifício, por eles invertida sem quaisquer possibilidades de encontrar resolução, porto seguros, descanso ou alívio.

Quando o sol se ergueu das colinas rebaixadas de Canberra, populando o céu gélido de abril, um trio de helicópteros escuros das forças armadas emergiu, voando diretamente na direção da fileira de estátuas, até que, subitamente, os dois que ocupavam as arestas da formação desviaram para os lados. Clack, clack, clack, clack… Foi um verdadeiro evento, Neil Roberts me contou. Houve uma espécie de estremecimento coletivo entre os veteranos enquanto seus corpos se agarravam uns aos outros. “Algo que permanecia na mente”, Neil escreveu-me recentemente, era “a ausência de espaço entre eles - um espaço tão comum às relações entre homens heterossexuais (exceto no esporte) - estava perdido, violado por confiança e por necessidade. Você não vê homens como aqueles se agarrando com frequência, se envolvendo, se segurando. E os helicópteros os aproximaram ainda mais intimamente do que antes”. Por um instante, o Vietnã se repetia, mas apenas por um instante, por enquanto, nem senhores e nem servos não encaravam eternamente eles próprios como um monumento de massa, a face da morte?

GRAVAÇÕES MOSTRAM QUE JOHNSON VIA A GUERRA DO VIETNÃ COMO IRRELEVANTE EM 1964

Austin, Texas, 14 de fevereiro (AP) - Gravações de duas conversas telefônicas divulgadas hoje pela Biblioteca Presidencial mostram que, quase um ano antes que o presidente Lyndon B. Johnson começasse as preparações em larga escala no Vietnã, ele se referiu à Guerra como “a maior encrenca que eu já vi”, e lamentou, “eu não acho que vale a briga, e não acho que possamos sair dela”.

Ele falava ao telefone com seu Conselheiro de Segurança Nacional, McGeorge Bundy (Fonte: The New York Times, 15 de fevereiro de 1997).

Crítica como desfiguração

Uma crítica da crítica? Ao menos uma apreciação. Pois com que noção de crítica operamos? Minha noção de crítica era a de um encontro entre duas entidades distintas provocadas por paixão, mas temperadas por um apelo implícito pela verdade e pela lógica, um encontro entre uma disposição mais ou menos filosófica e seu objeto de escrutínio, o que quer que fosse esse objeto - uma história, um texto, uma atitude, a condição de um Estado-nação. Partindo de dois mundos independentes, a tarefa da crítica seria aproximar um mundo do outro. Daí passei a observar uma curiosa comutação entre poder e assimilação. Por definição, o crítico assume a posição de poder, estando acima do objeto da crítica. Contudo, o próprio ato de criticar com frequência acrescenta poder à coisa criticada. Há uma curiosa cumplicidade em jogo, algo que me faz perguntar o que acontece se concebemos a crítica como desfiguração.

Em algum ponto entre a crítica assim definida e uma crítica da crítica, a crítica como desfiguração apreenderia adequadamente a natureza da cumplicidade entre a crítica e o objeto, pois a desfiguração funciona na medida em que se engaja internamente com o objeto desfigurado, adentrando seu ser, por assim dizer, não importando quão grosseira ou ofensiva, sútil ou espirituosa possa ser a desfiguração. Em virtude (ou desvirtude) desse engajamento mimético e metonímico, a energia decorrente da desfiguração é uma energia que se desprende de um objeto de crítica ativo e ativado, não de um cadáver na mesa de dissecação. De fato, mesmo se for grosseira, a desfiguração e o sacrilégio sucedem ao trazer vida às coisas mortas e aparentemente insignificantes - como no caso da profanação [desecration] de estátuas ou dinheiro. O poder da maldição e da obscenidade emana do mesmo despertar de forças modorrentas, o que nos remete à consideração, desconcertante e desprezível, de que existe uma extensa classe de representações com um desejo, estratégico e constitutivo, de serem violadas, sem o qual elas estariam incompletas. Eis aí a atrevida argumentação de Musil sobre as estátuas, implicando que a crítica oferecida pela desfiguração já está inscrita no objeto, a desfiguração fazendo apenas, como um poder mágico, um cutucão no objeto para liberar o que, de outro modo, seriam poderes internos obscuros ou escondidos. Não é fácil saber como reagir a essa observação, pois, assim como diante da força quase mágica da varinha de condão, a conclusão é forçosa: a negação meramente completa o objeto da crítica, sendo seu destino. Chega de crítica!

Estou pensando na crítica como repetição do fenômeno, mas repetido de tal forma que uma desfiguração e uma provocação da magia do negativo ocorrem. Isso pode ou não equivaler à caricatura e à paródia (termos sugestivos por conta de sua complexidade), mas é certamente mimético - e é com o poder da mimese que a desfiguração atinge seus objetivos mais altos e mais negativos. Outra vez, por meio da mimese, vemos a intimidade que conecta a desfiguração ao seu objeto.

Há poucos exemplos melhores desse uso - ou melhor, encantamento - do mimético do que o milagroso trabalho da memória de Marcel Proust, no qual, segundo Benjamin, fisionomia e mimese desempenham um papel criativo. Ao comentar o estímulo que a vida social dos salões produzia sobre a arte da mimese, por meio da bajulação e da curiosidade, Benjamin (1994Benjamin, Walter. (1994). Magia e técnica, arte e política: obras escolhidas. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense.: 43) sugere que as intuições mais exatas e mais convincentes de Proust “pousam sobre seus objetos como pousam sobre folhas, flores, galhos e insetos, as quais não traem sua presença, até que um salto, uma batida de asas, um pulo, mostram ao observador assustado que uma vida própria havia se insinuado num mundo estranho, de forma incalculável e imperceptível”. 17 17 Nota do autor: Agradeço a Richard Kernaghan por apontar isso para mim. Nota do tradutor: Seguimos a tradução de Sérgio Paulo Rouanet em Benjamin (1994: 43).

Benjamin faz exatamente isso com Proust, e além da figura proustiana, distinguimos esse inseto mimético operando em toda a obra do ensaísta alemão. Trata-se da mesma assinatura de sua escrita, bem como de sua filosofia da história e das famosas correspondences que ele tanto valoriza no trabalho de Baudelaire, sem falar de seus próprios textos sobre a memória, a doutrina do similar e a faculdade mimética.

“O verdadeiro leitor de Proust é constantemente abalado por pequenos choques”, afirma Benjamin, referindo-se ao repetido movimento das asas pelo qual o inseto revela sua existência escondida, mimética. Esses choques são os mesmos que sentimos com a desfiguração. O que ela faz é, primeiro, uma repetição mimética, reproduzindo o objeto da crítica, adquirindo poder no próprio ato da cópia, apenas para, em seguida, imolar a imitação em um gesto violento de anti-imitação, a própria desfiguração, equivalente ao movimento das asas dos insetos.

Metodologia

O que começou como acerca de tornou-se rapidamente imitação, patente próxima do por dentro. Talvez porque o acerca do qual se tratava, a desfiguração, fosse muito sedutora. Sim, sedutora. Isso, se pensarmos sobre o assunto, é a primeira coisa que agita as ideias quando confrontamos o não pecarás dos Dez Mandamentos. Nada mais justo do que adentrar esse “não” e imitar o evento que desafia o tabu, do jeito como são relatados na imprensa, com toda a beleza de sua retórica e citação direta, as notícias sendo o “fato social” definitivo, a voz do fantasma deles, que invocamos para dar um sentido, ao mesmo tempo paranoide e confortante, ao destino. O mundo é feito de narrativas e elas formam correntes, em todos os sentidos da palavra. Eis aqui nossa chance, apenas por um momento, de acrescentar as nossas, ou melhor ainda (é isso que estou defendendo), as “deles”, logo, provocando o contraponto mágico que essa repetição pode efetivar, se for bem executada. É o que chamo de ser-penúltimo, a teoria e o método de ser permanentemente o penúltimo na grande corrente da narrativa constitutiva das coisas do mundo, com a violência e o horror sendo propensos à narrativa do evento e à repetição. Torna-se óbvio citar os fragmentos guardados e maculados diretamente dos jornais, com suas incontáveis histórias de desfiguração. Isso é um evidente realismo em último grau (lembremos do recurso de John Dos Passos ao “noticiário” ou da técnica similar de Alfred Döblin em Berlin Alexanderplatz), amassando o objeto de estudo, de forma tão pesada que o penetra e se junta a ele, fisicamente, mas ao mesmo tempo alastrando-se para novos campos, de modo que, graças à imersão mimética e ao estar dentro, a citação põe-se a remeter para seu original de novas maneiras.

Hannah Arendt (1969Arendt, Hannah. (1969). Introduction to Walter Benjamin. In: Benjamin, Walter. Illuminations. Ed. Hannah Arendt. New York: Schocken, p. 1-51.: 45) conta que Benjamin deixou de colecionar livros e passou a colecionar citações, e que nada o descrevia melhor nos anos 1930 do que os pequenos cadernos com capas pretas que sempre carregava para registrar citações. Seu primeiro livro, Origem do drama trágico alemão, foi apresentado como um livro de citações contendo textos próprios. Ele teria dito que queria escrever um livro apenas com citações, uma amarrada a outra, do começo ao fim. Ele considerava as citações em sua obra como assaltantes escondidos na beira da estrada, prontos para roubar as convicções de seus leitores. É notável que haja aí algo de secreto. Nada menos do que o caminho para a verdade. Segundo Arendt (1969Arendt, Hannah. (1969). Introduction to Walter Benjamin. In: Benjamin, Walter. Illuminations. Ed. Hannah Arendt. New York: Schocken, p. 1-51.: 49): “Citar é nomear, e nomear traz a verdade à luz”.

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  • White, Charles. (1970). History of Australian Bushranging. Hawthorn: Lloyd O’Neil, 2 v.
  • 1
    Há apenas uma nota do autor, indicada adiante. As demais são notas da tradução.
  • 2
    No original, burning up, cujo sentido engloba tanto um ato incendiário quanto a provocação que gera ira da parte do provocado.
  • 3
    No original, ur-appearance. O prefixo alemão ur significa origem, anterioridade, estado primitivo, algo primordial.
  • 4
    Anzac é acrônimo de Australian and New Zealand Army Corps, companhia militar formada, em 1915, por Austrália e Nova Zelândia durante a Primeira Guerra Mundial para a Batalha de Galípoli, península no noroeste da Turquia.
  • 5
    Glebe é cidade no subúrbio oeste de Sydney. O nome deriva da condição historicamente anterior de gleba, originalmente anglicana, na região.
  • 6
    Comemoração nacional em 25 de abril na Austrália e Nova Zelândia, originalmente em memória dos membros da Anzac, mas atualmente em nome de todos que serviram e morreram em operações militares pelos dois países.
  • 7
    Old diggers, no original. O substantivo digger, nesse caso, é uma a gíria militar comum na Austrália e Nova Zelândia para se referir ao soldado australiano ou neozelandês durante a Primeira Guerra Mundial. O uso é informal, mas recorrente.
  • 8
    Popular jogo de azar australiano, uma espécie de cara ou coroa jogado com duas moedas ao mesmo tempo em que o resultado é dado a partir da combinação das faces expostas de cada moeda a cada lance. Heads são as faces frontais das moedas, que, em geral, exibem um rosto masculino. Tails são as faces dorsais das moedas. Odds, ou one them, são as diferentes faces de cada moeda. O jogo é tradicionalmente jogado no Anzac Day.
  • 9
    No original, Monopoly money, referência a um jogo de tabuleiro.
  • 10
    No original, old-growth forest, o que pode ser traduzido como antiga floresta, floresta primária, mata virgem, floresta virgem.
  • 11
    Título 18 do Código dos Estados Unidos (United States Code, USC), seção 700. O título 18 do Código norte-americano discorre sobre crimes e procedimentos criminais [crimes and criminal procedures]. É dividido em cinco partes, cada uma contendo diversos capítulos. O texto citado se encontra na parte 1 (“Crimes”), capítulo 33 (“Emblems, Insignia and Names”), seção 700 (“Desecration of the Flag of the United States; Penalties”).
  • 12
    O Panhandle da Flórida é a região que inclui a maior parte do noroeste daquele estado (dezesseis condados). É uma faixa estreita em forma de cabo de frigideira, razão pela qual é chamada panhandle [cabo de frigideira, cabo de caçarola].
  • 13
    No original, POWs and MIAs. POW significa prisioneiro de guerra [prisoner of war]; MIA significa desaparecido em ação [missing in action].
  • 14
    No original, 10 pounds. Cada pound equivale a 453 gramas.
  • 15
    No original, mock-serious, que significa algo com um falso olhar, ou ato sério. Não encontramos tradução exata em português.
  • 16
    Fotos da escultura Down by the Lake with Phil and Liz disponíveis em: http://www.tomw.net.au/senliz1.html.
  • 17
    Nota do autor: Agradeço a Richard Kernaghan por apontar isso para mim. Nota do tradutor: Seguimos a tradução de Sérgio Paulo Rouanet em Benjamin (1994Benjamin, Walter. (1994). Magia e técnica, arte e política: obras escolhidas. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense.: 43).
  • *
    A tradução deste texto é fruto de uma atividade coletiva no âmbito do grupo religião e espaço público (RESA), o qual existiu no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ) entre o final da primeira década de 2000 e o começo da seguinte. Dela participaram: Bernardo Curvelano Freire, Christina Vital Da Cunha, Edilson Pereira, Emerson Giumbelli, Izabella Bosisio, Janayna De Alencar Lui, Mauro Pereira Júnior e Paola Lins de Oliveira. Rodrigo Toniol, Els Lagrou e Daniele Thomaz contribuíram para a tradução da introdução e da seção final do texto, realizada em 2023 em parceria com Emerson Giumbelli.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Ago 2023
  • Aceito
    11 Set 2023
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