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A morte da autora Veronica Stigger

The death of author Veronica Stigger

La muerte de la autora Veronica Stigger

Resumo

O artigo analisa a ficção de Veronica Stigger, em especial o pequeno conto “200 m²”, a partir da construção de uma cena que fundaria uma poética em sua literatura. No texto em questão, a personagem, que se chama Verônica, encena o suicídio dela própria - e dela como autora. Uma das consequências teóricas dessa cena da morte da autora nos leva a pensar em uma tensão entre “letra morta” e “palavra viva”, conforme a releitura que o filósofo Jacques Rancière faz da crítica de Platão à escrita. Mas tal cena também aponta, à medida que instaura uma série de “separações” entre a escrita e seu objeto, para uma alternativa crítica de sua literatura frente à sociedade do espetáculo. Tal trajetória, finalmente, abre uma pergunta incontornável a respeito do conto analisado, pergunta que deve ser estendida aos livros seguintes de Stigger, e que, no entanto, não dá margem para nenhuma resposta aceitável: se a autora morreu, como é capaz de seguir escrevendo seus livros?

Palavras-chave:
Veronica Stigger; autoria; “letra morta”; espetáculo

Abstract

This article analyzes Veronica Stigger's fictional writing - especially the short story “200m²”. In this short story Verônica (the character) stages her own suicide, thus enacting the death of the author, suggesting a poetics within Stigger’s literature. One of the theoretical consequences of the scene of the author’s death leads us to examine the tension between the “dead letter” and the "living word", according to Jacques Rancière’s re-reading of Plato's critiques on writing. But this scene also points towards a critical alternative in Stigger’s literature against spectacle society as it establishes a series of “separations” between writing and its object. Finally this line of investigation opens up an unavoidable question about the analyzed short story - a question that must also be applied to the author's subsequent books, and yet does not seem to offer any acceptable answer: if the has author died, how is she able to keep writing?

Keywords:
Veronica Stigger; authorship; "dead letter"; spectacle

Resumen

El articulo hace una análisis de la ficción de Veronica Stigger, en especial del pequeño cuento “200m²”, a través de la creación de una escena que fundaría una poética en su literatura, porque en el citado texto Verônica (la personaje) escenifica el suicidio de ella misma - y de ella como autora. Una de las consecuencias teóricas de esta escena de la muerte de la autora nos hace pensar en una tensión entre “letra muerta” y “palabra viva” de acuerdo con la relectura que el filósofo Jacques Rancière hace de la critica de Platón a la escritura. Pero esta escena también apunta, en la medida en que instaura una serie de “separaciones” entre la escrita y su objeto, hacia una alternativa crítica de su literatura frente a la sociedad del espectáculo. Esta trayectoria, finalmente, abre una pregunta ineludible sobre el cuento analizado, pregunta que debe ser ampliada a los libros posteriores de la autora, y que, sin embargo, no da margen para ninguna respuesta aceptable: si la autora está muerta, cómo es capaz de seguir escribiendo sus libros?

Palabras clave:
Veronica Stigger; autoría; “letra muerta”; espectáculo

Em um dos menores contos de Os anões, intitulado ironicamente “200 m²”, medida que se refere ao apartamento novo e amplo da personagem que, não por acaso, possui o mesmo nome da autora, Veronica Stigger narra o próprio suicídio, em terceira pessoa, como se fosse um happening ou um espetáculo. Mas não apenas isso, já que, depois da cena tragicômica, em que Verônica dispara um tiro de pistola contra a própria boca e seus miolos vão parar na parede azul, “Eduardo leu um conto que ela deixou - e que, como sempre, ninguém compreendeu” (Stigger, 2010STIGGER, Veronica (2010). Os anões. São Paulo: Cosac Naify ., p. 18). Assim termina o conto, em suspenso - conto que talvez seja o mesmo que Eduardo leu, se levarmos em consideração que a leitura estava combinada entre ambos, mas também pela semelhança formal entre os textos: eles possuem um final absurdo, que não se explica. Por que, se a autora estava “trifeliz”, na companhia de amigos, logo no dia da inauguração de seu apartamento novo, ela foi se matar? Não se sabe. Mas a morte é exemplar porque tematiza, ou antes ilustra, uma das principais tensões que o livro estabelece com o leitor, talvez a principal delas: a de uma escrita órfã, cuja autora morreu.

O conto “200 m²” poderia ser lido ao pé da letra e interpretado como uma pequena peça que encena não apenas a morte da personagem ou da escritora Veronica, mas da própria autora. Eduardo, “seu marido, também gaúcho”, assume a leitura do outro conto no momento após o suicídio, mas não pode assumir a autoria, afinal, e o grifo aqui é nosso, trata-se de “um conto que ela deixou”. O conto lido por Eduardo seria o primeiro texto da autora que vem à luz após a sua morte e, nesse sentido, há algo nele que parece fundar uma poética, por meio da cena da morte da autora. Afinal, a urgência para que o texto fosse lido logo após a cena do suicídio está posta em ênfase, como se o suicídio dependesse da leitura e como se o conto, por algum motivo, dependesse da morte da autora. No entanto, a conclusão de que os dois contos são o mesmo (o conto lido por Eduardo e o outro, lido pelo leitor) nos levaria a uma situação impossível, espécie de nó temporal que sugere um efeito de retardamento não menos interessante: o pequeno relato descreveria no passado uma situação que ainda não aconteceu, ou seja, Veronica teria narrado a cena de sua morte, mas quando a escreveu ainda estava viva. Seja como for, sendo dois contos ou um só, o texto lido durante o happening seria a primeira aparição póstuma da autora, talvez as suas memórias póstumas, e quanto a um aspecto não resta dúvida: o pequeno conto nos indica que a autora morreu.

Uma abordagem menos literal e mais atrevida de “200 m²” deve levar a outra conclusão que, no entanto, é decorrente da primeira: o conto encenaria uma filosofia da literatura na medida em que coloca lado a lado dois registros que, em estado permanente de tensão, como argumenta Jacques Rancière nas primeiras páginas de Políticas da escrita, constituem a própria maneira como passamos a conceber a instituição literária - por um lado, o regime da letra órfã e, por outro, o sopro imaterial da voz, quer dizer, a leitura em voz alta que é proferida na cena narrada e que, por isso mesmo, busca conferir autenticidade ou verdade ao texto (Rancière, 1995RANCIÈRE, Jacques (1995). Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editora 34.). Mas não confere, como veremos. Ao reler o mito platônico do Fedro, o filósofo francês defende que, nele, a escrita sofre uma “dupla crítica, aparentemente contraditória, de ser ao mesmo tempo muda e falante demais” (Rancière, 1995RANCIÈRE, Jacques (1995). Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editora 34., p. 8). Ela é muda porque, diferentemente da fala dos filósofos, que possuem o saber inscrito no espírito, não há nenhuma voz presente para dar à palavra escrita um tom de verdade; e falante demais porque, sendo assim, a letra morta da escrita vai rolar de um lado para outro sem saber a quem se destina e a quem deve falar e, por isso, qualquer um pode apoderar-se dela.

No caso de “200 m²”, o leitor é informado que Verônica deixou um conto para que, “como combinado”, fosse lido pelo marido, mas apenas sob uma condição, ao que parece: a de orfandade. Primeiro a autora estoura os próprios miolos e só depois ocorre a leitura do conto, e não o contrário. O texto lido já é letra morta, à medida que Verônica não confere mais a ele a autenticidade de sua voz e de seu corpo, e sem dúvida o conto nos autoriza a dizer que todos os textos seguintes de Os anões são também letra morta: não apenas porque o nome de Veronica aparece estampado na capa do livro, agora póstumo, mas também porque outras de suas peças, por meio de procedimentos variados, possuem autoria indeterminada, a exemplo de “Imagem verdadeira”, “Tatuagem” e “Des cannibales”, este último inclusive descrito como um “ready-made alterado” (Stigger, 2010STIGGER, Veronica (2010). Os anões. São Paulo: Cosac Naify ., p. 38). Se a hipótese de Rancière possui fundamento, e não temos motivo para duvidar dela, haverá escrita - ou literatura - quando a referência do enunciado e a identidade do enunciador forem indeterminadas, e as duas situações ocorrem em “200 m²”. O marido, apesar de conferir voz e corpo ao texto que lê, não é o autor daquelas linhas e, sendo assim, a incompreensão do público - este é o outro elemento importante para entender o conto - vem a ser uma incompreensão dupla, espelhada: o público não entende o suicídio, por suposto, nem o conto que acaba de ouvir. E o mais importante é que pela primeira vez a incompreensão vem com um agravante: a autora não está mais lá para explicar.

A posição de Eduardo no conto é ambígua. Se existe a tentação de interpretar sua presença como a de alguém capaz de conferir autoridade ao texto lido por meio de uma pretensa encarnação, restabelecendo seu valor de verdade e tornando palavra viva o que antes era letra morta, sua posição parece mais a de quem, em chave cômica, age como autor quando não passa de um personagem, quer dizer, alguém que não sabe o seu lugar. Em outras palavras, age como Dom Quixote, diria Rancière, e não como Jesus Cristo, que carrega justamente a missão de legitimar a palavra (letra morta) de Deus, e não é por acaso que ele diz ser o caminho, a verdade e a vida, ou de ser a verdade justamente porque é vida (Rancière, 1995RANCIÈRE, Jacques (1995). Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editora 34., p. 34-36). No caso de Eduardo a situação se apresenta de outra maneira, e por um motivo bastante simples: durante a leitura do conto que Verônica deixou, os miolos da autora ainda escorrem na parede azul do apartamento. Quer dizer, Eduardo detém a “palavra oral”, que é uma categoria linguística, e não a “palavra viva”, esta sim uma categoria filosófica, e é em nome da última - dirá Platão - que a escrita se opõe (Rancière, 1995RANCIÈRE, Jacques (1995). Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editora 34., p. 97). O personagem de Eduardo deveria ser analisado por meio do paradigma de Dom Quixote porque, apesar de partilhar o conto que Verônica deixou para ser lido entre tal círculo de leitores, ele não detém a experiência sobre o que lê, não possui inscrito em sua alma o saber que o texto partilha. Em suma, ele toma a letra como se fosse sua, mas falta o corpo de sua verdade.

Dessa perturbação - por ser órfão, trata-se de um texto mudo e, ao mesmo tempo, falante demais - poderíamos fazer duas ou três especulações. Ao definir literatura, Rancière diz que ela consiste na indefinição sobre a verdade ou a falsidade da escrita (Rancière, 1995RANCIÈRE, Jacques (1995). Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editora 34., p. 13), quer dizer, não propriamente na falsificação, e tampouco na verdade que a leitura feita por Eduardo poderia conferir ao texto da autora morta, mas na perturbação que nasce dessa dupla esquivança que, no conto, tem o nome de incompreensão - “como sempre, ninguém compreendeu” - mas poderíamos dar a ela outros nomes (por exemplo, espetáculo). O conto em questão seria uma versão particular, atravessada já pela sociedade do espetáculo, da velha crítica platônica à escrita: ele conta a história de um corpo que falta ao texto que a autora deixou, assim como a história do sentido que se desfaz tanto no suicídio quanto na leitura que vem depois. Por um lado o preço que a autora paga ao atirar contra a própria boca é a perda da razão e do sentido, perda que fatalmente vai definir a sua literatura, agora póstuma. De maneira que, pensando ainda com Rancière, a literatura de Veronica seria aquela que faz falar o não sentido, e esta é a primeira das consequências políticas da morte da autora. A outra é o mundo tornado prosaico e medíocre, afinal com a morte da autora o texto passa a ser destituído de qualquer traço épico.

A exposição prosaica e rebaixada do conto é noticiada pela banalidade do “chá de panela”, pelo cardápio da festa (“pães, patês, bolo e sangria”, que anuncia o sangue na sequência da narrativa) e ainda por um elemento decorativo, totalmente inútil: a cor da “parede azul” - ou seja, a exposição prosaica vem da insistência nos pequenos detalhes, pois apesar de ser um conto minúsculo ainda há espaço para eles. Mas é noticiada também pelo tom narrativo despojado e direto, e ainda permeado de gírias (“trifeliz”) e coloquialismos (“cheio de gente”). O desfecho, que ao apelar à tirada de humor rebaixa qualquer atribuição triunfal que poderia ser dada ao suicídio, deve ser pensado na mesma chave: se nem o marido se comove, por que o leitor deveria se comover? Não é um suicídio heroico, e sim patético; a cena nasce sem justificativa e termina sem deixar qualquer lição. E a exposição prosaica é noticiada finalmente pelo tamanho do conto, necessariamente menor, ou menor que menor, isto é, anão, como se fosse uma fábula dadaísta - ou um ready-made, que é necessariamente breve - e imune, portanto, a qualquer possibilidade de atribuição épica ou mesmo da mais mísera explicação.

Quanto a isso, merece ser ressaltado que “200 m²” é uma inversão exata da epopeia, não só pelo modo natural ou despojado pelo qual a narradora descreve uma cena de violência atípica, mas sobretudo porque o conto realiza, em ato, a morte da autora. Não há margem para uma leitura triunfal e heroica do suicídio de Verônica justamente porque é a autora, e não só a personagem, quem morre - e é sintomático que “200 m²” seja o único conto de toda a obra de Stigger que faz coincidir o seu nome próprio e o da personagem, explicitando que quem morre é primeiro a autora, e só depois a personagem. Em outras palavras, o relato põe em cena o próprio rompimento da unidade que antes ligava Veronica, a autora, à sua comunidade - comunidade que no conto é indicada tanto pela presença do “amigo Donizete, mineiro” quanto por todos os outros que estavam “encantados com a amplitude das peças”, quer dizer, o que se apresenta nas primeiras linhas é a noção comunitária de festa, uma verdadeira comunhão, que no entanto dura pouco, e será abruptamente rompida logo depois com o disparo. Rancière nos lembra que a epopeia nada mais é do que a descrição de um mundo “onde a unidade do poien ainda não está rompida pela separação dos modos do fazer própria à civilização da escrita”, e o que garante tal unidade é justamente a “voz individual” que liga o autor a uma “comunidade ética” (Rancière, 1995RANCIÈRE, Jacques (1995). Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editora 34., p. 31). Em “200 m²”, como está claro, a dissolução desta voz é indicada pelos “miolos [que] foram parar na parede azul”, apesar dos esforços de Eduardo depois.

Já o outro traço do conto que barra qualquer chance de uma interpretação sublimada é a opacidade de sua enunciação. Se o pensamento da epos, como faz ver Rancière, se apresenta como um “momento feliz da produção do sentido”, quando “um sentido [...] encontra na prosa de um mundo racional a forma imaterial de sua expressão transparente” (Rancière, 1995RANCIÈRE, Jacques (1995). Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editora 34., p. 33), o conto de Stigger consiste no encontro com a falta de sentido, escancarando a separação entre os leitores e a autora morta. Além de o suicídio ser inaceitável justamente porque lhe falta sentido, é inaceitável também que um conto seja apresentado sem qualquer consistência, destituído de autoria, implicando a leitura diretamente à condição de orfandade. Como já foi dito, tal opacidade, no caso, é duplicada: não apenas o leitor de “200 m²” é exposto à heresia de uma cena nonsense, sendo o alvo de uma piada de mau gosto, mas também os amigos da autora que fazem figuração no conto são expostos também à mesma cena, já que ninguém compreende a leitura realizada pelo personagem de Eduardo.

Tal incompreensão deve ser lida como a própria “perturbação democrática da letra sem corpo” (Rancière, 1995RANCIÈRE, Jacques (1995). Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editora 34., p. 13), afinal a festa no apartamento poderia ser tomada como a alegoria, em miniatura, de uma democracia. E tudo estava calmo nessa fábula da democracia que é “200 m²” até que surgiu, digamos, a literatura, com suas formas heréticas de fazer política, com sua textualidade incorpórea, pervertendo as expectativas em torno do literário, por meio de um pacto ambíguo e nonsense com o leitor, enfim, esta letra morta que se institui na consciência dos leitores como um vírus, causando separações, desordens, incompreensões, e fazendo de sua destinação final um contínuo jogo de aparição e ocultamento. Por isso a ficção de Stigger é viral, à medida que não reflete a comunidade de seus leitores, e o mundo que seus contos expõem além de irracional é também prosaico, daí que a única estética que a defina seja a do choque, uma anestética portanto, oriunda de sua linhagem vanguardista. Não por acaso, o livro posterior da autora - que, no entanto, morreu - inicia com um “doente da escrita”, o Natanael de Opisanie swiata, que se encontra à beira da morte e também dita uma carta ao pai, em uma escrita repleta de abusos, artifícios e inconsistências (Stigger, 2013STIGGER, Veronica (2013). Opisanie swiata. São Paulo: Cosac Naify .). Enfim, a morte da autora em “200 m²” abre, na literatura de Stigger, o reino das separações: entre os corpos em uma comunidade democrática que têm as suas posições redefinidas; entre a verdade do verbo vivo e a esquivança infinita da letra morta; e finalmente entre realidade e espetáculo, separação sobre a qual vamos agora nos deter.

Ao definir sociedade do espetáculo, Guy Debord perseguiu a ideia de que nela reina o império da separação. No caso das imagens, diz Debord, elas se apresentam na sociedade espetacular como “separadas da vida”, expondo um “mundo à parte”, na verdade um “pseudomundo”, cuja ênfase recai inteiramente sobre a representação. “Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação”, decreta o crítico logo nas primeiras páginas do célebre ensaio, para sugerir em seguida que o espetáculo não seria exatamente o conjunto destas imagens, e sim “uma relação social entre pessoas, mediada por imagens” (Debord, 1997DÉBORD, Guy (1997). A sociedade do espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto., p. 13-14). Muitas seriam as consequências políticas de tal definição, como a perda de qualquer sentido de comunidade ou da unidade do mundo, a transformação da arte em mercadoria, a fabricação concreta da alienação do espectador e a afirmação da vida como mera aparência, ou desprovida de uma experiência autêntica, sendo todas elas motivos de lamento para Debord. O que mais nos interessa, no entanto, é entender a maneira como o crítico descreve a especificidade da linguagem na sociedade do espetáculo, que possui como traço marcante a separação - ou seja, trata-se de uma linguagem “que reúne o separado, mas o reúne como separado” (Debord, 1997DÉBORD, Guy (1997). A sociedade do espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto., p. 23) -, para adotá-la então como mais um sintoma da ficção de Stigger, que reúne, além de todas as separações já descritas, também esta outra: a de uma linguagem que se descola de seu referente.

Se os contos de Stigger costumam ser pensados por meio da noção de espetáculo - como no caso da sugestão feita pelo escritor Mario Bellatin, ao afirmar na contracapa de Os anões que nestes contos “tudo vira espetáculo, absurdo, falta de sentido”, mas que é necessário que seja assim, “para continuar sendo o que somos: seres insignificantes” - isso acontece porque neles a linguagem é produzida como separação, imagem solta que gira no vazio. Em “200 m²”, o que vemos é uma espécie de teatro “combinado” entre Verônica e Eduardo, que atua como marido, coadjuvante e cúmplice, e faz toda a diferença que seja combinado, ou então não seria um espetáculo, inclusive com roteiro definido, um espetáculo que, no entanto, arrasta a vida para dentro dele; e por isso mesmo, por se tratar de um espetáculo, nele a linguagem se aliena de seu referente, como em um sonho ou em um programa de televisão. Quanto a isso, nota-se que o suicídio de Verônica é dirigido ao outro, na verdade a um grupo de espectadores que assiste a tal cena sem que nós, os leitores, ou já telespectadores, tenhamos notícia de suas reações, pois só dessa maneira é possível comparar o conto a uma manchete de jornal popular. “A literatura, de fato, começa onde essa ‘realidade da ficção’ é posta em dúvida”, sugere Rancière (1995RANCIÈRE, Jacques (1995). Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editora 34., p. 40), que seria o mesmo que dizer, nos termos de Stigger, e agora já contra Debord: a literatura começa à medida que o espetáculo intensifica o banal, levando a lógica da pura representação ao paroxismo.

Conforme os críticos têm notado, o tratamento que as ficções de Stigger conferem à forma separada do espetáculo não se explica nem pela denúncia e muito menos pela saudade. Por um lado, suas ficções não procuram exatamente desmascarar o que haveria de falso nessas formas, fazendo da literatura um refúgio contra as impurezas do mundo; por outro, elas não lamentam a perda da unidade do mundo, como no caso do teórico situacionista, daí seus restos permanecerem sem sutura, e as ações desconectadas umas das outras. Em reflexão sobre Os anões, Flávia Cera é bastante certeira ao defender a hipótese de que, neste caso, trata-se simplesmente de um “espetáculo sem desculpas”, ou seja, sem moralismos, sem tentativas hipócritas de conscientização, sem complacência, sem ingenuidade (Cera, 2010CERA, Flávia (2010). Do espetáculo sem desculpas. Sopro, Desterro, n. 31, p. 1-3, jul. 2010. Disponível em: <Disponível em: goo.gl/LKRdpV >. Acesso em: 16 fev. 2017.
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) - e sem autoria, poderíamos acrescentar, já que a autora morreu. As ficções de Stigger se fariam então por meio de uma sorte de “espetáculo integrado”, na constatação de que “estamos todos imersos (e a arte não escapa dessa situação) em uma gigantesca rede espetacular” (Cera, 2010CERA, Flávia (2010). Do espetáculo sem desculpas. Sopro, Desterro, n. 31, p. 1-3, jul. 2010. Disponível em: <Disponível em: goo.gl/LKRdpV >. Acesso em: 16 fev. 2017.
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). Aceitando tal hipótese, o conto “200 m²” poderia ser pensado, portanto, e vem daí sua linhagem kafkiana, como uma espécie de precipitação das “potências diabólicas do seu tempo” - o sensacionalismo, a violência gratuita e sem medida, a linguagem em pedaços, o clichê, a publicidade, em suma, todo o tipo de lixo que alimenta e dá forma à sociedade do espetáculo. É o que Deleuze e Guattari (2015DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix (2015). Kafka: por uma literatura menor. Tradução de Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica., p. 150) argumentam sobre a literatura de Kafka: a sua escrita é menos um espelho que reflete e mais “um relógio que adianta”.

O que parece singular na maneira como Stigger faz da pobreza do espetáculo a pedra de toque da sua ficção é que a produção do separado acontece no interior de uma narrativa naturalizada, despojada, coloquial, quase infantil; no ponto de partida de seus contos estão situações corriqueiras, que no caso de “200m²” é um chá de panela, como se primeiro o terreno do comum (e da comunidade) precisasse ser preparado (“Verônica estava trifeliz” etc.) para só então passar por um descolamento, que às vezes é mais ou menos lento e progressivo, mas quase sempre é abrupto. E nota-se - eis outro traço marcante da ficção de Stigger - que os solavancos dessas narrativas dificilmente estão ligados à forma, e sim ao conteúdo: em “200 m²”, após o disparo, o narrador segue contando a sua história tão impassível quanto quando começou, a narrativa não muda o tom (a serenidade) para descrever o suicídio da autora ou o cardápio de salgadinhos e, sendo assim, a perturbação nasce justamente dessa falta de mediação entre situações tão opostas. E se falta mediação, como deve estar claro, é porque falta também autoria. Por outro lado, os contos são curtos, e se eles funcionam como disparos de uma certa carga de nonsense no senso comum, estilhaçando a posição ideal do narrador e desorganizando as leis que regem o bom andamento da narrativa, isso também não deixa de ser uma questão de forma, de corte, é verdade, mas não uma questão formal. Seja como for, é justamente a falta de mediação (e de autoria) que faz do conto um espaço sem lei, um verdadeiro pandemônio, com sua linguagem “pré-conceitual e preconceituosa”, conforme a expressão de Alexandre Nodari na orelha de Sul, lugar onde tudo pode acontecer.

O crítico Hal Foster foi quem melhor argumentou a respeito da noção de pandemônio, que permeou a obra de uma série de escritores e artistas dadaístas, sobretudo ao reconstruir historicamente a figura do mímico traumático, cuja estratégia central é a adaptação mimética, “por meio da qual [...] assume as condições terríveis do seu tempo - a armadura do corpo militar, a fragmentação do trabalhador industrial, a mercantilização do sujeito capitalista - e as exacerba por meio da hipérbole ou da ‘hipertrofia’” (Foster, 2012FOSTER, Hal (2012). Mímico dadá. Tradução de Larissa Costa da Mata. Boletim de Pesquisa do NELIC, Florianópolis, v. 12, n. 17, p. 96-107, 2012. Disponível em: <Disponível em: http://migre.me/incEy >. Acesso: 16 fev. 2017.
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, p. 98). A técnica do mímico dadaísta é a da sobrevivência: ele se camufla em um ambiente hostil, e é por isso que não escreve como um gênio; antes, cria com “restos já gastos”, por meio de uma bufonaria ou de uma “farsa do nada”, conforme a expressão de Hugo Ball (Foster, 2012FOSTER, Hal (2012). Mímico dadá. Tradução de Larissa Costa da Mata. Boletim de Pesquisa do NELIC, Florianópolis, v. 12, n. 17, p. 96-107, 2012. Disponível em: <Disponível em: http://migre.me/incEy >. Acesso: 16 fev. 2017.
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, p. 98-99). A estratégia da adaptação mimética não passou batida por outro leitor atento das estéticas de vanguarda, Walter Benjamin, para quem o propósito fundamental do mímico (ou do autômato) seria o de “sobreviver à civilização”, ou seja, permanecer sentado depois de a cadeira ter sido puxada para fora. Benjamin se refere aos filmes da Walt Disney, mais exatamente aos desenhos do Mickey Mouse, quem “pela primeira vez - diz o filósofo - pode ser roubado de seu próprio braço, sim, de seu próprio corpo”, e explica: “Mickey Mouse demonstra que a criatura ainda pode subsistir mesmo quando toda semelhança com o homem lhe foi retirada. Ele rompe com a hierarquia das criaturas concebida com fundamento no humano” (Benjamin, 2009BENJAMIN, Walter (2009). Mickey Mouse. Tradução de Pádua Fernandes. Sopro, Desterro, n. 17, p. 1, dez. 2009. Disponível em: <Disponível em: goo.gl/vtUJzN >. Acesso em: 19 abr. 2017.
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, p. 1).

Se Hal Foster argumenta em outro momento que Andy Warhol nos anos 1960 adapta a estratégia do mímico traumático à sociedade do consumo mais avançado, Stigger faz o mesmo no contexto de integração do espetáculo. Além disso, os mais estranhos e variados corpos que costumam aparecer no centro das suas narrativas, possuem natureza inumana, não psicológica, ou melhor, pré-psicológica, em momentos de profunda empatia com o inorgânico, à medida que sobrevivem a mutilações (“Domitila”), fazem morada primeiro em um ânus e depois no interior de uma lombriga (“Cubículo”), aparecem emoldurados na sala de estar (“Tatuagem”) ou são descritos como “uma massa quase informe, vermelha” (“Os anões”). Daí é possível entender de outro modo o motivo pelo qual, nas narrações de Stigger, a ênfase recai inteiramente sobre o gesto dos personagens, por meio de coreografias, mímicas, repetições - no final de “200 m²” somos informados que toda aquela cena já estava combinada - como se fosse mesmo uma pantomima, dando às suas ficções a aparência de um filme mudo ou mesmo de um desenho animado.

Em parte, deveríamos levar mais a sério os desenhos animados. Embora não falem deles exatamente, as últimas linhas de Deleuze e Guattari a respeito de Kafka, por exemplo, tratam de um “maneirismo de sobriedade”, e evocam duas curiosas figuras: a clowneria esquizo e a arte maquínica da marionete (Deleuze e Guatarri, 2015DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix (2015). Kafka: por uma literatura menor. Tradução de Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica., p. 143). Já Gunther Anders (2007ANDERS, Gunther (2007). Kafka: pró e contra. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Cosac Naify., p. 25), em seu estudo clássico sobre o escritor tcheco, também menciona os desenhos de Walt Disney como análogos das “imagens potenciadas” de Kafka, por justamente tratarem do mesmo efeito de choque: ambos produzem “o sentimento da mais aguda realidade” - diz o crítico - nascido da “discrepância entre extrema irrealidade e exatidão extrema”, ultrapassando o cômico na medida em que “os graus de realidade são embaralhados e essa confusão nos enche de pavor”. Anders, que talvez conhecesse o fragmento de Benjamin a respeito de Mickey Mouse (cujo argumento terminava avaliando que o estrondoso sucesso daqueles filmes se dava porque “o público neles reconhece sua própria vida” (Benjamin, 2009BENJAMIN, Walter (2009). Mickey Mouse. Tradução de Pádua Fernandes. Sopro, Desterro, n. 17, p. 1, dez. 2009. Disponível em: <Disponível em: goo.gl/vtUJzN >. Acesso em: 19 abr. 2017.
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, p. 1), aposta em uma leitura que leve em consideração dois extremos: por um lado, as imagens de Kafka são imagens de imagens, ou seja, espetáculos, função ativada sobretudo pela maneira como o escritor usa as frases condicionais longas, por meio do “como se”, que se proliferam; por outro, seus quadros são dotados de uma extrema precisão (daí os estudos sobre a casuística em Kafka) porque estas imagens de imagens são elaboradas escrupulosamente, até o último pormenor (Anders, 2007ANDERS, Gunther (2007). Kafka: pró e contra. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Cosac Naify., p. 23-24). É o que ocorre em “200 m²”.

Permanece em aberto, no entanto, uma questão central, apesar de bastante primária, sobre esta cena da morte da autora: se ela morreu, como é capaz de seguir escrevendo seus livros? Por um lado, é uma pergunta sem resposta, já que apostar na distinção entre a verdade (da história) e a falsidade (da cena) seria já uma batalha perdida; por outro, ela exigiria uma resposta interminável. Poderíamos dizer que na verdade a autora não morreu, que a cena de “200 m²” não passou de um sonho, ou mesmo de uma armação - como é uma armação a “imagem verdadeira” da última página do livro - ou ainda de um desenho animado, afinal outros personagens de outros contos de Stigger viveram situações muito piores e sobreviveram, a exemplo da citada Domitila. Mas poderíamos tomar a pergunta a sério e argumentar que os livros seguintes de Veronica Stigger, na verdade, não foram escritos por ela: em Delírios de damasco, reunião de frases recolhidas em espaços públicos, que antes eram chamadas de “pré-histórias”, Stigger não redige uma linha sequer, e mesmo Opisanie swiata não foi escrito exatamente por ela, e sim por Opalka, o pai de Natanael, como atestam as últimas páginas do romance. Neste caso, mesmo um conto como “Tatuagem”, presente ainda em Os anões, atribui por meio da dedicatória a autoria a outros dois autores: “Para Tarso e Kleber, de quem roubei a ideia” (Stigger, 2010STIGGER, Veronica (2010). Os anões. São Paulo: Cosac Naify ., p. 26). Que a sua literatura exista independente da autora, portanto, fazendo da radicalidade e da desrazão dessa separação a sua condição de existência, é o que parece sugerir a cena narrada em “200 m²”. Mas se acreditamos nela ou não já seria outra história. Na dúvida, é melhor mesmo não acreditar.

Referências

  • ANDERS, Gunther (2007). Kafka: pró e contra. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Cosac Naify.
  • BENJAMIN, Walter (2009). Mickey Mouse. Tradução de Pádua Fernandes. Sopro, Desterro, n. 17, p. 1, dez. 2009. Disponível em: <Disponível em: goo.gl/vtUJzN >. Acesso em: 19 abr. 2017.
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  • CERA, Flávia (2010). Do espetáculo sem desculpas. Sopro, Desterro, n. 31, p. 1-3, jul. 2010. Disponível em: <Disponível em: goo.gl/LKRdpV >. Acesso em: 16 fev. 2017.
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  • DÉBORD, Guy (1997). A sociedade do espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto.
  • DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix (2015). Kafka: por uma literatura menor. Tradução de Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica.
  • FOSTER, Hal (2012). Mímico dadá. Tradução de Larissa Costa da Mata. Boletim de Pesquisa do NELIC, Florianópolis, v. 12, n. 17, p. 96-107, 2012. Disponível em: <Disponível em: http://migre.me/incEy >. Acesso: 16 fev. 2017.
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  • RANCIÈRE, Jacques (1995). Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editora 34.
  • STIGGER, Veronica (2010). Os anões. São Paulo: Cosac Naify .
  • STIGGER, Veronica (2013). Opisanie swiata. São Paulo: Cosac Naify .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    22 Nov 2017
  • Aceito
    15 Set 2018
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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