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As Estórias dentro da História: mapeando a nação no Museu Da Revolução de João Paulo Borges Coelho

The Stories within History: Mapping the Nation in João Paulo Borges Coelho’s Museu Da Revolução.

RESUMO:

Museu da Revolução, o mais recente romance do escritor moçambicano João Paulo Borges Coelho, oferece ao leitor uma indagação sagaz e minuciosa sobre como lidar de uma forma reparadora com o passado moçambicano na sua relação com os legados da colonialidade no tempo da experiência da pós-colonialidade europeia e africana. Acompanhando o escritor neste exercício complexo e plural de reconhecimento de outras estórias, narrativas e memórias construídas como património periférico e residual dentro de uma História maior, o presente artigo pretende articular com a mundanidade pós-colonial o emergente vigor dos estudos da pós-memória, construindo a partir deste encontro um enriquecimento humano, histórico e cívico em torno do posicionamento geracional refém de silêncios de gerações anteriores. Com precisão, a pós-memória apresenta-se, partindo da análise deste romance, como uma contribuição teórica e metodológica na sua capacidade de interagir com a ancestralidade colonial e sob a perspetiva da reparação histórica, do dever de memória de realizar o mapeamento e a desconstrução de velhas lógicas sobreviventes da colonialidade no presente pós-colonial humano global.

PALAVRAS-CHAVE:
Colonialidade; Pós-Memória; Reparação Histórica; Dever de Memória

ABSTRACT:

Museum of the Revolution, the most recent novel by the Mozambican writer João Paulo Borges Coelho, offers the reader a shrewd and detailed question on how to deal in a thoughtful and restorative way with the Mozambican past in its relationship with the legacies of coloniality in the time of European and African post-coloniality experience. Following the writer in this plural and complex exercise of recognition of other stories, narratives and memories constructed as a peripheral and residual patrimony within a larger History, this article intends to articulate with post-colonial worldliness the emerging vigor of post-memory studies, building from this encounter a human, historical and civic enrichment around the generational positioning held hostage to the silences of previous generations. With precision, post-memory presents itself, based on the analysis of this novel, as a theoretical and methodological contribution in its ability to interact with colonial ancestry and from the perspective of historical reparation, the duty of memory to map and deconstruct old logics that survived coloniality in the global human post-colonial present.

KEYWORDS:
Coloniality; Post-Memory; Historical Reparation; Memory Duty

João Paulo Borges Coelho dispensa actualmente elaboradas introduções. Desde o seu início na ficção em 2003, com As Duas Sombras do Rio, o escritor tem vindo a construir uma robusta e consistente obra no campo literário moçambicano, contando hoje com treze livros e vários prémios literários.¹ 1 O prémio José Craveirinha foi atribuído ao seu romance de 2004, As Visitas do Dr. Valdez. O romance O Olho de Hertzog de 2009 recebeu o Prémio Leya e o Prémio BIC, tendo este último sido igualmente atribuído ao romance Ponta Gea de 2017. Os seus romances são igualmente objecto de livros de crítica literária,² 2 A título de exemplo refiram-se os livros de Nazir Can João Paulo Borges Coelho: ficção, memória, cesura (Folha Seca, 2021), Discurso e poder nos romances de João Paulo Borges Coelho (Alcance, 2014), e igualmente a colectânea Visitas a João Paulo Borges Coelho. Leituras, diálogos e futuros, coordenada por Sheila Khan, Sandra Sousa, Leonor Simas-Almeida, Isabel A. Ferreira-Gould e Nazir Ahmed Can (Colibri, 2017). teses de doutoramento e mestrado, para além de lhe ter sido dedicada inteiramente uma conferência internacional com lugar em Lisboa em 2017 sob o título “Cartógrafo de Memórias. A poética de João Paulo Borges Coelho.”

Possivelmente o escritor moçambicano de maior envergadura da actualidade, a sua obra, sempre investida num entendimento mais agudo de Moçambique e do mundo, não deixa de nos surpreender e apanhar desprevenidos. É o que acontece com o seu último romance Museu da Revolução (2021) que recebeu de jornais portugueses várias aclamações, das quais destacamos: “Borges Coelho escreveu um romance do tamanho de um país” (ALMEIDA, 2021ALMEIDA, Sérgio. Borges Coelho escreveu um romance do tamanho de um país. Jornal de Notícias, Lisboa, 17 nov. 2021. Disponível em: https://www.jn.pt/artes/borges-coelho-escreveu-um-romance-do-tamanho-de-um-pais-14327782.html . Acesso em: 25 nov. 2021.
https://www.jn.pt/artes/borges-coelho-es...
) ou “Um romance para tirar Moçambique do gueto” (LUCAS, 2021LUCAS, Isabel. Um romance para tirar Moçambique do gueto. Ípsilon, Lisboa, 24 nov. 2021. Disponível em: https://www.publico.pt/2021/11/24/culturaipsilon/entrevista/romance-tirar-mocambique-gueto-1986171 . Acesso em: 25 nov. 2021.
https://www.publico.pt/2021/11/24/cultur...
). Sérgio Almeida do Jornal de Notícias afirma contundentemente e a respeito das grandes ambições autorais, que muitas vezes saem fracassadas, que “Talvez porque jamais tenha tido outra ambição do que a escrita de um romance sólido e exigente, como já afirmou publicamente, João Paulo Borges Coelho consegue elevar o seu ‘Museu da Revolução’ a um patamar de excelência que se vai tornando raro” (ALMEIDA, 2021ALMEIDA, Sérgio. Borges Coelho escreveu um romance do tamanho de um país. Jornal de Notícias, Lisboa, 17 nov. 2021. Disponível em: https://www.jn.pt/artes/borges-coelho-escreveu-um-romance-do-tamanho-de-um-pais-14327782.html . Acesso em: 25 nov. 2021.
https://www.jn.pt/artes/borges-coelho-es...
, n. p.). É o génio, poderíamos afirmar, de um escritor que se mantém humilde e que pacientemente vai construindo a arte do seu ofício, observando o brotar dos seus frutos e saboreando os louros merecidos que agora se concretizam nas palavras de Isabel Lucas: “É um dos livros mais importantes até agora escritos sobre a contemporaneidade em Moçambique. E do mundo em português” (LUCAS, 2021LUCAS, Isabel. Um romance para tirar Moçambique do gueto. Ípsilon, Lisboa, 24 nov. 2021. Disponível em: https://www.publico.pt/2021/11/24/culturaipsilon/entrevista/romance-tirar-mocambique-gueto-1986171 . Acesso em: 25 nov. 2021.
https://www.publico.pt/2021/11/24/cultur...
, p. 20).

Num livro em que o passado, a memória e a pós-memória emergem como elementos entrelaçados e centrais, o escritor fornece-nos algumas pistas sobre a importância destes elementos na sua escrita. Numa entrevista concedida à já aqui referida Isabel Lucas, Borges Coelho afirma que

O esquecimento do passado é funesto. Vivemos um presente em que as coisas se passam tanto dentro do dia, um presente inchado, destituído de utopias e de ideias de futuro e também destituído de passado. [...] O passado não é apenas uma opção. O passado é uma necessidade. (LUCAS, 2021LUCAS, Isabel. Um romance para tirar Moçambique do gueto. Ípsilon, Lisboa, 24 nov. 2021. Disponível em: https://www.publico.pt/2021/11/24/culturaipsilon/entrevista/romance-tirar-mocambique-gueto-1986171 . Acesso em: 25 nov. 2021.
https://www.publico.pt/2021/11/24/cultur...
, p. 20-21).

Sobre a questão da memória, vale também a pena atentarmos na resposta do escritor à questão de como é que Moçambique lida com a sua história recente em que a violência e o trauma persistem:

É uma questão complexa e importante e tem a ver até com os diferentes tipos de memória. Há muitos estudos sobre isso, a memória pública, a memória política, a memória histórica que é um resíduo que fica depois de passada a espuma dos dias, o que é lembrado colectivamente. A memória da violência é difícil de circunscrever. E depois há as memórias comunitárias e até familiares, das vítimas. A Guerra Civil também dividiu as famílias. A violência chega às pessoas com uma grande crueldade e sem clara definição. Ao explicar isso vamos ter ao museu. É o espaço onde a memória pública reside. Através de objectos e do encadeamento desses objectos para explicar o passado. O livro levanta isso: os pequenos episódios de violência e sofrimento dificilmente têm lugar porque o museu não é feito para isso. (LUCAS, 2021LUCAS, Isabel. Um romance para tirar Moçambique do gueto. Ípsilon, Lisboa, 24 nov. 2021. Disponível em: https://www.publico.pt/2021/11/24/culturaipsilon/entrevista/romance-tirar-mocambique-gueto-1986171 . Acesso em: 25 nov. 2021.
https://www.publico.pt/2021/11/24/cultur...
, p. 22).

Neste ensaio, encaramos o livro como um desses objectos, referidos pelo escritor, que carrega uma memória e que, neste caso, encerra nele mesmo outros objectos e personagens portadores de memórias, quer as relacionadas com a experiência vivida e direta com os eventos traumáticos derivados da guerra colonial e de libertação nacional, quer as desenvolvidas pelas gerações herdeiras dos silêncios, espaços em branco e ‘murmúrios’ dessas gerações (RIBEIRO; RIBEIRO, 2013RIBEIRO, Margarida Calafate; RIBEIRO, António Sousa. Os netos que Salazar não teve: Guerra Colonial e memória de segunda geração. ABRIL, Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana, v. 5, n. 11, p. 25-36, nov. 2013.), muitas vezes seus progenitores, cujas estórias e narrativas são por elas retidas num pacto de resistência à partilha e à construção de um património intergeracional (RIBEIRO; RODRIGUES, 2021RIBEIRO, Margarida Calafate; RODRIGUES, Fátima da Cruz. Gestos artísticos e narrativas pós-memoriais: interrogações pós-coloniais em português. ABRIL, Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana, v. 13, n. 27, p. 17-43, jul./dez. 2021.). Por conseguinte, propomo-nos neste espaço observar no último romance de Borges Coelhos, Museu da Revolução, como o estudo da pós-memória deve ser entendido como um dever em termos de recuperação, reparação e de reinterpretação da História. Dessa forma, pretendemos considerar que o esplendor de um imaginário pós-colonial, não obstante os esforços de uma gramática da diversidade e inclusão cultural nos espaços privado e público, não foi alcançado nos vários contextos geopolíticos que foram sujeitos testemunhos da descolonização europeia. Com rigor, a pós-memória traduz-se como um compromisso mais ativo no sentido de encarar o silêncio e a solidão pós-colonial (KHAN, 2021KHAN, Sheila. Cartas, solidão e voz para uma pós-memória: Maremoto, de Djaimilia Pereira de Almeida. ABRIL, Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana, Niterói, v. 13, n. 27, p. 125-135, jul./dez. 2021.) e, mais vigilante, no que concerne à opção por parte de gerações anteriores de sonegar a partilha de memórias relevantes para uma verdadeira e efetiva cidadania da/na pós-colonialidade global. Dito desse modo, a pós-memória representa a tentativa de confrontar e de criticamente apropriar o que o pós-colonial não almejou rasurar e desconstruir: os múltiplos e densos espaços em branco da memória humana e histórica (KHAN, 2021KHAN, Sheila. Cartas, solidão e voz para uma pós-memória: Maremoto, de Djaimilia Pereira de Almeida. ABRIL, Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana, Niterói, v. 13, n. 27, p. 125-135, jul./dez. 2021.). Como bem observam Margarida Calafate Ribeiro e Fátima Rodrigues, temos perante nós,

[...] sinais de uma Europa complexa a descolonizar-se do passado, a descolonizar-se das suas ex-colónias, a libertar-se das imagens do ex-colonizador, a olhar para os fantasmas contidos nos seus objetos museológicos e nas suas narrativas, e, portanto, são indícios de uma Europa que, ao rever as suas narrativas nacionais, equaciona outro futuro. Um futuro em que as histórias, os objetos, as imagens sobreviverão nas mãos dos filhos, quando já não houver a memória direta da experiência. Essa ausência da experiência e reivindicação da herança é a pós-memória. (RIBEIRO; RODRIGUES, 2022RIBEIRO, Margarida Calafate; RODRIGUES, Fátima da Cruz. Des-Cobrir a Europa: Filhos de Impérios e Pós-Memórias Europeias. Porto: Edições Afrontamento, 2022., p. 11-12).

Ecos novos: pós-memória em diálogo com a mundanidade pós-colonial

Basta uma breve passagem pela análise literária contemporânea para nos apercebermos de que existe uma tendência crítica representativa que trata os conceitos de pós-memória, solidão e trauma herdados como permutáveis, ou seja, que analisa romances históricos não apenas como simples testemunhos dos vazios históricos que o pós-colonial não conseguiu curar e reparar. Quando a pós-memória é mobilizada em apoio de um hipotético silêncio social que é passado através das gerações, o conceito encontra-se em perigo de se assemelhar a uma fórmula excessivamente simplista de compreensão do valor cívico da literatura e da sua relevância no diálogo com o passado. Porém, se tivermos em consideração o trabalho de Marianne Hirsch e o facto de muitas vezes ser mal-interpretado, apercebemo-nos que a mesma defende a pós-memória precisamente como uma forma de resistência contra a simples presunção que o passado pode alguma vez ser posto a descansar. A pós-memória não aspira a conclusões arrumadas, puras e gratificantes, mas tem, sim, como objectivo deixar as audiências com o desconforto e a ousadia de descobrir que a história - sobretudo a história de eventos de extrema violência e sofrimento - deixa pontas soltas e lacunas que nenhum relato é capaz de amarrar e preencher totalmente.

É exactamente essa a mensagem simultaneamente acutilante e generosa de Museu da Revolução que retomaremos no curso deste espaço. Com rigor, lançando o nosso olhar na esteira da mundanidade dos estudos pós-coloniais, é o momento de realçar a relevância seja epistemológica, seja metodológica da pós-memória para uma visão mais aberta e ativa que traz para os estudos da pós-colonialidade o fulgor, o ativismo e a responsabilidade cívica das novas gerações através da arte (MEDEIROS, 2021aMEDEIROS, Paulo. Afro-política, (pós-)memória, pertença: apontamentos para uma outra Europa. In: RIBEIRO, António Sousa (org.). A cena da pós-memória: o presente do passado na Europa pós-colonial. Porto: Edições Afrontamento, 2021a. p. 133-144., 2021bMEDEIROS, Paulo. Insidious invisibilities: world literature, ‘race’ and resistance. In: KHAN, Sheila; CAN, Nazir Ahmed; MACHADO, Helena (ed.). Racism and surveillance: modernity matters. Oxford: Routledge , 2021b. p. 132-149. ; RIBEIRO, 2020aRIBEIRO, Margarida Calafate. Arte e Pós-memória - fragmentos, fantasmas, fantasias. Diacrítica, v. 34, n. 2, p. 4-20, jul. 2020a., 2020bRIBEIRO, Margarida Calafate. Uma história depois dos regressos: a Europa e os fantasmas pós-coloniais. Confluenze, Rivista di Studi Iberoamericani, v. XII, n. 2, p. 74-95, 2020b.; RIBEIRO; JORGE, 2021RIBEIRO, Margarida Calafate; JORGE, Silvio Renato (coord.). Descolonizações: memórias residuais. ABRIL, Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana, Niterói, v. 13, n. 27, p. 9-208, jul./dez. 2021.; RODRIGUES, 2021; SOUSA, 2022SOUSA, Sandra. A reparação da História e os Erros dos seus agentes em O Regresso de Julia Mann a Paraty. Revista Comunicação e Sociedade, vol. 41, p. 25-42, 2022.), da cidadania e do ativismo (KHAN, 2016KHAN, Sheila. A pós-memória como coragem cívica. Palavra de ordem: resistir, resistir, resistir. Comunicação e Sociedade, v. 29, p. 353-364, 2016., 2017KHAN, Sheila. A educação das cerejeiras: a quem pertence a responsabilidade do pós-colonial? Mulemba, Rio de Janeiro, v. 9, n. 16, p. 44-53, jan./jul. 2017.). Já não são apenas as sementes da descolonização que orientam as novas posturas de encarar e ler o passado, é o espaçamento do tempo para além do presente, embora inconstante, que importa defender e encarar a partir de um trabalho de aproximação crítico, atento, contundente e sagaz relativamente aos espaços em branco assim mantidos e reforçados por toda uma ancestralidade marcada pela experiência da modernidade/colonialidade ocidental (KHAN; CAN; MACHADO, 2021KHAN, Sheila; CAN, Nazir Ahmed; MACHADO, Helena (ed.). Racism and surveillance: modernity matters. Oxford: Routledge, 2021. 224 p.). Assim, hoje a pós-memória é definida por outras dimensões, para além da originalmente proposta por Marianne Hirsch, como demonstra António Sousa Ribeiro:

É neste sentido que a capacidade de produção de pós-memória se transforma numa das pedras de toque que permitem dar um conteúdo performativo concreto à relação com um passado violento. O núcleo mais elementar de qualquer teoria da violência reside na perceção de que todo o processo violento tende a reduzir o ser humano que toma por objeto a uma simples coisa; o reconhecimento e a compaixão implicam a recusa dessa redução e a proposta de restituir o rosto e a identidade da vítima como sujeito, dando visibilidade crítica ao conjunto de mecanismos que produzem ativamente a coisificação da vítima e criando condições para uma forma diferente de relacionamento com as experiências traumáticas do passado. Nascida desse gesto de recusa, a construção da pós-memória é parte muito concreta do processo que permite arrancar essas experiências ao silêncio e indiferença do esquecimento e proporcionar às gerações seguintes um papel ativo na produção da sua própria identidade, através do estabelecimento de uma relação com experiências não vividas, mas que, de modo mais ou menos difuso, são sentidas como elemento estruturante dessa identidade. (RIBEIRO, A.S., 2021RIBEIRO, António Sousa. Pós-memória: um conceito (ainda) emergente. In: RIBEIRO, António Sousa (org.). A Cena da Pós-Memória: o presente do passado na Europa pós-colonial. Porto: Edições Afrontamento, 2021. p. 15-28., p. 22-23).

Regressando a Hirsch, a pós-memória não é somente inerente ao trabalho artístico. Não é simplesmente um evento traumático que é disseminado através da arte; ela encapsula um ideal de compromisso ético e reparador com o passado e, acima de tudo, um mapeamento social, histórico e cultural numa relação de dever de memória entre passado, presente e futuro. É verdade que a pós-memória está preocupada com a forma como gerações do presente se relacionam ou poderão relacionar-se com a solidão, o exílio, o acanhamento perante a dor e violência ancoradas às experiências dos seus antepassados. Por conseguinte, o que distingue esse conceito de trauma e da noção psicanalítica de “resolução” é que a pós-memória atua de forma salutar na reconfiguração do estatuto de continuidade histórica entre gerações. Com rigor, a pós-memória reivindica as

vidas dos seus pais ou avós atravessadas por um momento da história extremamente marcante pela revolução que introduziu nas suas vidas, na configuração dos seus países e das suas identidades uma herança sobre a qual produziram diversos silêncios, narrativas, memórias e outras tantas interrogações. (RIBEIRO; RODRIGUES, 2022RIBEIRO, Margarida Calafate; RODRIGUES, Fátima da Cruz. Des-Cobrir a Europa: Filhos de Impérios e Pós-Memórias Europeias. Porto: Edições Afrontamento, 2022., p. 15).

Como Hirsch já tinha reclamado, a sua definição de pós-memória enfatiza a natureza indirecta do contacto das crianças com a experiência dos seus pais:

“Postmemory” describes the relationship that the “generation after” bears to the personal, collective, and cultural trauma of those who came before - to the experiences they “remember” only by means of the stories, images, and behaviors among which they grew up. But these experiences were transmitted to them so deeply and affectively as to seem to constitute memories in their own right. Postmemory’s connection to the past is thus actually mediated not by recall but by imaginative investment, projection and creation. To grow up with overwhelming inherited memories, to be dominated by narratives that preceded one’s birth or one’s consciousness, is to risk having one’s own life stories displaced, even evacuated by our ancestors. It is to be shaped, however indirectly, by traumatic fragments of events that still defy narrative reconstruction and exceed comprehension.³ 3 “Pós-memória” descreve a relação que a “geração posterior” tem com o trauma pessoal, coletivo e cultural daqueles que vieram antes - com as experiências que “lembram” apenas por meio das histórias, imagens e comportamentos entre os quais cresceram. Mas essas experiências foram-lhes transmitidas de forma tão profunda e afetiva que parecem constituir memórias por direito próprio. A conexão da pós-memória com o passado é, portanto, na verdade mediada não pela lembrança, mas pelo investimento imaginativo, pela projeção e criação. Crescer com memórias herdadas avassaladoras, ser dominado por narrativas que precederam o nascimento ou a consciência de alguém, é arriscar ter suas próprias histórias de vida deslocadas, até mesmo evacuadas pelos nossos antepassados. É ser moldado, ainda que indiretamente, por fragmentos traumáticos de eventos que ainda desafiam a reconstrução narrativa e excedem a compreensão. (HIRSCH, 2012, p. 5, tradução nossa). (HIRSCH, 2012HIRSCH, Marianne. The generation of postmemory: writing and visual culture after the Holocaust. New York: Columbia University Press, 2012. 320 p., p. 5, itálicos no original).

Hirsch encoraja-nos não só a pensar na pós-memória como a existência de um grupo social que partilha as experiências dolorosas dos seus pais, mas para além desse aspecto: mais do que um simples rótulo para uma geração, pós-memória é a acção empreendida por esse grupo social, ou seja, o acto de gerar, de criar elos de testemunhos e de patrimónios humanos através do “reconhecimento e compaixão” (RIBEIRO, A.S., 2021RIBEIRO, António Sousa. Pós-memória: um conceito (ainda) emergente. In: RIBEIRO, António Sousa (org.). A Cena da Pós-Memória: o presente do passado na Europa pós-colonial. Porto: Edições Afrontamento, 2021. p. 15-28., p. 23). O último romance de Borges Coelho é todo ele um investimento preciso e cuidadoso nestas considerações, cujo objectivo último, como esperamos conseguir demonstrar, é dar voz a essas “vidas ocultas” que não têm pódio no museu, como o próprio escritor referiu em entrevista: “O museu é para os grandes episódios. Os pequenos não se atrevem, são para serem calados e escondidos em casa” (LUCAS, 2021LUCAS, Isabel. Um romance para tirar Moçambique do gueto. Ípsilon, Lisboa, 24 nov. 2021. Disponível em: https://www.publico.pt/2021/11/24/culturaipsilon/entrevista/romance-tirar-mocambique-gueto-1986171 . Acesso em: 25 nov. 2021.
https://www.publico.pt/2021/11/24/cultur...
, p. 21).

A pós-memória não é, dessa forma, simplesmente algo que as pessoas possuem; é um processo moralmente assumido e partilhado por obras de arte, pela cidadania e pelo pensamento dotado de uma missão: a reparação histórica do passado mediante uma intervenção e reivindicação francas e clarividentes na urgência de reinterpretar e de reequacionar os parâmetros sob os quais uma determinada hegemonia histórica foi construída em detrimento do silêncio, do esquecimento e da invisibilidade de outras narrativas e memórias (MENESES, 2021aMENESES, Paula. As estátuas também se abatem: momentos da descolonização em Moçambique. Cadernos NAUI: Núcleo de Dinâmicas Urbanas e Patrimônio Cultural, Florianópolis, v. 10, n. 18, p. 108-128, jan./jun. 2021a., 2021bMENESES, Paula. Desafios à descolonização epistêmica: práticas, contextos e lutas para além das fraturas abissais, Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCa, v. 10, n. 3, p. 1067-1097, 2021b.). A pós-memória sinaliza o caminho para um compromisso histórico construtivo e saudável na esteira de um passado difícil:

When [...] [traumatic] experiences are communicated through stories and images that can be narrativized, integrated - however uneasily - into a historically different present, they open up the possibility of a form of second-generation remembrance that is based on a more consciously and necessarily mediated form of identification.4 4 Quando [...] as experiências [traumáticas] são comunicadas por meio de histórias e imagens que podem ser narrativizadas, integradas - ainda que de modo difícil - num presente historicamente diferente, elas abrem a possibilidade de uma forma de lembrança de segunda geração que se baseia numa forma mais consciente, e necessariamente mediada, de identificação. (HIRSCH, 2012, p. 85, tradução nossa). (HIRSCH, 2012HIRSCH, Marianne. The generation of postmemory: writing and visual culture after the Holocaust. New York: Columbia University Press, 2012. 320 p., p. 85).

Se nos concentrarmos numa das dimensões da pós-memória, isto é, como o conjunto de estruturas estéticas que servem de intermediário entre o passado e os leitores contemporâneos, abrimos a possibilidade de criticar as formas de propagação do conhecimento histórico (CORREIA; RIBEIRO, 2021CORREIA, Ana Rebelo; RIBEIRO, Margarida Calafate (coord.). Europa Oxalá: livro de ensaios. Porto: Edições Afrontamento, 2021. 125 p.; RIBEIRO, A.P., 2021RIBEIRO, António Pinto. Novo mundo: arte contemporânea no tempo da pós-memória. Porto: Edições Afrontamento, 2021. 228 p.). Se o nosso acesso ao passado depende de obras de ficção, os criadores dessas obras têm uma responsabilidade social que deve ser observada por quem as estuda. Se a arte não for simplesmente um acto de catarse para aqueles que se consideram atingidos por atrocidades cometidas no passado, mas sim um elo sólido entre sujeitos de uma consciência histórica a preservar, o dever dos estudiosos da cultura deve ser questionar a função desse acesso ao passado, avaliar como ela é alcançada e determinar o seu impacto sobre os leitores (SELIGMANN-SILVA, 2010SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local do testemunho. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 2, n. 1, p. 3-20, jan./jun. 2010.). A jeito de conclusão dessa incursão pela teoria da pós-memória como abordagem que se estende com e para lá dos estudos da pós-colonialidade no mundo global, Hirsch e outros autores mostram-nos como a crítica pode ser usada para dar aos consumidores de arte e da ética pós-memorial o estímulo, a vontade e a urgência de compreender que as questões colocadas em movimento por eventos históricos perturbadores merecem, sob a ética da justiça histórica, ser resolvidas. O arcabouço teórico da pós-memória incita à resistência contra o tratamento excessivamente sentimental do passado e fornece lições valiosas para os críticos do romance histórico contemporâneo. Nesse sentido, novas janelas e caminhos podem ser abertos para os sujeitos ativos da pós-memória, da reparação histórica e do dever de memória.

O papel da reivindicação nos objectos da memória

Museu da Revolução aponta logo no título para vários sentidos sendo, talvez, o mais instigante o da imagem oposta entre a “calcificação” do passado que um museu encerra, ao abarcar dentro das suas paredes objectos que se lêem como símbolos da História e o “movimento” inerente a uma revolução que exige corpos em acção para que a História tome outros caminhos pressupostamente mais dignificantes para o colectivo humano. No museu, encerram-se, assim, os episódios “escolhidos” e esquecem-se as pequenas histórias e corpos que fizeram andar a máquina da revolução. Nesse seu último romance, Borges Coelho

resgata a memória recente de Moçambique a partir de gente comum, cujo quotidiano testemunha um território marcado pela guerra, pela violência, pelo sofrimento e que vamos conhecendo numa viagem que é tanto a travessia de um país quanto o vislumbre da transformação social, política, cultural ocorrida desde a década de 60. (LUCAS, 2021LUCAS, Isabel. Um romance para tirar Moçambique do gueto. Ípsilon, Lisboa, 24 nov. 2021. Disponível em: https://www.publico.pt/2021/11/24/culturaipsilon/entrevista/romance-tirar-mocambique-gueto-1986171 . Acesso em: 25 nov. 2021.
https://www.publico.pt/2021/11/24/cultur...
, p. 22).

É a história de Moçambique integrada numa história maior de influências e interferências sociais, políticas e económicas no país, que vai do Japão até à antiga República Democrática Alemã, passando pelos Estados Unidos, pela África do Sul, pela Inglaterra e Portugal. É ainda uma história que se liga, não apenas ao movimento de personagens com as suas histórias de vida comum que, apesar das diferenças, acabam por terem semelhanças e se ligarem entre si, mas também a certos objectos que funcionam como símbolos da passagem do tempo e da economia capitalista que devora os países saídos do colonialismo. É através de alguns objectos, como veremos, que a viagem encetada pela memória de um país também é levada a cabo, objectos esses que “lidos” na contemporaneidade carregam também eles a memória do passado. Aliás, a epígrafe do segundo capítulo para tal nos remete: “Foi para lidar com a vastidão do mundo que se inventaram os transportes, as pontes, o comércio-expedientes que tornam trivial o que antes era impensável. Mas para que tudo isto possa funcionar é necessário haver quem mande e quem execute” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 31, itálico no original).

Esses objectos referidos no Museu da Revolução podem ser encarados como o que Hirsch e Spitzer chamam de “testimonial objects” (HIRSCH; SPITZER, 2006HIRSCH, Marianne; SPITZER, Leo. Testimonial objects: memory, gender, and transmission. Poetics Today, v. 27, n. 2, p. 353-383, 2006., p. 367), ou seja, objectos que nos permitem considerar “crucial questions about the past, about how the past comes down to us in the present, and about how gender figures in acts of memory and transmission” (HIRSCH; SPITZER, 2006HIRSCH, Marianne; SPITZER, Leo. Testimonial objects: memory, gender, and transmission. Poetics Today, v. 27, n. 2, p. 353-383, 2006., p. 353). Os críticos leem esses objectos baseando-se da noção de punctum desenvolvida por Roland Barthes, ou seja, leem os objectos do passado como “points of memory-points of intersection between past and present, memory and postmemory, personal and cultural recollection” (HIRSCH; SPITZER, 2006HIRSCH, Marianne; SPITZER, Leo. Testimonial objects: memory, gender, and transmission. Poetics Today, v. 27, n. 2, p. 353-383, 2006., p. 353). Este punctum of time [“ponto do tempo”] é precisamente, e de acordo com Hirsch e Spitzer,

that incongruity or incommensurability between the meaning of a given object then and the one it holds now. It is the knowledge of the inevitability of loss, change, and death. And that inevitability constitutes the lens through which we, as humans, look at the past5 5 “aquela incongruência ou incomensurabilidade entre o significado de um dado objeto no passado e aquele que ele contém agora. É o conhecimento da inevitabilidade da perda, da mudança e da morte. E essa inevitabilidade constitui a lente através da qual nós, como humanos, olhamos para o passado”. (HIRSCH; SPITZER, 2006, p. 359-360, tradução nossa). . (HIRSCH; SPITZER, 2006HIRSCH, Marianne; SPITZER, Leo. Testimonial objects: memory, gender, and transmission. Poetics Today, v. 27, n. 2, p. 353-383, 2006., p. 359-360).

É nesse sentido que o romance de Borges Coelho não é apenas sobre memória, mas sobre pós-memória, uma vez que estes objectos transportam em si significados que passam de geração em geração com toda a sua inevitabilidade de perda, mudança e, por vezes, morte de um passado. Trazer estes objectos para o presente implica o sentido de uma contínua responsabilidade de partilha e de compreensão do conhecimento histórico implícito na narrativa da pós-memória.

Numa entrevista ao programa da Rádio Televisão Portuguesa (RTP) “As Horas Extraordinárias” (2021) com a jornalista Teresa Nicolau, Borges Coelho afirma que a história, espécie de conto, que abre Museu da Revolução, uma história “inventada” de resistência e amor, é contada por causa de um objecto, uma Toyota Hiace, que introduz a viagem subsequente por Moçambique, sendo também ela o ponto de origem dessa imensa e multifacetada viagem com e em torno de outras histórias, sujeitos e narrativas e de vários períodos da história de Moçambique, Portugal, África do Sul. O escritor afirma ainda que teve como intenção dar alma ao carro, às máquinas, e traçar a sua origem. E isso porque a Hiace é o carro mais comum que serve como transporte colectivo não só em Moçambique, mas no continente africano em geral. Como o próprio escritor refere, o automóvel é o que faz mover as pessoas, funcionando aqui como uma plataforma de gente de muitas origens, um objeto que convida, exulta a mobilidade, o deslocamento, a busca e o encontro no cruzamento de várias personagens, com rigor, de várias estórias dentro da História

Partimos desta inferência para mostrar como os objectos carregam ao longo da narrativa uma carga memorialística. No caso do Toyota Hiace, ele transporta em si a memória de ter sido produzido no Japão, primeiro produtor mundial de automóveis, que, ao ter esgotado a economia de mercado interno, alarga o seu mercado para o exterior. O leitor é, desse modo, levado para a década de mil novecentos e sessenta, uma época conturbada pela guerra colonial em Moçambique, em que, como afirma o narrador a Jei-Jei,

[...] a África independente necessitava cada vez mais de veículos que a transportassem. Uma vez que era pobre, começou a importá-los em segunda mão, permitindo que o Japão fosse renovando a sua frota; ou seja, que por um novo caminho ainda, continuasse a alimentar a referida fera. (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 32).

Para além de carregar uma “memória económica” ou, se quisermos, “capitalista,” que coloca as nações africanas num contínuo de subserviência, este automóvel simboliza esses milhões de anónimos por si transportados a cujo acesso apenas temos na materialização dos objectos, “Criou-se assim um poderoso canal que sugou um mar de veículos, entre eles os Toyota Hiace que, como nunca antes se vira, abriram a milhões de africanos anónimos a possibilidade de viagens e deslocações” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 32). Essas viagens de vidas rotineiras, ou marcadas pela violência e a necessidade de deslocação, ou pela guerra, ou por qualquer trágico evento, que não chegam à História oficial, fixam-se no objecto. É o objecto que nos pode fazer pensar, imaginar e reconstituir essas vidas dos que não têm nome, para além de oferecer a possibilidade de nos inquietarmos sobre essas vidas marcadas pela tragédia, ou seja, é um “objecto-testemunho” (HIRSCH; SPITZER, 2006HIRSCH, Marianne; SPITZER, Leo. Testimonial objects: memory, gender, and transmission. Poetics Today, v. 27, n. 2, p. 353-383, 2006., p. 367). A Hiace condensa no seu interior “os esquecidos” oferecendo-lhes a possibilidade de renascerem, se quisermos aludir à epígrafe que abre Museu da Revolução.6 6 A epígrafe remete para um poema de Ingrid de Kok, “Can the forgotten/ be born again/ into a land of names?”. Daí que o narrador afirme que o automóvel prevaleça como “símbolo incontestável, a ponto de ser hoje porventura mais justo erigir monumentos a este veículo do que a muitos líderes que pululam por aí com a fácies congelada em bronze sem todavia terem transportado alma que se visse” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 33).

Esse veículo, em que se centra a espécie de conto que inicia o romance, vai ser então a alavanca da narrativa e o seu fio condutor. Tal como acontecera com outros países africanos invadidos pelos carros japoneses em segunda-mão, também Moçambique “começou a receber milhares de Hiaces todos os anos” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 33). Um desses Hiaces é o que pertencia a Toichiro Yamada, o personagem do conto,

vendido ainda no Japão a uma companhia que o reparou e adaptou para exportação, limpando-o das escamas largadas pelos peixes de Notsuke e dos esfacelados sonhos do antigo dono, e instalando fiadas de assentos para que pudesse vir a ser utilizado no transporte de passageiros. (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 33).

É, desse modo, que acaba por fazer parte da frota do Coronel Boaventura Damião, antigo guerrilheiro das guerras colonial e civil e que depois da independência deixa cair as utopias, tornando-se um empresário dedicado a negócios corruptos que lhe proporcionam o engordar dos bolsos. Como explica o narrador a um céptico Jei-Jei para justificar a razão do conto, é este Hiace de Toichiro que acaba por vir integrar a frota de transportes colectivos de Damião, essa mesma que Bandas Matsolo, seu antigo colega dos tempos da guerra, tem de ir adquirir na África do Sul, depois de ter sido contratado para trabalhar nos seus negócios obscuros, ficando este encarregue da frota de transportes. É através da versão da história de Jei-Jei sobre a ligação entre os dois antigos combatentes e da sua viagem com Matsolo à África do Sul que tanto o carro como Jei-Jei entram na história, passando a ser dois dos seus personagens principais carregando ambos memórias que irão brotando, intercalando e se fundindo com as de outros personagens à medida que a viagem turística pelo país se desenvolve narrativamente. No entanto, o Hiace simboliza aqui também o “preço a pagar por quem não produz, antes herda as coisas já manhosas, usadas pelos fantasmas” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 47). Ele carrega uma memória que permanece ainda, a de um país engolido depois da independência pelos poderes da economia capitalista. O Hiace, que durante o percurso da viagem “turística” em que transporta vários personagens marcados por eventos do passado e que andam ou à procura de uma memória perdida ou em busca de uma memória que não é a sua, procurando assim reconfigurar a experiência histórica da pós-memória a que Hirsch alude, é descrito por Jei-Jei como “o carro dos mortos” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 244). Essa metáfora remete-nos a um passado morto que precisa de ser revivido e recuperado, para que no futuro possa acontecer a reparação do mesmo e das vidas que o carregam. Encontra-se aqui uma das funções pós-memorialísticas de Museu da Revolução, ou seja, o automóvel tem aqui uma dimensão de pós-memória ao carregar em si, através dos tempos, acontecimentos e “pessoas” do passado.

São ainda outros objectos, em particular um machimbombo, que trazem a memória da guerra civil e da devastação que esta trouxe ao país e à sua população. Nessa altura, Matsolo arranjou emprego na capital como motorista de machimbombos de longo curso, conduzindo “de província em província, [...] por estradas a cada dia mais arriscadas, serpenteando para evitar os buracos e os silenciosos esqueletos de camiões queimados dentro dos quais jaziam silenciosos esqueletos de gente também queimada, tudo largado ao acaso no caminho” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 35, grifo nosso). A equivalência entre objectos (machimbombos) e gente é explícita, tanto uns como os outros “veículos” são portadores da memória de um tempo de violência. É o impacto social, cultural e económico desse tempo que a narrativa nos transmite colocando lado a lado “todos” os que foram afectados, os quais se viram votados ao esquecimento por fazerem parte da grande massa social e económica invisível e descartável. O machimbombo é também o símbolo de uma memória traumática para Matsolo:

Um dia coube-lhe a vez a ele: depois de uma curva, o estralejar seco das armas automáticas, os berros, uma explosão, o crepitar das labaredas e finalmente o silêncio e um fumo escuro e espesso subindo em rolos para o céu.

Bandas Matsolo escapou por milagre e veio a paz, que a princípio de pouco lhe serviu. Já não havia machimbombo, as próprias estradas demoravam a sair da letargia. Como se, apesar de terem partido, os anjos da morte tivessem deixado para trás a sua sombra. É esta a fase mais negra do percurso de Matsolo, aquela de que só raros fragmentos chegaram ao conhecimento de Jei-Jei, espalhados por noites de muito álcool e amargura. (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 35).

O tempo que vem depois é a época de separação entre o coronel Damião e Matsolo vinculada aqui entre a distinção entre ricos e pobres na modernidade urbana da qual outros objectos evidenciam a disparidade social, como é o caso dos sapatos à venda em abundância nas ruas por vendedores atemorizados pela polícia: “[...] apressavam-se a recolher a mercadoria dos passeios e a pô-la a salvo, sabendo que chegada a hora da verdade as bastonadas não fariam a distinção entre implicados e transeuntes inocentes” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 50).

Corinna McLeod afirma a respeito do conceito de museu que este é um espaço onde “newly [...] national identit[ies] and [...] alternative historical memories” (McLEOD, 2009McLEOD, Corinna. Negotiating a national memory: the British Empire & Commonwealth Museum. African and Black Diaspora: An International Journal, v. 2, n. 2, p. 157-165, jul. 2009., p. 164) são configuradas e adoptadas. João Paulo Borges Coelho parte do mesmo pressuposto ao afirmar, na já mencionada entrevista concedida a Teresa Nicolau, que o museu é um espaço apelativo, pois é uma forma de organizar os objectos, as narrações da História. Ele é também uma forma de poder, de implantar uma versão da História, das coisas (NICOLAU, 2021NICOLAU, Teresa. As Horas Extraordinárias. RTP, Lisboa, 19 nov. 2021. Disponível em: https://www.rtp.pt/play/p8289/e580392/as-horas-extraordinarias . Acesso em: 25 nov. 2021.
https://www.rtp.pt/play/p8289/e580392/as...
). No “Museu da Revolução,” lugar do primeiro encontro entre o narrador e Jei-Jei, encontram-se esses objectos que ordenam a História de Moçambique através dos “grandes” nomes dos que nela participaram e que limpam a realidade dos corpos e da paisagem: “Não havia rasgões nem remendos nem sujidade nos corpos ou na paisagem, era como se a realidade se tivesse enfim submetido ao mundo dos símbolos e dos desejos” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 54). É o caso, por exemplo, de um “telefone antigo, com a extensão 256 e a imagem de uma fénix, por meio do qual Samora Machel conversara com o General Spínola sobre os destinos deste país” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 52). No entanto, o narrador insinua subtilmente como essa História ordenada e catalogada se encontra repleta de fissuras que permitem as indagações e as divagações dos curiosos: “Fiquei um momento a olhar o aparelho. Que terão dito um ao outro as duas históricas figuras nestes preparativos de uma separação definitiva?” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 53).

Objecto também de relevância e destaque no museu é o carro de Eduardo Mondlane, um “velho Volkswagen [...] ali exposto como se estivesse perfeitamente operacional, pronto a partir pelas estradas do futuro em nova iniciativa libertadora” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 60). Esse carro viabiliza a memória de um tempo em que a revolução ainda não tinha perdido asas e, ao mesmo tempo, o começo do seu fim com a morte de um dos seus ícones principais. É significativo que seja com o desaparecimento do Volkswagen do museu que a narrativa encerra, esse carro que “em Dar-es-Salaam ele [Mondlane] conduzia quando ia de casa para o escritório a fim de dirigir a revolução, um carro que durante tantos anos fora o primeiro objecto com que o Museu recebia os visitantes” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 484). Funcionando assim como metáfora para o fim das utopias e de um mundo onde os carros do futuro produzidos numa fábrica automóvel alemã onde Jei-Jei havia trabalhado passaram já também eles, na contemporaneidade, a objectos inúteis do passado:

Quando me contou isto detivemo-nos os dois por um momento na absurda comparação entre este carro do futuro e o Volkswagen também alemão do Presidente Mondlane, que estava na nossa frente, cinzento, com a matrícula amarela TDV 37, um vestígio do passado produzido trinta anos antes da experiência alemã de Jei-Jei, e que fizera todo um caminho desde Dar-es-Salaam até à entrada do Museu. (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 82).

O desfecho só pode então ser imaginado com alguma esperança, ou seja, na reutilização e reciclagem dos objectos do passado:

Imaginei um belo domingo soalheiro em que o guarda do Museu se levantava da decrépita cadeira, pousava a caneca do chá no degrau e o pedaço de pão junto dela, limpava a mão à manga do casaco, tirava o molho de chaves do bolso e abria as portas de vidro para deixar Jei-Jei partir pelas ruas da cidade, ao volante desse icónico Volkswagen cinzento. (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 484).

Outros objectos são igualmente dignos de breve menção, tais como o trombone que Jei-Jei - cujo nome se refere ao famoso trombonista americano J.J. Johnson - quer comprar quando a sua situação melhora na Alemanha, remetendo para uma época em que o jazz americano se expandia por todos os cantos do país e do mundo, entrelaçando-se ainda a história da música com o movimento dos direitos civis e de libertação dos povos africanos subjugados. Para Jei-Jei, esse instrumento é também uma memória do seu passado em que andava perdido nas ruas de Maputo e encontra um lar, o bar Topázio:

Jei-Jei tinha finalmente na frente um trombone verdadeiro, por assim dizer em todo o seu esplendor. Passou o resto da noite hipnotizado pelas linhas esguias do instrumento [...]. E, enquanto bebia sofregamente o som, ao lado, Phuong, conhecedor do segredo, sorria em silêncio. (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 87).

São também importantes os DVDs-pirata contendo material pornográfico enviados de Moçambique, num dos negócios obscuros do Coronel Damião, em encomenda “contendo um catálogo de viatura da marca Toyota Hiace dentro do qual se dissimulavam dez discos-matrizes sem prata, utilizados na reprodução de DVDs” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 71). E dirigida a Rafi Sheikh. Objecto por si mesmo insignificante, no contexto do romance, ele contém essa memória invisível, não apenas por ser uma tecnologia ultrapassada, mas por, na sua insignificância, adquirir um poder maior de perpetrar crimes além-fronteiras nacionais:

[...] o detective Day pôde finalmente dar-lhes voz de prisão, afastando-se ligeiramente para o lado a fim de deixar que o seu auxiliar enunciasse os vários crimes de que eram acusados, nomeadamente de conspiração para aquisição e utilização ilegal de propriedade, conspiração contra os direitos autorais, conspiração contra a lei das marcas registadas, organização e manutenção de trabalho escravo, contrabando, formação de quadrilha, benefínico fraudulento de apoio do Estados, etc., etc. (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 71).

Encontramos ainda no percurso da viagem uma outra espécie de conto, um dos que o narrador utiliza para preencher as lacunas da história principal, em que também os objetos funcionam como despoletadores de outros tempos. Nesse caso, a história dos tractores soviéticos que nos leva à Rússia e à influência dos ideais socialistas em África, como é igualmente o caso da menção à velha debulhadora autocombinada “dos tempos do socialismo” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 449), encontrada na viagem a caminho do Chókwè.

Poderíamos igualmente nos referir à imagem recorrente do comboio que transportava os soldados portugueses durante o tempo da guerra colonial e que assalta a memória de Candal, resignando-se este a certa altura pois essa memória “recusa-[se] a descer com o resto rumo à obscuridade do esquecimento” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 333); o “caderninho puído” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 461) deixado pelo pai sul-africano de Elize, o Capitão Cornelius Fouché, que, após a sua morte, leva a filha a perseguir os lugares onde este “lança[va] para o outro lado [Moçambique] os seus tentáculos de morte” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 461-462). Elize é uma filha à procura do passado silenciado pelo pai, um pai que teve uma postura de fechamento perante o novo mundo que atropelou as velhas lógicas do privilégio branco, da subalternidade, e do menosprezo pelo Outro. Na verdade, são as pistas sem marcas, sem um legado por assim dizer, desse homem zangado com a emancipação de uma África do Sul celebrada por uma nova era de libertação e de reparação histórica, que acicata a curiosidade da filha e, acima de tudo, o impulso de um dever de memória não apenas de carácter familiar, mas, sobretudo de índole social e histórica. Elize depara-se com o chamamento claro da urgência de remapear e de reinterpretar uma história sobejamente desigual, desumana e fratricida:

Entretanto, Cornelius Fouché desaparecia fisicamente, mas permanecia de pedra e cal como presença fantasmagórica naquela casa. Quanto a Elize, a princípio ainda se sobressaltava - com uma espécie de presença que adejava dentro de casa largando sombras esquivas pelas paredes, enfim, com uma que batia.

Mas Cornelius Fouché é orgulhoso e recusa esse estatuto, e eis que um par de anos mais tarde reaparece com vigor na consciência da rapariga. No país, o tumulto da mudança estava, entretanto, de algum modo ultrapassado, era agora possível olhar para trás com mais clareza e sem tanta paixão. Os velhos agravos perdiam muito da sua força, engolidos na voragem da vida de todos os dias. Todavia, no caso de Elize, para passar adiante era necessário saber como ordenar aqueles restos desirmanados do pai que recebera como herança (as fúrias intempestivas, as ternuras que por vezes espreitavam embaraçadas, os amargurados silêncios ou as desajeitadas canções de ninar). Necessitava enfim de saber em que gaveta arrumar o pai. Na garagem pouco avançou: Fouché fora parco nas palavras escritas [...]. A curiosidade levou-a depois até aos textos da Comissão da Verdade e Reconciliação, a confissão dos perpetradores nos quais descobria pais mais loquazes do que o seu, aos depoimentos de vítimas que até então nem sequer sabia que existiam, depoimentos magros, avaros e arrancados, quantas vezes reduzidos a soluços e suspiros que, diz o poema de Ingrid de Kok, os escrivães não sabiam como grafar:

But how to transcribe silence from tape?

Is weeping a pause or a word?

What written sign for a strangled throat?

(COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 144-146).

Os objetos assumem, deste modo, um papel relevante em Museu da Revolução. A par e passo com as personagens humanas, sendo Elize a figura central, como portadora de uma pós-memória, eles funcionam como testemunhos herdeiros de um passado que é importante não deixar cair no esquecimento, recuperando uma memória que deve ser transmitida para que a coragem, a resiliência e a determinação de gerações passadas não caia no esquecimento e, com rigor, numa passividade cívica e de consciência histórica. Como refere Hirsch,

only if we acknowledge the distance that separates us from them, the layers of meaning and the multiple frames of interpretation that the intervening years have introduced and that have influenced our reading, can we hope to receive from them the testimonies and the testaments they may have wished to transmit.7 7 “Só se reconhecermos a distância que nos separa deles, as camadas de sentido e os múltiplos quadros de interpretação que os anos intermediários introduziram e que influenciaram a nossa leitura, podemos esperar receber deles os testemunhos e os testamentos que nos possam ter querido transmitir”. (HIRSCH; SPITZER, 2006, p. 380, tradução nossa). (HIRSCH; SPITZER, 2006HIRSCH, Marianne; SPITZER, Leo. Testimonial objects: memory, gender, and transmission. Poetics Today, v. 27, n. 2, p. 353-383, 2006., p. 380).

Museu da Revolução é um romance em que não só a veracidade e linearidade da história são colocadas em questão, mas também o seu processo de escrita e sedimentação: “Como se conta uma história? Quais as raízes de uma história? E quais as suas consequências?” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 69). O narrador mostra-nos constantemente que uma história é sempre feita de um conjunto de histórias em que factos e imaginação se encontram em permanente luta para que um sentido, mais abrangente, monopolizador e soberano, seja conseguido. Aquele que narra necessita de preencher hiatos- “Quanto a mim, limitei-me ao preenchimento de alguns hiatos [...]” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 123-124)-, encontra-se numa incessante dúvida e suposição- “Duvidei quando Jei-Jei me pôs a questão [...]” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 135). O que nos mostra o romance é o próprio processo de construção narrativa do passado que se vai formando através de várias versões e improvisações - “Mas há medida que explorava estes caminhos fui caindo em mim e descobrindo que a cauda de enredos agarrada a cada um deles era iluminada não por factos, mas, como penso ter referido algures, por possibilidades” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 253)-, que nos informa que, tal como a viagem física de Elize Fouché, o percurso pela memória e pelo passado é algo de difícil reconstrução: “Infelizmente, não está ao meu alcance reconstituir com precisão e lógica o desenrolar do encontro. Não estive lá, há subtilezas que estão para além da racionalidade e que só a presença consegue abarcar” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 361). Em suma, a epígrafe do capítulo 15 poderá abarcar a dimensão que o romance nos propõe: “Será que o segredo do mundo se resume a uma única resposta? Será que é assim tão simples? Ou estamos antes condenados a uma multitude de respostas, todas elas lutando por algum protagonismo no corpo da grande explicação?” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 331, itálicos no original).

Assim sendo, a resposta nunca é única nem singular, pois as vozes dos esquecidos, em geral, aparentam apenas poder renascer quando resgatados quer pela ficção, quer por sujeitos comprometidos com um dever de memória e com processos plurais de reparação histórica. Acima de tudo, com uma perseverança, não obstante desafiadora, com a clarividência de saber reivindicar novas linguagens, novos rostos e novos caminhos não em confronto mas em diálogo reparador com passado. Como um vaticinador do papel relevante das estórias dentro da História, o narrador deixa como num exercício de compaixão, de memória e de fraternidade humana, neste Museu da Revolução, uma advertência: “Lembrar exige que seja observado um certo protocolo, que acendamos uma espécie de lanterna da consciência que nos ilumine o caminho até às coisas que o tempo escondeu em pregas recônditas” (COELHO, 2021COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução. Lisboa: Caminho, 2021. 488 p., p. 107).

Referências

  • ALMEIDA, Sérgio. Borges Coelho escreveu um romance do tamanho de um país. Jornal de Notícias, Lisboa, 17 nov. 2021. Disponível em: https://www.jn.pt/artes/borges-coelho-escreveu-um-romance-do-tamanho-de-um-pais-14327782.html Acesso em: 25 nov. 2021.
    » https://www.jn.pt/artes/borges-coelho-escreveu-um-romance-do-tamanho-de-um-pais-14327782.html
  • COELHO, João Paulo Borges. Museu da Revolução Lisboa: Caminho, 2021. 488 p.
  • CORREIA, Ana Rebelo; RIBEIRO, Margarida Calafate (coord.). Europa Oxalá: livro de ensaios. Porto: Edições Afrontamento, 2021. 125 p.
  • HIRSCH, Marianne. The generation of postmemory: writing and visual culture after the Holocaust. New York: Columbia University Press, 2012. 320 p.
  • HIRSCH, Marianne; SPITZER, Leo. Testimonial objects: memory, gender, and transmission. Poetics Today, v. 27, n. 2, p. 353-383, 2006.
  • KHAN, Sheila. A educação das cerejeiras: a quem pertence a responsabilidade do pós-colonial? Mulemba, Rio de Janeiro, v. 9, n. 16, p. 44-53, jan./jul. 2017.
  • KHAN, Sheila. A pós-memória como coragem cívica. Palavra de ordem: resistir, resistir, resistir. Comunicação e Sociedade, v. 29, p. 353-364, 2016.
  • KHAN, Sheila. Cartas, solidão e voz para uma pós-memória: Maremoto, de Djaimilia Pereira de Almeida. ABRIL, Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana, Niterói, v. 13, n. 27, p. 125-135, jul./dez. 2021.
  • KHAN, Sheila; CAN, Nazir Ahmed; MACHADO, Helena (ed.). Racism and surveillance: modernity matters. Oxford: Routledge, 2021. 224 p.
  • LUCAS, Isabel. Um romance para tirar Moçambique do gueto. Ípsilon, Lisboa, 24 nov. 2021. Disponível em: https://www.publico.pt/2021/11/24/culturaipsilon/entrevista/romance-tirar-mocambique-gueto-1986171 Acesso em: 25 nov. 2021.
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  • McLEOD, Corinna. Negotiating a national memory: the British Empire & Commonwealth Museum. African and Black Diaspora: An International Journal, v. 2, n. 2, p. 157-165, jul. 2009.
  • MEDEIROS, Paulo. Afro-política, (pós-)memória, pertença: apontamentos para uma outra Europa. In: RIBEIRO, António Sousa (org.). A cena da pós-memória: o presente do passado na Europa pós-colonial. Porto: Edições Afrontamento, 2021a. p. 133-144.
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  • MENESES, Paula. As estátuas também se abatem: momentos da descolonização em Moçambique. Cadernos NAUI: Núcleo de Dinâmicas Urbanas e Patrimônio Cultural, Florianópolis, v. 10, n. 18, p. 108-128, jan./jun. 2021a.
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  • RIBEIRO, António Pinto. Novo mundo: arte contemporânea no tempo da pós-memória. Porto: Edições Afrontamento, 2021. 228 p.
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  • RIBEIRO, Margarida Calafate; JORGE, Silvio Renato (coord.). Descolonizações: memórias residuais. ABRIL, Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana, Niterói, v. 13, n. 27, p. 9-208, jul./dez. 2021.
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  • RIBEIRO, Margarida Calafate; RODRIGUES, Fátima da Cruz. Des-Cobrir a Europa: Filhos de Impérios e Pós-Memórias Europeias. Porto: Edições Afrontamento, 2022.
  • RIBEIRO, Margarida Calafate; RODRIGUES, Fátima da Cruz. Gestos artísticos e narrativas pós-memoriais: interrogações pós-coloniais em português. ABRIL, Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana, v. 13, n. 27, p. 17-43, jul./dez. 2021.
  • SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local do testemunho. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 2, n. 1, p. 3-20, jan./jun. 2010.
  • SOUSA, Sandra. A reparação da História e os Erros dos seus agentes em O Regresso de Julia Mann a Paraty Revista Comunicação e Sociedade, vol. 41, p. 25-42, 2022.

Notas

  • 1
    O prémio José Craveirinha foi atribuído ao seu romance de 2004, As Visitas do Dr. Valdez. O romance O Olho de Hertzog de 2009 recebeu o Prémio Leya e o Prémio BIC, tendo este último sido igualmente atribuído ao romance Ponta Gea de 2017.
  • 2
    A título de exemplo refiram-se os livros de Nazir Can João Paulo Borges Coelho: ficção, memória, cesura (Folha Seca, 2021), Discurso e poder nos romances de João Paulo Borges Coelho (Alcance, 2014), e igualmente a colectânea Visitas a João Paulo Borges Coelho. Leituras, diálogos e futuros, coordenada por Sheila Khan, Sandra Sousa, Leonor Simas-Almeida, Isabel A. Ferreira-Gould e Nazir Ahmed Can (Colibri, 2017).
  • 3
    “Pós-memória” descreve a relação que a “geração posterior” tem com o trauma pessoal, coletivo e cultural daqueles que vieram antes - com as experiências que “lembram” apenas por meio das histórias, imagens e comportamentos entre os quais cresceram. Mas essas experiências foram-lhes transmitidas de forma tão profunda e afetiva que parecem constituir memórias por direito próprio. A conexão da pós-memória com o passado é, portanto, na verdade mediada não pela lembrança, mas pelo investimento imaginativo, pela projeção e criação. Crescer com memórias herdadas avassaladoras, ser dominado por narrativas que precederam o nascimento ou a consciência de alguém, é arriscar ter suas próprias histórias de vida deslocadas, até mesmo evacuadas pelos nossos antepassados. É ser moldado, ainda que indiretamente, por fragmentos traumáticos de eventos que ainda desafiam a reconstrução narrativa e excedem a compreensão. (HIRSCH, 2012HIRSCH, Marianne. The generation of postmemory: writing and visual culture after the Holocaust. New York: Columbia University Press, 2012. 320 p., p. 5, tradução nossa).
  • 4
    Quando [...] as experiências [traumáticas] são comunicadas por meio de histórias e imagens que podem ser narrativizadas, integradas - ainda que de modo difícil - num presente historicamente diferente, elas abrem a possibilidade de uma forma de lembrança de segunda geração que se baseia numa forma mais consciente, e necessariamente mediada, de identificação. (HIRSCH, 2012HIRSCH, Marianne. The generation of postmemory: writing and visual culture after the Holocaust. New York: Columbia University Press, 2012. 320 p., p. 85, tradução nossa).
  • 5
    “aquela incongruência ou incomensurabilidade entre o significado de um dado objeto no passado e aquele que ele contém agora. É o conhecimento da inevitabilidade da perda, da mudança e da morte. E essa inevitabilidade constitui a lente através da qual nós, como humanos, olhamos para o passado”. (HIRSCH; SPITZER, 2006HIRSCH, Marianne; SPITZER, Leo. Testimonial objects: memory, gender, and transmission. Poetics Today, v. 27, n. 2, p. 353-383, 2006., p. 359-360, tradução nossa).
  • 6
    A epígrafe remete para um poema de Ingrid de Kok, “Can the forgotten/ be born again/ into a land of names?”.
  • 7
    “Só se reconhecermos a distância que nos separa deles, as camadas de sentido e os múltiplos quadros de interpretação que os anos intermediários introduziram e que influenciaram a nossa leitura, podemos esperar receber deles os testemunhos e os testamentos que nos possam ter querido transmitir”. (HIRSCH; SPITZER, 2006HIRSCH, Marianne; SPITZER, Leo. Testimonial objects: memory, gender, and transmission. Poetics Today, v. 27, n. 2, p. 353-383, 2006., p. 380, tradução nossa).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2022
  • Aceito
    08 Maio 2022
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