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Entrevista com Marcos Natali: A literatura em questão* * Questões propostas por Anita MartinsRodrigues de Moraes.

Anita Martins Rodrigues de Moraes (AMRM):A abordagem crítica de discursos universalizantes e idealizantes do literário atravessa A literatura em questão: a responsabilidade da instituição literária (Editora da Unicamp, 2020). Já no primeiro capítulo, intitulado “Além da literatura”, a universalização do literário é entendida como o resultado de um violento processo de abstração, de produção de equivalências. A violência apontada é tradutora, responde por um imperialismo epistemológico cujo horizonte é o desaparecimento (supostamente inevitável, ou seja, naturalizado) de culturas consideradas “primitivas”, “arcaicas”, “não modernas”. Você poderia comentar o impacto dos estudos subalternos e da crítica pós-colonial neste seu questionamento da “literatura” como categoria universalizante?

Marcos Natali (MN):Lembrar que o conceito de literatura é historicamente específico e que, portanto, a história do surgimento e transformação dessa ideia pode ser narrada, como se faz com qualquer outra prática social, não é em si controverso. Há muitas versões desse tipo de relato na teoria e na historiografia literárias, em diversas correntes críticas e tradições nacionais. Mesmo na crítica literária brasileira, e inclusive na obra de Antonio Candido, que é o assunto principal desse primeiro capítulo, é possível encontrar versões da historicização das práticas e das instituições necessárias para que exista algo que possa ser denominado “literatura”, o exemplo mais evidente sendo o modo como o crítico recupera a noção de sistema literário. É por tudo isso que se torna relevante que no texto “O direito à literaturaCANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995. p. 169-193.” encontremos algo tão diferente. Ainda que discursos idealizantes apareçam também em outros textos do autor, o movimento ganha forma especialmente dramática nesse artigo, sugerindo que poderia ser instrutivo nos determos nesse ponto, que ganha importância se considerarmos que ele sinaliza uma ambivalência que não diz respeito apenas a Candido. Nesse sentido, interessa menos algo como uma denúncia de “falsos universais”; mais interessante seria identificar, descrever e entender os momentos decisivos em que o pensamento de Candido sente ser necessário dar esse salto em direção ao universalizante e idealista, chegando a definir a literatura, com um vocabulário distante daquele que aparece em outros textos do autor, como uma “manifestação universal” de “todos os homens em todos os tempos”, insistindo que “não há povo e não há homem que possa viver sem ela”. Nesse quadro, a pergunta realmente produtiva seria algo como o seguinte: por que Antonio Candido, um crítico capaz de reconhecer, em outras circunstâncias, a particularidade histórica e conceitual do literário, nesse texto mais convencionalmente político sentiu ser preciso afirmar algo tão duvidoso como a universalidade da literatura?

Após discutir algumas dessas inquietações em sala de aula, um espaço em que o peso da instituição estimula a naturalização do literário, pensei que levar a sério essa pergunta levaria a uma compreensão mais precisa das tensões que caracterizam o imaginário político e teórico em que estamos inseridos, no ambiente universitário, certamente, mas não só nele. Em outras palavras, o desafio era entender por que não parecia possível, naquele texto, imaginar uma política que não partisse da afirmação da semelhança, uma política que não tivesse a homogeneidade como condição. Dando mais um giro ao problema, por que, nessa defesa ao direito à literatura elaborada no Brasil dos anos 1980 (ainda que o texto retomasse um ensaio anterior, “A literatura e a formação do homem”, de 1972CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In: DANTAS, Vinícius (org.). Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades/Ed.34, 1972. p. 81-90.), o autor precisa negar que aquilo que propõe, e que parece desejar, é a transformação do outro no mesmo? O que isso nos diz sobre os contornos e limites da nossa imaginação política? Caso ampliássemos um pouco mais o alcance da interrogação, poderíamos nos perguntar pelos motivos que fizeram o campo do estudo da literatura abraçar com tanto fervor formulação tão improvável, a tal ponto que ela se tornou uma espécie de mote da área, aparecendo em apresentações de departamentos e cerimônias de abertura de congressos.

A demonstração de que algumas das afirmações feitas no texto “O direito à literaturaCANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995. p. 169-193.” - sobre práticas discursivas ameríndias, por exemplo - são difíceis de sustentar seria importante, ainda que não tenha sido bem isso o que meu texto buscou fazer. (Os rumos tomados pelo texto não levam a um estudo desses, a não ser muito pontualmente, na alusão à dificuldade da tradução ao tzeltal de noções como “literatura” e “ficção”, além de “direito”, “universalidade” e “humano”; há ótimos trabalhos nessa linha feitos nos últimos anos, tanto na Antropologia quanto na Literatura Comparada.) No caso do meu texto, tratava-se de entender em que sentido havia sido verdadeiro o gesto de Candido, desde que “verdadeiro” seja entendido como aquilo que é vivido como necessário. Em que sentido, então, para o projeto crítico-político de Candido, havia, de fato, um risco em haver dúvidas quanto à semelhança e à equivalência (ainda que subalterna) dessas culturas consideradas “primitivas” e “arcaicas”? Qual era o risco que se queria evitar?

O texto de Candido demonstra acreditar que precisava afirmar a semelhança e a legibilidade dos ameríndios, como também a dos operários, dos jardineiros etc., como parte da defesa de seus direitos, e, mais, até para que essa defesa pudesse vir a ser formulada. De acordo com as condições estabelecidas por aquele imaginário, primeiro é preciso tornar o outro legível, confirmando que se tem acesso a seu pensamento, seus afetos e seu desejo íntimo, para então poder afirmar sua dignidade e seus direitos. Que esse tenha sido um gesto necessário para a argumentação, um movimento que, além disso, correspondia a um desejo do intelectual, ajuda a explicar por que a afirmação da semelhança ganha tanta ênfase.

Voltando à sua pergunta sobre os estudos subalternos e a crítica pós-colonial, o exercício de leitura buscou situar o pensamento crítico brasileiro num contexto análogo ao colonial, fazendo ecoar, no arquivo da crítica brasileira, o reconhecimento da cumplicidade entre o domínio colonial e o ensino de literatura, intuição que na crítica pós-colonial é até banal (o livro Masks of conquest: Literary study and British ruleVISWANATHAN, Gauri. Masks of conquest: Literary study and British rule in India. New Delhi: Oxford University Press, 2003., de Gauri Viswanathan, é um exemplo entre muitos). Que esse arquivo brasileiro é em alguma medida continuador da missão colonial não é uma ideia desconhecida na tradição nacional, aparecendo mesmo antes disso que normalmente chamamos de “teoria pós-colonial”. No entanto, o fato de que, mesmo estando disponível no repertório crítico brasileiro, a intuição não foi rotineiramente utilizada para analisar os aspectos evolucionistas e eurocêntricos da obra de Candido é um dado relevante. Para explicá-lo, seria necessário levar em conta não apenas os elementos universalizantes e humanistas dos textos do autor, como também sua importância na história da institucionalização do ensino da literatura. Algumas ferramentas críticas para analisar essas relações entre política e pedagogia e pensar com rigor o espaço da sala de aula, questionando a confiança do intelectual que se coloca como porta-voz do subalterno, do qual não vem atrito e resposta, vieram da obra de Gayatri Spivak, tanto o Pode o subalterno falar?CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995. p. 169-193. quanto os textos reunidos no livro Outside in the Teaching MachineSPIVAK, Gayatri C. Marginality in the teaching machine. In: Outside in the teaching machine. New York: Routledge, 1993..

Algumas leituras do “Além da literatura”, cuja primeira versão é de 2006, questionaram - acredito que com razão - a referência a um “além” da literatura, expressão que de fato parece indicar a possibilidade e talvez até a desejabilidade de uma superação do literário. O advérbio “além” efetivamente remete às noções de horizonte e fronteira, na tentativa de ressaltar como a ideia da literatura adquiriu uma espécie de soberania, dificultando a percepção de seus limites e restringindo o alcance de nossa imaginação. Mesmo hoje, anos depois da primeira versão do texto, não penso que essa linha especulativa deva ser interditada, pois a pergunta sobre o fim da literatura, com tudo que ela representa, ainda precisa ser colocada. No entanto, o objetivo inicial era mais modesto do que uma proposta de abandono da literatura; era algo mais próximo do uso de “além”, quando o advérbio descreve um acréscimo ou uma adição, como sinônimo de “ademais de” - “É grosseiro, além de teimoso” - é a frase usada como exemplo no Houaiss. (Na publicação do texto em inglês, sugeri aos editores do periódico, sem sucesso, que o título fosse “Beside Literature”.) (NATALI, 2009NATALI, Marcos P. Beyond the Right to Literature. Comparative Literature Studies, v. 46, n. 1, p. 177-192, 2009.). Tanto é assim que a única aparição da expressão “além da literatura” no corpo do ensaio, no último parágrafo, ocorre numa interrogação, numa pergunta que força a polarização entre literatura e justiça para tentar recuperar a tensão que modelos conciliadores, nos quais interesses estéticos e políticos convergem, buscaram diminuir. Reconhecer que existem demandas legítimas, diferentes daquelas colocadas pela literatura, já seria, a meu ver, um passo importante, e é a isso que buscam contribuir os casos particulares examinados ao longo do livro, com atenção às tensões entre, por um lado, os direitos da literatura e, por outro, as demandas colocadas pela experiência do luto, por políticas antirracistas, pela ética, pela pedagogia e pela alteridade indígena.

AMRM:Também no capítulo “Além da literatura”, você sugere que a defesa do acesso à literatura, comum a políticas culturais que se assumem como progressistas, muitas vezes se limita a considerar aquilo “que já existe”, revelando-se frequentemente incapaz de imaginar “a criação do que ainda não é” (NATALI, 2020NATALI, Marcos P. A literatura em questão: a responsabilidade da instituição literária. Campinas: Editora da Unicamp, 2020. 280 p., p. 40). Ao final do livro, no “Post Scriptum: autobiografias do começo de uma aula”, você propõe que se “imagine uma aula que não pressuponha a ignorância dos alunos” (NATALI, 2020NATALI, Marcos P. A literatura em questão: a responsabilidade da instituição literária. Campinas: Editora da Unicamp, 2020. 280 p., p. 251), a aula como “a aventura do poder pensar junto a outras pessoas” (NATALI, 2020NATALI, Marcos P. A literatura em questão: a responsabilidade da instituição literária. Campinas: Editora da Unicamp, 2020. 280 p., p. 253), do “estar com os outros sem a obrigação de ser semelhante” (NATALI, 2020NATALI, Marcos P. A literatura em questão: a responsabilidade da instituição literária. Campinas: Editora da Unicamp, 2020. 280 p., p. 254), havendo lugar para “o atrito e o dissenso” (NATALI, 2020NATALI, Marcos P. A literatura em questão: a responsabilidade da instituição literária. Campinas: Editora da Unicamp, 2020. 280 p., p. 245), “apontando para aberturas presentes no pensamento e na política e sinalizando tudo aquilo que ainda está para ser feito” (NATALI, 2020NATALI, Marcos P. A literatura em questão: a responsabilidade da instituição literária. Campinas: Editora da Unicamp, 2020. 280 p., p. 260). Colocar a “literatura em questão” tem, portanto, implicações na sala de aula. Você poderia falar sobre tais implicações e, se for pertinente, articulá-las à distinção trazida por você, com base em Dipesh Chakrabarty, entre dois modelos de democracia, o pedagógico e o performativo (NATALI, 2020NATALI, Marcos P. A literatura em questão: a responsabilidade da instituição literária. Campinas: Editora da Unicamp, 2020. 280 p., p. 25)?

MN: Sua pergunta suscita uma reflexão sobre questões de escala, incluindo paralelismos entre os dilemas encontrados em políticas culturais e educacionais abrangentes e a micropolítica do cotidiano da sala de aula. Quando, numa esfera como na outra, se entende que o problema a ser enfrentado é apenas a restrição ao acesso - à literatura, a bens culturais valorizados, ao letramento etc. -, resta pouco a ser teorizado, propriamente. O desafio, de acordo com essa perspectiva, seria aproximar bens culturais elevados de populações que historicamente foram excluídas da possibilidade de usufruir deles, aumentando o tamanho do bolo (o número de escolas, o número de vagas em universidades etc.). Por mais que essas restrições e exclusões sejam parte importante da história da violência colonial e pós-colonial e precisem ser confrontadas, o ponto é que a hegemonia não opera apenas por meio da exclusão, podendo optar por aumentar seu domínio também por meio de algumas formas de inclusão.

Faz alguns anos, em debates sobre mudanças na forma de ingresso no ensino superior brasileiro, era comum ouvir a reivindicação da inclusão nas universidades públicas de grupos sociais marginalizados acompanhada da suposição de que elas poderiam continuar a existir basicamente da mesma forma. Essa maneira de formular o problema ofusca o reconhecimento da necessidade de também transformar as práticas culturais e instituições já existentes, ignorando como a história brutal de exclusão social no país contaminou a produção cultural e intelectual de suas instituições (acadêmicas, mas não só, e por mais que essas relações tenham sido complexas e contraditórias). Não é preciso pensar a relação entre obras e suas condições de produção de maneira mecânica ou determinista para perceber que esse ponto cego é relevante e merece ser pensado.

Algo que o livro argumenta é que o gesto inclusivo se torna especialmente problemático quando inclui a certeza de que se conhece a natureza do desejo do outro, do desejo do subalterno, em movimento que associo à economia discursiva da democracia representativa, na qual se adquire poder justamente por meio da apropriação da voz do outro, pelo qual se falará. Nesse quadro, o sujeito político-pedagógico precisa negar sua própria particularidade, dissimulando também seu desejo de reformar ou transformar o subalterno, assegurando que o que faz é simplesmente representá-lo.

No texto de Dipesh Chakrabarty citado na sua pergunta (“Museums in Late DemocraciesCHAKRABARTY, Dipesh. Museums in Late Democracies. Humanities Research, v. IX, n. 1, p. 5-12, 2002. ”), um artigo que retomava uma distinção feita previamente por Homi Bhabha (em O local da culturaBHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. 400 p.), o que interessava era entender como, em alguns modos de pensar, se pressupunha que o subalterno - o camponês, por exemplo - seria uma espécie de ser pré-político, que, como tal, precisaria primeiro ser inserido na racionalidade moderna para depois adquirir um imaginário propriamente político. Em outro ensaio (“A Small History of Subaltern Studies”, publicado no livro Habitations of ModernityCHAKRABARTY, Dipesh. Habitations of Modernity: Essays in the Wake of Subaltern Studies. Chicago: Chicago U.P., 2002. 173 p.), numa leitura que busca contrastar os historiadores Eric Hobsbawm e Ranajit Guha, Chakrabarty chama atenção para o modo como o historiador britânico, escrevendo nos anos 1970, empregava o termo “pré-político” para definir revoltas camponesas organizadas com base em categorias como parentesco, religião e casta, definindo-as como movimentos que exibiam uma “consciência atrasada”. Nos termos de Hobsbawm, os camponeses seriam “pessoas pré-políticas que ainda não encontraram, ou apenas estão começando a encontrar, uma linguagem específica por meio da qual poderão expressar suas aspirações diante do mundo” (HOBSBAWN, 1978HOBSBAWM, Eric J. Primitive Rebels: Studies in Archaic Forms of Social Movement in the Nineteenth and Twentieth Centuries. Manchester: Manchester U. P., 1978., p. 2). Guha (1983GUHA, Ranajit. Elementary Aspects of Peasant Insurgency in Colonial India. Delhi: Oxford Univerisity Press, 1983.), por outro lado, recusava modelos evolutivos de “consciência”, observando como mesmo discursos associados ao parentesco, à identidade de casta e à religião podiam levar à expressão de uma consciência que poderia ser considerada insurgente

Para voltar à oposição entre as duas concepções de democracia, a cultura, no modelo pedagógico, é entendida como uma parte da missão civilizadora que ambiciona transformar pessoas em cidadãos e, portanto, em sujeitos políticos, enquanto o modelo performativo de democracia entende qualquer comunidade e qualquer pessoa como já políticas, inclusive antes, e possivelmente contra, qualquer pedagogia. Quanto a “O direito à literaturaCANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995. p. 169-193.”, minha impressão é que no texto convivem essas duas concepções de política, mas de uma maneira ambivalente, com uma retórica derivada do modelo performativo servindo sobretudo para dissimular o modelo pedagógico, que é a pulsão principal que move o desejo do texto. O ponto de partida do texto é um modelo performativo de democracia e uma definição neutra e inclusiva de cultura - todos têm literatura, tudo é literatura etc. -, mas isso serve como trampolim para um salto que vai terminar num lugar muito diferente, num modelo pedagógico e normativo de política. Desliza-se, assim, da afirmação da universalidade daquilo que é defendido - a “literatura” - para a reivindicação de que uma prática discursiva específica - a alta literatura, também chamada “literatura” - seja levada a todos. Na minha leitura, o que interessava era entender por que o discurso do direito à literatura parecia precisar anular a tensão entre essas duas políticas, apresentando uma como se fosse a outra.

Que o nome usado para nomear essas práticas discursivas diferentes seja o mesmo é decisivo; e é o apelo a esse nome - literatura - que muitas vezes vai justificar a exigência de fidelidade e concordância e a definição da semelhança como condição para a presença, buscando impedir ou interromper novos gestos do pensamento.

AMRM: A literatura em questão argumenta que a instituição literária se assemelha em muitos aspectos a uma instituição religiosa, funcionando como uma espécie de culto laico (temos em mente aqui especialmente o capítulo “O sacrifício da literatura”, com destaque para as páginas 98-99). Em sua argumentação, as noções de “instituição” (institucionalização, institucionalidade), “campo”, “espaço” e “sistema” literários se tornam decisivas. Como, em sua perspectiva, estas noções se relacionam, se matizam e se diferenciam? Você poderia abordar as conceitualizações a que recorreu e que, de algum modo, importaram para a construção de sua visada crítica? Considerando sua experiência numa instituição universitária, a Universidade de São Paulo, como você avalia as consequências de fidelidades absolutas e devocionais ao literário para as atividades de pesquisa e ensino de literatura nas universidades?

MN: Continuando com as tentativas de matização, seria possível perguntar em que medida é útil distinguir, pelo menos provisoriamente e em algumas situações, a instituição literária da instituição do ensino de literatura, esferas que se sobrepõem, mas não chegam a ser idênticas. A diferenciação ajudaria a entender quanto há nessas instituições, incluindo a universitária, de uma economia de captação dedicada à incorporação de saberes extramuros, por meio de processos complexos que incluem assimilação, potencialização e neutralização. Ainda que essas incorporações sejam sempre anunciadas “com pompa”, como diz o filósofo chileno Willy Thayer, no caso da universidade o “transplante de saberes” exige que eles antes tenham declinado em favor da universidade, subordinando-se a ela. Thayer chega a afirmar que, dado esse quadro, “toda universidade empírica estará contra o poema e não protegerá o poeta” (em A crise não moderna da universidade modernaTHAYER, Willy. A crise não moderna da universidade moderna. Tradução de Romulo Monte Alto. Belo Horizonte: UFMG , 2002. 205 p.).

De todo modo, as instituições religiosas têm uma vantagem em relação a essas instituições literárias: nelas se reconhece que o problema de fundo é teológico, e que se trata de pensar a relação entre Deus e o mundo, no qual estão as comunidades e práticas imperfeitas que caracterizam a esfera terrena. Tende a ser menos claro para nós como os cultos laicos, sejam eles organizados em torno à devoção à razão, ao humano ou à literatura, são herdeiros dessa tradição religiosa, apropriando-se, sem teologia e sub-repticiamente, como escreveu Adorno (2006ADORNO, Theodor W. Métaphysique: concept et problèmes. Tradução de C. David. Paris: Payot & Rivages, 2006. 260 p.), da energia de experiências que haviam sido colocadas teologicamente. No caso das heranças recebidas das chamadas “religiões do Livro” - Judaísmo, Islamismo e Cristianismo (e que normalmente sejam mencionadas apenas essas três é significativo) -, os embates principais vão dizer respeito sempre à leitura, dada a impossibilidade de disciplinar e homogeneizar as leituras de qualquer texto, isto é, a impossibilidade de transformar um texto sem ruído e instabilidade em dogma e doutrina. As novas exigências de fidelidade à literatura se situam nesse quadro e têm como consequência a recuperação das figuras do apóstata, do herege, do sacerdote e do hermeneuta, agora em outro ambiente institucional. Nele, disputas sobre a preferência por uma ou outra obra, ou sobre o valor relativo de um ou outro autor (Oswald ou Mário? etc.), são aceitas, entendidas como embates dentro de um território previamente demarcado, servindo até para reforçar o que as disputas têm em comum e mantêm intocado (o valor da literatura).

Menos perdoáveis serão as controvérsias que colocam em questão a prioridade do literário, e contra elas se unem grupos divergentes no interior da instituição, da crítica conservadora à progressista, da crítica imanente ao beletrismo, do close reading à estilística... Em todo caso, acusações de infidelidade à literatura são úteis por serem sempre, em alguma medida, verdadeiras; a leitura seria inútil, invisível e, em última instância, impossível se não houvesse infidelidade. Dada a natureza incerta de qualquer leitura, cuja infinitude não tem como ser controlada, são sempre interessantes as declarações de fidelidade exclusiva ao literário - “partirei da obra em si”, “respeitarei e priorizarei a obra” etc. -, inclusive por causa dos indícios de ambivalência presentes nas próprias falas. São momentos que ganham relevância se entendidos como atos performativos e tentativas de persuasão, mais do que atos de comunicação de uma informação. Em outras palavras, parafraseando Kierkegaard (1983KIERKEGAARD, Sören. Fear and trembling. Tradução de H. V. Hong, E. H. Hong. Princeton: Princeton University Press, 1983. 420 p.): quem pode dizer com tamanha certeza que não serve ao mesmo tempo a dois senhores? Por tudo isso, o livro buscou cenas em que a desejabilidade da literatura, enunciada tantas vezes com naturalidade e em tom piedoso, precisava voltar a ser pensada.

No caso do Brasil, e tentando refletir um pouco sobre minha filiação institucional, penso que algumas dessas tensões, que têm diferentes versões em diferentes contextos nacionais, aqui vão juntar-se à forma específica de nossa sociabilidade patriarcal, com a exigência de fidelidade à instituição da literatura justificando diferentes tipos de violência, e o nome literatura dissimulando a exigência de fidelidade à institucionalidade. Para justificar esses movimentos, é fundamental que o mundo seja entendido com base numa oposição binária: por um lado, a alta literatura (o pensamento crítico, a crítica erudita etc.), e, de outro, uma outra coisa, que vai receber diferentes nomes segundo o caso, entre eles “estudos culturais”, “identitarismo”, “mercado”...

As identidades teóricas que predominam nos diferentes programas e departamentos de Letras do país influenciam e dão formas específicas ao encontro dessas instituições com o patrimonialismo, o clientelismo e a endogenia de nossa cultura patriarcal. Ia dizer que essa é uma história ainda a ser contada, mas talvez seja isso o que vamos fazendo nos textos que escrevemos e nas aulas que ministramos.

AMRM:Na polêmica estudada por você em “Uma segunda Esméria: do amor à literatura (e ao escravizado)” (quinto capítulo de A literatura em questão), o tom das declarações de escritores e estudiosos que se incumbiram da “missão” de “defender” Monteiro Lobato parece corroborar o argumento da recorrente fidelidade absoluta e devocional à literatura. Algumas das declarações citadas parecem empenhadas em assegurar a preservação de hierarquias sociais, de posições de privilégio e do próprio racismo, isto é, servem à “naturalização de certa visão de mundo, como se a própria existência da cultura nacional dependesse da capacidade de preservar o que há nessa cena original de confluência entre literatura e poder” (NATALI, 2020NATALI, Marcos P. A literatura em questão: a responsabilidade da instituição literária. Campinas: Editora da Unicamp, 2020. 280 p., p. 129). Já que, em seu livro, você propõe pensarmos em situações relatadas como cenas (dramáticas, romanescas) em que personagens são delineadas e papéis desempenhados, você gostaria de comentar essa “cena original de confluência entre literatura e poder”, no caso, uma cena de iniciação à leitura relatada por Leyla Perrone-Moisés (NATALI, 2020NATALI, Marcos P. A literatura em questão: a responsabilidade da instituição literária. Campinas: Editora da Unicamp, 2020. 280 p., p. 122-123), cotejando-a com outra cena também analisada por você (2020NATALI, Marcos P. A literatura em questão: a responsabilidade da instituição literária. Campinas: Editora da Unicamp, 2020. 280 p., p. 49), a da humanização literária relatada por Antonio Candido em “O direito à literaturaCANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995. p. 169-193.”?

MN: Quando, nesses textos críticos, são inseridas anedotas com referências a experiências pessoais, particularmente quando essas tratam do momento de iniciação à leitura, coloca-se em primeiro plano o aspecto afetivo da relação com a leitura e os livros. O gesto destaca um aspecto importante da vivência com a literatura, incluindo a relação, mais ou menos mítica, segundo o caso, com certa ideia de infância. A anedota é um recurso entre outros, não menos legítimo nem necessariamente merecedor de censura, e não se trata de exigir maior rigor ou impessoalidade, desses ou de outros textos, condenando-os por seu uso do memorialismo e do modo sentimental.

Na verdade, o interesse desses textos aumenta com a presença desses artifícios, que, no entanto, como quaisquer outros que se oferecem à leitura, precisam ser analisados, levando em consideração toda a sua complexidade. No caso de alguns dos trechos mencionados na sua pergunta, em textos como “Por amor à arte” de Leyla Perrone-Moisés e “O direito à literaturaCANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995. p. 169-193.” de Antonio Candido, as cenas dramáticas são enxertadas em argumentos a respeito de questões teóricas difíceis, como parte de um esforço de persuasão, gerando a sensação de que a expectativa era que seu sentido fosse claro e estivesse disponível ali para ser visto por qualquer um.

No caso das anedotas que aparecem em “O direito à literaturaCANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995. p. 169-193.”, são lembrados vários exemplos de encontros bem-sucedidos de pessoas pobres com a alta cultura, numa série que lembra testemunhos de milagres que levaram imediatamente à conversão, embora desta vez o que se confirme seja o valor de certa literatura. Já em “Por amor à arte”, conferência apresentada na Academia Brasileira de Letras em 2005, narra-se como a introdução à leitura e aos livros de Monteiro Lobato ocorreu “num contexto de Sítio do Pica-Pau Amarelo”. Os dois conjuntos de cenas podem ser lidos como parte da construção de um mito fundacional. Como elemento estrutural em comum, os relatos têm um foco narrativo seguro que não antecipa que aqueles que figuram como personagens secundários nas narrativas troquem de lugar com os narradores, inversão que levantaria a possibilidade de que narrassem de outro modo aqueles episódios.

Que cenas como essas tenham passado a ser narradas de outra maneira é parte da história das controvérsias em torno ao racismo de Monteiro Lobato. Que tantas reações aos esforços de ressignificação crítica de sua obra tenham adotado um tom de incredulidade indica que ali há algo próximo da categoria do impensável; a indignação agressiva de muitas das manifestações em defesa de Lobato sugere que se entendeu que um limite importante havia sido transgredido. E aí a associação ao universo religioso, sobretudo com a institucionalidade que se forma em volta da religião, com seus rituais, seu vocabulário, suas hierarquias e seus silenciamentos, pode ser ilustrativa.

Que tantas reações ao destaque dado ao racismo de Lobato em intervenções críticas tenham tomado uma mesma forma - alguma versão da frase “Eu li Monteiro Lobato quando criança e não me tornei racista” - indica ainda um esforço por reconquistar um eu que se viu deslocado. O eu retorna, assim, com força renovada, voltando a ocupar lugar central na esfera pública e oferecendo-se como garantia. Imaginando que não será questionado, espera manter o privilégio da ausência de marcação - buscando escapar daquilo que Kate Manne (2018MANNE, Kate. Melancholy Whiteness (or, Shame‐Faced in Shadows). Philosophy and Phenomenological Research, v. 96, n. 1, p. 233-242, 2018.) vai associar à “branquitude melancólica”, que é a sensação de ter perdido o direito ao anonimato e à neutralidade, isto é, o direito à ausência de racialização.

Mas agrega pouco ao debate a reapresentação de cenas naturalizantes que reproduzem e confirmam, na sua estrutura, a arquitetura simbólica que emoldura o universo ficcional do Sítio do Pica-Pau Amarelo. O que as anedotas comprovam, mais uma vez, é que aquele universo ficcional pode comover e emocionar quando lido em circunstâncias próximas à dele, em modos de ler que incentivam processos de identificação seletiva com as personagens brancas das histórias. Assim, no relato exposto em “Por amor à arte”, o “contexto de Sítio do Pica-Pau Amarelo” em que os livros eram lidos incluía “uma amoreira que eu considerava minha” e, se “não havia o Rabicó, [...] havia as galinhas etc. E eu tinha uma tia Anastácia, porque a cozinheira era uma negra muito escura que, de um modo politicamente incorreto, tinha o apelido de Vavão. Era como nós, crianças, pronunciávamos ‘carvão’.” (PERRONE-MOISÉS, 2005PERRONE-MOISÉS, Leyla. Por amor à arte. Estudos Avançados, São Paulo, v. 19, n. 55, p. 335-348, 2005., p. 335).

Esses depoimentos, que interessam por seu caráter exemplar, poderiam até ser lidos como o contrário do que dizem ser: como evidência da naturalização de certo imaginário supremacista, visto como sinônimo do país e de sua vida cultural, tanto que ameaçar esta seria equivalente a ameaçar aquele. No entanto, não são esses os relatos que vão ajudar-nos a avaliar os efeitos do uso dos livros de Monteiro Lobato nas salas de aula do ensino fundamental, que era afinal o que estava em discussão no Conselho Nacional de Educação em 2010. Para isso, teríamos que escutar outro tipo de testemunho, relatos que descrevam outras cenas de leitura, como a seguinte. No texto “Obra infantil de Monteiro Lobato é tão racista quanto o autor”, a historiadora Lucilene Reginaldo, respondendo a texto de Jorge Coli que afirmara que “Só quem não leu ou não compreendeu os livros infantis de Lobato pode julgá-los racistas”, conta que na época da polêmica resolveu ler Caçadas de Pedrinho para seu filho, então com seis anos de idade. O que encontrou foi um texto em que “Tia Nastácia era sempre a ‘bola da vez’: ingênua, simplória, medrosa, serviçal e alvo de racismo e discriminações explícitas. Tudo em perfeita consonância com a hierarquia racial: na base da pirâmide, a mulher negra” (REGINALDO, 2019REGINALDO, Lucilene. Obra infantil de Monteiro Lobato é tão racista quanto o autor, afirma historiadora. Folha de S. Paulo, 10 fev. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/02/obra-infantil-de-monteiro-lobato-e-tao-racista-quanto-o-autor-afirma-autora.shtml . Acesso em: 6 nov. 2019.
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissi...
, n.p.). Como tanto Nastácia quanto Barnabé não têm vínculos familiares próprios, a sugestão é que “O bom negro e a boa negra são estéreis. A desejada eliminação do elemento negro - visando o avanço da civilização e o bem público, é claro- e a defesa da subalternidade das gentes de cor foram explicitadas por Lobato sem qualquer pudor.” (REGINALDO, 2019REGINALDO, Lucilene. Obra infantil de Monteiro Lobato é tão racista quanto o autor, afirma historiadora. Folha de S. Paulo, 10 fev. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/02/obra-infantil-de-monteiro-lobato-e-tao-racista-quanto-o-autor-afirma-autora.shtml . Acesso em: 6 nov. 2019.
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissi...
, n.p.).

Como muitas pessoas têm insistido em textos escritos nos últimos anos - Ana Maria Gonçalves, Osmundo Pinho (2021PINHO, Osmundo. Cativeiro: Antinegritude e ancestralidade. Salvador: Ed. Segundo Selo, 2021. 298 p.), Fernanda Silva e Sousa (2019SOUSA, Fernanda Silva. Caçada ao racismo: A polêmica em torno da obra de Monteiro Lobato em face a uma educação antirracista. In: HOSSNE, Andrea Saad; NAKAGOME, Patricia Trindade (org.). Leituras e leitores na contemporaneidade. Araraquara, Letraria, 2019. p. 129-140.), entre outros -, quando se delibera a respeito da presença das obras de Lobato nos primeiros anos do ensino fundamental, a pergunta essencial é uma só: qual o efeito de sua leitura em crianças negras, que é também o lugar em que termina o texto de Lucilene Reginaldo: “Não quero crer que seja necessário ter um filho negro para ser sensível aos malefícios do racismo na formação de uma criança. E acho também que estamos, ou deveríamos estar, longe de querer que um garoto (ou garota) negro aprenda com Nastácia qual é o seu lugar no mundo.” (REGINALDO, 2019REGINALDO, Lucilene. Obra infantil de Monteiro Lobato é tão racista quanto o autor, afirma historiadora. Folha de S. Paulo, 10 fev. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/02/obra-infantil-de-monteiro-lobato-e-tao-racista-quanto-o-autor-afirma-autora.shtml . Acesso em: 6 nov. 2019.
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissi...
, n.p.). O foco nessas cenas de leitura tenta deslocar a importância para perguntas como essas, acolhendo a energia de demandas que têm aparecido em salas de aula de universidades e escolas brasileiras desde a implementação de políticas de ação afirmativa. O deslocamento sugere ainda que, caso se deseje, mesmo assim, insistir em defender o uso de Lobato nas escolas, o argumento terá que reconhecer que se está reivindicando também algo como o direito a causar sofrimento.

AMRM:Ao lidar com autores como José María Arguedas (de quem você trata especialmente em três capítulos: “José María Arguedas aquém da literatura”; “Aspectos elementares da insurreição indígena: notas em torno de Os rios profundos”; “Futuros de Arguedas”) e Roberto Bolaño (centro do nono capítulo, “Da violência, da verdadeira violência”), você desdobra e adensa sua crítica à defesa da literatura como recurso de integração e síntese cultural, problematizando a teoria do “super-regionalismo”, de Antonio Candido, e a da “transculturação”, de Ángel Rama. Certa escrita “literária” parece, então, capaz de desafiar modelos teóricos hegemônicos no campo literário, desafiando também suas autorrepresentações. Como pensar este potencial desestabilizador da literatura? Ou ainda, como pensá-lo sem reativar algo da problemática fidelidade devocional à literatura que você justamente critica?

MN: Essa aporia - a elaboração de uma crítica à literatura dentro da literatura - é o aspecto mais notável das obras de Bolaño e Arguedas, autores tão diferentes em outros sentidos, mas que sua pergunta estimula que sejam pensados em conjunto. Enquanto os modelos teóricos resumidos pelos conceitos de transculturação e super-regionalismo comemoravam, com maior ou menor ambivalência, segundo o caso, o caráter supostamente bem-sucedido da integração na economia cultural global, Arguedas formulava, de maneira singular em sua geração, o aspecto traiçoeiro das promessas de inclusão do indígena na instituição da literatura. Já em Bolaño, a preocupação recorrente é com a possibilidade da devoção à literatura, e sobretudo a performance pública do amor à literatura, servir de álibi para a violência, reforçando uma lógica sacrificial em que o sofrimento do outro é justificado graças a um interesse maior. Para Bolaño, o problema é a relação entre a literatura e o mal; para Arguedas, entre a literatura e o extermínio. Nos dois casos, tensões atravessam e atormentam os textos, que podem ser lidos como um inventário de impasses e riscos, sem que a escrita e o pensamento repousem finalmente num lugar estável, dentro ou fora da literatura, a favor ou contra o literário. Se a ausência de garantia ou segurança pode trazer angústia, sobretudo em salas de aula, não deixa de ter também seu potencial, ao abrir espaço para que esses dilemas sejam pensados, considerando que precisam ser avaliados singularmente, caso a caso. Quando apresentada a estudantes, a esperança é que essa indeterminação traga o reconhecimento de que elas também precisarão tomar uma posição na disputa, situando-se de modo particular em discussões intricadas, nas quais o nome literatura não será, necessariamente, o ponto de chegada e o desfecho da reflexão.

AMRM:Como você adverte na “Apresentação” de A literatura em questão, o “nome Derrida aparece em diversos momentos” do livro (NATALI, 2020NATALI, Marcos P. A literatura em questão: a responsabilidade da instituição literária. Campinas: Editora da Unicamp, 2020. 280 p., p. 12). No capítulo “O sacrifício da literatura”, tratando de “Circonfissão”, você pergunta: “o que houve, nas peculiares circunstâncias do contexto de sua produção, para que o costumeiro entusiasmo do autor pela literatura encontrasse um limite?” (NATALI, 2020NATALI, Marcos P. A literatura em questão: a responsabilidade da instituição literária. Campinas: Editora da Unicamp, 2020. 280 p., p. 106). Avançando em seu diálogo com Derrida, tal limite parece apontar para uma ética: “a cada momento devemos reconhecer que o outro ‘se foi para sempre, que está irremediavelmente ausente’, pois seria uma forma de infidelidade iludir-se e ‘acreditar que o outro vivendo em nós está vivendo em si’.” (NATALI, 2020NATALI, Marcos P. A literatura em questão: a responsabilidade da instituição literária. Campinas: Editora da Unicamp, 2020. 280 p., p. 106) A ilusão de que “o ser para mim” equivaleria “ao ser em si” consiste também num dos graves problemas percebidos em projetos de integração cultural, isto é, nas demandas de que a literatura latino-americana “incorpore” elementos das culturas consideradas “arcaicas” (culturas que estariam em vias de desaparecimento). Você gostaria de comentar como a leitura de Derrida atravessa sua discussão sobre os limites éticos da literatura?

MN: Não havia pensado a questão nesses termos, mas penso que a aproximação entre a noção de luto em Derrida e os projetos hegemônicos de integração cultural faz sentido e é iluminadora em vários sentidos. Nos dois casos, o que precisa ser pensado é como se articulam a perda, a ausência e diferentes possibilidades de sobrevida.

Escrevendo sobre Roland Barthes pouco depois de sua morte (2008), DerridaDERRIDA, Jacques. As mortes de Roland Barthes. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 7, n. 20, p. 264-336, 2008. percebe que está mimetizando, na sua escrita, procedimentos estilísticos “típicos” de Barthes, recuperando conceitos e expressões que poderiam ser vistos como “barthesianos”. Nessa situação, Derrida se pergunta se o mais responsável não seria uma abordagem oposta, uma estratégia que destacasse as descontinuidades entre o mundo em que Barthes existia e este, do qual ele está ausente. Nesse outro modo de escrever, nessa outra maneira de entender o trabalho de luto, a insistência seria na impossibilidade da continuação e da sobrevivência, inclusive porque, com sua morte, Barthes perde a chance de ser diferente de si mesmo. A tragédia, afinal, é que, após a sua morte, Barthes já não poderá ter uma vida nova, surpreendendo-nos ao passar a escrever de modo novo, um modo que inicialmente seria visto como pouco barthesiano (até que, com tempo, essa nova escrita viesse a modificar o que é considerado característico de Barthes).

Transpondo essa problemática do trabalho de luto para os modelos teóricos que foram dominantes em meados do século XX (talvez já não sejam mais, ou pelo menos não da mesma maneira e nos mesmos espaços), predominava neles, isto é, na representação da diferença cultural feita pela transculturação narrativa e pelo super-regionalismo, o tom triunfalista a celebrar a integração bem-sucedida da alteridade na literatura e cultura latino-americanas. Se era isso que efetivamente faziam as obras de José María Arguedas, Juan Rulfo, Gabriel García Márquez, Miguel Ángel Asturias ou João Guimarães Rosa, para mencionar os nomes mais comumente citados, é outra questão, que precisaria ser avaliada caso a caso, às vezes obra a obra, até página a página. Seja como for, ainda que se perceba a violência presente nesses processos transculturadores - tanto Rama quanto Candido a reconhecem -, resta a pergunta sobre sua desejabilidade, em última instância. Como argumentou Alberto Moreiras (em A exaustão da diferençaMOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença: A política dos estudos culturais latino-americanos. Tradução de Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2001. 405 p.), transculturação e super-regionalismo não são apenas conceitos usados em análises fáticas, não são categorias meramente descritivas, mas projetos a ser realizados e concluídos, o que explica o tom positivo que prevalece nos relatos de seus avanços. Evidentemente, como escreve Moreiras, considerar a inscrição na cultura dominante um sucesso, e sua ausência um fracasso, resume uma posição ideológica específica com relação à modernização. (A obra do crítico peruano Antonio Cornejo Polar seria um exemplo, entre muitos, de uma versão menos triunfalista dessa história desenvolvida na própria tradição crítica latino-americana no mesmo período.)

Em outras palavras, para voltar à analogia que você propôs na pergunta, e pensando em expressões que escutamos comumente em velórios e enterros, às vezes ainda ao lado do caixão, a comemoração do modo como o outro, apesar de sua morte, continua a viver em mim, a comemoração da presença do outro em minha memória, é a celebração do eu que sobreviveu, de seu poder e de sua memória. A comparação ajuda a entender como os elogios à inscrição bem-sucedida da diferença na literatura, diminuindo o que se perdeu no processo, têm como perspectiva e lugar de enunciação a própria literatura. É ela, em último caso, que está sendo celebrada.

AMRM:No memorial apresentado por você, em 2016, como requisito para a livre-docência, Memorial (mais de uma autobiografia) (texto não publicado), você reflete sobre a “forma dada à disputa intelectual”: “Mais ainda do que a disputa entre uma ou outra posição já existente, a questão que volta é a diferença entre concepções de dissenso, democracia e comunidade. No fundo, trata-se da possibilidade de um modelo de vida em comum e de vida intelectual em que o antagonismo, um antagonismo sem fim, teria um papel crucial. Por isso, o caso decisivo é o da leitura dos adversários e dos antípodas; por isso o importante é pensar como se lê - como se vive com - quem não é o mesmo.” Seria esta ética da leitura, que valoriza o dissenso, o cerne de seu trabalho?

MN: Em exercícios de leitura, a situação mais desafiadora é sempre a leitura de textos dos quais discordamos, de obras das quais nos sentimos distantes, de textos que geram em nós afetos negativos. Certamente, sentimentos como a raiva e a indignação podem ser catalisadores de leituras atentas, cuidadosas e produtivas, mas há sempre o risco de sacrificar a precisão em benefício do argumento crítico (leituras movidas por afetos positivos, como a admiração e a paixão, trazem riscos de outra ordem). Por isso, é sempre produtivo em nossas aulas chamar a atenção para os efeitos de nossos vieses cognitivos sobre a leitura, que é outra maneira de dizer que o desejo está sempre presente nas nossas relações com os textos. É nessas situações em que somos colocados diante do desafio de tentar ver nosso olhar e nossas cegueiras, de ler nossa leitura e nossas incapacidades de leitura, de analisar nosso viés. Além de um desafio ético, ler a diferença é um desafio metodológico e epistemológico.

Uma questão de outra ordem, de segundo grau, digamos, é como analisar e responder a formas autoritárias de disputa intelectual, ou seja, que forma dar à resposta que se dá à violência. Tenho tentado estudar isso recentemente buscando nomear e entender uma forma discursiva comum nos nossos debates intelectuais, uma variante do deboche que pode ser chamada de patriarcal (o adjetivo é importante por sinalizar que se trata de um deboche em aliança com a instituição e o poder, em busca do fechamento do campo, reduzindo o novo ao já conhecido). Aqui também, como em outros casos, não há separação possível entre teoria e prática; aliás, a maneira como premissas teóricas e suposições filosóficas ganham corpo nas vidas institucionais é algo fascinante. Como já comentei, ainda que práticas de endogenia e patrimonialismo se repitam em departamentos e programas com perfis teóricos diferentes, não é verdade que a forma da disputa é sempre a mesma e que o grupo na posição dominante, em contextos institucionais particulares, se comporta sempre da mesma maneira.

Quanto à forma e à textura dos embates, acredito que o tom de algumas das intervenções mencionadas aqui - no debate sobre o racismo de Monteiro Lobato, na discussão sobre conceitos críticos influentes nos estudos literários latino-americanos - deixa claro que o que vislumbro como alternativa não é a ausência de tensão e conflito, nem a fantasia liberal de uma noção esvaziada de “diálogo”, mas uma prática de discussão que requereria pelo menos certo tempo, algo que a resposta rápida e debochada interdita. Requer também que o outro não seja, necessariamente, entendido como inimigo, algo que justificaria o desejo de sua aniquilação.

Como nosso principal ambiente de atuação é a sala de aula, como é nela que ocorre a maioria das nossas atividades, como é nela que se desenrola nossa vida cotidiana, a questão é como demonstrar em sala de aula que o dissenso é produtivo e que a vida em comum não exige homogeneidade. Nesse espaço, haveria uma regra básica como ponto de partida: devo ler o que critico. Depois disso, identificar e nomear os objetos da minha crítica é o mínimo que se espera, até para que outros possam conferir, no texto criticado, se avaliam que minha proposta de leitura se sustenta. Além disso, penso que também é salutar preservar a dúvida em relação aos métodos críticos que adotamos, perguntando-nos sempre se não há outra forma disponível para a crítica que cause menos sofrimento aos outros.

AMRM:Ainda em Memorial (mais de uma autobiografia), você propõe que seria necessário considerar a “história do que ocorreu com os estudos subalternos e a crítica pós-colonial nas duas últimas décadas”. Tendo em conta o tema deste número da revista Gragoatá - “A mundanidade dos estudos pós-coloniais” -, você teria algo a dizer sobre essa história?

MN: A chamada do número situava o pós-colonial no mundo e, além disso, pluralizava-o, sugerindo que existem pontos de contato entre as diversas teorias pós-coloniais e as teorias críticas da raça, os estudos africanos e da diáspora, as epistemologias do sul, os feminismos. Compartilhando dessa disposição e buscando esboçar uma história dos estudos subalternos e pós-coloniais dos últimos vinte anos, uma primeira possibilidade seria examinar algumas mudanças de escala nesses estudos, como a passagem do subalterno ao planetário, ou dos estudos sobre “histórias menores” ao debate sobre o Antropoceno. Entretanto, como há sempre um aspecto duvidoso nesses relatos excessivamente lineares que nomeiam giros epistemológicos e passagens categóricas de uma coisa a outra, seria necessário reconhecer que mesmo em estudos pós-coloniais mais recentes, como na obra de Dipesh Chakrabarty, que se tem se ocupado nos últimos anos da crise climática, permanece a atenção ao modo como a crise é apreendida por meio das nossas diferenças culturais e antropológicas, não havendo, nem mesmo nessa situação extrema, uma “humanidade” que, finalmente, atuará como agente político unitário. Em textos de Chakrabarty como “Postcolonial Studies and the Challenge of Climate Change” (2012CHAKRABARTY, Dipesh. Postcolonial Studies and the Challenge of Climate Change. New Literary History, v. 43, n. 1, p. 1-18, 2012.), a questão da justiça intra-humana e até interespécie permanece, a catástrofe ambiental sendo filtrada, necessariamente, pela desigualdade e por nossos antagonismos sociais, que determinam a distribuição injusta dos efeitos das mudanças climáticas.

Outra tarefa que ganha urgência, na última década, é pensar o ressurgimento de variantes do fascismo, que, como os estudos e movimentos pós-coloniais, também estão no mundo, também têm sua mundanidade, e também podem ser estudados de forma produtiva utilizando conceitos e ferramentas desenvolvidos nas teorias pós-coloniais, em análises das formas de vernacularização do fascismo na Índia, no Brasil, nas Filipinas etc.

Se o objetivo for pensar algo como a fortuna dos estudos pós-coloniais no Brasil, a pedra de toque sempre será, penso, a capacidade de conversar e aprender com a tradição de pensamento negro radical do país, além da produção vasta e variada de intelectuais ameríndios. Como vêm demonstrando faz tempo os estudos brasileiros da escravidão, além de trabalhos recentes que dialogam com a noção de Afropessimismo, como os dos brasileiros Osmundo Pinho (2021PINHO, Osmundo. Cativeiro: Antinegritude e ancestralidade. Salvador: Ed. Segundo Selo, 2021. 298 p.) e João Costa Vargas (2020VARGAS, Joao H. Costa. Racismo não dá conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. Revista em Pauta, v. 18, n. 45, p. 16-26, 2020.), a demanda que a figura do “escravo” faz ao pensamento e à política é específica e difícil de analogizar, por conta da dimensão da violência em questão (sem razão ou limite, como escreveu Orlando Patterson (2008PATTERSON, Orlando. Escravidão e morte social: um estudo comparativo. Tradução de Fábio Duarte Joly. São Paulo: Edusp, 2008. 544 p.)) e a natureza da despossessão envolvida (não é a terra o que se perdeu, mas a própria possibilidade de registrar numa língua a perda). No livro recente de Frank WildersonWILDERSON III, Frank B. Afropessimismo. Tradução de Rogerio W. Galindo e Rosiane Correia de Freitas. São Paulo: Todavia, 2021. 400 p. sobre esses tópicos (Afropessimismo), argumenta-se inclusive que não há possibilidade de superação da escravidão dentro do mundo como ele existe, a categoria “humano” ou “mundo” dependendo, para ficar em pé, da categoria “escravo”. Por tudo isso, e tendo em mente também debates críticos e movimentos sociais dentro e fora das universidades, os estudos pós-coloniais no Brasil ganham quando colocam em primeiro plano a escravização, inclusive naquilo que sua violência tem de diferente da relação colonial (colonizador/colonizado).

Outra maneira de mapear essas questões, usando categorias que também ajudam a pensar as posições existentes no ambiente intelectual brasileiro, é por meio das diferentes tendências na recepção no Brasil da obra de alguém como Frantz Fanon, autor que pensou tanto a colonialidade quanto a escravidão, tema estudado por Deivison Faustino em Frantz Fanon e as encruzilhadasFAUSTINO, Deivison Mendes. Frantz Fanon e as encruzilhadas. São Paulo: Ubu Editora, 2022. 320 p.. Pensando nas diferentes concepções de transformação na obra de Fanon, e acompanhando uma hipótese desenvolvida no livro Subterranean Fanon: An Underground Theory of Radical ChangeARNALL, Gavin. Subterranean Fanon: An Underground Theory of Radical Change. New York: Columbia University Press, 2020. 304 p., de Gavin Arnall, esse mapeamento distinguiria, por um lado, uma teoria dialética da mudança, na qual a transformação se dá pelo encontro entre polos em oposição, cuja relação é de antagonismo mas também de interdependência. É a dinâmica desse antagonismo - entre colonizado e colonizador, por exemplo - que produzirá o novo. Assim, ao longo do processo de transformação, elementos do passado são negados e sua forma antiga é abolida, para ganharem uma nova forma, uma forma “elevada” na qual esses mesmos elementos são preservados. O que é importante aí é a ideia de que a mudança é também preservação, posto que elementos do passado teriam lugar no mundo transformado.

Por outro lado, ainda que não seja o que predomina nos escritos de Fanon, como observa Arnall, também é possível vislumbrar neles uma teoria não dialética da mudança. Nela, a ênfase é na interrupção e na destruição, não na preservação. Em vez de uma oposição contraditória, uma união entre opostos, há oposição sem unidade, um encontro entre forças radicalmente diferentes cuja única relação é de heterogeneidade e incomensurabilidade. Não é simples, claro, dizer o que seria essa “mudança não dialética”, inclusive por dificuldades linguísticas - que língua existente seria capaz de narrar essa ruptura? -, mas a teoria busca representar forças excludentes que só são capazes de imaginar a destruição do outro polo, sonhando com uma mudança que seria uma abertura gerada por uma ruptura radical com o que existe, permitindo o surgimento de algo tão novo que só poderá ser visto como desvinculado do anterior - por isso a importância de uma nova forma de escrita.

Ainda que essas duas concepções possam descrever conflitos que ocorrem no contexto colonial, como pensa Arnall, minha impressão é que é especialmente produtivo pensar essa distinção com base na diferença entre a relação colonial (a dialética colonizador/colonizado) e a não relação da escravidão, diante da qual a ideia de preservar elementos do passado é obscena e inaceitável. Na minha leitura, a tendência predominante na crítica brasileira foi a interdição até mesmo da especulação sobre o que seria uma transformação não dialética, com a correspondente naturalização da ideia de que o lugar da síntese é o lugar da crítica por excelência, talvez o único lugar possível para o pensamento crítico, fazendo da ironia, na qual se ocupa o discurso do poder para miná-lo desde seu interior, o modo discursivo preferencial. Assim, muitas vezes a crítica estabeleceu para si a tarefa de definir quais elementos da tradição mereceriam ser preservados, mesmo numa sociedade transformada, insistindo na necessidade de matizar a negação e reconhecer que a superação envolve também preservação (os motivos que levam a esse quadro foram examinados inclusive por Antonio Candido em estudos sobre a posição social do intelectual brasileiro).

Um aspecto relevante da questão é o modo como se desliza do que parece ser, pelo menos em parte, um desejo - a preservação da tradição - para um discurso neutro e descritivo, que assegura que não há outra possibilidade a não ser a conciliação. De novo, a pergunta mais produtiva parece ser o que isso - a vontade de preservação, e também a ambivalência em relação a essa vontade - revela a respeito do desejo da crítica literária nacional. Como já disse, a transculturação e o super-regionalismo não afirmam apenas que a negação das culturas subalternas é inevitável, mas que ela deve ser celebrada. Se outro tipo de transformação fosse possível, ela seria comemorada? A pulsão repressiva, evidenciada sempre que se reage de modo violento ao surgimento, ainda que incipiente, de um movimento que parece mais difícil de incorporar a um horizonte integrador, sugere que não. Aqui também, mais uma vez, as consequências para uma teoria das instituições são importantes, com cada uma dessas posturas gerando expectativas específicas.

Para terminar, um último esforço especulativo, com base num exemplo que talvez ajude a iluminar algumas dessas questões. No fragmento 32 da Minima MoraliaADORNO, Theodor W. Minima Moralia: Reflexões a partir da vida danificada. Tradução de Luiz Eduardo Bicca. São Paulo: Ática, 1992. 216 p., (“Os selvagens não são homens melhores”), Adorno assegura que, entre “os estudantes negros de economia política” e “os siameses em Oxford”, se encontra “um enorme respeito pelo estabelecido, pelo vigente, pelo reconhecido”, sentimento típico de “neófitos” e “epígonos”. Nos “recém-chegados”, continua Adorno, a tradição suscita “um absorvente e impaciente tipo de amor”. Em contrapartida, uma verdadeira disposição crítica “pressupõe experiência, memória histórica, nervosismo de pensamento e, acima de tudo, uma dose substancial de tédio”. É preciso ter a tradição dentro de si para odiá-la como se deve, conclui Adorno.

No fragmento, primeiro há a transformação do próprio lugar em norma, identificando a crítica imanente ao Ocidente como a única possível (são recém-chegados à “tradição” porque só existe uma; não é imaginável uma crítica que venha de outra tradição). A investida, porém, contra neófitos, epígonos e recém-chegados coloca em primeiro plano o tempo de contato com a cultura europeia, situando os atrasados numa corrida que é impossível vencer, até porque intelectuais pós-coloniais são imaginados como uma repetição ruim do conhecido (intelectuais europeus de origem pequeno-burguesa). Dada a escassez de elementos - quais “estudantes negros de economia política” são esses? quantos são esses “siameses em Oxford”? -, a confiança do diagnóstico surpreende, sugerindo que aqui também seria pertinente a pergunta sobre quanto a análise corresponde a um desejo do crítico.

Desenvolver o raciocínio da Minima MoraliaADORNO, Theodor W. Minima Moralia: Reflexões a partir da vida danificada. Tradução de Luiz Eduardo Bicca. São Paulo: Ática, 1992. 216 p.levaria à conclusão de que, no contexto educacional, o ato político-pedagógico mais responsável é fomentar a interiorização da tradição nas alunas e nos alunos, esses eternos recém-chegados. Depois, no momento certo, poderão vir a odiá-la adequadamente, com um ódio imanente, não um ódio que venha de fora da Europa. Então, o ódio também seria ensinado? Veremos. Porque há de se esperar que amor e ódio também se embaralharão nas mentes e corpos dos alunos, como certamente é o caso com professores e críticos experientes, que dedicaram vidas inteiras à tradição. Entre outros aspectos, o que interessa nessa conjuntura é que a premissa da obrigação da interiorização da tradição vai permitir uma aliança com a crítica cultural conservadora, com aqueles que simplesmente amam a tradição, sem ódio, e exigem isso dos recém-chegados. Além da adesão à tradição, o desprezo pelos forasteiros forja a união entre os dois grupos.

Para indicar como argumentos semelhantes são reciclados em discussões sobre cultura latino-americana, lembro aqui rapidamente uma versão dessas teses apresentada por Roberto Schwarz num debate que aconteceu na Venezuela em 1982 e foi registrado no livro Hacia una historia de la literatura latinoamericanaPIZARRO, Ana (org.). Hacia una historia de la literatura latinoamericana. México: El Colegio de México, 1987. 194 p., de Ana Pizarro. Após Cornejo Polar apresentar um texto sobre a heterogeneidade andina, no qual define como um “mal-entendido” a aplicação do conceito europeu de literatura a espaços não literários, Schwarz se manifesta reconhecendo que é verdade que na região se privilegiou a cultura erudita, reforçando um preconceito que consolidou a ordem social. No entanto, preocupa-se com o que chama de “democratismo”, pois, uma vez suprimida a primazia do culto, estaríamos ocultando a realidade da dominação social. Assim, a demonstração e confirmação dessa primazia mais uma vez se torna tarefa crítica e política. No caso de estudiosos e escritores, o dever é participar de um projeto de integração epistemológica, revelando “que coisas reveladoras sobre a história mundial acontecem aqui” na América Latina também. Essa “tentativa de interpretar com a máxima energia conceitual, imaginativa, o presente, tem seu verdadeiro lugar na literatura culta. Isso não pode ser esperado dos outros setores do imaginário social - o que não os diminui em nada - mas eles não vivem sob o signo da historicidade.” Em vez disso, lamenta, “nos trancamos na questão da identidade, que tem muita base porque são literaturas que estão em estado de formação”.

AMRM:Em A literatura em questão, há um breve comentário sobre o gênero discursivo “entrevista”: “esse gênero comumente entendido justamente como a oportunidade de esclarecimento (daquilo que se escreveu, por exemplo)” (NATALI, 2020NATALI, Marcos P. A literatura em questão: a responsabilidade da instituição literária. Campinas: Editora da Unicamp, 2020. 280 p., p. 246). Você teria algo a comentar sobre esta presente entrevista tendo em conta questionáveis funções e expectativas que se associam ao gênero?

MN: Deleuze escreveu certa vez que seu objetivo não era responder às perguntas colocadas, mas escapar delas. A observação surge quando ele se refere à dificuldade que sentia quando lhe pediam que “se explicasse” - que explicasse o próprio trabalho, que explicasse seu pensamento, como se esses já estivessem estabilizados e fixados, quando o que ele desejava era formular novas perguntas, perguntas cada vez mais difíceis, com vistas ao futuro, indicando que ainda há muito a estudar.

No questionamento do gênero da entrevista como esclarecimento, há preocupação com a expectativa de que nesse gênero - como, aliás, no memorial acadêmico, outro gênero convencionalmente entendido como lugar para a explicação de si - haveria a exposição transparente da verdade, e que, agora sim, finalmente, tudo será esclarecido, diminuindo a atenção a aspectos como o estilo, a forma, a contingência e a dúvida. No caso de entrevistas orais, há ainda a expectativa de que a fala será mais esclarecedora e mais reveladora do que a escrita, algo que está longe de ser evidente. Em reflexão sobre a sala de aula, no livro O mestre ignoranteRANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Tradução de L. do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. 192 p., Rancière elabora esse ponto, questionando a confiança de que a explicação oral do mestre será melhor - mais clara, mais compreensível - que o texto lido.

Há sempre estranhamento, certamente, na experiência de ver refletida de volta uma leitura daquilo que escrevemos, ainda que o estranhamento não seja menor do que aquele produzido pela experiência de ler, eu mesmo, aquilo que um dia escrevi. De todo modo, não é preciso entender a pergunta e a entrevista como a demanda por uma explicação - ou, pior, por uma confissão. Elas também podem servir como convites para a especulação, para o exercício de tentar pensar contra si mesmo, dando voltas em torno daquilo que permanece oculto no meu próprio texto, mesmo quando lido por mim. Quando se trata de uma entrevista feita a partir de textos já publicados, o desafio é também manter aberto aquilo que, nos textos, se mantinha aberto, insistindo na ideia de que algo permanece a ser pensado.

Pensei esta entrevista nesses termos, entendendo as perguntas como oportunidades para desdobrar ou retomar pontos colocados em textos publicados, de modo que meu impulso ao terminar é apenas o de agradecer - o convite, as perguntas, a leitura cuidadosa, além de voltar a expressar a surpresa que sempre acompanha a descoberta de que algo que escrevi, um dia, foi lido por alguém.

References

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Notas

  • *
    Questões propostas por Anita MartinsRodrigues de Moraes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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