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Resumos

Neste artigo a autora analisa o sistema onomástico katukina. Os Katukina, a exemplo dos demais grupos pano já descritos (Matis, Kaxinawá, Yaminawa), associam o sistema de parentesco ao sistema onomástico e repõem em circulação o nome de seus ancestrais. No entanto, a despeito das semelhanças que os Katukina apresentam em relação aos demais grupos de sua família lingüística, é possível encontrar pontos divergentes entre eles. Há uma flagrante divergência, em particular, na transmissão alternada e cruzada dos nomes pessoais, visto que os demais pano realizam-na de forma alternada e paralela. A partir de uma abordagem comparativa preliminar, a autora explora a possibilidade de que tais diferenças no sistema onomástico estejam relacionadas a diferenças no sistema de parentesco.

Katukina; Pano; onomástica; sistema de parentesco


In this paper the author analyzes the Katukina onomastic system. The Katukina, like the other panoan groups already described (Matis, Kaxinawá, Yaminawa), associate the onomastic system to the kinship system and replace in circulation the names of their ancestors. However, in spite of the similarities that the Katukina exhibit in relation to the other groups of their linguistic family, it is possible to find divergences among them. There is, particularly, a flagrant divergence in the alternate and cross transmission of the personal names, since the other panoans present an alternate and parallel transmission. Using a preliminary comparative approach, the author investigates the hypothesis that such divergences may be found both in the onomastic system and kinship system.

Katukina; Panoan; onomastics; kinship system


A onomástica katukina é pano?1 1 Título inspirado em Erikson (1993a): "A onomástica matis é amazônica?", que além da "letra", inspirou também o "espírito" deste artigo, ao concluir que uma resposta mais completa a tal questão aguardava novos estudos sobre os grupos pano que ampliassem a perspectiva comparativa.

Edilene Coffaci de Lima2 2 Professora Assistente do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná e doutoranda em Antropologia Social na Universidade de São Paulo.

RESUMO: Neste artigo a autora analisa o sistema onomástico katukina. Os Katukina, a exemplo dos demais grupos pano já descritos (Matis, Kaxinawá, Yaminawa), associam o sistema de parentesco ao sistema onomástico e repõem em circulação o nome de seus ancestrais. No entanto, a despeito das semelhanças que os Katukina apresentam em relação aos demais grupos de sua família lingüística, é possível encontrar pontos divergentes entre eles. Há uma flagrante divergência, em particular, na transmissão alternada e cruzada dos nomes pessoais, visto que os demais pano realizam-na de forma alternada e paralela. A partir de uma abordagem comparativa preliminar, a autora explora a possibilidade de que tais diferenças no sistema onomástico estejam relacionadas a diferenças no sistema de parentesco.

PALAVRAS-CHAVE: Katukina, Pano, onomástica, sistema de parentesco.

Os Katukina falam uma língua da família lingüística pano e têm uma população de aproximadamente 320 indivíduos, distribuídos em dois grupos locais, na área indígena do rio Gregório e na área indígena do rio Campinas, no estado do Acre. Eles serão aqui chamados de "Katukina", termo que, embora não constitua sua auto-denominação, é o usual para referirem-se a si mesmos enquanto um grupo único. As únicas auto-denominações existentes e amplamente aceitas referem-se aos seis clãs nos quais os Katukina se dividem: Varinawa, Kamanawa, Satanawa, Waninawa, Nainawa e Numanawa.

Ao longo dos últimos vinte anos, os estudos sobre os sistemas onomásticos têm ocupado um lugar destacado na Etnologia sul-americana (Lopes da Silva, 1984 e 1986; Ladeira, 1982; Lea, 1992; Gonçalves, 1993). Os estudos sobre a onomástica dos grupos da família lingüística pano incorporaram-se nesse quadro recentemente e fizeram emergir um sistema, nos termos propostos por Viveiros de Castro (1986:383-4), "centrípeto" ou "dialético", na medida em que os nomes vêm de dentro da sociedade, designam relações sociais e apresentam uma função eminentemente classificatória; em oposição aos sistemas "canibais" ou "exonímicos", nos quais os nomes vêm de fora (mortos, deuses, espíritos) e enfatizam a história pessoal e a individualização.

Este artigo3 3 Este artigo é uma versão, com modificações e acréscimos, da segunda seção do segundo capítulo da dissertação de mestrado em Antropologia Social que apresentei na FFLCH/USP, sob a orientação da Profª Drª Manuela Carneiro da Cunha. Os dados foram coletados em nove meses de pesquisa de campo na aldeia Katukina do rio Campinas, entre 1991 e 1993, com o apoio do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo (NHII). Esta pesquisa contou ainda com o auxílio financeiro fornecido pela CAPES, FAPESP e FORD/ANPOCS. Esta versão foi apresentada no grupo de trabalho "Questões Atuais da Etnologia Indígena da América do Sul Tropical", coordenado por Márcio Silva e Marco Antônio Gonçalves, na XX Reunião Brasileira de Antropologia (abril/96), em Salvador-BA. procura mostrar os resultados de uma pesquisa sobre a organização social katukina e discute, especificamente, o seu sistema onomástico. Ancorados no ideal de que os nomes ancestrais devem sempre ser atualizados, os Katukina apresentam várias formas de transmissão dos nomes próprios: através de gerações alternadas e adjacentes, de forma paralela e cruzada. Indissociáveis um do outro entre vários grupos pano, o sistema de parentesco e o sistema onomástico apresentam também essa característica entre os Katukina, mas com contrastes significativos que deverão ser explorados aqui. Pois, a despeito de todas as diferenças que os Katukina apresentam em relação aos demais grupos de sua família lingüística, é possível encontrar pontos em comum entre eles. De tal forma que, seja pela semelhança ou pelo contraste, serão feitas comparações com os grupos aos quais os Katukina são lingüisticamente aparentados. Deve-se adiantar, entretanto, que as comparações visam mais situar os Katukina em relação aos demais grupos pano do que estabelecer um quadro comparativo completo e generalizante.

A reposição dos nomes ancestrais

Chama a atenção entre os Katukina a freqüência com que fazem uso de seus nomes próprios. Como vocativos ou referências, os nomes são tão usuais quanto os termos de parentesco. Entre as poucas restrições existentes relativas ao uso dos nomes pessoais, destaca-se um princípio hierárquico e a interdição à auto-evocação do nome pessoal. Para as pessoas das gerações ascendentes a ego, sobretudo pais e avós paternos e maternos, são usados os termos de parentesco, ao invés dos nomes próprios. Mais que uma ascensão exclusivamente geracional, essas pessoas têm uma ascensão moral sobre as pessoas mais jovens e o uso dos termos de parentesco denota então uma relação de respeito, que não se exprime diretamente em formalidades. Mesmo em contextos informais, até jocosos, um jovem dirige-se pelo termo de parentesco às pessoas das gerações superiores à sua, sobretudo se um consangüíneo. Por sua vez, as pessoas das gerações ascendentes usam com maior freqüência os nomes próprios às pessoas das gerações descendentes.

Entre as pessoas do mesmo nível geracional é facultativo o uso dos termos de parentesco ou nomes próprios. Os termos de parentesco entre irmãos fazem distinção de idade ¾ otxi (elB), txitxo (elZ) e txo'o (yB e yZ) ¾ e denotam mesmo uma certa hierarquia. Assim, se quiser que uma irmã mais nova vá buscar água no igarapé, a irmã mais velha deve chamá-la pelo termo de parentesco, lembrando-lhe assim que deve cooperar com ela que, neste caso, certamente deverá estar ocupada com um outro afazer doméstico. De qualquer forma, não há um esquema tão rígido e as pessoas da mesma geração normalmente estão livres para usar o nome ou o termo de parentesco, aquele que julgar mais apropriado na ocasião.

Os Katukina usam dois tipos de nome: em sua própria língua, hane, e em português, nawã hane. A atribuição de um nome do segundo tipo não segue nenhum padrão pré-estabelecido e qualquer pessoa pode sugerir um nome em português para uma criança recém-nascida, que será bem recebido principalmente se for inédito na aldeia. Os nomes em português são atribuídos oficialmente no dia em que o padre visita a aldeia e realiza os batismos. Mas, como as visitas do padre não são muito regulares, ocorre às vezes de uma criança ter vários nomes em português, trocados sucessivamente até a consagração do batismo, após o qual um deles passa a ser definitivo. Na aldeia os nomes em português são usados ocasionalmente. Eles são mais importantes quando os Katukina têm que estabelecer relações com os brancos, na maior parte das vezes, fora da aldeia.

As concepções katukina acerca dos dois tipos de nome, hane e nawã hane, são diversas. Certa vez uma criança foi batizada e poucos dias depois morreu. Quando o padre voltou à aldeia para entregar os batistérios das crianças, a mãe da menina morta, Sharã, recebeu o documento e no mesmo momento o rasgou. Posteriormente explicou seu ato: "se não tenho mais minha filha, não quero guardar o seu nome".

À parte a dramaticidade do fato e o costume de destruir os pertences de uma pessoa morta, a declaração de Sharã remete ao uso oposto que os Katukina fazem dos dois tipos de nome. Os nomes em português são tidos como de duração efêmera e podem ser perdidos, não são tidos como um valor. Já os nomes em Katukina, como abordarei adiante, devem ser preservados e após a morte das pessoas que os usavam devem ser repassados a outras e assim sucessivamente, sem que desapareçam. Em outras palavras, eles são "guardados".

Os nomes (hane), conforme os Katukina, ajudam a viver mais, "não ter doenças e aturar para morrer"4 4 Neste sentido, é interessante estabelecer um paralelo com os Matis, cuja etimologia da palavra nomear ( kwèmurek) remete a "engendrar", significando "dar vida" (Erikson, 1993a:324). . Em contrapartida, não ter nome algum deixa o corpo frágil, vulnerável às doenças, à feitiçaria e, conseqüentemente, à morte. Isto ajuda a explicar porque algumas crianças recém-nascidas são rapidamente nomeadas, enquanto outras permanecem até dois anos de idade sem que qualquer nome lhes seja atribuído. As últimas são filhos indesejáveis e atualmente, quando o infanticídio não é mais praticado, a não atribuição de um nome se torna uma forma de expô-los indiretamente à morte5 5 Erikson (1993a:334, n.1) afirma que, entre os Matis, após a nomeação as possibilidades de infanticídio são suspensas. . Um garoto cego permaneceu mais de dois anos sem portar qualquer nome e várias pessoas me disseram que seria preferível que ele morresse, uma vez que precisaria por toda a vida de ajuda para se locomover, comer e jamais poderia trabalhar, exigindo assim completa dedicação de sua mãe. Por outro lado, as crianças desejadas e que nasceram de um parto difícil tinham imediatamente um nome escolhido6 6 É interessante observar que enquanto os Mebengokre (Lea, 1992:274) e Xavante (Lopes da Silva, 1986: 67-8), ambos povos jê, expressam que os bebês não podem ter muitos nomes sem colocar suas vidas em risco, os Katukina expressam justamente o contrário, ou seja, os bebês estão sob risco quando não têm nomes. .

Há nomes masculinos e femininos. Alguns deles referem-se a animais, plantas, fenômenos naturais e qualidades. Assim, para citar alguns exemplos, Shere significa periquito, Mani é banana, Kana é relâmpago e Koro é roxo. Outros não têm qualquer referência direta e são usados exclusivamente como nomes pessoais. A liberdade de uso dos nomes é tamanha que, às vezes, algumas mulheres katukina, por brincadeira, apontavam para alguém e me diziam em português: "aquela ali é dente (sheta)", "a outra é cabeça (mapo)" e assim por diante. A tradução dos nomes não parecia ofender ninguém e todos riam com a situação inusitada, mas, sem dúvida, ficavam em melhor posição as pessoas cujos nomes não remetiam a nenhum significado explícito ¾ as quais, quase sempre, iniciavam tal brincadeira.

A atribuição de um nome pessoal é algo simples e nenhuma cerimônia ou ritual é realizado: tendo escolhido o nome que darão a seu filho, basta os pais começarem a usá-lo. O nome recebido na infância é definitivo.

A escolha do nome segue a norma da ambi-lateralidade, ou seja, pai e mãe são quem nomeiam seus filhos, tanto do sexo masculino quanto do feminino. A prática onomástica katukina é bastante variada e, dentre as alternativas existentes, só não é possível um pai ou uma mãe atribuir seu próprio nome ao filho ou o nome de um filho morto. É difícil estabelecer uma regra única e inequívoca, pois todos afirmam que têm que transmitir os nomes de suas parentelas aos filhos, assegurando assim que tais nomes nunca deixem de existir. Este ideal é expresso na fórmula: "os nomes se repetem, não podem se perder". Generalizante em essência, esta fórmula faz com que os nomes dos ancestrais, vivos ou mortos, sejam, cedo ou tarde, atualizados.

Neste ponto sobressai-se a principal diferença da transmissão dos nomes katukina em relação aos demais grupos pano, mas antes de abordá-la é necessário dar uma rápida descrição da terminologia de parentesco.

O vocabulário de parentesco katukina possui uma estrutura dravidiana, ou seja, as pessoas são classificadas a partir de três critérios básicos: nível geracional, gênero e distinção entre parentes consangüíneos e afins (Dumont, 1975[1953]). Essa estrutura que é comum também aos grupos pano interfluviais, tais como Matis (Erikson, 1990), Matsés (Fields e Merrifield, 1980), Marubo (Melatti, 1977), Kaxinawá (Kensinger, 1985 e McCallum, 1989) e Yaminawa (Townsley, 1988; Calávia Saez, 1995). Entretanto, enquanto estes grupos pano estendem a distinção entre consangüíneos e afins às duas gerações distais, os Katukina mantêm a bifurcação exclusivamente nas três gerações centrais e neutralizam a distinção terminológica, equacionando FF com MF e MM com FM. Por outro lado, os Matis, Matsés, Marubo, Kaxinawá e Yaminawa combinam uma terminologia de referência dravidiana com uma terminologia vocativa "australiana" (kariera), isto é, todos os termos de parentesco são recíprocos entre as gerações alternadas7 7 Melatti (1977) foi o primeiro a sugerir a correspondência entre os sistemas de parentesco pano com o kariera. ; ao passo que os Katukina não realizam tal combinação.

A existência entre os Katukina de apenas dois termos para a segunda geração ascendente é o que faz a diferença, pois nos demais grupos pano a distinção entre consangüíneos e afins, presente em todos os níveis geracionais, vê-se duplicada na onomástica e o pai transmite a seus filhos o nome do FF e do FFB e a mãe transmite às suas filhas o nome da MM e da MMZ. De tal forma que um determinado nome presente na geração -2, repete-se nas gerações 0 (zero) e 2, e qualquer outro nome presente na geração -3, repete-se nas gerações -1 e 3. Isto faz dos nomes pessoais verdadeiros guias de conduta, pois possibilitam determinar exatamente o lugar das pessoas no sistema de parentesco8 8 Certamente esta afirmação deve ser entendida apenas em termos formais, uma vez que alguns trabalhos recentes têm destacado que os membros destes grupos não são completamente cientes do potencial classificatório de seus sistemas onomásticos, conforme Calávia Saez (1995:58) e Erikson (1993a:332). . Exposto brevemente o modelo onomástico pano, retornemos agora às modalidades de transmissão dos nomes pessoais katukina.

Falar da dificuldade em definir uma regra única não significa que não possamos observar alguma regularidade nas formas de nominação. São basicamente duas as formas de transmissão dos nomes pessoais: (i) através de gerações alternadas, de forma paralela ou cruzada; ou seja, no caso de um menino ele terá o nome de um txaitxo (FF, FFB, FMB, MFB, MMB), no caso de uma menina, ela terá o nome de uma itxa (MM, MMZ, FMZ, MFZ, FFZ); e (ii) através de gerações ímpares, -3 e -1, transmitidos inclusive de forma cruzada, ou seja, alguns meninos têm o nome do MB e algumas meninas o nome da FZ. A cada novo filho os pais decidem qual das alternativas aplicar, de tal modo que ambas as formas de nominação são encontradas em uma mesma família nuclear ¾ como os exemplos adiante ilustrarão. A transmissão dos nomes através de gerações alternadas é predominante.

Qualquer que seja a forma de transmissão, observa-se um embate acirrado entre pai e mãe para impor os nomes de suas parentelas aos filhos de ambos os sexos. Há um certo "cabo de guerra" entre eles que pode ser resolvido de duas maneiras: ou atribuem simultaneamente um nome ao filho que, neste caso, passa a ter dois nomes9 9 A título metodológico devo mencionar que soube de algumas pessoas que eram ditas terem mais de dois nomes, mas não consegui determinar quem eram os epônimos nem os nominadores. Nestes casos, um certo casuísmo prevalecia. As pessoas afirmavam na maior parte das vezes terem um só nome. Mas, a partir de terceiros ficava sabendo que tinham mais um. Às vezes, as mesmas pessoas que me informavam sobre os nomes alheios diziam elas próprias terem um só nome. Outras pessoas, jovens principalmente, diziam ter mais de um nome, até três, mas recorriam a seus pais para saberem quais eram os outros, pois elas próprias os desconheciam. Numa situação extrema, soube de uma mulher que tinha cinco nomes, embora fosse conhecida pelo apelido. Tendo durante muito tempo procurado nomes que nunca encontrava, e se encontrava não conseguia checar a informação, decidi deter-me aqui apenas aos nomes que as próprias pessoas diziam ter e que eram conhecidos das demais. ; ou encontram uma "saída negociada" ¾ algo como uma barganha ¾, quando então se revezam na atribuição do nome aos filhos. De tal forma que, nessa segunda alternativa, o pai escolhe o nome do primeiro filho, a mãe escolhe o nome do segundo, depois o pai escolhe o nome da primeira filha e assim por diante.

A disputa entre pai e mãe pelo nome do filho começa antes mesmo da criança nascer. Kako, um rapaz recém-casado, cuja esposa sequer estava grávida, disse-me certa vez que daria a seu filho o nome de seu pai. Perguntei o que sua mulher achava da idéia e ele respondeu que ela nem sabia de seu desejo e que a escolha já estava feita e era definitiva.

Normalmente, quando uma criança tem dois nomes, um deles prevalece sobre o outro na esfera pública e as pessoas tornam-se conhecidas das outras apenas por um dos nomes10 10 Townsley (1988) observou que, embora o sistema onomástico yaminawa seja paralelo, os pais podem também transmitir um nome aos filhos do sexo oposto. Mas os homens transmitem às suas filhas o nome da FZ e as mulheres transmitem aos filhos o nome do MB — como são alguns nomes matis (Erikson, 1993a:325). De forma que os nomes continuam obedecendo ao princípio das patri-metades, sem alterar em nada o caráter sociocêntrico do sistema. Segundo o autor, os nomes transmitidos pelos pais aos filhos do sexo oposto servem apenas para distinguir as pessoas das outras que tenham o mesmo nome. Townsley ainda observa que há, de fato, uma pretensão dos pais de atraírem seus filhos, de ambos os sexos, para seu círculo de parentes. Entretanto, "se eles estivessem simplesmente obedecendo aos ditames da consangüinidade bilateral, os homens dariam a suas filhas os nomes de suas mães e as mulheres dariam a seus filhos os nomes de seus pais" (:59-60) — como muitas vezes fazem os katukina. . Na esfera privada, entretanto, pai e mãe costumam usar o nome que transmitiu a seu filho. Assim, Patxuri Txuripa era chamada apenas pelo primeiro nome por sua mãe e pelo segundo por seu pai. Patxuri era o nome que tinha a MM e Txuripa, o nome da FM. O primeiro nome prevaleceu sobre o outro no domínio público, mas o contrário também ocorre e algumas pessoas são conhecidas pelo nome da FM, se mulheres, ou do MF, se homens.

Vale observar ainda que se um homem dá a seu filho o nome de seu próprio pai, ele poderá chamá-lo, durante a infância, por papa (F) ¾ ou, quando prefere falar em português, por "paizinho" ¾, que é o mesmo termo que usa para seu próprio pai. A irmã do pai fará o mesmo, ou seja, chamará seu sobrinho por papa. Da mesma maneira, uma mulher chamará sua filha de ewa (M), se tiver escolhido para ela o nome de sua mãe. Ora, neste caso, trata-se exatamente do que fazem os grupos pano de terminologia "australiana", que citei acima. Contudo, a criança pode ter dois nomes e se a mãe tiver transmitido ao filho o nome de seu próprio pai, ela também o chamará por papa, ainda que discretamente, no domínio doméstico, nos momentos em que estiver a sós com seu filho. De maneira geral, um pai somente chama seu filho por papa e uma mãe só chama sua filha por ewa se forem os nomes do FF e da MM, respectivamente, que se tornaram públicos. Quando isto não acontece eles os chamam pelo termo de parentesco ou pelo nome que se tornou público, como é mais comum.

Motivações e afeições individuais freqüentemente intervêm nas formas de nomeação dos Katukina, donde resulta a não reprodução mecânica dos nomes dos ancestrais. Estabelecer a onomástica katukina torna-se então uma tarefa melindrosa, na qual não só a genealogia, mas também as histórias de vida dos indivíduos são fundamentais para conhecer os critérios que orientam a escolha dos nomes pessoais. Sharã, por exemplo, escolheu para um de seus filhos o nome do irmão de sua mãe, do koka (MB), mas quando indicava a ligação genealógica, apontava-o sempre como seu pai e não como seu tio materno (Diagrama 1). Esta explicação deve-se ao fato de que ela se tornou órfã de pai e mãe ainda na infância e seu tio materno a adotou e a criou até que se casasse. Os acasos da vida fizeram então com que Sharã escolhesse para seu filho o nome do MB, seu pai social, em detrimento do nome de seu pai biológico. Não obstante, ambos estejam na posição de txaitxo da criança, dado que os Katukina equacionam FF com MF.

Uma vez que o casamento de primos cruzados é considerado o ideal entre os Katukina, é possível argumentar, a partir do exemplo acima, que a escolha de Sharã do nome do MB para seu filho é compatível com a transmissão paralela e alternada verificada entre os demais grupos pano, pois o irmão da mãe é potencialmente o seu sogro, isto é, o pai do pai de seus filhos11 11 É com este argumento que Erikson (1993a:325) recusa caracterizar como desviante a escolha do nome do MMB para um menino entre os Matis. . Entretanto, sustento que os Katukina efetivamente não fazem esse cálculo e estão simplesmente preocupados com a preservação de seu estoque de nomes pessoais. A transmissão de nomes provenientes de gerações ímpares, que veremos adiante, reforçará este argumento.

A colaboração seminal, que tantas vezes os Katukina omitem aos estranhos, tem também repercussões na onomástica. Assim, é necessário saber quantos e quais são os pais de uma pessoa, pois homens e mulheres escolhem o nome de seus pais para os seus filhos, sejam eles quantos forem, irmãos ou não12 12 Quando dois ou mais irmãos mantiveram relações sexuais com a mesma mulher, imediatamente antes ou após o anúncio da gravidez, eles serão considerados simultaneamente colaboradores seminais e pais classificatórios, havendo, portanto, coincidência entre ambas categorias. Entretanto, se os colaboradores seminais não são irmãos ¾ o que é mais raro e, neste caso, não deve ter sido respeitada a preferência por relações sexuais (e conseqüentemente por casamentos) entre primos cruzados ¾ as categorias devem ser discriminadas: serão colaboradores seminais apenas os homens que mantiveram relações sexuais, durante a gravidez, com a mesma mulher, a mãe da criança, e pais classificatórios serão os irmãos da mulher e de todos os colaboradores seminais, isto é, os pais (genitores) da criança. . Se um homem, por exemplo, conseguir ascender sobre sua mulher na disputa pelo nome do filho, ele pode dar ao seu primeiro filho o nome de um de seus pais e depois o nome do outro pai ao segundo filho. No caso deste tipo que conheci, Roa deu ao primogênito o nome de Rekã e posteriormente, ao segundo filho, deu o nome de Shere, ambos eram os nomes de seus dois pais. A mulher de Roa, por sua vez, teve prioridade na escolha dos nomes de suas filhas e escolheu para uma delas o nome de sua mãe (M) e para a outra o nome da irmã de sua mãe (MZ).

Os nomes escolhidos por Txoki para os filhos que teve em seu primeiro casamento fornecem também um bom exemplo dos "malabarismos" que os Katukina se permitem para repor em circulação o nome dos ancestrais (Diagrama 2). Para os três primeiros filhos ele e sua ex-mulher, Hayá, revezaram-se na escolha dos nomes. Assim, ao primeiro filho foi atribuído o nome do MF, ao segundo o nome do FF e à primeira filha foi escolhido o nome da MM. Até aqui o casal privilegiou a alternância de gerações. Entretanto, para uma outra filha Txoki escolheu o nome de sua irmã. Ele justificou-se argumentando que este nome iria "se perder" caso não o "repetisse" em sua família, pois sua irmã morreu sem que tivesse tido filhos que pudessem transmiti-lo a seus netos. Ademais, ele não queria transmitir o nome de sua mãe, pois um de seus irmãos adiantou-se nesta tarefa transmitindo-o à sua própria filha e assim já estava garantido a "sobrevivência" de tal nome.

Há poucos casos de transmissão dos nomes pessoais a partir de gerações ímpares. Dois fatores ajudam a elucidá-los. Primeiro, quando o nome transmitido a uma criança provém da mesma geração do pai ou da mãe (FZ, FB, MB e MZ), esta escolha é invariavelmente motivada pela morte prematura da pessoa que portava tal nome e pelo desejo dos irmãos de colocá-lo novamente em circulação, como fez Txoki. Segundo, quando o nome atribuído a uma criança provém da terceira geração ascendente (MMM, FFF, MMF, MFF, MFM, FMF, etc), não foram os pais que escolheram os nomes e sim os avós paternos ou maternos. Aqui a escolha do nome do filho é transferida a pessoas que na maior parte das vezes têm seus próprios nomes transmitidos. Por conseguinte, estas atribuem ao neto um nome que poderia ter transmitido a seus próprios filhos, mas que por alguma razão não o fizeram.

O resultado, que contraria completamente o modelo onomástico pano exposto anteriormente, é a existência de homonímia entre primos cruzados e também entre gerações adjacentes. Assim, no diagrama 3 é possível observar que Kana deu para suas filhas o nome da MM e da MMZ, Mami e Yaka, transmitindo-os, portanto, paralela e alternadamente. Por sua vez, Mae, irmão classificatório de Kana, escolheu para sua filha o nome de sua mãe, novamente Yaka, o que gerou homonímia entre primas cruzadas. E, mais tarde, Mae escolheu para a filha de sua filha o nome da irmã de sua mãe (MFMZ), novamente Mami, de forma que mãe e filha têm nomes originários da mesma geração, de duas irmãs.

De maneira correlata, no diagrama 4, Mapo escolheu para seu filho o nome de seu irmão morto, Mame, cuja filha, Txuripa, também escolheu para seu filho. O que resulta não só em homonímia em gerações adjacentes, mas também, tendo em mente ainda o modelo pano e o casamento ideal entre primos cruzados, em um "incesto onomástico"13 13 Empresto a expressão de Viveiros de Castro (1986:389), mas alterando o seu sentido original, pois ele a usou para tratar da troca de nomes entre irmãos cruzados nos grupos Jê. , uma vez que o cônjuge potencial de Txuripa tem o nome de seu próprio pai. Deixando, por um momento, o modelo pano de lado, se um casamento desse tipo fosse concretizado (desconheço qualquer caso, mas meus dados não permitem afirmar que se trata realmente de um impedimento), seria possível conjecturar que os pais não pudessem escolher para o filho o nome de Mame, visto que não podem atribuir seus próprios nomes aos filhos ¾ o que seria o caso.

Os exemplos acima permitem reforçar a afirmação de que na escolha e transmissão dos nomes ancestrais os Katukina agem mais com a intenção de preservar o acervo onomástico do que de fazer repetir ciclicamente os papéis e posições terminológicas. E, nesse sentido, revelam preocupações muito mais históricas que sociológicas14 14 As preocupações dos Katukina com a preservação de seu estoque de nomes pessoais são parecidas com aquelas que apresentam os Yaminawa, estudados por Calávia Saez (1995), pois como afirma o autor: "O conhecimento extensivo dos nomes pessoais é de fato patrimônio dos mais velhos, é mais erudição histórica do que guia de conduta. Na nova geração de Yaminawa se repetem os nomes do passado, mas não a sociedade do passado: a afirmação yaminawa de que `o nome não se perde' é expressão mais de uma vontade do que constatação de um mecanismo" (:60). A afirmação de Calávia Saez aplica-se estritamente aos Katukina, com a ressalva de que os Yaminawa transmitem os nomes pessoais alternada e paralelamente, portanto, de acordo com o modelo pano aqui discutido. .

A existência de homônimos repercute no sistema terminológico apenas quando a transmissão do nome pessoal é feita paralela e alternadamente, ou seja, naqueles casos em que o pai transmite a seu filho o nome de seu próprio pai ou a mãe transmite a sua filha o nome de sua própria mãe, o que faz com que os nominadores chamem seu pai e seu filho ou sua mãe e sua filha, pelos mesmos termos de parentesco. Já os casos de homonímia em gerações adjacentes não produzem qualquer eco no sistema terminológico. Nesses casos, mãe e filha (como no diagrama 3) e tio materno e sobrinho (como no diagrama 4) têm sempre como referência as relações de parentesco, antes que os nomes pessoais. Neste sentido, é importante ressaltar que, no momento em que comentavam a respeito dos nomes próprios, as pessoas adotavam sempre a perspectiva do nominador e não a do epônimo ou do nominado. Ninguém dizia "eu tenho o nome do koka", mas "eu tenho o nome do irmão de minha mãe". Um homem que tem um filho com o nome do MF diz "meu filho tem o nome do pai da mãe dele", e não "meu filho tem o nome de meu sogro". Em todos os casos, sobressai o cálculo onomástico do nominador. Com exceção daqueles casos citados no início desse parágrafo, os Katukina destacam o caráter egocêntrico de sua onomástica e atualizam os nomes, mas não as posições terminológicas. Impossível, então, não dizer que algumas pessoas de fato obtêm sucesso em sua lógica "salvacionista" dos nomes pessoais. A transmissão dos nomes ancestrais parece encerrar-se em si mesma.

O cálculo egocêntrico da onomástica dos Katukina ficou claro também na aproximação entre eles e os Marubo. Mani, que em 1992 esteve por dois meses entre os Marubo do rio Ituí, disse que quando chegou a uma das aldeias marubo conheceu uma mulher que o chamava de irmão mais novo, devido ao fato dele ser homônimo do verdadeiro irmão dela. Ele disse ainda que ela estranhou o fato dele ser varinawa, pois Mani é, entre os Marubo, um nome de satanawa, como ela própria. De qualquer forma, ela acabou fiando-se no nome e Mani arrumou então uma "irmã" marubo e passou a maior parte do tempo em que esteve lá na maloca em que ela morava. Aumentou sua parentela e parece ter desempenhado bem o papel de koka (MB) dos filhos de sua "irmã"15 15 Tanto assim que ao voltar para a aldeia katukina do Campinas, Mani levou Matxumbá, seu "sobrinho", junto com ele, para tentar casá-lo com sua filha. Sobre os desdobramentos desta aproximação dos Katukina com os Marubo, ver Coffaci de Lima (1994). . Convém destacar também que Mani não escondeu sua admiração e afirmou que desconhecia este papel categorizador dos nomes próprios. Ao final, afirmou que os Katukina estão usando "leis" erradas e lamentou não ter filhos pequenos para poder transmitir os nomes "corretos". Mesmo assim, quando lhe perguntei quais nomes seriam, ele não soube responder.

O fato da mulher marubo ter sido capaz de identificar pelo nome pessoal o laço de parentesco que a relacionava com Mani é particularmente importante, uma vez que revela como a onomástica katukina difere daquela dos outros grupos da mesma família lingüística, cujo cálculo é sociocentrado. Entre os grupos pano que apresentam uma terminologia de parentesco "australiana", os nomes pessoais são "resumos" (Erikson, 1993a:327) das relações de parentesco, de tal forma que, como observou Erikson (1993b:48), em um "primeiro encontro, e mesmo na ausência de ancestrais comuns, dois desconhecidos podem determinar imediatamente, pela onomástica, qual o laço de parentesco putativo que os une". Foi desta maneira que a mulher Marubo reconheceu Mani como seu irmão, que embora desconhecesse essa possibilidade, soube tirar proveito dela e arrumar parentes longe de sua aldeia.

Não há qualquer katukina que tenha um nome proveniente da primeira ou terceira geração ascendente cujo epônimo estivesse vivo quando de sua nomeação. A morte aparece então como uma condição necessária ¾ embora não seja suficiente ¾ para que o princípio de alternância geracional seja rompido e a reposição do nome assume um certo sentido de "homenagem", de demonstração de afeição ou estima pela pessoa que portava o nome atribuído a uma criança. Neste sentido deve ser entendida a afirmação anterior de que os Katukina expressam preocupações históricas, relativa à memória dos mortos, quando escolhem os nomes para seus filhos.

Seja de um ancestral vivo ou morto, não há qualquer adjetivação ou qualidades associadas aos nomes próprios. No caso de um epônimo vivo ¾ que só ocorre se houver alternância de geração ¾, a relação entre este e o nominado será particularmente próxima, pois segundo os Katukina são os avós, em última instância, quem educam as crianças. Por outro lado, se o epônimo é falecido, não há qualquer idéia de reencarnação ou de que uma pessoa deva substituir a outra. A identidade entre homônimos encerra-se com o nome.

Apelidos: a individualização dos nomes ancestrais

Além dos nomes pessoais, os Katukina fazem uso freqüente também de apelidos, que podem ser em sua própria língua ou em português. Estes são normalmente atribuídos na juventude e seus conteúdos rememoram fatos inusitados ou características físicas de uma pessoa. Assim, o menino Rai ganhou o apelido de Ro'o sheta (dente de guariba), do qual até ele achava graça, devido a saliência de seus dentes. Em alguns casos, o que é um nome pessoal em português se transforma em apelido entre os Katukina e, por vezes, isso confunde os visitantes brancos da aldeia. Poiru certa vez excedeu-se na bebida num dos forrós promovidos pelos Katukina, para os quais convidam alguns brancos da região, e quando já estava completamente embriagado repetiu insistentemente que as pessoas não o chamassem mais por Maurício, que é seu nome em português, e sim por Geraldo. O riso foi geral e a partir de então algumas pessoas passaram a chamá-lo por esse nome, que se tornou seu apelido. Na impossibilidade de auto-nomear-se, Poiru conseguiu apenas auto-apelidar-se.

Ao contrário dos nomes próprios, os apelidos katukina não são transmitidos através das gerações, nem se transformam em pós-nomes, como ocorre entre os Matis (Erikson, 1993a:330-2). Indissociáveis da pessoa a qual foi atribuído, a morte cancela o seu uso.

Caberia aqui uma observação sobre o lugar que os apelidos ocupam no sistema onomástico katukina. Não há no sistema onomástico qualquer possibilidade de surgirem nomes inéditos, invariavelmente os nomes provêm de um mesmo estoque e se repetem indeterminadamente. Excluídas as possibilidades de renovação do repertório de nomes próprios, os apelidos apresentam-se como instâncias privilegiadas de individualização, como forma das pessoas se diferenciarem de seus homônimos. Apanágio da juventude, os apelidos são abandonados na maturidade16 16 O uso de apelidos entre os Katukina parece semelhante ao que fazem os Yaminawa (Townsley, 1988:60), que também deixam de usá-los na maturidade. .

A provisoriedade dos apelidos parece estar relacionada ao fato de que os nomes pessoais associam sempre as pessoas a outrem, seja a transmissão através de gerações alteradas ou oblíquas, de forma paralela ou cruzada. Ainda que os Katukina não concebam a herança de qualidades das pessoas, os nomes trazem consigo uma história, uma marca pessoal. Neste sentido, os apelidos figurariam como meios auxiliares e transitórios de dissociar as pessoas de seus epônimos, até que imprimam sua própria história ao nome, que os individualizem. Os casamentos e os filhos marcam a chegada à vida adulta e quem já possui filhos está potencialmente em condições de ter seu próprio nome transmitido e, conseqüentemente, os apelidos deixam pouco a pouco de serem usados. Em toda a aldeia, havia uma única pessoa adulta que era ainda chamada pelo apelido, porém ela não tinha filhos.

Considerações finais

Para finalizar, falta resgatar a pergunta que dá título ao artigo: se a onomástica katukina é pano. Menos que desenvolver uma resposta pretensamente definitiva, ambiciosa demais, gostaria apenas de destacar como as diferentes alternativas onomásticas dos Katukina comunicam-se a um só tempo com os demais sistemas pano e com os sistemas sul-americanos, ainda que tais comunicações sejam possíveis de identificar apenas isolando suas várias formas de nominação, sem considerar o efeito do conjunto. Vejamos.

O sistema onomástico katukina surpreende pelo leque de alternativas que apresenta, sobretudo se o compararmos com aquele de seus parentes lingüísticos. Mas antes que rotulemos os Katukina e seu sistema onomástico como desregrados ou anômalos, convém observar como as alternativas disponíveis entre eles apresentam traços que são característicos de outros sistemas sul-americanos, incluído aí o sistema pano. Primeiramente, se considerados isoladamente todos os casos em que o pai e a mãe transmitem os nomes de seus próprios pais apenas aos filhos do mesmo sexo, vê-se uma transmissão paralela que repercute no sistema terminológico, aproximando os Katukina dos Matis, Marubo, Yaminawa e Kaxinawá (Erikson, 1990; Melatti, 1977; Townsley, 1988; McCallum, 1989; Calávia Saez, 1995). Por outro lado, agrupados os casos em que pai e mãe transmitem simultaneamente os nomes de seus próprios pais aos filhos de ambos os sexos, que passam então a ter dois nomes, os Katukina assemelham-se aos Mehináku (Gregor, 1982:244-47), cuja terminologia de parentesco também equaciona avós maternos e paternos. E, finalmente, quando considerados o ideal de "salvação" dos nomes pessoais e os casos concretos de transmissão cruzada, os Katukina remetem à onomástica dos povos jê (Lea, 1992:147)17 17 Esta comparação é feita em termos bastante amplos, mas acredito que seja válida, sobretudo no que diz respeito ao esforço dos Kayapó para que os nomes não se extinguam, isto é, a tentativa de salvá-los. .

Não pretendo através desse quadro sugerir qualquer evolução entre os diferentes sistemas onomásticos, mas cabe ressaltar que ao apresentar simultaneamente cada uma dessas formas de nominação, a onomástica katukina parece oscilar entre o sociocentrismo e o egocentrismo, embora prevaleça o último.

Notas

Bibliografia

ABSTRACT: In this paper the author analyzes the Katukina onomastic system. The Katukina, like the other panoan groups already described (Matis, Kaxinawá, Yaminawa), associate the onomastic system to the kinship system and replace in circulation the names of their ancestors. However, in spite of the similarities that the Katukina exhibit in relation to the other groups of their linguistic family, it is possible to find divergences among them. There is, particularly, a flagrant divergence in the alternate and cross transmission of the personal names, since the other panoans present an alternate and parallel transmission. Using a preliminary comparative approach, the author investigates the hypothesis that such divergences may be found both in the onomastic system and kinship system.

KEY WORDS: Katukina, Panoan, onomastics, kinship system.

Aceito para publicação em fevereiro de 1997.

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  • 1
    Título inspirado em Erikson (1993a): "A onomástica matis é amazônica?", que além da "letra", inspirou também o "espírito" deste artigo, ao concluir que uma resposta mais completa a tal questão aguardava novos estudos sobre os grupos pano que ampliassem a perspectiva comparativa.
  • 2
    Professora Assistente do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná e doutoranda em Antropologia Social na Universidade de São Paulo.
  • 3
    Este artigo é uma versão, com modificações e acréscimos, da segunda seção do segundo capítulo da dissertação de mestrado em Antropologia Social que apresentei na FFLCH/USP, sob a orientação da Profª Drª Manuela Carneiro da Cunha. Os dados foram coletados em nove meses de pesquisa de campo na aldeia Katukina do rio Campinas, entre 1991 e 1993, com o apoio do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo (NHII). Esta pesquisa contou ainda com o auxílio financeiro fornecido pela CAPES, FAPESP e FORD/ANPOCS. Esta versão foi apresentada no grupo de trabalho "Questões Atuais da Etnologia Indígena da América do Sul Tropical", coordenado por Márcio Silva e Marco Antônio Gonçalves, na XX Reunião Brasileira de Antropologia (abril/96), em Salvador-BA.
  • 4
    Neste sentido, é interessante estabelecer um paralelo com os Matis, cuja etimologia da palavra nomear (
    kwèmurek) remete a "engendrar", significando "dar vida" (Erikson, 1993a:324).
  • 5
    Erikson (1993a:334, n.1) afirma que, entre os Matis, após a nomeação as possibilidades de infanticídio são suspensas.
  • 6
    É interessante observar que enquanto os Mebengokre (Lea, 1992:274) e Xavante (Lopes da Silva, 1986: 67-8), ambos povos jê, expressam que os bebês não podem ter muitos nomes sem colocar suas vidas em risco, os Katukina expressam justamente o contrário, ou seja, os bebês estão sob risco quando não têm nomes.
  • 7
    Melatti (1977) foi o primeiro a sugerir a correspondência entre os sistemas de parentesco pano com o kariera.
  • 8
    Certamente esta afirmação deve ser entendida apenas em termos formais, uma vez que alguns trabalhos recentes têm destacado que os membros destes grupos não são completamente cientes do potencial classificatório de seus sistemas onomásticos, conforme Calávia Saez (1995:58) e Erikson (1993a:332).
  • 9
    A título metodológico devo mencionar que soube de algumas pessoas que eram ditas terem mais de dois nomes, mas não consegui determinar quem eram os epônimos nem os nominadores. Nestes casos, um certo casuísmo prevalecia. As pessoas afirmavam na maior parte das vezes terem um só nome. Mas, a partir de terceiros ficava sabendo que tinham mais um. Às vezes, as mesmas pessoas que me informavam sobre os nomes alheios diziam elas próprias terem um só nome. Outras pessoas, jovens principalmente, diziam ter mais de um nome, até três, mas recorriam a seus pais para saberem quais eram os outros, pois elas próprias os desconheciam. Numa situação extrema, soube de uma mulher que tinha cinco nomes, embora fosse conhecida pelo apelido. Tendo durante muito tempo procurado nomes que nunca encontrava, e se encontrava não conseguia checar a informação, decidi deter-me aqui apenas aos nomes que as próprias pessoas diziam ter e que eram conhecidos das demais.
  • 10
    Townsley (1988) observou que, embora o sistema onomástico yaminawa seja paralelo, os pais podem também transmitir um nome aos filhos do sexo oposto. Mas os homens transmitem às suas filhas o nome da FZ e as mulheres transmitem aos filhos o nome do MB — como são alguns nomes matis (Erikson, 1993a:325). De forma que os nomes continuam obedecendo ao princípio das patri-metades, sem alterar em nada o caráter sociocêntrico do sistema. Segundo o autor, os nomes transmitidos pelos pais aos filhos do sexo oposto servem apenas para distinguir as pessoas das outras que tenham o mesmo nome. Townsley ainda observa que há, de fato, uma pretensão dos pais de atraírem seus filhos, de ambos os sexos, para seu círculo de parentes. Entretanto, "se eles estivessem simplesmente obedecendo aos ditames da consangüinidade bilateral, os homens dariam a suas filhas os nomes de suas mães e as mulheres dariam a seus filhos os nomes de seus pais" (:59-60) — como muitas vezes fazem os katukina.
  • 11
    É com este argumento que Erikson (1993a:325) recusa caracterizar como desviante a escolha do nome do MMB para um menino entre os Matis.
  • 12
    Quando dois ou mais irmãos mantiveram relações sexuais com a mesma mulher, imediatamente antes ou após o anúncio da gravidez, eles serão considerados simultaneamente colaboradores seminais e pais classificatórios, havendo, portanto, coincidência entre ambas categorias. Entretanto, se os colaboradores seminais não são irmãos ¾ o que é mais raro e, neste caso, não deve ter sido respeitada a preferência por relações sexuais (e conseqüentemente por casamentos) entre primos cruzados ¾ as categorias devem ser discriminadas: serão colaboradores seminais apenas os homens que mantiveram relações sexuais, durante a gravidez, com a mesma mulher, a mãe da criança, e pais classificatórios serão os irmãos da mulher e de todos os colaboradores seminais, isto é, os pais (genitores) da criança.
  • 13
    Empresto a expressão de Viveiros de Castro (1986:389), mas alterando o seu sentido original, pois ele a usou para tratar da troca de nomes entre irmãos cruzados nos grupos Jê.
  • 14
    As preocupações dos Katukina com a preservação de seu estoque de nomes pessoais são parecidas com aquelas que apresentam os Yaminawa, estudados por Calávia Saez (1995), pois como afirma o autor: "O conhecimento extensivo dos nomes pessoais é de fato patrimônio dos mais velhos, é mais erudição histórica do que guia de conduta. Na nova geração de Yaminawa se repetem os nomes do passado, mas não a sociedade do passado: a afirmação yaminawa de que `o nome não se perde' é expressão mais de uma vontade do que constatação de um mecanismo" (:60). A afirmação de Calávia Saez aplica-se estritamente aos Katukina, com a ressalva de que os Yaminawa transmitem os nomes pessoais alternada e paralelamente, portanto, de acordo com o modelo pano aqui discutido.
  • 15
    Tanto assim que ao voltar para a aldeia katukina do Campinas, Mani levou Matxumbá, seu "sobrinho", junto com ele, para tentar casá-lo com sua filha. Sobre os desdobramentos desta aproximação dos Katukina com os Marubo, ver Coffaci de Lima (1994).
  • 16
    O uso de apelidos entre os Katukina parece semelhante ao que fazem os Yaminawa (Townsley, 1988:60), que também deixam de usá-los na maturidade.
  • 17
    Esta comparação é feita em termos bastante amplos, mas acredito que seja válida, sobretudo no que diz respeito ao esforço dos Kayapó para que os nomes não se extinguam, isto é, a tentativa de salvá-los.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Nov 2000
    • Data do Fascículo
      1997

    Histórico

    • Aceito
      Fev 1997
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