Internações pediátricas por condições sensíveis à atenção primária no norte de Minas Gerais, Brasil: reavaliação após 10 anos

Pediatric hospitalizations due to primary care sensitive conditions in northern Minas Gerais, Brazil: reassessment after 10 years

Resumo

Introdução

As internações por condições sensíveis à atenção primária (ICSAP) representam um importante indicador de saúde, que pode orientar sobre o acesso e a qualidade da assistência à saúde no âmbito da atenção primária.

Objetivo

Avaliar a prevalência e os fatores associados às ICSAP em crianças de zero a 10 anos incompletos, no norte de Minas Gerais, comparando o indicador com estudo similar realizado há dez anos.

Métodos

Estudo transversal com amostra aleatória de hospitalizações pediátricas selecionadas entre junho/2016 e agosto/2017. As variáveis associadas às ICSAP foram identificadas após análise múltipla, por meio da regressão de Poisson, com variância robusta.

Resultados

Foram analisadas 376 hospitalizações. A proporção de ICSAP foi de 29,0%, significativamente menor do que o estudo anterior, com proporção de 41,4%. As variáveis sexo masculino (RP = 0,91; IC95%:0,86-0,97), baixo peso de nascimento (PR = 0,91; IC 95%: 0,85-0,97) e escolaridade materna inferior a oito anos (RP = 0,93; IC 95%: 0,88-0,98) foram identificados como fatores protetores.

Conclusão

Registrou-se prevalência ainda elevada para as ICSAP, mas com importante redução em dez anos. Apenas variáveis sociodemográficas se mostraram associadas às ICSAP.

Palavras-chave:
Atenção Primária à Saúde; saúde da criança; avaliação de serviços de saúde; hospitalização

Abstract

Background

Hospitalizations due to primary care sensitive conditions (HPCSC) represent an important health indicator, which can guide the access and quality of health care in the context of primary care.

Objective

To assess the prevalence and factors associated with HPCSC in children aged 0 to 10 years old, in northern Minas Gerais, comparing the indicator with a similar study carried out 10 years ago.

Methods

Cross-sectional study with a random sample of selected pediatric hospitalizations from June/2016 and august/2017 was carried out. The variables associated with HPCSC were identified after multiple analysis, using Poisson Regression, with robust variance.

Results

376 hospitalizations were analyzed. The proportion of HPCSC was 29.0%, significantly lower than the previous study, with a proportion of 41.4%. The variables male gender (PR = 0.91; 95% CI: 0.86 - 0.97), low birth weight (PR = 0.91; 95% CI: 0.85 - 0.97) and maternal education below eight years (PR = 0.93; 95% CI: 0.88 - 0.98) were identified as protective factors.

Conclusion

There was still a high prevalence for HPCSC, but with an important reduction in 10 years. Only socio-demographic variables were shown to be associated with HPCSC.

Keywords:
Primary Healthcare; child health; health services research; hospitalization

INTRODUÇÃO

A assistência à saúde da criança no Sistema Único de Saúde (SUS) ainda se encontra em processo de construção, em um movimento de mudança paradigmática do modelo centrado na patologia e na criança para um modelo de construção de redes. No âmbito da política pública, busca-se a inclusão da família e a integralidade dos cuidados em todos os níveis de atenção¹. Os serviços de Atenção Primária à Saúde (APS) possuem papel particularmente importante em um modelo de redes assistenciais, pois representam a porta de entrada preferencial para a assistência à saúde. Contudo, apesar da expansão da APS observada no Brasil nos últimos anos, suas equipes de saúde ainda registram importantes dificuldades organizacionais^2,3.

A APS, operacionalizada no Brasil pelas equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF), deve atuar como ordenadora da atenção prestada nas redes de atenção à saúde, assumindo funções bem definidas. Sua expansão possibilitou alguns avanços nos indicadores de saúde infantil, como redução da mortalidade infantil, ampliação dos índices de aleitamento materno, melhoria na assistência aos agravos mais prevalentes na infância e ampliação do acesso à vacinação, entre outros^4-6.

Entre os compromissos de uma APS forte está a capacidade resolutiva para atender a maioria dos problemas de saúde mais comuns (não necessariamente os mais simples), efetivando os atributos de atenção no primeiro contato, longitudinalidade, integralidade e coordenação do cuidado, além de orientação familiar e comunitária e competência cultural⁷. Como síntese dessas funções, uma adequada atuação da APS será capaz de, entre outras medidas, reduzir o percentual de internações por afecções que podem ser evitadas ou assistidas oportuna e eficazmente no primeiro nível de atenção. Essa medida expressa um indicador indireto de efetividade da ESF, as Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária (ICSAP)⁸. Esse indicador foi inicialmente proposto nos Estados Unidos e tinha o objetivo de avaliar de forma mais específica o acesso da população aos cuidados ambulatoriais de saúde^9,10.

Assumindo que uma cobertura satisfatória da ESF associada a ações adequadas e oportunas podem reduzir significativamente as ICSAP, é possível, por meio desse indicador, identificar problemas no acesso e na qualidade dos serviços prestados ao nível da APS. Portanto, a ocorrência de uma elevada proporção de ICSAP evidencia problemas de acesso e/ou qualidade da assistência e tem impacto sobre os gastos do sistema de saúde¹¹.

No contexto da atenção à saúde da criança, um estudo sobre ICSAP foi realizado em uma cidade ao norte de Minas Gerais, há dez anos, acompanhando prospectivamente, ao longo de um ano, as internações hospitalares de crianças em três hospitais e avaliando, para uma amostra aleatória dessas hospitalizações, o percentual de ICSAP e os fatores associados¹².

Decorrida uma década, faz-se necessário reavaliar a situação, identificando as mudanças ocorridas. O presente estudo buscou avaliar a prevalência e os fatores associados às ICSAP em crianças de zero a 10 anos incompletos, no norte de Minas Gerais, comparando o indicador com estudo similar realizado há dez anos.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo transversal e analítico, cujo cenário foi um município do norte do estado de Minas Gerais. A cidade possuía, na ocasião da coleta de dados, uma população estimada de 402 mil habitantes, representando o principal polo urbano regional. Os leitos pediátricos disponibilizados ao Sistema Único de Saúde (SUS) estavam distribuídos em duas instituições hospitalares e a rede municipal de saúde contava com 125 equipes da ESF, alcançando uma taxa de cobertura de aproximadamente 80%¹³. Seguindo o modelo do estudo previamente realizado em 2007/2008, conduziu-se um inquérito hospitalar com amostra aleatória de crianças de zero a 10 anos incompletos hospitalizadas em leitos conveniados ao SUS¹². A coleta de dados foi realizada entre o dia 1º de junho de 2016 e 30 de agosto de 2017. O período de coleta foi definido em um ano (como no estudo anterior) com o objetivo de não sofrer influência de variações sazonais das doenças que acometem as crianças, evitando-se assim o viés de seleção. Considerando que um dos hospitais realizou reforma em sua enfermaria pediátrica durante três meses, a coleta no referido período foi considerada atípica e desconsiderada da análise, e esse período foi ampliado ao final.

O cálculo amostral considerou número de internações hospitalares pediátricas pelo SUS no ano anterior ao início da coleta de dados, assumindo-se um nível de confiança de 95%, uma margem de erro de 5% e uma prevalência de ICSAP de 40%¹². O número mínimo calculado para a amostra foi de 354 hospitalizações. Na definição do número de coletas em cada instituição, levou-se em conta a proporcionalidade das hospitalizações no ano anterior¹⁴.

Em 2007/2008 a cidade de Montes Claros (MG) possuía uma população de 352.384 habitantes, com modelo assistencial de saúde que incluía assistência ambulatorial por meio de centros de saúde tradicionais e Unidades de Saúde da Família, 97 leitos pediátricos do SUS, 49 equipes de Estratégia Saúde da Família e uma taxa de cobertura de 50%. Em 2016/2017 a cidade já contava com um modelo assistencial mais consolidado para a APS, com 125 equipes da Estratégia Saúde da Família, com uma taxa de cobertura de 78% e 80 leitos pediátricos do SUS. A redução de leitos pediátricos foi decorrente do cancelamento do atendimento pediátrico e fechamento de enfermaria infantil em um dos hospitais.

A coleta de dados foi realizada em dias e semanas alternadas para ambas as instituições. Em cada visita hospitalar, todas as crianças elegíveis para o estudo, que se encontravam hospitalizadas na clínica pediátrica, foram consideradas para o estudo. A coleta de dados foi realizada por equipe especialmente treinada, composta por três pesquisadores, sendo dois acadêmicos de enfermagem e um enfermeiro.

Os critérios de inclusão foram: criança com idade de zero a 10 anos completos, hospitalizada em leito cadastrado ao SUS e acompanhada por familiar/cuidador nas enfermarias pediátricas dos hospitais conveniados do município-sede do estudo, possuir um diagnóstico definido e ter domicílio na cidade-sede do estudo. Foram excluídas as crianças hospitalizadas acompanhadas de familiar/cuidador com idade inferior a 18 anos. Foram consideradas perdas as crianças sem acompanhante no dia da coleta ou aquelas cujo acompanhante recusou-se a assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para participação na pesquisa.

O instrumento de coleta de dados incluía, além de dados de caracterização demográfica e socioeconômica (idade, sexo, cor da pele, escolaridade e renda), informações sobre os cuidados assistenciais (diagnósticos, históricos de internações, serviços e profissionais procurados, cobertura da Estratégia de Saúde da Família, dados do prontuário clínico do paciente).

Os diagnósticos clínicos foram coletados de dados dos prontuários, utilizando os critérios da 10ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10)¹⁵. Após a definição diagnóstica, cada internação foi classificada como condição sensível ou não à atenção primária, conforme a lista brasileira de condições sensíveis à atenção primária¹⁶. Para fins de controle de qualidade, foram realizadas 20 reentrevistas, aleatoriamente selecionadas, não tendo sido identificadas distorções nas informações checadas. Esse procedimento foi realizado por meio de contato pessoal do supervisor da pesquisa com os responsáveis pelas crianças entre 24 e 48 horas após a entrevista, ainda em ambiente hospitalar.

Os dados foram codificados no programa estatístico IBM SPSS (Satistical Package for the Social Sciences) versão 22.0 for Windows. Foi realizada análise descritiva de cada uma das variáveis e análises bivariadas para verificar associação entre variáveis, por meio do teste qui-quadrado. Todas as variáveis que se mostraram estatisticamente associadas até o nível de 20% (p < 0,20) na análise bivariada foram analisadas de forma conjunta em análise múltipla, por meio de regressão de Poisson com variância robusta. Após essa análise, foram mantidas no modelo final apenas as variáveis associadas até o nível de 5% (p < 0,05).

O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros (Parecer nº 1.312.447) e pelos Centros de Ensino e Pesquisa dos hospitais envolvidos. Todos os participantes foram entrevistados após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

RESULTADOS

Entre todos os cuidadores/acompanhantes abordados, seguindo os critérios de inclusão, 26 não aceitaram participar do estudo, o que corresponde, aproximadamente, a uma proporção de 6,5% de não resposta. Foram coletados dados referentes a 376 hospitalizações infantis, de forma prospectiva, ao longo de um ano. Entre as crianças avaliadas, 109 (29,0%) tinham o diagnóstico pertencente ao grupo de condições sensíveis à atenção primária.

Entre as crianças estudadas, observou-se que 39,9% eram menores de 1 ano de idade e 50,5% eram do sexo feminino. Quanto aos principais cuidadores referidos para as crianças, 80,9% eram as próprias mães. A faixa etária predominante das mães entrevistadas foi de 20 a 39 anos (83,8%), sendo que 46,8% dos respondentes declararam uma renda familiar mensal de até um salário mínimo (Tabela 1).

Tabela 1
Caracterização dos cuidadores e das crianças hospitalizadas em Montes Claros (MG), 2016/2017

Característica	(n)	(%)
Cuidador principal
Mãe	304	80,9
Pai	32	8,5
Avós	24	6,4
Outros	16	4,2
Idade da mãe (anos)
< 20	36	9,6
20 a 39	315	83,8
≥ 40	21	5,6
Sem informação	4	1,1
Escolaridade da mãe (anos)
≤ 8	124	33,0
9 a 11	202	53,7
≥ 12	38	10,1
Sem informação	12	3,2
Estado civil da mãe
Solteira/viúva/divorciada	101	26,9
Casada/união estável	203	54,0
Sem informação	72	19,1
Idade do pai (anos)
< 20	14	3,7
20 e 39	279	74,2
≥ 40	60	16,0
Sem informação	23	6,1
Escolaridade do pai
≤ 8	141	37,5
9 a 11	154	40,96
≥ 12	25	6,65
Sem informação	56	14,89
Pai reside na casa
Sim	259	68,9
Não	117	31,1
Número de pessoas que mora na casa
≤ 3	99	26,3
4 a 5	195	51,9
> 6	82	21,8
Renda familiar (salário mínimo)
≤ 1	176	46,8
1,1 a 2	119	31,6
2,1 a 3	40	10,6
> 4	6	1,6
Sem informação	35	9,3
Sexo da criança	186	49,5
Masculino	190	50,5
Feminino
Idade da criança (anos)
≤ 1	150	39,9
1,1 a 3	74	19,7
3,1 a 5	65	17,3
> 5,1	87	23,1
Peso de nascimento (gramas)
< 2500	66	17,6
2500 - 4000	240	63,8
> 4000	17	4,5
Sem informação	53	14,1

Com relação à associação entre as variáveis demográficas e as internações por diagnósticos de condições sensíveis à atenção primária, registrou-se que as variáveis que se demonstraram associadas após ajuste multivariado foram “sexo da criança” e “peso ao nascimento”. O sexo masculino e o baixo peso de nascimento foram observados como fatores protetores (Tabela 2).

Tabela 2
Associação entre variáveis demográficas e Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária (ICSAP) em Montes Claros (MG), 2016/2017

Variável	ICSAP				p valor	RP* (IC 95%) Bruto	RP* (IC 95%) Ajustado**
	Sim		Não
	(n)	(%)	(n)	(%)
Idade da mãe (anos)					0,551
≤ 19	9	8,3	27	10,3		0,79 (0,36 - 1,73)	--
> 20	100	91,7	236	89,7		1,0
Estado civil da mãe					0,979
Solteira/viúva/ divorciada	31	33,3	70	33,2		1,01 (0,60 - 1,69)	--
Casada/união estável	62	66,7	141	66,8		1,0
Idade do pai (anos)					0,487
≤ 19	3	2,9	11	4,4		0,63 (0,17 - 2,32)	--
> 20	102	97,1	237	95,6		1,0
Sexo da criança					0,003
Masculino	41	22,0	145	78,0		0,62 (0,44 - 0,86)	0,91 (0,86 - 0,97)
Feminino	68	35,8	122	64,2		1,0
Idade da criança (anos)					0,419
≤ 1	40	26,7	110	73,3		0,87 (0,63 - 1,22)	--
> 1	69	30,5	157	69,5		1,0
Peso no nascimento					0,049
Baixo peso	12	18,2	54	81,8		0,60 (0,35 - 1,03)	0,91 (0,85 - 0,97)
Normal/alto peso	78	30,4	179	69,6		1,0

• (*) RP: razão de prevalência;
• (**) Análise de Poisson, com variância robusta

Considerando a associação entre variáveis socioeconômicas e de atenção à saúde e a internação por diagnósticos de condições sensíveis à atenção primária, registrou-se que apenas a “escolaridade da mãe” apresentou associação estatisticamente significante após ajuste multivariado. A escolaridade materna inferior a oito anos foi observada como fator de proteção (Tabela 3).

Tabela 3
Associação entre variáveis socioeconômicas e de atenção à saúde e Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária em Montes Claros (MG), 2016/2017

Variável	Condições sensíveis à atenção primária						p-valor	RP* / IC 95% Bruto	RP* / IC 95% Ajustado**
	Sim			Não
	(n)		(%)	(n)		(%)
Escolaridade da mãe (anos)							0,005
≤ 8		25	20,2	99	79,8			0,59 (0,40 - 0,87)	0,93 (0,88 - 0,98)
> 8		82	34,2	158	65,8			1,0
Escolaridade do pai (anos)							0,029
≤ 8		33	23,4	108	76,6			0,68 (0,47 - 0,97)	--
> 8		62	34,6	117	65,4			1,0
Pai reside na casa							0,474
Sim		78	30,1	181	69,9			1,14 (0,80 - 1,62)	--
Não		31	26,5	86	73,5			1,0
Número de moradores na casa							0,227
≤ 4		71	31,3	156	68,7			1,72 (1,23 - 0,88)	--
> 5		38	25,5	111	74,5			1,0
Renda familiar (salário mínimo)							0,328
≤ 1		48	27,3	128	72,7			0,85 (0,62 - 1,18)	--
> 1		57	32	121	68			1,0
Internação prévia da criança							0,576
Sim	39		27,5	103		72,5		0,91 (0,65 - 1,27)	--
Não	70		30,2	162		69,8		1,0
Sem informação	-			4
Doença crônica da criança							0,776
Sim	16		27,6	42		72,4		0,94 (0,60 - 1,47)	--
Não	93		29,4	223		70,6		1,0
Plano de saúde							0,626
Sim	10		25,6	29		74,4		0,87 (0,50 - 1,53)	--
Não	99		29,4	238		70,6		1,0
Acompanhado pelo ESF							0,066
Sim	106		30,1	246		69,9		2,41 (0,83 - 7,03)	--
Não	3		12,5	21		87,5		1,0

• (*) RP: razão de prevalência
• (**) Análise de Poisson, com variância robusta

A Tabela 4 apresenta uma análise comparativa dos contextos de saúde nos dois momentos das pesquisas e dos resultados observados nos dois estudos. Registrou-se uma redução de 12,4% no percentual das ICSAP para o município e manutenção dos mesmos grupos principais de causas de internação.

Tabela 4
Comparação entre características estruturais de saúde e Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária (ICSAP) em Pediatria, em Montes Claros (MG), nos períodos de 2007/2008 e 2016/2017

Características	2007/2008	2016/2017
Modelo Assistencial de Saúde da APS	Misto (centros de saúde e unidades da Estratégia Saúde da Família)	Todas as unidades de saúde vinculadas à Estratégia Saúde da Família
População	352.384 habitantes	402.027 habitantes
Leitos pediátricos SUS	97 leitos	80 leitos
Nº de equipes da ESF	49 equipes	125 equipes
Taxa de cobertura da ESF	50%	80%
Proporção de ICSAP	41,4%	29,0%
Principais causas de ICSAP	Pneumonias (55,6%)	Pneumonias (45,9%)
	Asma (10,6%)	Infecção urinária (14,7%)
	Gastroenterites (8,6%)	Gastroenterites (11,0%)
	Infecções da pele (8,6%)	Asma (11,0%)
	Infecções urinárias (7,3%)	Infecções da pele (5,5%)
	Outras (9,3%)	Outras (11,9%)

DISCUSSÃO

Este estudo registrou uma redução de cerca de um terço no percentual de ICSAP entre as crianças hospitalizadas em relação ao estudo no mesmo local há aproximadamente dez anos, usando mesma metodologia¹². Outros estudos nacionais registraram redução das taxas ou das proporções de ICSAP em crianças ao longo do tempo e estabeleceram correlações ou associações com a cobertura assistencial pela ESF^17-21.

Em uma análise global para todo o país, o estudo de Macinko e colaboradores registrou que, no período estudado, as taxas de ICSAP, considerando todos os grupos etários, diminuíram mais de 5% a cada ano e correlacionaram esse achado à maior cobertura populacional para a ESF¹⁷. Estudo realizado em Belo Horizonte (MG) revelou que houve um declínio de 17,9% nas taxas de ICSAP e os autores também referem correlação com a cobertura da ESF¹⁸. No estado da Bahia, entre os anos de 2000 a 2012, foi registrada uma redução na taxa de 46% de ICSAP, especificamente para crianças menores de 1 ano¹⁹. Resultados similares, especificamente em relação à população infantil, foram observados também em Pernambuco²⁰.

É relevante destacar, entretanto, que a grande maioria das investigações nacionais sobre o tema estabelece apenas correlações ecológicas. A literatura registra poucos estudos de acompanhamento longitudinal das hospitalizações pediátricas (como o presente estudo). É necessário apontar que correlações ecológicas representam uma importante fragilidade no processo de generalização dos resultados, pois existem outros fatores envolvidos e não é possível assegurar se as internações ocorreram entre indivíduos assistidos ou não pela ESF²¹.

É razoável supor que a ampliação da cobertura da ESF propicie impactos diversos sobre os indicadores de saúde, inclusive sobre as ICSAP. Para o próprio município estudado, observou-se que, entre os dois estudos realizados (entre 2007/2008 e 2016/2017), houve um aumento de 76 equipes de Estratégia Saúde da Família, o que representou uma ampliação da cobertura populacional de quase 30%. Entretanto, este estudo não identificou associação estatisticamente significativa entre o tipo de internação (por condição sensível ou não à atenção primária) e o acompanhamento por equipes da ESF. Assim, apesar de existir uma estreita correlação entre a expansão da ESF e a diminuição nas taxas de ICSAP^17-21, não foi possível estabelecer associação de causalidade, pelo menos para a faixa etária estudada.

Alguns estudos ainda apresentam uma elevada proporção ICSAP entre crianças, com notável diferença entre algumas regiões do país. No Piauí, ao longo de uma década, a frequência e as taxas de internações em menores de 5 anos foram reduzidas, porém a proporção de hospitalizações nos principais grupos de causas se manteve ou aumentou e, em 2010, 60% das internações em menores de 5 anos foram por causas sensíveis à atenção primária²². Na Paraíba, registrou-se uma proporção de 82,4% de ICSAP em uma amostra de prontuários em menores de 5 anos²³. Em estudo realizado em Cuiabá (MT), os autores observaram uma tendência de estabilização da proporção de ICSAP em torno de 38,7%, para crianças menores de 5 anos²⁴. Elevadas proporções de ICSAP sugerem, minimamente, uma desarticulação das Redes de Atenção à Saúde e geram a necessidade de reavaliação das ações de atenção à saúde da criança pelas equipes da ESF, além da disponibilidade de acesso.

No presente estudo, as variáveis que se mostraram associadas à maior prevalência de ICSAP foram sexo da criança, peso ao nascimento e escolaridade da mãe. Poucos estudos abordam características demográficas ou sociais como variáveis associadas às internações por condições sensíveis à atenção primária em crianças. A maioria dos estudos nacionais é voltada para uma evolução temporal dessas hospitalizações^17-20,25.

Alguns autores identificaram que as internações por condições sensíveis são mais comuns em menores de 1 ano²⁶, em crianças do sexo masculino²³, apresentaram maior redução das hospitalizações na faixa etária de 1 a 4 anos²⁴ ou que apresentavam associação significativa com o fato de a criança ter idade abaixo de 2 anos e residir em área assistida pela Estratégia de Saúde da Família, como apontou o estudo realizado na mesma cidade há dez anos¹³.

Neste estudo, o sexo feminino esteve estatisticamente associado à internação por condições sensíveis à atenção primária. Não foram identificados outros estudos que apontassem concordância com esse achado. Maior proporção de crianças do sexo masculino entre os casos de ICSAP foi encontrado por Araújo et al., porém não houve associação estatisticamente significante entre sexo e ICSAP²³.

É possível que a associação registrada no presente estudo se deva ao elevado percentual de infecções do trato urinário (ITU) entre as condições sensíveis e estas são sabidamente mais frequentes em crianças do sexo feminino após o primeiro ano de vida²⁷. A incidência de ITU aumenta nas meninas após o primeiro ano em função de características anatômicas que favorecem a colonização da uretra por microrganismos originários do trato gastrointestinal²⁷.

Hospitalizações por quadros agudos de ITU na infância podem sugerir falhas na rede de atendimento, pois deveriam ser, a priori, tratados em nível ambulatorial. Embora o diagnóstico da ITU na infância ainda seja considerado um desafio, o acompanhamento oportuno, especialmente das crianças com maior probabilidade de apresentarem recidivas, é uma medida importante para uma intervenção precoce e resolutiva²⁷.

Quanto à escolaridade, alguns autores identificaram associação entre baixa escolaridade materna e ICSAP^12,28. Outros autores registraram que a baixa escolaridade materna é um fator de risco para hospitalização de crianças, independente de se tratar de condição sensível ou não²⁹. Um estudo realizado em Portugal concluiu que existe um aumento no padrão das ICSAP relacionadas às questões socioeconômicas, possivelmente refletindo desigualdades nos cuidados precoces e preventivos de alta qualidade. O estudo destaca ainda que mais pesquisas devem ser desenvolvidas para entender por que os indivíduos de áreas de baixo nível socioeconômico têm mais probabilidade de ser hospitalizados por razões evitáveis³⁰.

Os resultados encontrados apontam a baixa escolaridade como um fator protetor para as ICSAP. Esse achado, embora paradoxal, pode representar uma atuação mais equânime dos serviços de atenção primária, priorizando famílias com maior vulnerabilidade, incluindo-se nesse aspecto a baixa escolaridade materna. De fato, equipes da ESF priorizam alguns serviços, como visitas domiciliares, para famílias mais vulneráveis, visando à inclusão, à redução da iniquidade em saúde e da vulnerabilidade, garantindo melhor acesso às populações de risco e mais carentes. Assim, quanto menor a escolaridade, maior a cobertura pela ESF e por ações como visitas domiciliares².

O baixo peso ao nascer é reconhecidamente uma variável que influencia a morbidade e a mortalidade infantis³¹, bem como o risco de hospitalizações, especialmente nos primeiros anos de vida³². Não foram identificados estudos que avaliassem a associação entre baixo peso ao nascer e ICSAP. Neste estudo, registrou-se associação entre o peso de nascimento e as ICSAP, identificando-se que crianças com baixo peso ao nascimento apresentaram menor prevalência de hospitalização por condições sensíveis à atenção primária. Esse achado pode ser explicado pelo fato de que a criança de baixo peso tem maior necessidade de cuidados, identificada tanto pela mãe como pelos profissionais de saúde. Assim, esse grupo contaria com uma assistência mais rigorosa, com acompanhamento e cuidados prioritários por parte das equipes da atenção primária, o que refletiria em menores taxas de internações por condições sensíveis. Essas ações estão integradas em programas assistenciais, como a terceira etapa do método Canguru, que exige acompanhamento ambulatorial criterioso do bebê e de sua família³³.

As principais causas de hospitalização de crianças por condições sensíveis à atenção primária, registradas neste estudo, estão em consonância com diversos outros estudos nacionais, embora algumas condições apresentem posições diferentes na sequência das mais frequentes^18-21,23,26. Registrou-se pouca variação nas causas de hospitalização por condições sensíveis quando comparado ao estudo de 2007/2008 na mesma cidade¹².

A redução observada na proporção de ICSAP pode ser explicada pela maior efetividade de assistência e acompanhamento da Estratégia de Saúde da Família, acesso ao tratamento, maior direcionamento das linhas públicas de cuidados assistenciais aos problemas prevalentes de saúde na infância. Todavia, esses aspectos não foram objeto do presente estudo e deverão ser abordados em estudos futuros. O aumento na proporção de internações por infecções do rim e trato urinário também deve ser alvo de investigações posteriores e demanda maior qualificação para as equipes da ESF.

Mesmo considerando que o comportamento da distribuição das principais causas de ICSAP não segue o mesmo padrão entre as localidades, talvez refletindo aspectos relacionados às condições socioeconômicas e sazonalidade de determinadas doenças, destaca-se a necessidade de ampla capacitação das equipes de saúde, com ênfase no atendimento oportuno e eficaz para as condições identificadas.

Este estudo apresenta algumas limitações, como a utilização somente de ocorrências no SUS, excluindo os atendimentos vinculados aos planos de saúde ou privados. Também não foram avaliados aspectos referentes às unidades assistenciais (profissionais, organização das equipes e qualidade da atenção primária). Todavia, apesar das limitações expostas, o estudo tem pontos fortes a serem destacados: trata-se de um estudo com coleta de dados primários, conduzida ao longo de um ano. A longa duração do acompanhamento, com seleção aleatória de pacientes, descarta questões ligadas à sazonalidade para algumas condições que são frequentes para a população pediátrica e são também consideradas condições sensíveis à atenção primária.

Em síntese, este estudo revelou uma redução importante no percentual de ICSAP em crianças, na mesma localidade após dez anos. Os resultados são promissores, apesar de ainda revelarem percentuais elevados e inaceitáveis, considerando tratar-se de hospitalizações potencialmente evitáveis. Investigações complementares que abordem fatores como acesso, acompanhamento e qualificação da equipe são importantes para compreender o comportamento das hospitalizações por condições sensíveis à atenção primária. Nenhuma das variáreis associadas aos cuidados de saúde que foram avaliadas neste estudo mostrou-se associada às ICSAP. Existe ainda a necessidade de novos estudos que avaliem outros determinantes do acesso e utilização dos serviços de saúde que não se relacionem estritamente com a APS. A determinação de fatores associados a tais ICSAP poderá facilitar a implementação de intervenções adicionais à rede assistencial à atenção primária, aumentando a continuidade dos cuidados, destinando esforços para a redução das hospitalizações de crianças.

• Como citar: Leão HM, Caldeira AP. Internações pediátricas por condições sensíveis à atenção primária no norte de Minas Gerais, Brasil: reavaliação após 10 anos. Cad Saúde Colet, 2023; Ahead of Print. https://doi.org/10.1590/1414-462X202331010163
• Trabalho realizado na Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES) - Montes Claros (MG), Brasil.
• Fonte de financiamento: nenhuma.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  20 Fev 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  21 Abr 2020
• Aceito
  07 Fev 2021