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O romance: uma forma ético-política na perspectiva baktiniana

Resumos

Este artigo discute alguns conceitos presentes na obra de Mikhail Bakhtin, tais como dialogismo, carnavalização e polifonia, sobretudo, a partir do gênero romanesco, objeto de estudo exaustivo do pensador russo. A discussão dos conceitos visa melhor entendê-los a fim de construir uma perspectiva teórica, metodológica e política para análise discursiva dos romances brasileiros. Ao longo do texto, ocorre exemplificação de possíveis análises de obras nacionais sob a perspectiva bakhtiniana. Destaca-se que, para o pensador russo, a linguagem é central na ontologia do ser social e que a reflexão sobre a linguagem enquanto realidade plural é a medida para se alcançar uma sociedade democrática.

Dialogismo; Polifonia; Romance; Mikhail Bakhtin


This paper discusses some major categories presented in Bakhtin's texts, such as dialogism, carnivalization, polyphony with a focus on the novelistic genre, which was the object of exhaustive study by the Russian thinker. The discussion aims to achieve a better understanding of a methodological, theoretical and political perspective of discourse analysis in Brazilian novels. Throughout the paper, there are some examples of Brazilian novels that can be read from the Bakhtinian perspective. It is emphasized that, for the Russian thinker, language is central to the ontology of social being and reflection about language as a plural reality is the measure to achieve a democratic society.

Dialogism; Polyphony; Novel; Mikhail Bakhtin


ARTIGOS

O romance: uma forma ético-política na perspectiva baktiniana

Angela Maria Rubel Fanini

Professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, UFTPR, Curitiba, Paraná, Brasil; FAPPR; rubel@utfpr.edu.br

RESUMO

Este artigo discute alguns conceitos presentes na obra de Mikhail Bakhtin, tais como dialogismo, carnavalização e polifonia, sobretudo, a partir do gênero romanesco, objeto de estudo exaustivo do pensador russo. A discussão dos conceitos visa melhor entendê-los a fim de construir uma perspectiva teórica, metodológica e política para análise discursiva dos romances brasileiros. Ao longo do texto, ocorre exemplificação de possíveis análises de obras nacionais sob a perspectiva bakhtiniana. Destaca-se que, para o pensador russo, a linguagem é central na ontologia do ser social e que a reflexão sobre a linguagem enquanto realidade plural é a medida para se alcançar uma sociedade democrática.

Palavras-chave: Dialogismo; Polifonia; Romance; Mikhail Bakhtin

Introdução

Este artigo visa a discutir algumas questões relacionadas ao gênero romanesco a partir da perspectiva de Mikhail Bakhtin. Para tanto nos utilizamos, mais especificamente, das obras focadas na problemática do referido gênero. Os estudos do pensador russo se enquadram dentro da filosofia da linguagem visto que toda a sua obra se volta para a discussão da centralidade da linguagem na ontologia do ser social. Para o teórico, a linguagem é categoria central na instituição do humano. Isso significa que ele investiga, sobretudo, o corpus literário em estreita relação com a realidade histórica concreta para daí sistematizar seus conceitos de dialogismo, monologismo e polifonia, que são centrais para compreender os seus escritos. Bakhtin escreve em determinado contexto sociopolítico em que vigia uma cultura e uma política de caráter monológico ascendente. O advento da Revolução Russa em 1917 prometia a instauração de uma sociedade comunista onde se estabeleceria não só a utopia materialista1 1 Os idealizadores da revolução bolchevista criam na possibilidade de revolucionar não só as condições materiais de existência, mas também as culturais e políticas, seguindo sobretudo, os ensinamentos da obra marxiana. , suprindo o reino da necessidade, mas também o reino da liberdade, acenando para uma realidade libertária. Entretanto, na implantação do projeto comunista baseado na visão político-econômica de Marx e Lenin, tal promessa se desfaz e constrói-se uma sociedade autoritária e monológica baseada, sobretudo, no texto-práxis das cartilhas stalinistas. Reforça-se, na sociedade, um poder central na figura do ditador e do partido único e, no campo das artes e do simbólico, incluindo aí a linguagem, há uma nítida propensão para se neutralizar o contraditório, ou seja, as vozes dissonantes. Na literatura vige o Realismo Socialista, estética de louvação e enaltecimento da política e economia stalinistas. O modelo industrial-tecnológico importado do Ocidente passa a fundamentar a economia, procurando-se industrializar o país, e o taylorismo-fordismo se instaura na produção fabril. A massa operária vai tendendo a se adequar ao trabalho alienado e estranhado que tanto preocupara Marx no século XIX e do qual o pensador alemão desejava libertar o operariado. O contexto sociopolítico é de ditadura e de expurgos.

Nesse âmbito, Bakhtin escreve e, com certeza, o meio de onde parte o seu discurso também determina o posicionamento do pensador. Para ele, quando falamos, a nossa fala é duplamente orientada, ou seja, para o já dito e para a réplica, e por isso é inerentemente dialógica. Sua obra está em diálogo com seu tempo, combatendo a monologia, o discurso único, a cultura oficial, o partido único, o cerceamento do contraditório, a opressão do poder centralizador e da ditadura socialista de estado. Há uma nítida conversa em contraponto com sua época e contexto imediato. Bakhtin enaltece o riso libertador, na categoria da carnavalização, a dialogia, a polifonia, a emergência e o fortalecimento da pluralidade de vozes sociais. Obviamente que a obra de Bakhtin não se refere somente ao contexto imediato, visto que deita raízes na cultura ocidental e oriental milenar, recuperando toda uma história greco-latina e judaico-cristã de longa duração. Vai construindo os seus conceitos-chave a partir de uma investigação histórica rigorosa, que abarca uma temporalidade milenar, trazendo para sua obra numerosos discursos sociais em que a dialogia, a carnavalização, a polifonia, a pluralidade de vozes estão presentes e em consonância e em embate com a realidade social. Sua obra coloca-se, sempre, contra o domínio da unidimensionalidade e, sabe-se que, na História do homem, o autoritarismo da visão única não foi prerrogativa exclusiva do modelo socialista russo, mas tem acompanhado a formação do ser social como prática constante. Assim, vê-se que o discurso bakhtiniano é orientado para responder tanto ao seu contexto imediato quanto a outro âmbito bem mais duradouro e milenar. O filósofo russo nos propicia uma visão libertária e emancipadora da condição humana, centrando sua análise na linguagem e vendo aí a possibilidade de construção de uma sociedade mais plural e descentrada.

Além da discussão de algumas questões relacionadas ao gênero romanesco, em consonância com o dossiê do periódico, o artigo visa a demonstrar como os conceitos de dialogismo, polifonia, carnavalização e monologia podem ser agenciados para uma análise do discurso do corpus literário e para pensar a questão da linguagem.

2 A formação da consciência ideológico-linguística em Bakhtin e o romance

A preocupação central da obra de Mikhail Bakhtin é investigar a história da formação da consciência ideológico-linguística do homem. Essa investigação ocorre a partir de uma perspectiva diacrônica que se inicia com os antigos gregos e culmina nos romances do escritor Fiódor Dostoiévski. Consciência e linguagem, para Bakhtin, estão imbricadas, sendo que o externo, a massa discursiva coletiva, se torna interno, construindo a consciência. Esta é instituída pela palavra e essa palavra é sempre um signo ideológico, adquirindo significado no meio social. Desse modo, a consciência se forma de fora para dentro, sendo um processo social. Essa exterioridade, porém, não é aceita de modo passivo, mas ativo, pois a palavra é sempre apreendida como uma arena em que se digladiam visões díspares. A palavra não somente assujeita como liberta. Todo ato comunicativo é, na realidade, uma tradução, ou seja, o falante compreende e reacentua a palavra do outro a partir de suas matrizes culturais, políticas e sociais. Esse dialogismo interno da linguagem, que faz com que a palavra sempre se oriente pelo já dito e pela réplica futura, não leva necessariamente a uma situação harmônica em que haja sempre um acordo com a palavra do outro. O dialogismo inerente à palavra não impede o conflito, antes vive dele. Bakhtin demonstra esse conflito a partir, sobretudo, da guerra discursiva em que certos discursos se impõem, tornando-se quase hegemônicos em determinados campos. Exemplo disso, destaque-se a estrutura monológica que imperou na economia e na cultura no período ditatorial aqui referido.

A história da formação da consciência linguístico-ideológica, empreendida por Bakhtin, mostra uma verdadeira batalha em que certos gêneros de discurso são tornados oficiais, amparados pelas instituições sociais, e outros, que existem simultaneamente aos oficiais, atuam em campos sociais extraoficiais. Bakhtin não estabelece uma rígida dicotomia entre os discursos, classificando-os em verdadeiros ou falsos. Destaca, porém, a diferença entre discurso monológico e dialógico. O discurso monológico se constrói a partir de uma atitude autoritária, exclusivista, definitiva e fechada em relação à linguagem. Esse tipo de discurso deseja se instituir como único e verdadeiro e, por intermédio de dispositivos formais, composicionais e políticos tenta abafar a realidade aberta, ambígua, imprecisa, e, sobretudo, histórica da linguagem. Nesse tipo de discurso, a atitude frente à linguagem é positiva, no sentido de que há uma crença em que a realidade pode ser dita, definida, explicada a partir do uso correto e claro da linguagem. A atitude monológica contribui para que se fortaleçam diversas crenças que servem, na realidade, para centralizar e unificar, simplificar e dominar o que, por natureza social, é disperso, contraditório, múltiplo. A atitude monológica perante o discurso é também uma atitude política, em que as forças centrípetas agem no sentido de fortalecer o consenso. Dessa atitude resultam posições autoritárias que não permitem o dissenso, a alteridade, a duplicidade, a pluralidade. A posição monológica está a reforçar certas crenças sociais como: a identidade da língua nacional única; a homogeneidade da cultura popular; a interpretação correta do texto; a leitura certa; a objetividade e superioridade da linguagem científica; a tradução apropriada; a boa literatura. A percepção dessa monologia é já libertadora uma vez que, ao enquadrar o discurso monológico, vendo-o como unilateral, inclusive, empreendendo toda uma análise formal dos componentes desse discurso, podemos enfrentá-lo e estamos exercendo a dialogia da linguagem à medida que desconstruímos essa monologia. O discurso monológico se vale de vários expedientes formais e institucionais para se impor. É necessário se empreender uma análise discursiva apurada, demonstrando a monologia discursiva, que é um constructo.

Na Literatura Brasileira do século XIX, impera, como assevera Candido (1981), um empenho e um interesse em dizer o real, muitas vezes idealizando-o a fim de se construir, via discurso literário, uma certa identidade nacional positiva. Muitos romances, sobretudo os indianistas, idealizam as relações entre o colonizador e o autóctone, construindo uma genealogia brasileira sem conflitos. Esses textos tendem para uma monologia que atende aos propósitos da criação do Estado nacional. Essa monologia vai ser desconstruída somente no século XX por outros escritores, já em diverso contexto histórico, o de país subdesenvolvido. Ocorre a recuperação dos textos romântico-nacionalistas em um movimento de crítica, construindo-se assim um discurso literário que responde ao já dito, contrapondo-se a ele, reforçando-se uma dialogia interna. Macunaíma de Mario de Andrade exemplifica muito bem essa retomada crítica do discurso presente em Iracema de José de Alencar. A questão da literatura regionalista brasileira também poderia receber outra leitura, partindo de uma perspectiva centrada no discurso, observando os vários regionalismos (do século XIX, de 30 e de Guimarães Rosa) sob o prisma da estilização da fala do elemento rural. A maioria das análises segue o âmbito econômico, ligando os romances regionais diretamente a certos períodos da economia nacional2 2 Candido (1995) percebe essa ligação entre economia e literatura (país jovem/1930, consciência amena de atraso e país subdesenvolvido/1930 a 1970, consciência aguda e catastrófica de atraso), interpretação já clássica da novelística regional. .

Se percebermos, porém, a natureza dialógica da linguagem, veremos que o discurso é aberto, ambíguo, bicentrado (a relação intersubjetiva), porque a sua essência é plural e histórica, comportando vários significados e leituras. Essa atitude aberta para a dialogicidade da linguagem e para a heteroglossia, ou seja, a percepção da existência de vozes sociais conflitantes no interior do enunciado, tem sido a linha estruturante, segundo Bakhtin, da prosa romanesca, cuja pré-história o pensador russo vai localizar na Grécia Antiga, sobretudo nos diálogos socráticos, nas sátiras menipeias e nos gêneros cômicos. A cultura popular milenar do riso, os gêneros familiares, a fala cotidiana e o plurilinguismo social são elementos estruturantes do discurso romanesco. O romance é internamente dialógico, pois ele é sempre um discurso indireto em conflito com os gêneros oficiais e com a cultura oficial. Além disso, é sempre um discurso indireto à medida que o contexto do narrador ou narradores enquadra a fala do(s) outro(s), construindo uma imagem para essa fala. O enquadramento formal da fala do outro no contexto narrativo é um dos temas mais importantes para Bakhtin/Volochinov e se acha investigado em detalhes e pormenor, sobretudo nas obras da década de 20, em Marxismo e filosofia da linguagem (1929/1986)3 3 A questão da autoria da obra Marxismo e filosofia da linguagem é controversa. Alguns a atribuem somente a Bakhtin; outros somente a Valentim N. Volochinov e há também a possibilidade de se informar a coautoria. Entendendo-se a autoria em uma perspectiva dialógica, é possível referenciar essa obra, informando-se dois autores, ou seja, Bakhtin e Volochinov, haja vista que pertenciam ao mesmo grupo de estudos da linguagem, comungando de vários pressupostos sobre o objeto de pesquisa que investigavam. Neste artigo, adotamos esta orientação. Há pontos muito semelhantes dessa obra, no que tange, mormente, à problemática da inter-relação entre contexto citante e citado, com a obra Problemas da poética de Dostoiévski, levando-nos a destacar a dupla autoria. Outra questão premente tanto em Volochinov quanto em Bakhtin é a perspectiva materialista da linguagem e a centralidade desta na ontologia do ser social. No entanto, há diferenças teóricas que não serão analisadas, visto que não são objeto deste estudo, sobretudo, a questão da superação do conflito via dialética, da luta de classes e da relação superestrutura e infraesturura econômica, diretamente vinculadas ao marxismo e mais presentes em Volochinov, e da eterna agonística e da luta de vozes, em uma perspectiva mais ampla, em Bakhtin. Há farta bibliografia a respeito da problemática da autoria. , terceira parte, últimos três capítulos, e em Problemas da poética de Dostoiévski (1929/1981)4 4 Em 1929, Bakhtin publica a obra com o título Problemas da obra de Dostoiévski; em 1963, revisada e ampliada, ela é novamente publicada com o título que conhecemos hoje, Problemas da poética de Dostoiévski. , centrado na análise da obra dostoievskiana. O dialogismo ocorre aí como a constituição de duas ou mais vozes dentro de um mesmo enunciado em embate discursivo. A pré-história do romance é uma história de oposição à cultura oficial séria. O romance é um gênero tardio e, como um gênero que paradoxalmente unifica a pluralidade discursiva, define-se mais precisamente na época renascentista, com Miguel de Cervantes e François Rabelais.

Para Bakhtin, todo discurso é situado tanto por um contexto social amplo como por um contexto social mais imediato. Desse modo, vemos que o gênero romanesco traz em seu bojo toda uma massa verbal milenar do riso e da oposição ao oficial, que se constitui em contexto social amplo, que vai ser, sobretudo, no século XVII, ativado de modo específico pelo contexto histórico mais imediato, resultando no romance europeu ocidental. Como esse contexto sócio-histórico age e interage com essa forma literária que, na realidade, estetiza e aglutina várias formas reais de comunicação? A realidade histórica do século XVII comporta mudanças estruturais na economia, na política, na cultura. O universo feudal fechado e centralizado está se esfacelando em confronto com uma outra ordem sócio-política. O novo ordenamento, para se concretizar, precisa questionar, dessacralizar o existente. Nesse sentido, o momento histórico de mudança de paradigma propicia a sistematização do discurso romanesco que tem se nutrido da polêmica, da réplica, da atitude contestatória:

Aponto três dessas particularidades fundamentais que distinguem o romance de todos os gêneros restantes: 1. A tridimensão estilística do romance ligada à consciência plurilíngüe que se realiza nele; 2. A transformação radical das coordenadas temporais da representação literária no romance; 3. Uma nova área de estruturação da imagem literária no romance, justamente a área de contato máximo com o presente (contemporaneidade) no seu aspecto inacabado.

Todos estes três tipos de particularidade do romance estão ligados organicamente entre si, e todos eles estão condicionados por uma determinada crise na história da sociedade europeia: sua saída das condições de um estado socialmente fechado, surdo e semipatriarcal, em direção às novas condições de relações internacionais e de ligações interlingüísticas. A pluriformidade das línguas, das culturas e das épocas, revelou-se à sociedade europeia e se tornou um fator determinante de sua vida e de seu pensamento. (BAKHTIN, 1988, p.404)

O contexto europeu, sobretudo do capitalismo mercantilista, da queda das monarquias absolutistas, das grandes navegações, do colonialismo, das forças da ciência e tecnologia que adentram o universo da produção material e o âmbito das ideias, propagando uma nova ordem social, afastando-se da escolástica e da tradição religiosa, propicia um estado social mais plural e de embate. Forças centrífugas rompem o poder das forças centrípetas anteriores. Esse dinamismo econômico, político e social também repercute no reino da linguagem, que incorpora essa multiplicidade e nova ordem revolucionária. A ordem liberal-burguesa se instaura, derrubando a ordem anterior no terreno tanto econômico quanto das ideias. São inúmeros os autores a destacar esse novo ordenamento como realmente desestruturante e instaurador de novos paradigmas5 5 A esse respeito, consultar Marx (2003), Leroi-Gourhan (1964), Hobsbawm (1993), que destacam o caráter revolucionário do ordenamento liberal–burguês nos séculos XVIII e XIX. . Bakhtin também vê nessa perspectiva o contexto liberal-burguês e sua relação com o gênero romanesco. Obviamente que a nova ordem se torna a posteriori conservadora e aí também terá implicações monológicas para a linguagem e cultura. O próprio romance-folhetinesco do século XIX segue uma lógica contrária à racionalidade burguesa. O pensador russo, ao analisar esse gênero romanesco, não demonstra preconceito contra ele. Pelo contrário, destaca o contradiscurso que aí se concretiza, em oposição à ordem liberal-burguesa. Mas, como temos aqui ressaltado, há essa ligação com o contexto imediato, mas também com o de longa duração. A obra bakhtiniana se refere sempre a essas duas coordenadas.

3 O romance-folhetim em Bakhtin: o contradiscurso liberal-burguês

Conforme Mikhail Bakhtin, os componentes formais e arquitetônicos do romance-folhetim do século XIX não constituem, por sua vez, apenas uma especificidade do contexto imediato, mas também deitam raízes milenares na Antiguidade. Bakhtin, investigando a pré-história do gênero romanesco, focaliza o romance grego de aventuras, na Antiguidade, classificando-o como romance de provas em que as personagens principais passam por inúmeras aventuras e peripécias. Essas colocam à prova o caráter, a dignidade, a virtude das personagens que ao final triunfam, ultrapassando os difíceis obstáculos. Aqui, Bakhtin ressalta que as personagens são elaboradas de forma rígida, ou seja, não mudam do começo ao fim, apenas reforçam uma identidade inicial que se confirma a cada prova que ultrapassam. O enredo, o espaço e as situações são fabulosos e extraordinários, não pertencendo ao cotidiano. Esse tipo de romance tem vida bastante longa e é reeditado constantemente. Podemos perceber que essa estrutura em que o herói é dado como uma unidade homogênea e estática, sempre igual a si mesma, não se alterando com a passagem do tempo, está presente, hoje, sobretudo, na teledramaturgia brasileira e esteve presente, em parte, nos romances brasileiros de orientação romântica e em vários romances-folhetins do século XIX. Exemplo típico dessa narrativa, no Brasil, seria parte da ficção romântica, em que muitas personagens sofrem inúmeras provações no tempo e no espaço e isto apenas reforça seu caráter inicial (bondoso, virtuoso, viril, honesto, digno). Desse modo, percebemos que as raízes desse tipo de romance são longínquas, não se limitando ao contexto imediato em que afloram.

Bakhtin continua sua exposição sobre os romances de provas, ressaltando que grandes escritores como Balzac, Sthendal, Dostoiévski, Dickens, Flaubert e Zola também dele se utilizaram, porém já com uma visão cronotópica diferenciada. Aqui o herói se submete a várias provas, mas se modifica e altera o mundo à proporção que as peripécias se desenrolam no tempo e no espaço. Lá se encontra o homem formado e aqui o homem em formação: esta a diferença capital entre eles. Aqui o cotidiano, a história nacional, a cultura local, o tempo biológico agem sobre as personagens, modificando-as. O historicismo6 6 Löwy destaca em sua obra três correntes de pensamento e ação preponderantes no século XIX, a saber, o historicismo com base na formação dos estados nacionais, o marxismo e o positivismo. Mais detalhes conferir essa obra. do século XIX passa a ser elemento estruturante da narrativa e o cronotopo é dado a partir de outra chave.

Ainda sobre o romance-folhetim em Bakhtin, ressaltamos que o teórico russo apresenta uma visão positiva sobre as narrativas folhetinescas, citando inclusive Ponson du Terrail, várias vezes, a fim de destacar a configuração carnavalesca de sua obra (Rocambole, a personagem principal que percorre todo o conjunto das obras de Ponson, se metamorfoseia em inúmeros papéis sociais que vão do criminoso ao justiceiro, do nobre ao encarcerado). No universo folhetinesco, a multiplicidade das peripécias; das tragédias; dos crimes; dos acasos; das situações inusitadas e extraordinárias; dos diálogos exaltados e no limiar de situações trágicas como a morte; a amplificação do enredo; o sentimentalismo exaltado; o universo dos fracos e injustiçados e a flexibilidade do herói que assume diversas posições sociais, afasta a narrativa de uma possível homologia com o universo burguês ordenado, bem comportado, lógico e racional. Esse afastamento aproxima o romance-folhetim da cultura popular em que, segundo Bakhtin, tem-se a totalidade das situações, ocorrendo a imbricação, o nivelamento e o dialogismo dos opostos (o sério e o cômico; o baixo e o elevado; a verdade e a dúvida; o bem e o mal; o jejum e a comida; o espírito e o corpo; o pobre e o rico; o aristocrata e o mendigo ). Talvez aí resida uma das possíveis explicações que justifiquem o gosto popular pelas narrativas folhetinescas. Essa aproximação do universo popular está na raiz do próprio romance como gênero, pois, para Bakhtin, o romance deita suas raízes na cultura popular e nos gêneros cômicos que sempre se opuseram à seriedade e ao monotom da cultura oficial. Bem longe estamos, no universo do romance-folhetim, da poética da unidade de tempo, espaço e ação aristotélica. No romance-folhetim, tudo é inflacionado e talvez por isso as críticas a essa variante romanesca sejam tão contundentes. O universo burguês, movido pela racionalidade, busca o invariante, o mesmo, a ordem, o monotom, o equilíbrio, o sensato e tudo que subverta esse ordenamento é desvalorizado. O folhetim não se encaixa nessa ordem, sendo repelido. A obra de Bakhtin, em sua totalidade, recupera sempre os discursos e as práticas marginalizadas, colocados para fora do canônico, do oficial. Nesse sentido, o romance-folhetim também será visto por Bakhtin a partir de uma perspectiva não canônica, sendo resgatado, especialmente, em seu poder de carnavalizar a cultura da ordem, do racional, do monotom. Bakhtin aponta todo um universo folhetinesco presente na obra de Fiódor Dostoiévski, exaltando aí a criação de um universo não comedido, não ordenado pelo monotom burguês. O romance-folhetinisco responde a um contexto de ordenamento racional na perspectiva bakhtiniana, constituindo-se em outra voz em contraponto.

Daí, destacamos a importância que Mikhail Bakhtin atribui à sátira menipeia como uma das fontes de constituição do gênero romanesco e do romance-folhetim como uma variante deste. As menipeias datam do século III aC e, em síntese, se constituem em discursos que buscam a verdade a partir de uma visão abrangente e carnavalizada. Essa busca se concretiza por intermédio da multiplicidade e simultaneidade de situações, ambientes e gêneros discursivos. A estrutura e temática das sátiras menipeias aproximam-nas dos romances de aventura e de provas que são constituintes dos romances-folhetins. Essa aproximação nos leva a constatar que o romance-folhetim não se liga apenas ao contexto do século XIX, mas vincula-se a uma temporalidade maior:

Na menipeia aparece pela primeira vez também aquilo a que podemos chamar de experimentação moral e psicológica, ou seja, a representação de inusitados estados psicológico-morais anormais do homem -toda a espécie de loucura (temática demoníaca), da dupla personalidade, do devaneio incontido, de sonhos extraordinários, de paixões limítrofes como a loucura, de suicídios, etc.

[...]

A menipeia é plena de contrastes agudos e jogos de oxímoros: a hetera virtuosa, a autêntica liberdade do sábio e sua posição de escravo, o imperador convertido em escravo, a decadência moral e a purificação, o luxo e a miséria, o bandido nobre, etc. A menipeia gosta de jogar com passagens e mudanças bruscas, o alto e o baixo, ascensões e decadências, aproximações inesperadas do distante e separado, com toda sorte de casamentos desiguais (1981, p.101).

Além disso, Bakhtin ressalta o caráter publicístico7 7 O termo publicístico, extraído de Bakhtin, refere-se ao caráter contingente e imediato a que se liga a forma literária. Doravante usamos esse termo nessa acepção. das menipeias, ou seja, a ligação com o universo contemporâneo ao texto. Essa característica é fundamental do gênero romanesco uma vez que, para o teórico, o romance lida com o presente, carnavalizando-o, em contraposição à epopeia que enaltece o passado. Essa publicística se constitui no aspecto contingente e histórico das menipeias e podemos verificar que o romance-folhetim, retomando essa característica, também incorpora o tempo contemporâneo do escritor. O romance-folhetim, embora tenha componentes estruturais que se repetem, não pode ser entendido como uma estrutura que paira acima do contingente. Cada época o revitaliza, modificando-o de acordo com o contexto social, histórico, político literário e de leitura:

Por último, a derradeira particularidade da menipeia é sua publicística atualizada. Trata-se de uma espécie de gênero 'jornalístico' da Antigüidade, que enfoca em tom mordaz a atualidade ideológica. As sátiras de Luciano são, no conjunto, uma autêntica enciclopédia da sua atualidade: são impregnadas de polêmica aberta e velada com diversas escolas ideológicas, filosóficas, religiosas e científicas, com tendências e correntes da atualidade, são plenas de imagens de figuras atuais ou recém-desaparecidas, dos 'senhores das ideias' em todos os campos da vida social e ideológica (citados nominalmente ou codificados), são plenas de alusões a grandes e pequenos acontecimentos da época, perscrutam as novas tendências da evolução do cotidiano, mostram os tipos sociais em surgimento em todas as camadas da sociedade, etc. Trata-se de uma espécie de 'Diário de escritor,' que provoca vaticinar e avaliar o espírito geral e a tendência da atualidade em formação. As sátiras de Varron, tomadas em conjunto, constituem esse 'Diário do escritor' (porém com acentuado predomínio do elemento cômico-carnavalesco). Encontramos a mesma particularidade em Petrônio, Apuleio e outros. O caráter jornalístico, a publicística, o folhetinismo e a atualidade mordaz caracterizam, em diferentes graus, todos os representantes da menipeia (1981, p.106)

4 A questão da polifonia como utopia democrática e descentralizadora em Bakhtin

A genealogia do discurso romanesco encontra seu ponto de maturidade na prosa de FiódorDostoiévski, cuja arquitetura polifônica espelha um estágio avançado da consciência ideológico-linguística do homem. Aí, a linguagem comporta em plenitude a alteridade, a ambivalência, a ambiguidade, o duplo, a ironia. O discurso do autor-narrador já não manipula a voz do outro (personagem) de fora, tornando-a objetal8 8 Toma-se o termo de Mikhail Bakhtin (1988) para quem o narrador e o leitor têm um excedente de visão em relação ao fato narrado, pois o narrador é o mediador da fábula, podendo criticar, alterar, enaltecer ou deturpar o fato, dependendo de suas intenções discursivas. A exotopia se constrói a partir de vários expedientes formais. Essa exotopia, no entanto, formaliza-se sob graus diversos. Nem sempre o distanciamento do outro ocorre sem conflitos, pois esse outro resiste ao enquadramento discursivo do narrador. Exemplo disso se dá no uso do discurso indireto livre em que as fronteiras discursivas das falas se dissipam, formando um construto dialógico complexo. Torna-se o herói objetal quando o narrador se distancia e o representa de modo monológico. Porém, ao lhe dar voz e interagir com esta em um contexto enunciativo dialógico, a exotopia diminui. É possível ler a relação conflituosa entre o narrador, Rodrigo, e a personagem principal, Macabéa, da obra A hora da estrela de Clarice Lispector, a partir dessa categoria, pois ali o narrador, intelectualizado, percebe dificuldades em narrar sobre sua heroína e torná-la objetal, visto que ela resiste, inclusive no reino das palavras. Boa parte da ficção metaficcional da Literatura Brasileira pode receber uma leitura a partir dessa categoria, que envolve a complexa articulação entre o contexto narrativo do narrador e o enquadramento da voz do outro nesse âmbito. . O autor, utopicamente, já não expressa uma vontade de poder sobre a fala de suas personagens. As vozes, inter-relacionadas, mantêm a autonomia e o poder de resistência umas em relação às outras. Não há o monopólio ou a hegemonia de umas sobre outras. O discurso romanesco de orientação polifônica formaliza esteticamente um estágio linguístico ideal em que o dissenso, o duplo, a inconclusibilidade são a única realidade possível. Fiódor Dostoiévski realiza no discurso romanesco a utopia de Bakhtin: a formação ideológico-linguística da consciência do homem ocidental em que o conflito, a contradição e o múltiplo são elementos estruturantes. O romance polifônico, desse modo, é a configuração formal de uma realidade extraliterária, pois formaliza a pluridiscursividade social com realismo e em sua totalidade heterogênea. No romance polifônico, Bakhtin vê a saída para a coisificação das relações sociais visto que nesse tipo de romance as relações entre o autor e o herói são de outra natureza. O autor não objetifica de fora o herói, construindo-o como uma entidade fechada e acabada. É como se o autor falasse do herói sempre na presença dele, instigando-o a se defender e a problematizar o que se diz dele. Nos romances monológicos, o autor fala sobre o herói. Este está ausente, não podendo problematizar o que dizem de si. Entretanto, entre o romance polifônico pleno (Dostoiévski) e o romance monológico, há uma gama variada de narrativas que combinam esses dois extremos.

A obra de Bakhtin pode ser apreendida como um discurso emancipatório9 9 A esse respeito,consultar a obra de G. Tihanov, Reification and Dialogue: Aspects of the Theory of Culture in Lukács and Bakhtin. O autor traça um paralelo interessante entre Lukács e Bakhtin, destacando que ambos apresentam um discurso emancipatório e utópico, sendo que para o filósofo húngaro o herói de libertação se constitui nas classes operárias e, para o filósofo russo, no gênero romanesco. Esse, sobretudo na variação polifônica, capta a pluralidade discursiva em constante agonística, representando, desse modo, a consciência humana em seu mais elevado grau de maturidade, liberta do monologismo que a tem aprisionado. Desse modo, Bakhtin vê a possibilidade de libertação do autoritarismo da cultura oficial a partir da linguagem, apreendendo-a em sua dialogicidade inerente. . O autoritarismo presente na cultura oficial e nos gêneros elevados, que nega a pluridiscursividade, deve ser carnavalizado. As raízes dessa carnavalização que desestabilizam o caráter fechado do discurso sério se encontram, sobretudo, na cultura popular cômica e nos gêneros cômicos. Toda essa força centrífuga das atitudes culturais-discursivas que promovem a crítica à cultura do centro são ativadas pelo gênero romanesco. Esse funciona como o grande herói da narrativa emancipatória de Bakhtin. Desse modo, vemos que a vida penetra a arte a partir da elaboração literária do plurilinguismo e a arte ilumina a vida à medida que recupera toda uma totalidade secular não oficial da cultura do riso popular e do carnaval, que tem sido neutralizada pela cultura do sério. Externo e interno se articulam, iluminando-se e construindo-se reciprocamente.

Podemos estabelecer, salvaguardadas as diferenças, alguns pontos em comum entre Bakhtin e Lukács, sobretudo em relação ao romance. Em Teoria do romance (2000), o teórico húngaro destaca que o discurso romanesco narra as vicissitudes, os conflitos e a dicotomia existentes entre o homem e o social. Do mesmo modo, Bakhtin assevera que "Um dos principais temas do romance é justamente o tema da inadequação de um personagem ao seu destino e à sua situação. O homem ou é superior ao seu destino ou é inferior à sua humanidade" (1988, p.425). Para Lukács, o romance é a um só tempo biografia e crônica social. O mundo é fragmentado e o herói não consegue entrar em sintonia com o social e experienciar uma vivência de totalidade (exatamente o oposto ocorre nas epopeias). Para Bakhtin, a diferenciação entre romance e epopeia também se dá nessa direção. Nesta, o herói não se acha desgarrado da comunidade, mas atrelado a ela por um discurso em que todos se reconhecem. Já, no romance, o herói entra em atrito com a comunidade. Para Lukács, o herói, imbuído do individualismo, do romantismo e do idealismo abstrato burguês, busca de forma isolada valores autênticos em um mundo degradado (2000). Tanto as ideias abstratas quanto o isolamento tornam essa busca infrutífera. Entretanto, nesse périplo, o herói adquire consciência de si, ora sendo menor ora maior que o social. Essa consciência, no entanto, não tem poder de reverter a realidade, pois essa reversão só é possível em âmbito coletivo e isso ocorre, parcialmente, nos romances de Tolstói, quando as personagens, imbricadas entre si, atingem momentos epifânicos e de possível transformação do real e de si mesmas. Essa constatação sobre o ser isolado não se aproximaria da crítica fundamental que Bakhtin faz contra o "subjetivismo idealista" que aprisiona o homem em si mesmo quando o toma como fonte individual de saber e de sentido? Lukács termina seu maravilhoso ensaio, vazado em uma linguagem altamente lírica e poética, enfatizando que a obra de Dostoiévski é uma nova forma que talvez configure plenamente esse mundo coletivo em que o herói pode atingir a totalidade perdida (o mundo das epopeias gregas espelhava um herói adaptado à totalidade e à coletividade). É interessante notar que a obra de Mikhail Bakhtin parece começar onde Lukács finalizou. Bakhtin enfoca justamente a produção de Dostoiésvki, vendo aí, a partir da arquitetura polifônica, em que somente pelo e no coletivo, os heróis entram em contato com a totalidade pluridiscursiva do mundo, uma saída para a coisificação do ser humano e para o resgate da totalidade heterogênea. Ambos os teóricos viram em Dostoivéski uma forma nova para novos tempos. Essa nova forma, tanto para Bakhtin quanto para Lukács, espelha e ilumina uma realidade melhor, em que o homem não existe enquanto ser isolado do outro, consistindo-se em um valor político-utópico presente em suas obras.

Para Bakhtin, a questão da totalidade e do coletivo encontra na obra de Dostoiévski a sua melhor representação. No romance polifônico do escritor russo, ocorre a representação literária da desintegração de quaisquer relações hierárquicas, recuperando-se, de certa forma, em outro tempo histórico, as antigas relações sociais de uma comunidade agrária e essencialmente coletiva, onde todos usufruíam o que produziam. Na polifonia, a recuperação do coletivo se faz via linguagem, em que o outro é uma presença constante, visto ser a linguagem uma realidade essencialmente intersubjetiva. Aqui, o ser isolado, o particular, o privado são sempre atravessados pela coletividade, como ocorria em uma sociedade agrária em que o homem era pura exterioridade. Eis aí certo retorno àquele mundo agrário em que tudo é vivido no coletivo e o ser isolado "ainda não existe". Essa "idealização" de Bakhtin sobre as sociedades agrárias primitivas em contraposição às sociedades industriais, em que a divisão de classes sociais é estrutural, está presente, sobretudo, no capítulo "Fundamentos folclóricos do cronotopo em Rabelais" (1988).

O romance como gênero, para Bakhtin, conflita com os outros gêneros, pois os integra, em uma atitude dialógica, revelando-os em seu caráter limitado, histórico. O romance é um discurso indireto à medida que enquadra os outros discursos e gêneros, representando-os. Porém, à proporção que os representa, é também representado por eles, pois eles dialogicamente são internos ao romance. Além disso, o romance não apenas traz para dentro de si os outros gêneros do discurso como também é autocrítico, representando-se a si mesmo em sua limitação e relatividade. Aqui temos que especificar que, para Bakhtin, há dois momentos para o romance em sua trajetória rumo ao romance polifônico que se constitui em ápice da estetização da formação da consciência ideológico-linguística. Esses dois momentos definem dois tipos de romance: os romances de "primeira linha" e os de "segunda linha".

Os romances de "primeira linha" recuperam o plurilinguismo social e o internalizam, porém, aqui ocorre como que uma justaposição desses discursos. O autor os expõe como se estivessem em estado de museu, visto que eles não compõem um todo dialogizado, mas se colocam lado a lado, entretanto, já nos dando a ideia de um todo não homogêneo. Além disso, Bakhtin enfatiza que, nessa variante romanesca, o discurso enquadrante trata de enobrecer os discursos que adentram o romance. Ocorre uma espécie de "literaturização" das falas que passam para o interior do romance. Esse enobrecimento cria uma espécie de linguagem literária enobrecida e homogênea. Esse discurso romanesco acaba dando o tom cultural, pois é nos romances de primeira linha que os leitores vão buscar informação para agir no cotidiano: por exemplo, como se comportar nas festas, como escrever cartas amorosas, como relacionar-se socialmente. Essa variante passa a ser um guia de como agir de modo elegante, refinado e bem disciplinado na sociedade. Os romances de primeira linha tendem ao monologismo. O plurilinguismo em si penetra o romance de "primeira linha"; enquanto o plurilinguismo para si é a matéria prima do romance de "segunda linha". Este, na realidade, constitui-se no objeto de estudo de Bakhtin.

Os romances de "segunda linha" teriam em Dom Quixote de Miguel Cervantes um modelo exemplar, pois aí os romances de primeira linha seriam incorporados e mostrados em sua limitação e relatividade histórica. Dom Quixote recupera o romance de cavalaria para mostrá-lo em sua incapacidade de ler o mundo em virtude das forças centrípetas que atuam nessa variante, unificando as linguagens e os gêneros justapostos a partir de um centro que os enobrece. O herói, Dom Quixote, vive em busca de um mundo perdido, idealizado, enobrecido, literaturizado. Esse discurso é que é parodiado e dessacralizado em Dom Quixote. Na literatura brasileira, Candido destaca a obra Filomena Borges, de Aluísio Azevedo, como um romance que pode ser analisado sob essa luz à medida que o escritor realista carnavaliza e revela as limitações do discurso romântico e idealizador como um dos principais componentes formais da obra10 10 Consultar A. AZEVEDO, Filomena Borges. São Paulo: Martins Editora, prefácio de Antonio Candido, 1977, p.4. Boa parte da obra de Aluísio Azevedo de cunho folhetinesco pode ser relida a partir desse prisma, ou seja, de um confronto ao universo burguês bem comportado e de uma carnavalização da linguagem romântica. Nesse sentido, essa categoria em Bakhtin pode propiciar uma releitura no campo da literatura brasileira, sobretudo a folhetinesca. . Os romances de segunda linha são inevitavelmente críticos do herói literário e autocríticos no sentido de que problematizam o fazer literário. São discursos sempre indiretos que parodiam discursos já convencionais, cristalizados e coisificados. São discursos dialogicamente organizados à medida que se constroem na representação crítica de outro discurso. Bakhtin ressalta que, no século XIX, há predominância das narrativas orientadas pela variante de segunda linha:

Os romances da primeira linha estilística caminham para o plurilingüismo de cima para baixo, eles, por assim dizer, se rebaixam até ele (o romance sentimental ocupa uma posição particular, entre o plurilingüismo e os grandes gêneros). Contrariamente, os romances da segunda linha vão de baixo para cima: da profundeza do plurilingüismo eles sobem para as esferas superiores da linguagem literária apoderando-se delas. O ponto de vista sobre a literaturidade é aqui o ponto de partida. (1988, p.192)

Os romances de "primeira linha" que podem ser exemplificados pelos romances de cavalaria, na realidade, constituem-se como uma enciclopédia do bem e justo dizer, de como a linguagem deve ser falada e escrita. Nesses romances predomina uma atitude monológica, pois nessa variante os vários gêneros discursivos passam por uma maquiagem a fim de se enobrecerem, reforçando-se a ideia de um centro que a todos domina e imprime uma mesma direção. Já os romances de "segunda linha" parodiam, ironizam e dessacralizam esse estilo enobrecido. Aí temos uma atitude dialógica que não unifica, mas estabelece o conflito. No interior do mesmo enunciado, temos o discurso nobre e o paródico, esclarecendo-se mutuamente. Ambos preservam a sua autonomia, mas uma autonomia inter-relacionada dialogicamente. Nessa variante, em vez de atuarem as forças centrípetas que homogeneízam a linguagem, encontram-se as forças centrífugas que trabalham sempre no sentido de preservar a guerra discursiva, a multiplicidade, a alteridade. Na variante de primeira linha predomina uma orientação épica, monológica e oficial, em que há uma construção em monotom para o discurso; já na variante de "segunda linha", a atitude para com o plurilinguismo se faz por intermédio da carnavalização, em que o oposto e o contraditório sempre estão presentes, minando a homogeneidade. Essa perspectiva permite, por exemplo, analisar a obra O alienista de Machado de Assis, em que o discurso e a prática cientificistas que enformam a personagem principal, Simão Bacamarte, são carnavalizadas e desacreditadas pelo narrador a partir de outras falas de outros personagens. O discurso cientificista aqui é uma estilização, sendo representado em suas limitações e interferências drásticas na realidade. Boa parte da ficção real-naturalista oitocentista brasileira pode ser analisada sob esse prisma, uma vez que incorpora o discurso cientificista imperante e em ascensão na época, algumas vezes enaltecendo-o, outras vezes, criticando-o. A linguagem científica e a literária formam um híbrido dialógico e isso pode ser investigado a partir da categoria referida. Bakhtin vê na "primeira linha" um compromisso com a totalidade unificada e sempre igual a si mesma; já na "segunda linha," vê um compromisso com a totalidade, mas esta é instituída a partir da multiplicidade em constante conflito e agonística:

Abordaremos aqui a categoria extremamente importante da 'literaturidade geral da linguagem' apenas de passagem. O que nos importa é o seu significado não na literatura em geral nem na história da linguagem literária, mas somente na história do estilo romanesco. Aqui esse significado é enorme: o significado direto nos romances da primeira linha estilística, e indireto nos da segunda linha.

Os romances da primeira linha estilística aparecem com a pretensão de organizar e de ordenar estilisticamente o plurilinguismo da linguagem falada e dos gêneros epistolares correntes e semiliterários. Os romances da segunda linha estilística transformam essa linguagem, ou seja, os 'indivíduos literários' com seus pensamentos e atos literários nos seus principais personagens (1988. p.178).

Partindo dessa abordagem bakhtiniana sobre a linguagem e sobre o gênero romanesco, temos investigado romances da Literatura Brasileira do século XIX e XX, objetivando entender a visão arquitetônica ali constituída e os elementos composicionais e formais que constroem aquela visão. Contexto imediato, história de longa duração, contexto narrativo monológico ou dialógico, hierarquia de vozes, heróis tornados objetais, enquadramento discursivo das vozes dos heróis e das vozes sociais (discurso direto, indireto, indireto livre), romance de primeira e segunda linhas são categorias que têm sido verificadas na leitura dos romances. A fundamentação teórica em Mikhail Bakhtin é, antes de tudo, uma posição política a partir da qual a pesquisa pode levar para a sala de aula da graduação e da pós-graduação uma discussão sobre centralidade da linguagem na constituição ontológica do ser social e na possibilidade de emancipação mediante uma postura mais dialógica, polifônica e carnavalizada perante forças centrípetas do discurso único. Podemos ler a produção romanesca-brasileira a partir dessas categorias bakhtinianas, investigando a capacidade crítica, autocrítica, libertária, conservadora, reprodutora de valores hegemônicos de nossa produção literária. É o que temos objetivado fazer a partir da leitura de romances com nossos alunos e pesquisadores de grupo de pesquisa, tendo por base a teoria bakhtiniana e outras que dialogam com ela.

Recebido em 05/12/2012

Aprovado em 21/06/2013

  • AZEVEDO, A. Filomena Borges São Paulo: Martins Editora, 1977.
  • BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense/ Universitária, 1981.
  • _______. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec/Editora Universidade de Brasília, 1987.
  • _______. O discurso no romance. In: Questões de literatura e de estética: A teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Hucitec, 1988, p.429-439.
  • _______. Formas de tempo e de cronotopo no romance (Ensaios de poética histórica). In: Questões de literatura e de estética: A teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Hucitec, 1988, p.211-362.
  • _______. Da pré-história do discurso romanesco. In: Questões de literatura e de estética: A teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Editora Hucitec, 1988, p.363-396.
  • _______. Epos e romance. In: Questões de literatura e de de estética: A teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Hucitec, 1988, p.397-428.
  • _______. Rabelais e Gógol. In: Questões de literatura e de estética: A teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Hucitec, 1988, p.429-439.
  • _______. O autor e o herói. In: Estética da criação verbal Trad. Maria Ermantina G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p.26-220.
  • BAKHTIN, M; VOLOCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1986.
  • CANDIDO, A. Prefácio. In: AZEVEDO, A. Filomena Borges São Paulo: Martins Editora, 1977.
  • _______. Formação da literatura brasileira (Movimentos decisivos). 6. ed. v.2. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.
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  • HOBSBAWM, E. J. A era das revoluções -1789 1848 Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
  • LEROI-GOURHAN, A. O gesto e a palavra -1. Técnica e linguagem. Lisboa: Edições 70. 1964, p.147-168.
  • LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. Trad. Juarez Guimarães. São Paulo: Busca Vida, 1987.
  • LUKÁCS, G. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Trad. José Marques Mariano de Macedo. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34, 2000.
  • MARX, K.; ENGELS, F. O manifesto comunista 12 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
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  • 1
    Os idealizadores da revolução bolchevista criam na possibilidade de revolucionar não só as condições materiais de existência, mas também as culturais e políticas, seguindo sobretudo, os ensinamentos da obra marxiana.
  • 2
    Candido (1995) percebe essa ligação entre economia e literatura (país jovem/1930, consciência amena de atraso e país subdesenvolvido/1930 a 1970, consciência aguda e catastrófica de atraso), interpretação já clássica da novelística regional.
  • 3
    A questão da autoria da obra Marxismo e filosofia da linguagem é controversa. Alguns a atribuem somente a Bakhtin; outros somente a Valentim N. Volochinov e há também a possibilidade de se informar a coautoria. Entendendo-se a autoria em uma perspectiva dialógica, é possível referenciar essa obra, informando-se dois autores, ou seja, Bakhtin e Volochinov, haja vista que pertenciam ao mesmo grupo de estudos da linguagem, comungando de vários pressupostos sobre o objeto de pesquisa que investigavam. Neste artigo, adotamos esta orientação. Há pontos muito semelhantes dessa obra, no que tange, mormente, à problemática da inter-relação entre contexto citante e citado, com a obra Problemas da poética de Dostoiévski, levando-nos a destacar a dupla autoria. Outra questão premente tanto em Volochinov quanto em Bakhtin é a perspectiva materialista da linguagem e a centralidade desta na ontologia do ser social. No entanto, há diferenças teóricas que não serão analisadas, visto que não são objeto deste estudo, sobretudo, a questão da superação do conflito via dialética, da luta de classes e da relação superestrutura e infraesturura econômica, diretamente vinculadas ao marxismo e mais presentes em Volochinov, e da eterna agonística e da luta de vozes, em uma perspectiva mais ampla, em Bakhtin. Há farta bibliografia a respeito da problemática da autoria.
  • 4
    Em 1929, Bakhtin publica a obra com o título Problemas da obra de Dostoiévski; em 1963, revisada e ampliada, ela é novamente publicada com o título que conhecemos hoje, Problemas da poética de Dostoiévski.
  • 5
    A esse respeito, consultar Marx (2003), Leroi-Gourhan (1964), Hobsbawm (1993), que destacam o caráter revolucionário do ordenamento liberal–burguês nos séculos XVIII e XIX.
  • 6
    Löwy destaca em sua obra três correntes de pensamento e ação preponderantes no século XIX, a saber, o historicismo com base na formação dos estados nacionais, o marxismo e o positivismo. Mais detalhes conferir essa obra.
  • 7
    O termo publicístico, extraído de Bakhtin, refere-se ao caráter contingente e imediato a que se liga a forma literária. Doravante usamos esse termo nessa acepção.
  • 8
    Toma-se o termo de Mikhail Bakhtin (1988) para quem o narrador e o leitor têm um excedente de visão em relação ao fato narrado, pois o narrador é o mediador da fábula, podendo criticar, alterar, enaltecer ou deturpar o fato, dependendo de suas intenções discursivas. A exotopia se constrói a partir de vários expedientes formais. Essa exotopia, no entanto, formaliza-se sob graus diversos. Nem sempre o distanciamento do outro ocorre sem conflitos, pois esse outro resiste ao enquadramento discursivo do narrador. Exemplo disso se dá no uso do discurso indireto livre em que as fronteiras discursivas das falas se dissipam, formando um construto dialógico complexo. Torna-se o herói objetal quando o narrador se distancia e o representa de modo monológico. Porém, ao lhe dar voz e interagir com esta em um contexto enunciativo dialógico, a exotopia diminui. É possível ler a relação conflituosa entre o narrador, Rodrigo, e a personagem principal, Macabéa, da obra A hora da estrela de Clarice Lispector, a partir dessa categoria, pois ali o narrador, intelectualizado, percebe dificuldades em narrar sobre sua heroína e torná-la objetal, visto que ela resiste, inclusive no reino das palavras. Boa parte da ficção metaficcional da Literatura Brasileira pode receber uma leitura a partir dessa categoria, que envolve a complexa articulação entre o contexto narrativo do narrador e o enquadramento da voz do outro nesse âmbito.
  • 9
    A esse respeito,consultar a obra de G. Tihanov, Reification and Dialogue: Aspects of the Theory of Culture in Lukács and Bakhtin. O autor traça um paralelo interessante entre Lukács e Bakhtin, destacando que ambos apresentam um discurso emancipatório e utópico, sendo que para o filósofo húngaro o herói de libertação se constitui nas classes operárias e, para o filósofo russo, no gênero romanesco. Esse, sobretudo na variação polifônica, capta a pluralidade discursiva em constante agonística, representando, desse modo, a consciência humana em seu mais elevado grau de maturidade, liberta do monologismo que a tem aprisionado. Desse modo, Bakhtin vê a possibilidade de libertação do autoritarismo da cultura oficial a partir da linguagem, apreendendo-a em sua dialogicidade inerente.
  • 10
    Consultar A. AZEVEDO, Filomena Borges. São Paulo: Martins Editora, prefácio de Antonio Candido, 1977, p.4. Boa parte da obra de Aluísio Azevedo de cunho folhetinesco pode ser relida a partir desse prisma, ou seja, de um confronto ao universo burguês bem comportado e de uma carnavalização da linguagem romântica. Nesse sentido, essa categoria em Bakhtin pode propiciar uma releitura no campo da literatura brasileira, sobretudo a folhetinesca.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      05 Dez 2012
    • Aceito
      21 Jun 2013
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