Acessibilidade / Reportar erro

Em Busca da Perfusão Coronariana Perfeita

Palavras-chave
Síndrome Metabólica; Síndrome Coronariana Aguda; Infarto do Miocárdio; Perfusão do Miocárdio; Frequência Cardíaca; Acidente Vascular Cerebral; Lesão Renal; Prognóstico

Desde a faculdade, sempre ouvimos que “tempo é músculo”, e que quanto mais rápido reperfundimos uma artéria culpada por uma síndrome coronariana aguda (SCA), melhor para o paciente. Com o passar do tempo, a cardiologia baseada em evidências nos ensina que nem toda artéria aberta é igual. O fato de termos uma artéria com fluxo TIMI 3 parecia ser suficiente para definir o prognóstico do paciente. No entanto, após o conceito de isquemia microvascular, passamos a nos importar também com a perfusão dos pequenos vasos.11. Gibson CM, Cannon CP, Murphy SA, Ryan KA, Mesley R, Marble SI Relationship of TIMI myocardial perfusion grade to mortality after administration of thrombolytic drugs. Circulation. 2000; 101(2): 125-30.,22. Stone GW, Brodie BR, Griffin JJ, Morice MC, Costantini C, St Goar FG. Prospective, multicenter study of the safety and feasibility of primary stenting in acute myocardial infarction: in-hospital and 30-day results of the PAMI stent pilot trial. J Am Coll Cardiol. 1998; 31(1): 23-30.

Tendo em vista essa preocupação, surgiu o conceito de no reflow, que significa que mesmo após a recanalização de uma artéria culpada, haveria o risco do não restabelecimento do fluxo tecidual relacionado a aquele território miocárdico.33. Ito H, Maruyama A, Iwakura K, Takiuchi S, Masuyama T, Hon M, Clinical implications of the no reflow phenomenon: a predictor of complications and left ventricular remodeling in reperfused anterior wall myocardial infarction. Circulation. 1996; 93(2): 223-8. Voltando mais no tempo, desde 1972 já havia sido descrito o fenômeno de slow flow,44. Tambe AA, Demany MA, Zimmerman HA, Mascarenhas E. Angina pectoris and slow flow velocity of dye in coronary arteries: a new angiographic finding. Am Heart J. 1972; 84(1): 66-71. que é a lentificação da opacificação na ausência de doença coronariana obstrutiva epicárdica, mantendo a perfusão miocárdica. O slow flow parece ser mais comum em pacientes com síndrome metabólica, do sexo masculino e tabagistas.55. Beltrame JF, Limaye SB, Horowitz JD. The coronary slow flow phenomenon: a new coronary microvascular disorder. Cardiology. 2002; 97(4): 197-202. Tanto o fenômeno de no reflow quanto o de slow flow estão associados a desfechos cardiovasculares significativos; o primeiro caso está relacionado à disfunção ventricular e ao remodelamento cardíaco;33. Ito H, Maruyama A, Iwakura K, Takiuchi S, Masuyama T, Hon M, Clinical implications of the no reflow phenomenon: a predictor of complications and left ventricular remodeling in reperfused anterior wall myocardial infarction. Circulation. 1996; 93(2): 223-8.,66. Caldas MA, Tsutsui JM, Kowatsch I, Andrade JL, Nicolau JC, Ramires JF, et al. Value of myocardial contrast echocardiography for predicting left ventricular remodeling and segmental functional recovery after anterior wall acute myocardial infarction. J Am Soc Echocardiogr. 2004; 17(9): 923-32. e o segundo caso, às arritmias ventriculares ou à morte súbita,77. Wozakowska-Kapłon B, Niedziela J, Krzyzak P, Stoc S. Clinical manifestations of slow coronary flow from acute coronary syndrome to serious arrhythmias. Cardiol J. 2009; 16(5): 462-8.,88. Saya S, Hennebry TA, Lozano P, Lazzara R, Schecheter E. Coronary slow flow phenomenon and risk for sudden cardiac death due to ventricular arrhythmias: a case report and review of literature. Clin Cardiol. 2008; 31(8): 352-5. além de angina refratária.99. Yilmaz H, Demir I, Uyar Z. Clinical and coronary angiographic characteristics of patients with coronary slow flow. Acta Cardiol. 2008; 63(5): 579-84.

No trabalho do Dr. Huyut, publicado nesta edição de Arquivos Brasileiros de Cardiologia,1010. Huyut MA. Comparison of the Outcomes between Coronary No-Reflow and Slow-Flow Phenomenon in Non-STEMI Patients. Arq Bras Cardiol. 2021; 116(5):856-864. encontramos uma nova abordagem sobre esse tema, na qual o autor procura comparar os dois fenômenos e as suas implicações clínicas, no contexto de uma SCA sem supradesnivelamento do segmento ST. Tanto do ponto de vista do “embate” entre essas duas entidades clínicas quanto por estarem sendo abordadas após um evento coronariano agudo, estamos diante de uma dissertação rara, talvez até inédita na literatura. Neste trabalho, um índice de massa corpórea acima de 28,3 kg/m2 e uma frequência cardíaca menor que 66,5 bpm foram preditores de no reflow. Os pacientes com este fenômeno tiveram maior incidência de acidente vascular encefálico e de eventos cardiovasculares maiores (MACE) ao final de um ano.1010. Huyut MA. Comparison of the Outcomes between Coronary No-Reflow and Slow-Flow Phenomenon in Non-STEMI Patients. Arq Bras Cardiol. 2021; 116(5):856-864.

Algumas limitações devem ser consideradas, como a discrepância entre os grupos analisados (221 pacientes com slow flow versus 25 com no reflow) e o fato de que não foi utilizada a ressonância nuclear magnética para avaliar a isquemia microvascular, o que seria o padrão-ouro para esse fim. No entanto, essas limitações não devem ofuscar a análise desse trabalho, que nos brinda, por outro lado, com um tempo de seguimento significativo (um ano) e desfechos clínicos importantes.1010. Huyut MA. Comparison of the Outcomes between Coronary No-Reflow and Slow-Flow Phenomenon in Non-STEMI Patients. Arq Bras Cardiol. 2021; 116(5):856-864.

Estamos falando de um tema que suscita ainda uma série de dúvidas. Por exemplo, como prevenir o no reflow nesses pacientes? Fármacos como os inibidores da glicoproteína IIb/IIIa podem ser recomendados para pacientes tempo porta-balão elevado, num contexto de SCA com supradesnivelamento do segmento ST. Será que isso vale na SCA sem supra? Dispositivos de prevenção de embolias em pacientes com lesões envolvendo enxertos venosos também tem sido recomendados,1111. Baim DS, Wahr D, George B. Leon M, Greenberg J, Cutlip D, et al. Randomized trial of a distal embolic protection device during percutaneous intervention of saphenous vein aorto-coronary bypass grafts. Circulation 2002; 105(11): 1.285-90. mas ainda é muito complicado avaliar quais indivíduos podem se beneficiar de qualquer estratégia de prevenção de slow flow ou no reflow, sobretudo diante de um contexto agudo. Será que existe alguma conduta preventiva realmente eficaz desses fenômenos, que apresentem desfechos clinicamente relevantes? Tratam-se de perguntas ainda sem resposta.

Em edição recente dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, o mesmo autor publicou a relação entre um marcador bioquímico (molécula-1 de lesão renal – KIM-1) e concluiu que os níveis séricos dessa e, observem, a frequência cardíaca mais baixa foram associados ao no reflow em pacientes com SCA e supradesnivelamento do segmento ST.1212. Huyut MA, Yamac AH. Desfechos em pacientes com fenômenos de NoReflow Coronário e a relação entre a molécula de uma lesão renal e o fenômeno de No-Reflow coronário. Arq Bras Cardiol. 2021; 116(2):238-247. Em contrapartida, estamos falando de um marcador ainda não disponível na prática clínica. O que temos para identificar os pacientes que irão desenvolver no reflow/slow flow, em termos práticos? Apenas a frequência cardíaca não me parece suficiente.

Outro trabalho também publicado no ABC em 2020, mostrou que os pacientes com fluxo coronariano lento (não relacionados a SCA) podem ter presença de realce tardio na ressonância nucelar magnética cardíaca e que nesses pacientes, o NT-proBNP parece estar mais elevado que no grupo controle,1313. Candemir M, Şahinarslan A, Yazol M, Öner YA, Boyacı B. Determination of Myocardial Scar Tissue in Coronary Slow Flow Phenomenon and The Relationship Between Amount of Scar Tissue and Nt-ProBNP. Arq Bras Cardiol. 2020 Mar;114(3):540-551. doi: 10.36660/abc.2018149.
https://doi.org/10.36660/abc.2018149...
o que, em concordância com o trabalho apresentado aqui, mostra que esse fenômeno não tem nada de inofensivo.

Estamos ainda em um campo de muitas dúvidas nos pacientes que desenvolvem ou possuem algum tipo de disfunção microvascular, seja ela espontânea ou induzida por procedimento percutâneo. Contudo, o trabalho de Dr. Huyut lança alguma luz sobre esse terreno sombrio, enquanto nos estimula a seguir em busca da perfusão coronariana perfeita.

Referências

  • 1
    Gibson CM, Cannon CP, Murphy SA, Ryan KA, Mesley R, Marble SI Relationship of TIMI myocardial perfusion grade to mortality after administration of thrombolytic drugs. Circulation. 2000; 101(2): 125-30.
  • 2
    Stone GW, Brodie BR, Griffin JJ, Morice MC, Costantini C, St Goar FG. Prospective, multicenter study of the safety and feasibility of primary stenting in acute myocardial infarction: in-hospital and 30-day results of the PAMI stent pilot trial. J Am Coll Cardiol. 1998; 31(1): 23-30.
  • 3
    Ito H, Maruyama A, Iwakura K, Takiuchi S, Masuyama T, Hon M, Clinical implications of the no reflow phenomenon: a predictor of complications and left ventricular remodeling in reperfused anterior wall myocardial infarction. Circulation. 1996; 93(2): 223-8.
  • 4
    Tambe AA, Demany MA, Zimmerman HA, Mascarenhas E. Angina pectoris and slow flow velocity of dye in coronary arteries: a new angiographic finding. Am Heart J. 1972; 84(1): 66-71.
  • 5
    Beltrame JF, Limaye SB, Horowitz JD. The coronary slow flow phenomenon: a new coronary microvascular disorder. Cardiology. 2002; 97(4): 197-202.
  • 6
    Caldas MA, Tsutsui JM, Kowatsch I, Andrade JL, Nicolau JC, Ramires JF, et al. Value of myocardial contrast echocardiography for predicting left ventricular remodeling and segmental functional recovery after anterior wall acute myocardial infarction. J Am Soc Echocardiogr. 2004; 17(9): 923-32.
  • 7
    Wozakowska-Kapłon B, Niedziela J, Krzyzak P, Stoc S. Clinical manifestations of slow coronary flow from acute coronary syndrome to serious arrhythmias. Cardiol J. 2009; 16(5): 462-8.
  • 8
    Saya S, Hennebry TA, Lozano P, Lazzara R, Schecheter E. Coronary slow flow phenomenon and risk for sudden cardiac death due to ventricular arrhythmias: a case report and review of literature. Clin Cardiol. 2008; 31(8): 352-5.
  • 9
    Yilmaz H, Demir I, Uyar Z. Clinical and coronary angiographic characteristics of patients with coronary slow flow. Acta Cardiol. 2008; 63(5): 579-84.
  • 10
    Huyut MA. Comparison of the Outcomes between Coronary No-Reflow and Slow-Flow Phenomenon in Non-STEMI Patients. Arq Bras Cardiol. 2021; 116(5):856-864.
  • 11
    Baim DS, Wahr D, George B. Leon M, Greenberg J, Cutlip D, et al. Randomized trial of a distal embolic protection device during percutaneous intervention of saphenous vein aorto-coronary bypass grafts. Circulation 2002; 105(11): 1.285-90.
  • 12
    Huyut MA, Yamac AH. Desfechos em pacientes com fenômenos de NoReflow Coronário e a relação entre a molécula de uma lesão renal e o fenômeno de No-Reflow coronário. Arq Bras Cardiol. 2021; 116(2):238-247.
  • 13
    Candemir M, Şahinarslan A, Yazol M, Öner YA, Boyacı B. Determination of Myocardial Scar Tissue in Coronary Slow Flow Phenomenon and The Relationship Between Amount of Scar Tissue and Nt-ProBNP. Arq Bras Cardiol. 2020 Mar;114(3):540-551. doi: 10.36660/abc.2018149.
    » https://doi.org/10.36660/abc.2018149

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Maio 2021
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br