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RISCO REPRODUTIVO EM GESTANTES PORTADORAS DE CARDIOPATIA: O MUNDO VIVIDO DIRECIONANDO O CUIDADO EM SAÚDE1 1 Artigo extraído da tese - Gestar Sendo-portadora-de-cardiopatia: contribuições para o cuidado em Saúde da Mulher, apresentada a Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2015.

RIESGO REPRODUCTIVO EN GESTANTES PORTADORAS DE CARDIOPATÍA: EL MUNDO EXPERIMENTADO DIRECCIONANDO EL CUIDADO EN SALUD

RESUMO

Objetivo:

compreender o significado de gestar para mulheres portadoras de cardiopatia; desvelar sentidos da mundanidade do ser-aí-mulher em risco reprodutivo no vivido/vivência da gestação de alto risco por cardiopatia.

Método:

pesquisa qualitativa sustentada na fenomenologia Heideggeriana. Foram entrevistadas 17 mulheres entre os meses de julho a dezembro de 2014 que gestaram com cardiopatia em instituição de referência para risco materno.

Resultados:

o movimento analítico hermenêutico permitiu a emersão das Unidades de Significação: saber do risco e tanto planejar quanto não saber como evitar, e se surpreender ao se descobrir grávida; falar como se sentiu física e emocionalmente na gestação; sentir-se segura pela rotina de acompanhamento pré-natal. Os sentidos desvelados apontaram para a fragilidade dos saberes das participantes acerca do risco reprodutivo.

Conclusão:

o enfermeiro e a equipe de saúde devem considerar em sua prática clínica o cuidado intersubjetivo que favorece a integralidade da atenção à saúde. As discussões sobre o risco percebido por parte da gestante devem se integrar à condução do pré-natal suscitando um impacto positivo na saúde da mulher. Considera-se a fenomenologia de Martin Heidegger como referencial que permite alcançar resultados de pesquisas qualitativas no campo epistemológico de interesse acerca da essência humana por meio das experiências vividas.

DESCRITORES:
Gravidez de alto risco; Cardiopatias; Pesquisa qualitativa; Enfermagem; Saúde da mulher

RESUMEN

Objetivo:

comprender el significado de gestar para las mujeres portadoras de cardiopatía, desvelar los sentidos de la mundanidad del ser mujer en riesgo reproductivo en lo experimentado/vivencia de la gestación de alto riesgo por cardiopatía.

Método:

investigación cualitativa basada en la fenomenología de Heidegger. Fueron entrevistadas 17 mujeres entre los meses de Julio a Diciembre del 2014 y que gestaron con cardiopatía en una institución de referencia para el riesgo materno.

Resultados:

el movimiento analítico hermenéutico permitió la emersión de las Unidades de Significación: saber del riesgo y tanto planear como no saber evitarlo, sorprenderse al descubrirse embarazada, hablar cómo se sintió física y emocionalmente en la gravidez, sentirse segura por la rutina de acompañamiento prenatal. Los sentidos desvelados señalaron la fragilidad de los saberes de las participantes sobre el riesgo reproductivo.

Conclusión:

el enfermero y el equipo de salud deben considerar, en sus prácticas clínicas, el cuidado intersubjetivo que favorece la integralidad de la atención para la salud. Las discusiones sobre el riesgo percibido por parte de la gestante deben integrarse a la conducción del prenatal, provocando un impacto positivo en la salud de la mujer. Se considera a la fenomenología de Martin Heidegger como una referencia que permite alcanzar los resultados de investigaciones cualitativas en el campo epistemológico del interés acerca de la esencia humana y por medio de las experiencias vividas.

DESCRIPTORES:
Gravidez de alto riesgo; Cardiopatías; Investigación cualitativa; Enfermería; Salud de la mujer

ABSTRACT

Objective:

to understand the meaning of pregnancy for women with heart diseases; to unveil meanings of the worldliness of the being-there-women in reproductive risk in the experience lived/experience of high-risk pregnancy due to heart diseases.

Method:

this is a qualitative study based on Heidegger’s phenomenology. Seventeen women who got pregnant while suffering from a heart disease were interviewed between July and December of 2014 in a reference facility for maternal risk.

Results:

the hermeneutic analytic movement allowed the emergence of meaningful units: knowing the risk and planning and ignoring how to avoid it, and getting surprised when finding out pregnancy; telling how they felt physically and emotionally during pregnancy; feeling safe due to the prenatal follow-up routine. The unveiled meanings led to weakness of the participants’ knowledge about the reproductive risk.

Conclusion:

nurses and health teams should consider the intersubjective care that favors health care comprehensiveness in their clinical practice. Discussions about the perceived risk by the pregnant women should be integrated to prenatal care guidance, positively impacting women’s health. Martin Heidegger’s phenomenology is considered as a reference that allows reaching results of qualitative research in the epistemological field of interest about the human essence through the experiences lived.

DESCRIPTORS:
High-risk pregnancy; Heart diseases; Qualitative research; Nursing; Women’s health

INTRODUÇÃO

Em acordo com o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), foram notificados e informados, no ano de 2015, 53.523 óbitos de mulheres em idade fértil.11 Ministério da Saúde (BR). Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna [Internet]. [cited 2016 Jan 5]. Available from: http://svs.aids.gov.br/dashboard/mortalidade/materna.show.mtw
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Destes, 1.178 foram indicados como óbitos maternos, dos quais em torno de 9% referem-se às causas obstétricas indiretas no rol das doenças cardiocirculatórias que complicam a gravidez, o parto e o puerpério. Destaca-se neste plano a cardiopatia, com incidência em território nacional de até 4,2%, ou seja, oito vezes maior quando comparada a outros países.11 Ministério da Saúde (BR). Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna [Internet]. [cited 2016 Jan 5]. Available from: http://svs.aids.gov.br/dashboard/mortalidade/materna.show.mtw
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-22 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Gestação de alto risco: manual técnico. Brasília (DF); 2010. [cited 2015 Dec 12]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/gestacao_alto_risco.pdf
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A possibilidade de correções cirúrgicas de defeitos congênitos cardíacos e a maior ocorrência de doença arterial coronariana em mulheres na atualidade favorecem o aumento de gestações de alto risco por cardiopatia. Nesta perspectiva, o risco implicado à gravidez está associado a maiores taxas de morte materna, independente da classificação da capacidade funcional do coração. E especialmente em gestantes com doença cardíaca congênita, eleva-se o risco do feto desenvolver anomalias estruturais, associando-se à maior ocorrência de morbidade e mortalidade infantis.33 Sancho Cantus D, Solano Ruiz MC. Ischemic heart disease in women. Rev Latino-am Enfermagem [Internet]. 2011 [cited 2015 Dec 12]; 19(6):1462-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v19n6/pt_25.pdf
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-44 Hink E, Bolte AC. Pregnancy outcome in women with heart disease: Experience of tertiary center in the Netherlands. Pregnancy hipertens [internet]. 2015 [cited 2016 Jan 5]; 5(2):165-70. Available from: 10.1016/j.preghy.2014.12.001
https://doi.org/10.1016/j.preghy.2014.12...

Por se encontrar em risco reprodutivo durante o período de vida fértil, a mulher com agravos cardíacos encontra-se vulnerável, dada a condição clínica preexistente e a possibilidade de intercorrência ao longo do ciclo gravídico-puerperal, bem como pelas condições sociodemográficas por vezes desfavoráveis e pela demora em iniciar o pré-natal na instituição referência para o risco. Deste modo, anuncia-se relevante a atenção em saúde reprodutiva de mulheres no intervalo de idade fértil de 10 a 49 anos, requerendo do Sistema de Saúde medidas que visem à integralidade assistencial, especialmente no tocante à promoção da saúde materna.55 Xavier RB, Jannotti CB, Silva KS, Martins AC. Risco Reprodutivo e renda familiar: análise do perfil de gestantes. Cien Saude Colet [Internet]. 2013 [cited 2015 Mar 2];18(4):1161-71. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232013000400029
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232013...
-66 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde Sexual e Saúde Reprodutiva [Internet]. Brasília; 2010a [cited 2015 Dez 12]. Available from: http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/cadernos_ab/abcad26.pdf
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O aconselhamento pré-concepcional leva em conta a especificidade da cardiopatia e o estado de saúde da paciente para até mesmo contra-indicar a gravidez diante de condições cardíacas graves, como a hipertensão arterial pulmonar grave, a Síndrome de Eisenmenger, a Síndrome de Marfan com envolvimento aórtico, aneurisma da aorta, cardiopatia congênita cianogênica não operada, cardiomiopatia dilatada ou hipertrófica importante e coarctação de aorta grave.22 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Gestação de alto risco: manual técnico. Brasília (DF); 2010. [cited 2015 Dec 12]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/gestacao_alto_risco.pdf
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,77 Lage EM, Barbosa AS. Cardiopatias e gravidez. Femina [Internet]. 2012 [cited 2015 Set 15];40(1):43-50. Available from: http://files.bvs.br/upload/S/0100-7254/2012/v40n1/a3079.pdf
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Entretanto, há que se abarcar também as subjetividades que permeiam o cotidiano de mulheres diagnosticadas com doença cardíaca e que desejam engravidar, porquanto, para além dos aspectos fisiopatológicos, emergem os de cunho sociopsicoespirituais, os quais, quando despercebidos pelos profissionais de saúde, podem tornar menos efetiva a assistência no âmbito da promoção à saúde reprodutiva.88 Amorim TV, Salimena AMO, Melo MCSC, Souza IEO, Silva LF. Senses of being-there-woman-after-cardiac-surgery supported by Heidegger. Rev RENE [Internet]. 2013 [cited 2016 Jan 5]; 14(5):988-95. Available from: http://files.bvs.br/upload/S/0100-7254/2012/v40n1/a3079.pdf
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-99 Ngu K, Hay M, Menahem S. Case studies of the perceptions of women with high risk congenital heart disease successfully completing a pregnancy. Heart Lung Circ [Internet]. 2014 [cited 2016 Jan 5]; 23(9):811-7. Available from: 10.1016/j.hlc.2014.03.019.
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A enfermagem como profissão de cuidado ao ser humano apresenta a possibilidade de ir ao encontro destas especificidades de acordo com a visão de mundo daquele que recebe o cuidado. Diante das demandas que se apresentam a partir da mulher, o enfermeiro deve ser capaz de arregimentar práticas mais complexas e interativas que garantam e melhorem a qualidade assistencial. Para tal, deve considerar os aspectos subjetivos tão prioritários quanto aqueles que envolvem a dimensão física.88 Amorim TV, Salimena AMO, Melo MCSC, Souza IEO, Silva LF. Senses of being-there-woman-after-cardiac-surgery supported by Heidegger. Rev RENE [Internet]. 2013 [cited 2016 Jan 5]; 14(5):988-95. Available from: http://files.bvs.br/upload/S/0100-7254/2012/v40n1/a3079.pdf
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Do ponto de vista da produção científica, a enfermagem brasileira tem buscado refletir sobre sua atuação junto às mulheres que vivenciam gestações de alto risco. Porém, no que concerne às causas indiretas como a cardiopatia, isso ainda é feito de forma incipiente dada a escassez de estudos, especialmente os de natureza qualitativa.1010 Souza NL, Araújo ACPF, Costa ICC. Representações sociais de puérperas sobre as síndromes hipertensivas da gravidez e nascimento prematuro. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2013 [cited 2016 Jan 12]; 21(3): Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692013000300011
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-1111 Martins M, Monticelli M, Bruggemann OM, Costa R. The production of knowledge regarding gestational hypertension in the stricto sensu graduate nursing studies in Brazil. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2012 [cited 2016 Jan 12]; 46(4):802-8. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62342012000400003
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Neste contexto, destaca-se a aplicabilidade da fenomenologia de Martin Heidegger às pesquisas de enfermagem em saúde da mulher que tem como escopo o cuidado que considera o ser do humano. Este referencial teórico, filosófico e metodológico possibilita a compreensão das singularidades vivenciadas no cotidiano por meio da descrição que permite voltar o olhar às coisas nelas mesmas ao buscar o sentido do ser, sendo esta a premissa do pensar Heideggeriano.1212 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis (RJ): Vozes; 2011.

Para Heidegger, os seres humanos são entes lançados no mundo mostrando-se em suas possibilidades, em seus modos de ser, o que se constitui mundanidade, conceito fenomenal que significa a estrutura de um momento de ser-no-mundo. Mundo, sob este paradigma, não é circunscrito geograficamente e limitado, mas sim uma extensão de ser do homem, que, por meio da linguagem, descreve experiências e vivências significativas.1212 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis (RJ): Vozes; 2011.

Assim, reside a relevância deste estudo que buscou preencher lacunas científicas ao responder à questão norteadora de como se dá a compreensão do risco reprodutivo no mundo vivido do ser-aí-mulher-que-gestou-sendo-portadora-de-cardiopatia* * As expressões em itálico correspondem ao referencial teórico, filosófico e metodológico de Martin Heidegger. , contribuindo para o cuidado de enfermagem e para a atenção à saúde da mulher em face do risco reprodutivo. Deste modo, tornaram-se objetivos: compreender o significado de gestar para mulheres portadoras de cardiopatia; desvelar sentidos da mundanidade do ser-aí-mulher em risco reprodutivo no vivido/vivência da gestação de alto risco por cardiopatia.

MÉTODO

Estudo qualitativo, descritivo e de abordagem fenomenológica ancorado no pensar de Martin Heidegger. De modo a alcançar o objetivo proposto, buscou-se um modo de acesso ao ente que representa neste estudo a mulher que vivenciou a gravidez com cardiopatia. Para Heidegger, o ser humano se entifica no mundo e estabelece relações consigo, com outras pessoas e com instrumentos que se aproximam em virtude das experiências cotidianas.

Ainda, segundo o filósofo, o ser humano é o único capaz de se movimentar da instância ôntica ou dos fatos - contemplada pela tradição na objetividade das evidências científicas das ciências naturais - para a instância ontológica ou dos fenômenos. Estes últimos emergem como dados conscienciais de cada ser quando interrogados a partir do ente acerca de suas vivências factuais.1212 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis (RJ): Vozes; 2011.

O ente que se buscou nesta pesquisa foi a mulher que engravidou com doença cardíaca em uma instituição hospitalar de referência para risco materno no Brasil. A etapa de coleta dos dados ou etapa de campo compreendeu os meses de julho a dezembro de 2014. Foram consultados os registros do serviço de pré-natal de alto risco utilizando-se busca retrospectiva de dados pessoais, clínicos e obstétricos de mulheres com o vivido da gestação - julho de 2014 a julho de 2013 - cujo motivador da classificação de risco fora o diagnóstico de cardiopatia.

Estabeleceram-se como critérios de inclusão: mulheres portadoras de cardiopatia de quaisquer tipos que estavam vivenciando ou haviam vivenciado a gestação em algum momento de suas vidas; mulheres que realizaram o acompanhamento pré-natal no ambulatório hospitalar do referido cenário ou internado na instituição durante o ciclo gravídico-puerperal. Excluíram-se mulheres portadoras de agravos mentais e menores.

Contatos telefônicos foram efetuados para as possíveis participantes explicitando o objetivo da pesquisa e convidando-as a participarem. Houve aceite por parte de dezessete mulheres. A técnica de coleta de dados foi a entrevista aberta, a qual ocorreu em sua maioria no cenário de pesquisa, por meio das questões orientadoras: como foi para você vivenciar a gestação sendo portadora de cardiopatia? como ocorreu essa gestação? como você se sentiu? o que isso significou para você? você gostaria de falar mais alguma coisa?

As entrevistas foram gravadas em dispositivo digital e posteriormente transcritas, com duração em média de 32 minutos. O movimento analítico hermenêutico concentrou-se em buscar pistas sobre o mostrar-se das mulheres por meio de suas linguagens. Após escutar e ler exaustivamente as entrevistas, destacaram-se significados expressos pelas mulheres como estruturas essenciais responsivas ao fenômeno de interesse, objetivo deste estudo. Por esta suficiência e por não haver menção diferente de ideias, foi considerada desnecessária a continuidade de entrevistas.

Em face disto, por aproximação de significados emergiram as Unidades de Significação (US) como categorias a posteriori. O percurso analítico denotou a partir das US dois momentos metódicos enunciados por Heidegger como compreensão vaga e mediana e compreensão interpretativa ou hermenêutica. O primeiro se deu pelo desdobramento compreensivo da instância dos fatos representando o modo como a mulher se compreendeu em seu vivido/vivência, o qual serviu para indicar uma direção preliminar de investigação.1212 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis (RJ): Vozes; 2011.-1313 Schmidt LK. Hermenêutica. Petrópolis (RJ): Vozes; 2013.

Já a hermenêutica na instância ontológica ou de desvelamento dos sentidos possibilitou a interpretação fundamentada no pensamento de Martin Heidegger, configurando-se na totalidade fenomênica.1212 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis (RJ): Vozes; 2011. A discussão se ateve à interpretação ou desvelamento dos sentidos apoiando-se em autores que corroboram com o pensamento do filósofo e em outros investigadores que se evidenciam relevantes no problema em estudo.

O anonimato das participantes foi garantido por meio do uso de código alfanumérico representado pela letra “P” seguido do número correspondente e na ordem em que ocorreram as entrevistas (P1, P2, P3...P17).

A pesquisa foi conduzida observando-se o disposto na Resolução n. 466/2012, com os respectivos certificados de apresentação para apreciação ética (CAAE) n. 32286714.2.0000.5238 e 46073215.2.3001.5259, sendo aprovada e deferida por meio dos pareceres 1.103.165 e 1.139.507.

RESULTADOS

As 17 participantes apresentaram média de idade em 30 anos e os diagnósticos de cardiopatia se relacionaram a cardiopatia reumática (6), sendo três respectivamente concomitantes a sopro, insuficiência mitral e lesão valvar mitral; cardiopatia isquêmica (2), sendo uma acompanhada de arritmia; cardiopatia congênita (1); arritmia (2), sendo uma delas diagnosticada com Síndrome de Wolff Parkinson-White; insuficiência mitral (4); miocardiopatia dilatada (2), sendo uma acompanhada de cardiopatia periparto.

As participantes tiveram 40 gestações, 33 partos e 6 abortos no total. A média do menor intervalo interpartal foi de oito anos. Todas as mulheres sabiam do diagnóstico de doença cardíaca previamente à gestação.

A análise do movimento existencial da mulher portadora de doença cardíaca a partir do vivido/vivência da gestação de risco permitiu a emersão de três Unidades de Significação. Assim, a mulher em risco reprodutivo que gestou sendo portadora de cardiopatia significou: saber do risco e tanto planejar quanto não saber como evitar, e se surpreender ao se descobrir grávida; falar como se sentiu física e emocionalmente na gestação; Sentir-se segura pela rotina de acompanhamento pré-natal.

Saber do risco e tanto planejar quanto não saber como evitar, e se surpreender ao se descobrir grávida.

As mulheres significaram que tanto planejaram a gestação cientes do risco quanto não souberam como evitar. Ao planejarem a gestação, as participantes fizeram-no a partir de si mesmas, do que já compreendiam acerca do quão era arriscado engravidar com problema cardíaco, conforme denotam as falas selecionadas dentre os relatos: eu pensei em tudo, foi planejada [...]. Mas como eu já estava no tratamento, não tinha muito mais risco, risco sempre ia ter, aí por isso que eu decidi ter o meu filho (P1). eu quis engravidar [...] quando eu fiz os exames que eu caí na real, eu falei assim: agora eu tenho que me cuidar, tomar os remédios e ver o que vai ser daqui pra frente (P9).

foi muito difícil, eu tive muito medo, mas, ao mesmo tempo do medo, tinha o desejo de ser mãe, eu sabia que eu não podia engravidar de novo, se eu engravidasse a criança corria o risco de ser abortada por causa dos remédios que eu tomava e poderia causar até a minha morte [...] (P15).

eu engravidei porque eu quis, não foi um acidente [...]. E procurei vir para cá, sabendo que era uma gravidez de alto risco (P16).

Por outro lado, as mulheres não sabiam como evitar e se surpreenderam quando se descobriram grávidas, conforme expressam as falas a seguir: na realidade, os médicos dizem até que eu sou estéril, que eu não tenho quase hormônio nenhum, entendeu? [...] eu já tinha esta história, entendeu? Mas era bem mais leve do que eu tenho hoje (P2).

eu fiquei muito desesperada quando eu descobri, porque esta gestação foi fruto de uma aventura [...] eu usava camisinha desde quando eu descobri a cardiopatia, parei de tomar remédio, eu usava camisinha e estava usando camisinha no dia, não sei como que eu fiquei grávida (P3).

não foi uma gravidez planejada [...]. Assim, no comecinho foi uma surpresa, porque eu não podia evitar com remédio, nem com injeção, então não foi desejada assim no comecinho [...] Tive muito medo quando descobri que tava grávida (P10).

ah foi novidade, porque eu pensava até que eu não podia engravidar [...] de imediato quando eu soube, eu fiquei meio perdida, meio surpresa (P11).

[...] eu descobri a gravidez, foi um susto muito grande, porque eu não tava me cuidando e eu não sabia como fazer pra poder me cuidar (P14).

Falar como se sentiu física e emocionalmente na gestação

As mulheres detalharam que nos primeiros meses passaram mal com enjoos, náuseas e vômitos. Aludiram que estes sintomas nada tinham a ver com a cardiopatia explicando que eram normais da gestação, que o coração estava tranquilo, controlado com remédio desde o início, anunciados pelos significados: a gestação foi normal, pressão boa, foi tudo bom [...]. Só tive assim muitos enjôos (P1).

foi com muito vômito, passando muito mal, queda e toda maternidade que a gente chegava: você não pode ficar aqui, você é alto risco [...] não tinha nada ver com o coração, porque eu tava tomando a medicação, então meu coração tava tranquilinho [...] (P2).

tá tudo controladinho [...] tá legal, colesterol tá controlado, glicose não tive até agora, e tá tudo bem. [...] balançando no ônibus, ai dá enjôo, tudo isso (P3).

Expuseram, de acordo com suas compreensões, que, se por um lado a gestação foi calma, por outro também foi turbulenta, estressante:

[...] que meu cardiologista sempre falou: faça lentamente as coisas. Tudo que eu faço na correria a respiração já fica [...] (P5).

turbulenta. É, bastante estresse [...] (P8).

a minha pressão não é fácil [...] Era sempre uma preocupação de estar com a pressão alta, sofrer um aborto, ou perder meu bebê por algum motivo ou até eu mesma falecer, porque o médico falou que corre esse risco [...] aí foi muita conversa com o psicólogo [...] (P12).

Outros trechos dos depoimentos apontam que apesar de tentarem manter suas atividades normais significaram que gestar tendo cardiopatia fez com que sentissem muito cansaço, falta de ar até para falar e descontrole dos batimentos: [...] não posso mais trabalhar por enquanto [...] só de começar a subir uma escada já fico cansada de novo, falta de ar, até pra dormir é difícil, falta de ar, dificuldade pra respirar (P6).

[...] o coração assim, se eu subia e descia escada eu cansava, se eu andasse muito, o cansaço era demais, eu já não tava mais aguentando o peso da barriga também (P9).

em todo tempo eu oscilava, porque que nem eles explicam: chega um momento que o nosso coração tem que trabalhar pros dois, pra mim e pra ele, o meu não tem condições de trabalhar nem pra mim quanto mais pro bebê, e aí eu sentia muita falta de ar, muito cansaço (P15).

Sentir-se segura pela rotina de acompanhamento pré-natal.

As mulheres descreveram o modo como foram atendidas pelos profissionais no acompanhamento da gestação e durante as internações que se fizeram necessárias. Estas compreensões foram reveladas pelas seguintes falas:

o apoio que eles dão, a primeira consulta que eu tive aqui foi com a enfermeira, foi uma consulta maravilhosa [...]. Eu me senti muito segura aqui, por causa disso, porque eles fazem tudo, qualquer tipo de exames tem um profissional que eles podem te oferecer (P2).

ah, tá sendo ótimo, maravilhoso, com a obstetra, com cardiologista, nutricionista [...]. Passei primeiro pela consulta de enfermagem [...] (P3).

ah profissional foi muito bem. Olha na minha gravidez elas foram super atenciosas, não me deixaram faltar nada [...] Eu me internei por causa do Marevan (P4).

foi ótimo, meu acompanhamento [...] eu vinha aqui três vezes na semana bater a ultra, vinha também três vezes pro pré-natal, já que eu optei por não me internar [...] (P10).

às vezes eu vinha pra cá, e a gente tem muita palestra aqui, muito apoio (...) eu praticamente morei aqui no hospital, e foi minha segunda família (P15).

Outras significaram a rotina de acompanhamento pré-natal em face do risco gestacional por cardiopatia: sempre que eu venho aqui, os médicos falam que ainda tem uma coisa que não melhorou [...] depois da cirurgia, porque falam que o normal dessa abertura é de 7 a minha tava 0,7, totalmente fechada, aí eu fiz agora está só 1,2 e não sai disso, não melhora, vai ver só depois da gestação (P6).

eu só fiquei dentro de casa, indo pra médico e batendo ultra, ultra, ultra e vinha direto. Eu pensei que podia assim de licença do trabalho, poder curtir, poder sair com a minha família, só que tudo isso não pode, só médico, médico, médico (P9).

[...] eu vinha aqui três vezes na semana bater a ultra, vinha também três vezes para o pré-natal, já que eu optei por não me internar, eu falei que viria, não deixei de vim (P10).

DISCUSSÃO

No tocante à cardiopatia, tem-se esta à conta de fator de risco que pode se estabelecer como condição clínica previamente diagnosticada ou como intercorrência clínica na gestação em curso. A classificação tradicional, que é pautada nas evidências científicas, baseia-se na probabilidade de mortalidade materna a partir da doença cardíaca, estratificando-a em cardiopatias de alto risco, risco intermediário e menor risco à gravidez. Desta forma, a gestante cardiopata tem o risco gestacional a todo instante reclassificado, sendo vista a partir da doença cardíaca que determinou as diretrizes e protocolos de acompanhamento do ciclo gravídico puerperal.22 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Gestação de alto risco: manual técnico. Brasília (DF); 2010. [cited 2015 Dec 12]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/gestacao_alto_risco.pdf
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,44 Hink E, Bolte AC. Pregnancy outcome in women with heart disease: Experience of tertiary center in the Netherlands. Pregnancy hipertens [internet]. 2015 [cited 2016 Jan 5]; 5(2):165-70. Available from: 10.1016/j.preghy.2014.12.001
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Na abordagem deste estudo, a facticidade é interpretada como aquilo que o ser está sujeito em sua existência sem que tenha escolhido vivenciar.1212 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis (RJ): Vozes; 2011.-1313 Schmidt LK. Hermenêutica. Petrópolis (RJ): Vozes; 2013. No estudo em tela, o ser-aí-mulher encontra-se na facticidade de ser portadora de cardiopatia projetando-se como ser-no-mundo a partir de tal fato: gravidez de risco por doença cardíaca. Nesta condição, encontra-se em risco reprodutivo sem que isto tenha sido sua opção. Ao significar a consciência do risco, não o fez a partir de suas possibilidades, pois que movida pelo que disseram ou impuseram. O risco que correu já denotava a imposição da ciência regulando, designando e controlando as exceções.

Deste modo, a exceção imposta pela tradição é a classificação do risco entre mínimo e máximo atribuído às mulheres que engravidam sendo portadoras de alguma doença ou que durante o ciclo gravídico puerperal desenvolvem agravos à sua saúde e/ou à do feto. O enfoque de risco como expressão da objetividade científica estabelece uma graduação de cuidados em saúde de acordo com a probabilidade de danos identificados a partir dos marcadores e fatores de riscos gestacionais, sendo estes a forma em que a mulher se insere no sistema de saúde.22 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Gestação de alto risco: manual técnico. Brasília (DF); 2010. [cited 2015 Dec 12]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/gestacao_alto_risco.pdf
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,77 Lage EM, Barbosa AS. Cardiopatias e gravidez. Femina [Internet]. 2012 [cited 2015 Set 15];40(1):43-50. Available from: http://files.bvs.br/upload/S/0100-7254/2012/v40n1/a3079.pdf
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As participantes deste estudo utilizaram-se de expressões tecnicamente comuns às gestações que envolvem risco como o controle de exames laboratoriais, de imagem, nome de medicamento e até mesmo o grau de abertura ou fechamento da válvula cardíaca. No pensar da fenomenologia, ao repetirem falas dos profissionais, sem necessariamente terem compreendido do que falam, mostram-se no modo do falatório.1212 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis (RJ): Vozes; 2011.-1313 Schmidt LK. Hermenêutica. Petrópolis (RJ): Vozes; 2013. Contentando-se em repetir o que já foi dito, as participantes revelam que aceitaram os cuidados em saúde que foram e são ofertados pelo Sistema para todas as gestantes cardiopatas sem questionar ou refutar tais ações, repetindo e repassando-as como se fossem genuínas em seus entendimentos.

Mulheres portadoras de cardiopatia que desejam engravidar precisam ser orientadas sobre o prognóstico, implicações e consequências para a condição cardíaca. Especialmente mulheres com gestações inviáveis devem ser identificadas precocemente de modo a prepará-las para o entendimento e compreensão dos riscos reprodutivos prevenindo morbidade e mortalidade a estes associados,44 Hink E, Bolte AC. Pregnancy outcome in women with heart disease: Experience of tertiary center in the Netherlands. Pregnancy hipertens [internet]. 2015 [cited 2016 Jan 5]; 5(2):165-70. Available from: 10.1016/j.preghy.2014.12.001
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,99 Ngu K, Hay M, Menahem S. Case studies of the perceptions of women with high risk congenital heart disease successfully completing a pregnancy. Heart Lung Circ [Internet]. 2014 [cited 2016 Jan 5]; 23(9):811-7. Available from: 10.1016/j.hlc.2014.03.019.
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o que ratifica a relevância da abordagem subjetiva.

Neste contexto, foi desvelado o sentido da ambiguidade, “em que tudo parece ter sido compreendido, captado e discutido autenticamente quando, no fundo, não o foi. Ou então parece que não o foi quando, no fundo, já foi”.1212 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis (RJ): Vozes; 2011.:238 De modo ambíguo, o ser-aí-mulher pensa que compreendeu o risco quando no fundo não o fez, tanto que planejou. Pensa que não compreendeu, quando no fundo já o tinha feito, tanto que se surpreendeu ao se descobrir grávida.

Planejando ou não, não o fizeram a partir de suas possibilidades, mas do que já estava pronto e determinado para todas as mulheres cardiopatas pelas estatísticas de morbimortalidade materna por causas obstétricas indiretas, pelas ocorrências mórbidas em gestações anteriores e até mesmo pelo que compreendia acerca das recomendações médicas durante o acompanhamento ambulatorial do distúrbio cardiológico.

Um estudo de coorte retrospectivo que comparou percepções e motivações de gestantes com e sem doença cardíaca congênita concluiu que as classificações do grau de severidade da patologia diferiam entre os médicos e as pacientes. Dez de vinte mulheres subestimavam o status da doença. Os fatores que influenciam a percepção e compreensão das mulheres acerca de suas patologias podem ter minorado o impacto da doença em si tais como: confiança no cuidado clínico e cirúrgico, experiências passadas de conviver com a doença cardíaca congênita e não ter alterada sua qualidade de vida. Os conselhos para não engravidarem não foram suficientes para deter seus desejos de serem mães, denotando baixa compreensão do aumento dos riscos na gravidez.1414 Ngu K, Hay M, Menahem S. Perceptions and motivations of an Australian cohort of women with or without congenital heart disease proceeding to pregnancy. Int J Gynaecol Obstet [Internet]. 2014 [cited 2016 Jan 12]; 126(3):252-5. Available from:10.1016/j.ijgo.2014.03.032
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Em paralelo, ao confrontar a percepção do risco entre gestantes com baixo e alto risco gestacional por cardiopatia congênita, evidenciou-se que ambos os grupos apostam que os avanços na medicina são capazes de reverter situações e complicações advindas do risco gestacional.99 Ngu K, Hay M, Menahem S. Case studies of the perceptions of women with high risk congenital heart disease successfully completing a pregnancy. Heart Lung Circ [Internet]. 2014 [cited 2016 Jan 5]; 23(9):811-7. Available from: 10.1016/j.hlc.2014.03.019.
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Deste modo, denota-se a relevância do acompanhamento multiprofissional efetivo com enfoque ôntico-ontológico a fim de se apreender as lacunas de conhecimento, auxiliar nas tomadas de decisões de gestar ou não gestar entre outros aspectos do mundo da vida e das subjetividades inerentes ao ser.

Isto porque é necessário considerar que a percepção do risco é subjetiva, sendo embasada pela visão de mundo e experiências de vida da mulher. O contexto social em que se insere também deve ser considerado, além do grau de percepção que detém sobre o controle do risco e a confiança que deposita nas informações que recebe. O modo como gestantes percebem o risco gestacional determinam seus comportamentos e decisões de autocuidado no ciclo gravídico puerperal.1515 Bayrampour H, Heaman M, Duncan KA, Tough S. Predictors of perception of pregnancy risk among nulliparous women. J Obstet Gynecol Neonatal Nurs [Internet]. 2013[cited 2016 Jan 12]; 42(4):416-27. Available from: 10.1111/1552-6909.12215
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Em uma metassíntese qualitativa sobre a percepção do risco em gestantes de alto risco, evidenciou-se a interação com os profissionais como um dos fatores principais que influenciam a percepção do risco para as mulheres. O aumento do número de consultas e o maior contato com os médicos tornam-se, em alguns casos, a base para o aumento da segurança. Entretanto, em outras situações, mesmo com a proximidade, as informações dos profissionais não são bem compreendidas pelas mulheres.1616 Lee S, Ayers S, Holden D. A metasynthesis of risk perception in women with high risk pregnancies. Midwifery [Internet]. 2014 [cited 2016 Jan 12]; 30(4):403-11. Available from: 10.1016/j.midw.2013.04.010
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Essa consideração implica refletir na lógica de comunicação acerca do risco reprodutivo entre enfermeiros e demais profissionais e pacientes, especialmente em face do número de gestações, partos, abortos e intervalos interpartais expressos pelos resultados do presente estudo, além do fato da cardiopatia como doença crônica situar a mulher em idade fértil em permanente risco.

Enfatiza-se a necessária promoção à saúde da mulher em risco reprodutivo na perspectiva da educação em saúde desde a infância e adolescência quando do diagnóstico de febre reumática e cardiopatia congênita.99 Ngu K, Hay M, Menahem S. Case studies of the perceptions of women with high risk congenital heart disease successfully completing a pregnancy. Heart Lung Circ [Internet]. 2014 [cited 2016 Jan 5]; 23(9):811-7. Available from: 10.1016/j.hlc.2014.03.019.
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Tal processo educativo que culminará na idade adulta requer considerações plurais advindas das experiências e vivências das mulheres e de seus familiares em seus determinantes sociais, ambientais e singulares.

Tais apreensões favorecem e aproximam enfermeiros e demais profissionais do cumprimento do princípio da integralidade da atenção em saúde cujos valores devem contemplar para além do escopo biológico,1717 Cabrita BAC, Abrahão AL, Rosa AP, Rosa FSF. A busca do cuidado pela gestante de alto risco e a relação integralidade em saúde. Cienc Cuid Saude [Internet]. 2015 [cited 26 May 2016]; 14(2):1139-78. Available from: http://dx.doi.org/10.4025/cienccuidsaude.v14i2.24250
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permitindo à mulher que se revele como sujeito do seu próprio cuidado, protagonista e consciente de suas decisões de planejar ou evitar a gravidez em face do risco reprodutivo, em oposição ao modo ambíguo em que se mostrou.

Neste contexto, ouvir a mulher portadora de cardiopatia acerca de como compreende os riscos envolvidos no ciclo gravídico puerperal possibilita ao enfermeiro e equipe de saúde estabelecer a intersubjetividade necessária para a abertura do ser-aí-mulher.1818 Amorim TV, Salimena AMO, Souza IEO, Melo MCSC, Silva LF, Cadete MMM. Women's temporality after cardiac surgery: contributions to nursing care. Rev Bras Enferm [Internet]. 2015 [cited 2016 Jan 5]; 68(6):1056-62. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167.2015680609i
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Nota-se o quão relevante se faz buscar o mundo vivido a fim de planejar com a mulher o cuidado em saúde transcendendo posições pautadas no modelo biomédico, tecnicista e, portanto, reduzido.1919 Alves VH, Alves PMS, Padoin SMM. A tecnização e a prática do cuidado ao parto: uma abordagem fenomenológica a partir de Husserl. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2016 [cited 2016 Oct 04]; 25(3):e1750015. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072016001750015
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Neste modo compreensivo, as tomadas de decisão se concebem dialógicas sem a unilateralidade característica do paradigma positivista.

Com isto, não se discursa intencionando abrir mão dos protocolos da tradição científica, mas, sim, utilizá-los tendo por base a relação eu-tu, a qual não se sobrepõe ao ser do humano favorecendo o processo de cuidar em saúde na condição de aliada. Faz-se mister que o profissional alerte a mulher acerca das implicações e possíveis consequências de gestar sendo portadora de cardiopatia, especialmente quando a classificação do risco gestacional relacionado ao tipo de doença cardíaca desfavorece a saúde materno-fetal.77 Lage EM, Barbosa AS. Cardiopatias e gravidez. Femina [Internet]. 2012 [cited 2015 Set 15];40(1):43-50. Available from: http://files.bvs.br/upload/S/0100-7254/2012/v40n1/a3079.pdf
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A partir desta análise, ressalta-se a possibilidade de agregar um novo aspecto à reflexão acerca dos cuidados em saúde reprodutiva para mulheres portadoras de cardiopatia em idade fértil. Apesar das participantes se mostraram cientes do risco reprodutivo, a hermenêutica apontou fragilidade em seus saberes, dada a superficialidade dos mesmos. O enfoque do processo de aconselhamento conduziu à compreensão da mulher a linguagem da ciência centrada no risco gestacional. Assim, ela assimilou as orientações dos profissionais de saúde de modo a aproximá-las e incorporá-las ao seu cotidiano, sem que necessariamente o fizesse a partir de si mesma.2020 Nogueira RP. Extensão fenomenológica dos conceitos de saúde e enfermidade em Heidegger. Cien Saude Colet [Internet]. 2011 [cited 2015 Jul 22]; 16(1):259-66. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232011000100028
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Para o ser-aí-mulher seguir a recomendação médica, tomar as medicações para o coração e evitar a alteração de pressão representava o que a asseguraria de maiores riscos.

Aponta-se, ainda, que o número de participantes e cenário único podem se constituir de possível limitação do estudo. Todavia, a compreensão de mulheres em risco reprodutivo por cardiopatia em face da integralidade da atenção em Saúde da Mulher foi alcançada, constituindo-se achado relevante por permitir a construção de um cuidar a partir do ser-aí-mulher que se mostrou no cotidiano sendo gestante de alto risco, considerando as marcas metódicas e a contribuição científica da análise.

CONCLUSÃO

Ao desvelar os sentidos da mundanidade do ser-aí-mulher em risco reprodutivo no vivido da gestação de alto risco por cardiopatia por meio da imersão em sua singularidade, este estudo possibilitou reflexões em torno do redirecionamento da atenção do sistema de saúde à gestante de risco e contribuiu para a promoção da integralidade a partir da mudança na forma de olhar a mulher em situação de doença cardíaca e vislumbrá-la como um ser de possibilidades, sempre projetando a busca de um melhor vir-a-ser.

Neste sentido, pode-se depreender que as políticas públicas de atenção à saúde da mulher nos âmbitos da gestação de risco têm evoluído na prestação de serviços assistenciais de saúde centrada no modelo biomédico, do ponto de vista factual. Todavia, a série de proposições ministeriais e científicas se atém menos às questões subjetivas que assomam à mulher portadora de cardiopatia que engravida e mais às evidências científicas determinadas pelo paradigma positivista.

Também implica considerar que os resultados clarificaram a perspectiva da atuação multiprofissional em que se insere a enfermagem e que, em sua prática clínica, o enfermeiro e demais profissionais podem oferecer suporte emocional e educativo durante todos os momentos de cuidado no decorrer de consultas, exames e demais oportunidades de contato com a mulher portadora de cardiopatia em risco reprodutivo. Entretanto, as discussões sobre o risco percebido por parte da gestante devem se integrar à condução do pré-natal suscitando um impacto positivo na saúde reprodutiva da mulher.

Quer individualmente ou em grupo, a troca de experiências, a livre expressão de sentimentos, a possibilidade de refletir junto ao profissional acerca das situações que envolvem a gestação permitem maior enfrentamento desta condição, na qual a mulher em seus modos de ser e de estar no mundo deve ocupar lugar de destaque. Considera-se, enfim, a fenomenologia Heideggeriana como referencial que permite alcançar resultados de pesquisas qualitativas no campo epistemológico de interesse acerca da essência humana por meio das experiências vividas.

  • 1
    Artigo extraído da tese - Gestar Sendo-portadora-de-cardiopatia: contribuições para o cuidado em Saúde da Mulher, apresentada a Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2015.
  • *
    As expressões em itálico correspondem ao referencial teórico, filosófico e metodológico de Martin Heidegger.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    04 Out 2016
  • Aceito
    24 Maio 2017
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